Resumo: No âmbito do processo internacional previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem por objetivo apurar a responsabilidade internacional do Estado com relação ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, o Estado processado possui o direito de defesa, podendo apresentar contestação e produzir provas. Neste momento, é possível que alegue exceções preliminares, que consistem em objeções acerca da admissibilidade do caso ou da competência da Corte para julgar o objeto do processo. O presente artigo analisou todas as exceções preliminares já opostas pelo Estado brasileiro e as conclusões da Corte sobre o tema.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Exceções preliminares. Jurisprudência internacional.
Resumen: Em el ámbito del procedimento internacional previsto em la Convención Americana sober Derechos Humanos ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos, que tiene por objeto determinar la responsabilidade internacional del Estado em relación com el Sistema Interamericanoa de Protección de los Derechos Humanos, el Estado demandado tiene derecho a la defesa, sendo capaz de presentar contestación y producir pruebas. En este momento, es posible opor excepciones preliminares, que consisten em defensas sobre la admissibilidad del caso o la competência de la Corte para juzgar el objeto del processo. El presente artículo analizó todos las excepciones ya opostas por el Estado brasileño y las conclusiones de la Corte sobre el tema.
Palabras clave: Derechos Humanos. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Excepciones preliminares. Jurisprudencia internacional.
1. INTRODUÇÃO
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um órgão criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), principal tratado internacional no âmbito interamericano que dispõe sobre direitos humanos na região. Possui jurisdição consultiva e contenciosa. Isto é, possui como função emitir opiniões consultivas sobre determinados temas em que provocada (numa verdadeira consulta acerca da temática de direitos humanos) e também uma função contenciosa, de julgar os Estados supostamente violadores de direitos humanos, uma vez que tenham aceito tal competência.
Desde que o Estado brasileiro aceitou a competência contenciosa da Corte, em 1º de dezembro de 1998, nos termos do artigo 62 da CADH, já foi processado vinte e uma vezes, tendo sido condenado em doze, existindo ainda nove casos pendentes de julgamento. Ou seja, foi condenado em todos os processos que já foram concluídos.
Durante o processo internacional, à similitude do direito processual brasileiro, o Estado pode alegar questões de mérito e questões “processuais”, que recebem a denominação de “exceções preliminares” no Regulamento da Corte IDH. Nas palavras de André de Carvalho Ramos (2020, p. 447), são “exceções preliminares toda a matéria que impeça a Corte de se pronunciar sobre o mérito da causa, como, por exemplo, ausência de esgotamento prévio dos recursos internos”. Funcionam, assim, num paralelo com o direito processual interno, como questões preliminares ou prejudiciais, que afetam ou impedem o julgamento do mérito. No Caso Escher e outros vs. Brasil (2009), é possível extrair o conceito dado pelo própria Corte:
15. Si bien la Convención Americana y el Reglamento no explican el concepto de “excepción preliminar”, en su jurisprudencia reiterada la Corte ha afirmado que por este medio se cuestiona la admisibilidad de una demanda o la competencia del Tribunal para conocer determinado caso o alguno de sus aspectos, en razón de la persona, la materia, el tiempo o el lugar. De tal manera, la Corte ha señalado que una excepción preliminar tiene por finalidad obtener una decisión que prevenga o impida el análisis sobre el fondo del aspecto cuestionado o del caso en su conjunto. Por ello, el planteo debe satisfacer las características jurídicas esenciales en contenido y finalidad que le confieran el carácter de “excepción preliminar”. Los planteamientos que no tengan tal naturaleza, como por ejemplo los que se refieren al fondo de un caso, pueden ser formulados mediante otros actos procesales previstos en la Convención Americana, pero no bajo la figura de una excepción preliminar.
O presente artigo tem por objeto, assim, a análise de todas as exceções preliminares já apresentados pelo Estado brasileiro perante a Corte IDH, limitando-se a análise aos casos que já foram julgados e a Corte já realizou a cognição sobre tais questões. A metodologia empregada foi a consulta direta das sentenças proferidas, tal como a bibliografia indicada.
2. UMA BREVE EXPOSIÇÃO SOBRE O PROCESSO INTERNACIONAL PREVISTO NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A competência contenciosa da Corte IDH traduz-se na possibilidade de julgar um Estado supostamente violador de direitos humanos, sejam aqueles previstos na própria CADH ou em outros instrumentos internacionais, diante de um caso concreto submetido a ela, declarando sua responsabilidade internacional. Em inteligência ao art. 62 da CADH, constata-se que tal competência não é decorrência lógica da ratificação à Convenção, ou seja, é possível que um Estado ratifique a CADH porém não se submeta à jurisdição da Corte IDH. Faz-se necessário, nos termos do artigo citado, uma declaração específica do Estado, apontando expressamente que reconhece tal competência.
