RESUMO: Historicamente, as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social, sobrando para elas as piores remunerações e condições de trabalho. Esse artigo tem como objetivo analisar a vida profissional dessas mulheres à luz do princípio constitucional da busca pelo pleno emprego previsto no artigo 170, inciso VIII da Constituição Federal, que introduz o capítulo sobre a Ordem Econômica do Brasil. Nos últimos anos, dados estatísticos constataram que existe uma disparidade alarmante das condições salariais entre homens brancos e mulheres negras, mesmo que trabalhando nas mesmas condições. Entender o porquê desta discrepância é o nosso desafio. A hipótese para os dados apresentados é que a interseccionalidade de gênero e raça impacta na efetividade do princípio da busca pelo pleno emprego na vida das mulheres negras. Os conceitos norteadores deste artigo são o princípio da busca pelo pleno emprego, os instrumentos jurídicos que proíbem a discriminação no mundo do trabalho e a interseccionalidade. Para atingir o objetivo pretendido, a metodologia utilizada será pesquisa bibliográfica e documental por meio da análise do princípio da busca pelo pleno emprego e de instrumentos juridicos nacionais e internacionais que proíbem a discriminação no âmbito do trabalho e análise quantitativa com base em dados agregados.
PALAVRAS-CHAVE: pleno emprego; efetividade; mulheres negras; interseccionalidade de gênero e raça; discriminação
ABSTRACT: Historically, black women are at the base of the social pyramid, with the worst wages and working conditions left for them. This article aims to analyze the professional life of these women in the light of the constitutional principle of the search for full employment provided for in article 170, item VIII of the Federal Constitution, which introduces the chapter on the Economic Order of Brazil. In recent years, statistical data have shown that there is an alarming disparity in salary conditions between white men and black women, even working under the same conditions. Understanding the reason for this discrepancy is our challenge. The hypothesis for the data presented is that the intersectionality of gender and race impacts on the effectiveness of the principle of seeking full employment in the lives of black women. The guiding concepts of this article are the principle of seeking full employment, the legal instruments that prohibit discrimination in the world of work and intersectionality. To achieve the intended objective, the methodology used will be bibliographical and documental research through the analysis of the principle of the search for full employment and of national and international legal instruments that prohibit discrimination in the scope of work and quantitative analysis based on aggregated data.
KEYWORDS: full employment; effectiveness; black women; intersectionality; discrimination.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo analisar a vida profissional das mulheres negras à luz do princípio constitucional da busca pelo pleno emprego previsto no artigo 170, inciso VIII da Constituição Federal, um dos princípios gerais que orientam a atividade econômica do Estado Brasileiro. A análise da efetividade do princípio em voga será feita a partir da experiência das mulheres negras no mercado de trabalho do Brasil. Isso porque, apesar de elas estarem politicamente organizadas desde o início da década de 1950, com a criação do Conselho Nacional de Mulheres Negras no Rio de Janeiro e, dentro do auge das lutas feminista e antirracista do final dos anos 1970, suas reivindicações terem se expandido, culminando, em dezembro de 1988, no I Encontro Nacional de Mulheres Negras na cidade de Valença-RJ[1], somente nesses últimos oito anos, as denúncias de violações de direitos humanos sofridas por elas atingiram uma visibilidade nacional. Outro marco histórico do fortalecimento político do movimento de mulheres negras foi a organização, em 2015, da “Marcha Mulheres Negras: contra o racismo, a violência e pelo bem viver'', que reuniu cerca de cinquenta mil mulheres negras em Brasília. Essas mulheres também receberam o apoio de importantes ativistas internacionais, como a ex-pantera negra, intelectual e professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia, Angela Davis que, em uma de suas visitas ao Brasil, ressaltou o feminismo negro brasileiro e sua importância para as Américas.