O Brasil, não obstante tenha ratificado e incorporado a CADH em 1992, somente em 1998 é que fez a declaração específica, por meio do Decreto Legislativo n. 89/98, decretado pelo Congresso Nacional, devidamente comunicada ao Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 10 de dezembro de 1998, conforme exige o art. 62.2 da Convenção. Nos termos do referido Decreto, o Estado brasileiro reconheceu a competência da Corte IDH “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para os fatos ocorridos a partir do reconhecimento” (BRASIL, 1998). Vale dizer, o reconhecimento da competência possui um marco temporal: somente os casos ocorridos a partir de então é que poderiam ser julgados perante o órgão jurisdicional internacional.
Uma vez aceita a competência contenciosa, é possível que o Estado, então, seja julgado pela Corte IDH, diante de casos concretos a ela submetidos. A CADH traz as linhas gerais do processo internacional, complementada pelos Regulamentos da Corte IDH e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
No sistema interamericano, somente a CIDH ou outro Estado possui legitimidade ativa para provocar a atuação da Corte IDH, não podendo um indivíduo, diretamente, acioná-la (art. 61.1, da CADH). O que se vê na prática é que a provocação da Corte em matéria contenciosa é exercida praticamente com exclusividade pela CIDH, não sendo diferente com o Brasil, sendo que todos os processos iniciados foram a partir da atuação da Comissão.
A CIDH é composta por sete membros, eleitos a título pessoal para um mandato de quatro anos, podendo haver uma reeleição (arts. 34 e 36, da CADH). Possui como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos, possuindo algumas funções específicas apontadas no art. 41 da CADH, sendo uma delas o recebimento e processamento de denúncias de violações de direitos humanos.
Conforme preceitua o art. 44 da Convenção, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais membros da Organização (leia-se Organização dos Estados Americanos - OEA), pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação da CADH por um Estado-parte.
Com relação à denúncia, interessante notar os requisitos de admissibilidade trazidos pelo art. 46.1 da Convenção, sendo eles: a) a necessidade de esgotamento dos recursos da jurisdição interna do Estado; b) que seja apresentada dentro de seis meses, contados a partir da comunicação da decisão definitiva que tenha supostamente violado os direitos da vítima; c) que a questão não esteja pendente de outro processo de solução internacional; d) que seja indicado o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou das pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição, caso a denúncia seja oriunda de particulares, e não do próprio Estado (denunciando outro Estado, conforme permite o art. 45). Tais requisitos, porém, podem ser mitigados, nos termos do art. 46.2, dispensando-se o esgotamento dos recursos internos ou a observância do prazo de seis meses quando: a) não existir, na legislação interna do Estado, o devido processo legal para a tutela dos direitos violados; b) não tiver sido permitido à suposta vítima o acesso aos recursos da jurisdição interna ou houver sido impedida de esgotá-los; c) existir demora injustificada na decisão sobre tais recursos. Em termos positivados, são estes os requisitos de admissibilidade do sistema interamericano; porém, é possível encontrar outras exceções na jurisprudência da Corte IDH e da CIDH, criadas diante da especificidades de casos concretos.
No âmbito da CIDH, a denúncia será recebida pela Secretaria Executiva do órgão, que realizará o trâmite inicial (art. 26 do Regulamento da CIDH). Dentre outros atos, será dado ao Estado a possibilidade de apresentar sua resposta no prazo de dois meses (art. 30.3 do referido Regulamento), sendo que, após os tramites necessários, a Comissão fará o juízo de admissibilidade da denúncia, passando, então, a se concentrar no mérito da questão. A resposta do Estado neste momento é de especial importância para a análise das defesas processuais, uma vez que, conforme será visto, há determinadas matérias que, se não arguidas neste momento, a Corte IDH entende pela sua preclusão, não cabendo ao Estado, pois, alegar a questão apenas perante a Corte IDH, posteriormente.
Após o trâmite processual, é possível que se chegue a uma solução amistosa. Em tais casos, conforme dispõe o art. 49 da CADH, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário (denunciante) e aos Estados-Partes da Convenção e, posteriormente, transmitido ao Secretário-Geral da OEA, para sua publicação. Tal relatório indicará brevemente os fatos e a solução alcançada.