No entanto, apesar da imensa visibilidade trazida para esta pauta, as mulheres negras seguem protagonizando os piores indicadores sociais do Brasil e convivem com graves e históricas violações de direitos humanos. Por exemplo, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2022 demonstram que 62% das vítimas de feminicídio no Brasil são negras e que, quando se analisa as vítimas de outros tipos de assassinatos violentos, esse índice passa dos 70%. Ainda, uma pesquisa realizada pela Rede de Pesquisa Solidária que tinha como objetivo examinar as mortes por COVID-19 para diferentes categorias de trabalhadores, constatou que as mulheres negras foram as que mais morreram de COVID-19 do que todos os outros grupos étnicos (mulheres brancas, homens brancos e negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação (Rede Pesquisa Solidária, 2021). Por último, elas também são as mais pobres. De acordo com a “Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das Condições de Vida da População Brasileira 2019”, 63% das casas comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos,estão abaixo da linha da pobreza, com US$ 5,5 per capita ao dia, cerca de R$ 420 mensais[2].
Os dados acima demonstram que as mulheres negras no Brasil não possuem uma condição digna de vida, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Considerando este cenário e compreendendo que o trabalho justo e remunerado é um direito humano de extrema relevância estando previsto no artigo 7o do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), o presente trabalho é uma tentativa de refletir sobre a efetividade do princípio da busca pelo pleno emprego como instrumento de inclusão socioeconômica e resgate da dignidade das mulheres negras.
Assim, pretende-se estudar o principio da busca pelo pleno emprego na Ordem Econômica Brasileira e os instrumentos juridicos que combatem a discriminação no mercado de trabalho.
A metodologia utilizada será a pesquisa bibliográfica e documental[3] por meio da análise do princípio da busca pelo pleno emprego e sua efetividade, considerando o capitalismo como o sistema econômico escolhido pelo constituinte originário. Posteriormente, serão analisados instrumentos juridicos nacionais e internacionais que proíbem a discriminação no âmbito do trabalho. Por último, com base em dados quantitativos agregados, será feita uma análise da situação socioeconômica das mulheres negras em relação a outros grupos étnicos.
1.O PRINCÍPIO DO PLENO EMPREGO NA ORDEM ECONÔMICA E A DISCRIMINAÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, emprego é definido como “uma maneira de prover a subsistência mediante ordenado, salário ou outra remuneração a que se faz jus pelo trabalho regular em determinado serviço, ofício, função ou cargo”[4]. Isso significa dizer que a definição de emprego está necessariamente conectada à uma formalidade na relação com um agente econômico específico[5] .
1.1 Breve histórico do pleno emprego na perspectiva econômica
Até a crise de 1929, os economistas da época trabalhavam com teorias que supunham o pleno emprego, ou seja, a inexistência do desemprego. Esse pressuposto, porém, se descolava cada vez mais da realidade, tornando necessária a busca por novas bases teóricas que dessem conta do cenário que estava posto[6].
Eric Hobsbawm traz estatísticas que permitem compreender a tônica do debate econômico do período. O desemprego em massa passou a ser visto não só como risco econômico, mas também político, por vibrar seu golpe nas bases do capitalismo. Entre os anos de 1932 e 1933, 22% da força de trabalho na Inglaterra, 27% nos Estados Unidos da América, 29% na Áustria e 44% na Alemanha, não tinham emprego.
A partir de então, a questão da busca do pleno emprego passa a ser constante nas constituições, nos programas de governo e nas promessas políticas (LIMA, 2022, p. 229)
Diante desse cenário, novos intelectuais surgiram e houve uma ressignificação do pleno emprego. Esse novo significado deve ser atribuído sobretudo a John Maynard Keynes (1883 - 1946) e sua obra A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda[7]. De acordo com (LIMA, 2022), a busca pelo pleno emprego ganhou uma ampliação em seu significado, englobando o pleno aproveitamento de todos os recursos produtivos. Ficando claro que esse conceito passa a ultrapassar o simples sentido de emprego como trabalho.
1.2 Pleno emprego e seu aspecto humano
Segundo o artigo 170 da Carta Magna, a atividade econômica exercida pelo agente econômico está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por finalidade assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, isto é, as práticas econômicas devem ocorrer de tal modo que respeitem os direitos humanos de todas as pessoas dentro do território brasileiro. É seguro afirmar, portanto, que o capitalismo humanista é o modelo econômico adotado pela Carta Magna de 1988. Nesta esteira:
(…) o capitalismo constitucionalmente recepcionado na Constituição Federal deve ser interpretado não só como um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, na iniciativa privada e na livre concorrência, pois, para atingir os fins da ordem econômica - existência digna e justiça social - gravita nesse sistema a incidência dos direitos humanos em todas as suas dimensões. (ARRUDA JUNIOR, 2014. p. 25).