Caso não seja alcançada a solução amistosa, caberá à CIDH, apreciando o mérito da denúncia, produzir um relatório expondo os fatos e suas conclusões (art. 50, da CADH). Tal relatório é sigiloso (art. 50.2), devendo ser transmitido ao Estado denunciado, podendo conter proposições e recomendações que a Comissão julgar adequadas para a solução da controvérsia (art. 50.3). Tal documento é denominado pela doutrina de Primeiro Informe ou Primeiro Relatório (RAMOS, 2020, p. 442), ou ainda de Relatório Preliminar (art. 47 do Estatuto da CIDH).
Acatando o Estado tais proposições e tomando as medidas recomendadas, a questão estará resolvida. Porém, se no prazo de três meses, contados da comunicação do relatório, não houver adotado as providências adequadas e necessárias, reparando os danos, surgirá duas possibilidades para a CIDH: a produção de um segundo relatório, definitivo, ou submeter o caso ao julgamento da Corte IDH (art. 51 e 61.2, da CADH).
O segundo relatório é público, diferentemente do primeiro, tendo a finalidade de constranger politicamente o Estado no âmbito internacional. Não havendo a solução da questão no prazo de três meses, a Comissão então, por maioria absoluta de votos, poderá produzir o relatório definitivo, contendo seu parecer e suas conclusões e recomendações. Conforme ressalta Ramos (2020, p. 443), no caso de descumprimento deste segundo relatório, a CIDH encaminhará seu relatório anual à Assembleia Geral da OEA, apontando as deliberações não cumpridas pelos Estados, a fim de que a OEA adote medidas para convencer o Estado violador a restaurar os direitos protegidos. Como se vê, o segundo relatório possui um cunho eminentemente político, despido de uma sanção propriamente jurídica. Tem cabimento em especial quando o Estado não reconheceu a competência contenciosa da Corte IDH, sendo impossível, pois, submetê-lo a julgamento.
Em não se optando pela produção do segundo informe, é possível que a CIDH submeta o caso à Corte IDH, a qual exercerá sua função jurisdicional e julgará a demanda.
O processo perante a Corte IDH é regulado, em termos gerais, pela CADH, e de forma minuciosa pelo Regulamento da própria Corte. Em linhas gerais, trata-se de um procedimento contraditório, no qual a vítima será intimada a apresentar suas razões, bem como o Estado a oferecer contestação, podendo-se produzir provas documentais e orais, admitir-se a participação de amicus curiae, debates etc. Interessa para este artigo, mais detidamente, a contestação do Estado. É neste momento, afinal, que serão opostas perante a Corte eventuais exceções preliminares.
Nos termos do art. 41 do Regulamento da Corte IDH, o Estado goza do prazo de dois meses para apresentar sua contestação, podendo aceitar os fatos apresentados na denúncia e reconhecer sua responsabilidade internacional ou efetivamente contestar os fatos, apresentado sua versão, indicando os fundamentos de direito e suas provas. É possível, ainda, que alegue exceções preliminares, objeto de análise deste artigo.
As exceções preliminares devem obrigatoriamente ser alegadas em sede de contestação, nos termos do art. 42.1 do Regulamento citado. Da mesma forma que no mérito, cabe ao Estado indicar as razões de direito que fundamentam sua alegação, bem como indicar documentos e provas que a embasem (art. 42.2). Tais alegações não tem o condão de suspender o processo, podendo ser objeto de contraditório e de prova específica (art. 42, itens 3, 4 e 5). Ademais, podem ser resolvidas juntamente com a sentença de mérito, prática reiterada da Corte (art. 42.6).
Após o trâmite processual, a Corte IDH proferirá sua sentença, resolvendo as questões de mérito e as defesas preliminares, pondo fim, assim, à controvérsia.
3. AS EXCEÇÕES PRELIMINARES ARGUIDAS PELO BRASIL
Até a data de conclusão deste artigo (07/06/2023), o Brasil já foi condenado doze vezes, sendo as condenações dos seguintes casos: 1) Ximenes Lopes; 2) Nogueira de Carvalho e outro; 3) Escher e outros; 4) Garibaldi; 5) Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”); 6) Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde; 7) Favela Nova Brasília; 8) Povo Indígena Xucuru e seus membros; 9) Herzog e outros; 10) Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e familiares; 11) Márcia Barbosa de Souza; 12) Sales Pimenta. Em todos os casos, o Estado brasileiro arguiu exceções preliminares. De forma a sistematizar as questões levantadas, a análise será feita por questão, e não por caso, indicando-se, porém, em qual caso foram devidamente discutidas.