Nesse sentido, o princípio da busca pelo pleno emprego está expresso no art. 170, inciso VIII como norteador da Ordem Econômica do Brasil.
O Pleno Emprego, entendido como a condição do mercado de trabalho na qual todo cidadão disposto a trabalhar encontra ocupação remunerada segundo suas aspirações, qualificações e habilidades, é condição indispensável para construir uma sociedade efetivamente democrática, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, e possibilitar aos que não dispõe de renda da propriedade a realização individual segundo suas potencialidades. Nesse sentido, é a contrapartida social do direito individual de propriedade, e a proteção constitucional daqueles que nascem sem direito à herança, mas com direitos de cidadania.” (ASSIS, 2000, p. 17) (grifos nossos)
No entanto, fatores estruturais podem ser barreiras impeditivas para que todas as pessoas realmente tenham acesso a um trabalho digno e justo, o que é o caso das mulheres negras. Elas pertencem ao maior grupo populacional do país, 28% de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE, 2010) e protagonizam indicadores negativos de disparidade salarial e desemprego.
Alguns vão afirmar que essas persistentes desigualdades são somente consequências do capitalismo, que promove acúmulo de capital de alguns privilegiados em detrimento de profundas desigualdades sociais. Celso Furtado, em sua obra “O Capitalismo Global”, ao relatar o processo histórico para desenvolvimento do Brasil afirma que
Naquela época, dávamos por certo que o desenvolvimento econômico e sua mola principal, a industrialização, eram condição necessária para resolver os grandes problemas da sociedade brasileira: a pobreza, a concentração da renda, as desigualdades regionais. Mas demoramos a perceber que estavam longe de ser condição suficiente. Daí que a consciência de êxito que tive na fase inicial de avanço da industrialização haja sido substituída por sentimento de frustração. Seria simplificar o problema atribuir ao golpe militar de 1964 a causa principal da mudança de sentido em nossa história, que levaria a substituir a meta do desenvolvimento (prioritariamente social) pela do crescimento econômico, que é inerentemente criador de desigualdades e privilégios (grifo nosso). (...) Daí que o duplo processo de desemprego e exclusão social, por um lado, e, por outro, de concentração de renda haja intensificado por todas as partes (grifos nossos) (FURTADO, 2007, p. 20)
Nesse contexto, é importante considerar o racismo[8] e o sexismo[9] como fundamentais para a manutenção do modelo econômico supra mencionado e seus impactos na experiência socioeconômica das mulheres negras.
Por que, mesmo qualificadas, a maioria delas não é absorvida de forma digna pelo mercado de trabalho formal? O jurista e intelectual Silvio Almeida, em sua obra “O racismo estrutural”, ao discorrer sobre a desigualdade salarial entre pessoas negras e pessoas brancas, argumenta que a explicação mais vulgar é a de atribuir referida desigualdade ao mérito, isto é, a competência de cada trabalhador ou trabalhadora
Pode ser que exercendo a mesma função, nas mesmas condições contratuais e ainda que com jornada inferior, um trabalhador ou trabalhadora seja mais eficiente, o que justificaria um salário maior, condizente com a sua produtividade. Por este prisma, a desigualdade vista nos números tem fundamento moral e jurídico, já que o mérito, expresso na eficiência e na produtividade dos indivíduos, a naturaliza (ALMEIDA, 2019. p. 155)
O argumento fundado somente no modelo econômico e na meritocracia sem uma análise social e histórica crítica deixa lacunas e pode não ser suficiente para refletir sobre a efetividade do princípio da busca pelo pleno emprego na vida das mulheres negras. Ainda, o argumento que ressalta a diferença nos níveis de escolaridade, estando as mulheres negras aquém do exigido pelo mercado, também não merece prosperar, tendo em vista que, segundo um levantamento feito pelo Insper, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -Pnad do IBGE - 2016 e 2018, entre os formados em universidade pública, as mulheres negras têm um salário médio de R$ 6.370,30, enquanto os homens brancos ganham R$ 15.055,84. No grupo de médicos que cursou medicina em instituições privadas, a remuneração é de R$ 3.723,49 e R$ 8.638,68, respectivamente.
Passemos, a seguir, a tratar da discriminação experienciada pelas mulheres negras.
2.A DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL
A exclusão das mulheres negras no mercado de trabalho formal é histórica tendo seu início no processo de substituição do modelo econômico escravagista para o capitalista, ao mesmo tempo que ideias de cunho eugenistas pulverizavam na sociedade brasileira. De acordo com RAMATIS (2008), durante o século XIX, em particular na sua segunda metade, o Império brasileiro instituiu leis que tiveram como consequência a marginalização do negro no mercado de trabalho.
O impedimento da inserção do negro liberto na nova estrtutura social pós-escravista ocorreu em variados setores, fez-se notar de maneira mais intensa no mercado de trabalho assalariado. (...) Esse pensamento,a partir do final da década de 1860, teve o darwinismo social como pano de fundo na busca de respostas a dilemas colocados para aquela sociedade em transformação. (...) O grande problema, da época, era o que fazer com os negros que vinham sendo libertados, onde alocá-los e como susbtituí-los na produção (RAMATS, 2008, p 39 - 40)
Tentando “modernizar” o País decidiu-se importar europeus para substituir o ex-escravo, inadaptado ao trabalho livre, segundo as concepções vigentes. A legislação que paulatinamente desconstruiu a instituição escravista, em associação ao êxodo de imigrantes europeus, promovido e organizado pelas elites, tinha por base o ideal de construção de uma nação “moderna”, compreendida como mais próxima das características de um país europeu e distante de tudo que para as elites significava a América e a África. (RAMATIS, 2008. p. 42)
Desde então, sobrou para a população negra recorrer aos trabalhos informais para prover o próprio sustento e ainda, quase um século e meio depois, o racismo estrutural mantém a população negra majoritariamente excluída do mercado de trabalho formal.
No plano econômico, a discriminação atua diferenciando, entre os grupos étnico-raciais, as probabilidades de acesso aos ativos econômicos e mecanismos favorecedores à mobilidade social ascendente: empregos, crédito, propriedades, terra, educação formal, acesso às universidades, qualificação profissional, treinamentos no emprego (job-training). (PAIXÃO, 2011. p. 21)
Segundo ALMEIDA (2019), Pedro Chadarevian, ao tratar do processo de acumulação de capitais, faz uma síntese de que os diversos autores da teoria econômica do racismo entendem como mecanismo de discriminação racial. São eles: a divisão racial do trabalho; o desemprego desigual entre os grupos raciais; o diferencial de salários entre trabalhadores negros e brancos; e a reprodução - física e intelectual - precária da força de trabalho negra.
As mulheres negras sofrem com a discriminação múltipla motivada pelo gênero e pela raça, essa interseccionalidade é fundamental para se compreender os desafios impostos às mulheres negras em sua luta por reconhecimento e, ao mesmo tempo, por um tratamento igualitário no mercado de trabalho.
Intersectionality is a way of understanding and analyzing the complexity in the world, in people, and human experiences. The events and conditions of social and political life and the self can seldom be understood as shaped by one factor. They are generally shaped by many factors in diverse and mutually influencing ways. When it comes to social inequality, people's lives and the organization of power in a given society are better understood as being shaped not by a single axis of social division, be it race or gender or class, but by many axes that work together and influence each other. Intersectionality as an analytic tool gives people better access to the complexity of the world and of themselves (COLLINS e BILGE, 2018, p.24)
Conforme já mencionamos anteriormente, apesar de o movimento de mulheres negras ser politicamente organizado há décadas, demorou muito tempo para que fossem produzidos estudos oficiais que dessem conta de analisar especificamente as condições das trabalhadoras negras. De acordo com BENTO (2011), um dos primeiros estudos feitos nesse sentido foi a publicação o Lugar do Negro na Força de Trabalho em que os autores apontam como principais caracteristicas da situação da trabalhadora negra: a remuneração extremamente baixa quando comparada a outros grupos e a concentração em determinados setores do mercado e em certas atividades cujos salários e condições de trabalho são inferiores. Ainda de acordo com BENTO (2011), posteriormente, estudos sobre a realidade das mulheres negras no mundo do trabalho foram produzidos na década de 90 e atestaram que este é o segmento que ingressa no mercado de trabalho mais precocemente e o que permanece nele por mais tempo e, também, o segmento que mais investe na escolarização e o que menos retorno tem do aumento de sua qualificação e o que sofre as mais altas taxas de desemprego.