3.1. Primeira exceção: Ausência de esgotamento dos recursos da jurisdição interna do Estado
Conforme exposto no capítulo anterior, um dos requisitos exigidos pela CADH para o acesso à jurisdição internacional é o esgotamento dos recursos internos do Estado (art. 46.1, da CADH), evidenciando a subsidiariedade do sistema interamericano de proteção, resguardando-se, assim, a soberania estatal. Importante ter-se em mente que o termo “recursos” não deve ser interpretado num sentido à luz do direito processual brasileiro. A CADH emprega tal termo de forma ampla, compreendendo-se nele todo e qualquer instrumento capaz de tutelar os direitos humanos, sejam recursos propriamente ditos (desdobramento de uma ação já instaurada), ou ações autônomas de impugnação, ações ordinárias etc. Conforme leciona Ramos (2020, p. 438):
O esgotamento dos recursos internos exige que o peticionante prove que tenha esgotado os mecanismos internos de reparação, quer administrativos, quer judiciais, antes de que sua controvérsia possa ser apreciada perante o Direito Internacional. Fica respeitada a soberania estatal ao se enfatizar o caráter subsidiário da jurisdição internacional, que só é acionada após o esgotamento dos recursos internos.
Contudo, os Estados têm o dever de prover recursos internos aptos a reparar os danos porventura causados aos indivíduos. No caso de inadequação destes recursos, o Estado responde duplamente: pela violação inicial e também por não prover o indivíduo de recursos internos aptos a reparar o dano causado.
A presente exceção foi arguida em todos os casos pelo Estado brasileiro, não tendo sido acolhida nenhuma vez pela Corte IDH.
No entendimento da Corte, o requisito de esgotamento dos recursos internos trata-se de requisito de admissibilidade da própria denúncia perante a CIDH, em inteligência ao disposto na CADH. Assim, tal exceção deve ser invocada logo na manifestação do Estado ainda perante a Comissão, de forma a demonstrar que a denúncia sequer deve ser admitida. Não pode o Estado, diante do seu silêncio na fase de admissibilidade, inovar em sua contestação perante a Corte IDH e invocar tal argumento, agindo, assim, de forma contraditória. Para a Corte, tal defesa que assiste o Estado é passível de renúncia, e, não tendo sido arguida no momento oportuno, entende-se pela sua renúncia tácita. O trecho extraído da sentença do Caso Nogueira de Carvalho vs. Brasil (2006) é conciso no ponto:
51. La Corte ya ha establecido criterios claros que deben atenderse sobre la interposición de la excepción de falta de agotamiento de los recursos internos. De los principios del derecho internacional generalmente reconocidos, a los cuales se refiere la regla del agotamiento de los recursos internos, resulta, en primer lugar, que el Estado demandado puede renunciar en forma expresa o tácita a la invocación de esa regla. En segundo lugar, la excepción de no agotamiento de recursos internos debe plantearse, para que sea oportuna, en la etapa de admisibilidad del procedimiento ante la Comisión, o sea, antes de cualquier consideración en cuanto al fondo; si no es así, se presume que el Estado renuncia tácitamente a valerse de ella. En tercer lugar, la Corte ha señalado que la falta de agotamiento de recursos es una cuestión de pura admisibilidad y que el Estado que la alega debe indicar los recursos internos que es preciso agotar, así como acreditar que esos recursos son adecuados y efectivos.
Nesse sentido, Ramos (2020, p. 439) esclarece que “se o Estado nada alega durante o procedimento perante a Comissão, subentende-se que houve desistência tácita dessa objeção. Após, não pode o Estado alegar a falta de esgotamento, pois seria violação do princípio do estoppel, ou seja, da proibição de se comportar de modo contrário a sua conduta anterior (non concedit venire contra factum proprium)”.
No Caso Ximenes Lopes (2005), a Corte IDH assentou a não alegação pelo Estado brasileiro da exceção no momento oportuno (no momento da admissibilidade de denúncia, realizada pela CIDH), só trazendo a questão perante a Corte. Por tal razão, não a acolheu. Interessante notar que já neste momento (a sentença que resolveu a exceção preliminar é 30 de novembro de 2005, tendo sido a primeira condenação do Brasil no sistema interamericano), a Corte já possuía jurisprudência firme em tal sentido, indicando expressamente na sentença diversos casos já decididos. Não obstante, tal alegação foi afastada em todos os casos que ainda estariam por vir, sendo por diversas vezes pelo mesmo fundamento: a falta de alegação no momento adequado.
No Caso Nogueira de Carvalho e outro (2006), a Corte entendeu que a alegação do Estado brasileiro perante a CIDH foi inadequada, e portanto, insuficiente. Entendeu-se que o Brasil preocupou-se mais em apontar que teria cumprido as recomendações do relatório preliminar do que propriamente ter invocado tal exceção. Apontou-se que o processo estaria em trâmite perante o juiz competente, porém não discutiu de maneira expressa e adequada tal requisito de admissibilidade, não indicando quais recursos ainda estavam pendentes e se eram realmente efetivos e adequados, ônus que lhe compete, sendo que somente perante a Corte apontou a pendência de um recurso extraordinário e um especial.