Desde 2015, a quantidade de dados produzidos que dão conta de considerar a interseccionalidade de gênero e raça teve uma aumento considerável, em decorrência da forte mobilização do movimento de mulheres negras. Uma das principais pautas é, sem dúvidas, o acesso digno a oportunidades decentes de emprego. Isso porque, de um modo geral, as mulheres ganham menos do que os homens, devido aos fatores históricos de discriminação de gênero. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre a importância da legislação de transparência salarial apontou que, mundialmente, as mulheres ganham salários 20% menores em média do que os homens[10].
Ao olhamos especificamente para as mulheres negras no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, os dados são alarmantes. Por exemplo, no contexto pós pandemia, uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, em 2022, utilizando como base dados do IBGE, constatou que quando se trata de vagas com carteira assinada, geralmente as mulheres negras não são as contratadas, sobrando para elas a informalidade. Segundo o levantamento realizado, 43% das mulheres pretas e pardas ocupam postos de trabalho informais, uma taxa superior à média nacional. Esse tipo de relação de trabalho faz com que elas acabem ganhando menos[11].
Outro pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação do Rio de Janeiro, em 2021, mostrou que a pandemia do COVID-19 reduziu ainda mais a força de trabalho feminina e negra no município. O estudo aponta que a taxa de negras no mercado de trabalho caiu nove pontos percentuais no primeiro trimestre do ano em comparação ao mesmo período do ano passado, de 56% para 47%[12].
Um estudo apresentado pelo Dieese - Departamento Intersindical Estatística Estudos com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do IBGE, revelou que as mulheres trabalhadoras negras foram as mais prejudicadas pela pandemia no mercado de trabalho brasileiro[13]. Segundo os dados, o número de desempregadas negras deu um salto: passou de 4,4 milhões em 2019 para 7,3 milhões em 2021[14].
Quanto às disparidades salariais, independentemente do nível de escolaridade:
(...) pretos e pardos continuam recebendo bem menos que os brancos no Brasil. Em 2018, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas (2.796 reais) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (1.608 reais). Os brancos com nível superior completo ganhavam por hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível de instrução. (MENDONÇA, 2019)
E ainda, quando trazemos o recorte de gênero e raça, o mesmo estudo apontou que as mulheres negras recebem, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%).
3.LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL E NACIONAL SOBRE DISCRMINAÇÃO NO TRABALHO
O Direito Internacional e o Direito Brasileiro possuem instrumentos jurídicos que visam erradicar a discriminação no acesso ao trabalho digno.
3.1 Âmbito Internacional
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, acolhida pelo Brasil, determinou que:
Artigo 23° 1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. 2.Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3.Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.
Note que, segundo a Declaração, não basta o Estado e a iniciativa privada possibilitarem oportunidade de emprego para todas as pessoas, é necessário que sejam em condições decentes com uma remuneração justa coerente com a atividade laboral exercida e livre de qualquer discriminação que possa resultar em desigualdade salarial.
A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho trata da Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, ratificada pelo Brasil, em seu artigo 2o prevê que:
Qualquer membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria[15].
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) promove a igualdade em seu art. 2º, em tudo semelhante ao art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagrando que os Estados têm a obrigação de assegurar os direitos previstos neste pacto, sem qualquer distinção que derive, nomeadamente, da raça (MACHADO, 2022).
A Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, conceitua a discriminação racial como:
Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade,dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.
A Declaração e Programa de Ação de Durban incentiva a Organização Internacional do Trabalho a desenvolver e organizar atividades e programas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata no mundo do trabalho e a apoiar as ações dos Estados, organizações patronais e sindicais neste campo (DURBAN, 2001)
A Declaração de Pequim e Plataforma de Ação de 1995, o documento mais importante no que diz respeito à promoção e proteção dos direitos humanos das mulheres, em seu preâmbulo assegura a necessidade de:
Intensificar os esforços para garantir o exercício, em igualdade de condições, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as mulheres e meninas que enfrentam múltiplas barreiras para seu fortalecimento e avanços, em virtude de fatores como raça, idade, língua, origem étnica, cultura, religião, incapacidade/deficiência, ou por integrar comunidades indígenas”[16] (grifo nosso)
3.2 Âmbito Nacional
No âmbito do direito interno, cabe destacar algumas leis que vedam e criminalizam a discriminação racial. A Lei 7.716/ 89, popularmente conhecida como Lei Caó[17], define como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Ela também regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo, após dizer que todos são iguais sem discriminação de qualquer natureza.[18]
A Lei 12. 288 de 2010 que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, em seu artigo 1o afirma que o Estatuto tem o objetivo de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Ainda inciso III do mesmo artigo, inova ao definir a discriminação de gênero e raça como sendo assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais.[19]
A mesma legislação, determina em seu artigo 39o que o poder público deverá promover ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo exposto, consideramos que a efetividade do princípio da busca do pleno emprego para as mulheres negras passa necessariamente por medidas de promoção dos direitos humanos dessas mulheres, especificamente. Os dados analisados trouxeram a importante reflexão de que as décadas de luta por reconhecimento finalmente trouxeram visibilidade do recorte de raça e gênero para debate público, e a constatação de que as trabalhadoras negras são a maioria nos piores indicadores sociais no que diz respeito ao acesso ao pleno emprego.
Ao contrário do que o pensamento tradicional apresenta, o capitalismo por si só não é o causador da precariedade em que essas mulheres vivem, fatores estruturais como é o caso da discriminação racial e de gênero, ou, conforme nossa hipótese, a interseccionalidade de gênero e raça são determinantes para a configuração desta realidade.
Para que o emprego seja pleno e assegure os direitos individuais das trabalhadoras negras, além de uma remuneração justa, é preciso que as altas taxas de desemprego e a hiper representação delas na informalidade sejam revertidas através da implementação de políticas públicas e iniciativas do setor privado com o incentivo do Estado. Enfrentar esses dois vetores sociais é fundamental para romper com o ciclo de pobreza que assola os lares das milhares de famílias negras no Brasil.
A inclusão digna das trabalhadoras negras no mercado de trabalho formal é fundamental para a construção de uma sociedade justa e igualitária para todos os cidadãos. Só aí poderemos afirmar que, no Brasil, há efetividade do princípio da busca do pleno emprego.
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SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Cientifico. São Paulo, 23 ed. rev. e atual, p. 122, Cortez, 2007
[1] GONÇALVES, Renata. Trinta anos no I Encontro Nacional de Mulheres Negras: uma articulação de gênero, raça e classe, Lutas Sociais, São Paulo, vol.22 n.40, p.9-22, jan./jun. 2018 Disponível em:<Vista do Trinta anos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras: uma articulação de gênero, raça e classe (pucsp.br)>. Acesso em 18.06.2022
[2]FERREIRA, BRUNO e MARTINS. Lola, Maria e Flávia. Artigo “Gênero e Número | No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza”. Disponível em Gênero e Número | No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza (generonumero.media) <acesso em 09.10.2022>
[3] SEVERINO, Antônio Joaquim. METODOLOGIA DO TRABALHO CIENTÍFICO, 23 ed. rev. e atual, São Paulo, Cortez, 2007
[4] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, editora Nova Fronteira, 1988
[5] MOREIRA, Leonardo Rezeck. A Busca do Pleno Emprego. Jusbrasil, 2014. Disponível em: <A busca do pleno emprego (jusbrasil.com.br)> Acesso em: 10.05.2022.
[7] KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996
[8] Racismo é a crença ou convicção sobre a superioridade de uma raça ou determinadas raças, sobre as demais, com base em diferentes motivações, em especial, as características físicas e outros traços do comportamento humano. Dentro do sistema racista o valor do ser humano é determinado pela sua pertinência a uma nação racial coletiva. Artigo “Mas afinal o que é o racismo?”. RABELLO, Tatiana. Mas afinal, o que é o racismo?. Portal Geledés, 2014. Disponível em: < Mas afinal o que é o racismo? – Por: Tatiana Cendron Fortes Rabello (geledes.org.br)> Acesso em: 19.03.2023
[9] O sexismo, em princípio, trata-se de uma atitude discriminatória que define quais usos e costumes devem ser respeitados por cada sexo, desde o modo de vestir até o comportamento social adequado. Também contempla a ideia de que o homem é melhor e mais competente do que a mulher, uma concepção que se assemelha ao machismo, mas vai além. Ser sexista não é privilégio de homens heterossexuais, pois mulheres ou gays também podem adotar seu discurso. A sociedade, de maneira geral, é sexista e educa as crianças de forma a reproduzir modelos binários em que a tendência é de que um sexo deva ser complementar ao outro. Ter medo de que um menino "vire gay" por brincar com boneca é um pensamento sexista. Já a expressão “homens são de Marte mulheres são de Vênus” é sexista por constranger os sexos a serem de uma determinada forma tanto em relação ao seu comportamento quanto em relação ao seu caráter. Outro exemplo é colocar as mulheres sempre na condição de vítima, ideia que sinaliza uma condição eterna de submissão. Uma das consequências da cultura sexista é a homofobia e a desigualdade de poder, oportunidades e salários que homens e mulheres vivem no mundo profissional. NORONHA, Heloisa. Machismo, sexismo e misoginia: quais são as diferenças?. Universa UOL, 2021. Disponível em: <
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/12/03/machismo-sexismo-e-misoginia-quais-sao-as-diferencas.htm> Acesso em: 19.03.2023
[10] Relatório da OIT aponta que mulheres recebem 20% menos do que homens. Nações Unidas Brasil, 2021. Disponível em: <Relatório da OIT aponta que mulheres recebem 20% menos do que homens | As Nações Unidas no Brasil>. Acesso em 19.03.2023
[11]Cai participação de mulheres negras no mercado de trabalho em relação ao período pré-pandemia. Portal G1, 2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/25/cai-participacao-de-mulheres-negras-no-mercado-de-trabalho-em-relacao-ao-periodo-pre-pandemia.ghtml> Acesso em: 05.10.2022
[12] JANONE, Lucas. Mulheres negras perdem vagas de trabalho durante pandemia, aponta estudo. CNN Brasil,2021. Disponível em: <Mulheres negras perdem vagas de trabalho durante pandemia, aponta estudo | CNN Brasil>. Acesso em: 19.03.2023
[13] ILHA, Flávia. Mais de 1,2 milhão de mulheres negras perderam o emprego na pandemia. Portal Extra Classe, 2022. Disponível em: <Mais de 1,2 milhão de mulheres negras perderam o emprego na pandemia - Extra Classe>. Acesso em 19.03.2023
[15] Convenção 111: Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação. Organização Internacional do Trabalho (OIT). Disponível em: <C111 - Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (ilo.org)> Acesso em 19.03.2023
[16]Tratado Internacional - Declaração de Pequim: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz. Biblioteca Virtual da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Disponível em: < Tratado Internacional - Declaração de Pequim: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz (pge.sp.gov.br)>. Acesso em: 30. 06. 2022
[18] COSTA, Flávia. Lei nº 7.716/89 - Lei CAÓ, 25 anos no Combate ao Racismo. Publicado em 12.01.2014. Disponível em:https://www.geledes.org.br/lei-7-71689-lei-cao-25-anos-combate-ao-racismo/?gclid=Cj0KCQjw1vSZBhDuARIsAKZlijTdRygarsqTVp8USmp7dSOhBTINsjoGJP3VSwjPa-VCqI86eR1bf9gaApknEALw_wcB <Acesso em 06.10.2022>
[19] Lei nº 12.288, de 20 de Julho de 2010. Disponível em: <L12288 (planalto.gov.br)> Acesso em: 19.03.2023
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRANCO, Sara Alves. A efetividade do princípio constitucional da busca pelo pleno emprego na vida das mulheres negras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 mar 2023, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61222/a-efetividade-do-princpio-constitucional-da-busca-pelo-pleno-emprego-na-vida-das-mulheres-negras. Acesso em: 22 nov 2024.
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