Aqui, pois, reside outro aspecto importante sobre a exceção: além de existir o momento adequado de alegá-la, sob pena de preclusão, é necessário que o Estado indique quais os recursos não foram esgotados e estavam à disposição da vítima. Ou seja, é ônus do Estado demonstrar que os recursos internos não foram esgotados, não bastando a mera alegação. Na sentença do caso apontou-se (2006):
53. La Corte observa que el Estado, de acuerdo con los criterios citados anteriormente, al no indicar expresamente durante el procedimiento de admisibilidad ante la Comisión Interamericana cuáles serían los recursos idóneos y efectivos que deberían haber sido agotados, renunció implícitamente a un medio de defensa que la Convención Americana establece en su favor e incurrió en admisión tácita de la inexistencia de dichos recursos o del oportuno agotamiento de éstos. El Estado estaba, por lo tanto, impedido de alegar el no agotamiento de los recursos especial y extraordinario en el procedimiento ante la Corte.
No Caso Escher e outros (2009), o Estado brasileiro agiu parcialmente de forma adequada. Dos três fundamentos que alegou, dois foram feitos no momento oportuno, tendo havido efetivamente a indicação de quais recursos não teriam sido esgotados; o último foi alegado somente na contestação. Com relação a este, como visto, a Corte possui jurisprudência firme com relação ao momento adequado de alegação, razão pela qual não foi acolhido. Com relação aos demais, a Corte reconheceu a adequação do procedimento e enfrentou propriamente o mérito da exceção, porém não concordou com o Estado brasileiro, apontando, em suma, que as ações indicadas por este não eram corretas e adequadas para fazer cessar a violação dos direitos humanos, bem como as ações penais subjacentes à discussão já haviam findado, evidenciando o esgotamento dos recursos internos.
Nesse caso, é evidenciado mais um aspecto exigido com relação ao exame da questão, pois, como visto, além de ser necessário a alegação no momento oportuno e a indicação dos recursos que não foram esgotados, faz-se também uma exigência que os recursos indicados revelem-se efetivos para a tutela dos direitos humanos violados; é imprescindível, assim, tal predicado nos recursos indicados, o qual inevitavelmente gerará um dever à Corte de conhecer e exercer um juízo de valor sobre a alegação para verificar se havia efetividade ou não. Para a Corte, não tem fundamento exigir o esgotamento de um recurso interno que não seja capaz de alterar as circunstâncias fáticas, ou seja, não seja capaz de tutelar os direitos humanos discutidos, em outras palavras, eficaz e adequado. Assim constou na sentença (2009):
28. (...) Respecto de los presupuestos materiales, se observará si se han interpuesto y agotado los recursos de la jurisdicción interna, conforme a los principios del Derecho Internacional generalmente reconocidos; en particular, si el Estado que presenta esta excepción ha especificado los recursos internos que aún no se han agotado, y será preciso demostrar que estos recursos se encontraban disponibles y eran adecuados, idóneos y efectivos. Por tratarse de una cuestión de admisibilidad de una petición ante el Sistema Interamericano, deben verificarse los presupuestos de esa regla según sea alegado, si bien el análisis de los presupuestos formales prevalece sobre los de carácter material y, en determinadas ocasiones, estos últimos pueden tener relación con el fondo del assunto
No Caso Garibaldi (2009), a Corte ressaltou que o Brasil somente apresentou tal alegação dois anos e quatro meses após a primeira solicitação da CIDH sobre informações acerca do caso. Não obstante, como ainda foi apresentada antes da realização do juizo de admissibilidade da denúncia pela Comissão, considerou que foi apresentada oportunamente. No aspecto material, porém, as alegações do Estado apontavam a existência de recursos penais pendentes. A Corte ressaltou, no caso, que o processo penal tem por finalidade assentar a responsabilidade penal dos suspostos infratores, sendo que no momento do Informe da Comissão, a investigação havia sido arquivada. E com relação à eficácia e à demora injustificada da investigação, são temas relacionados com o próprio mérito da demanda, e não propriamente uma exceção preliminar. Por tais razões, afastou-a.
No Caso Gomes Lund e outros (“Caso Guerrilha do Araguaia”) (2010), à semelhança do Caso Escher e outros, o Estado brasileiro sustentou a exceção perante a CIDH apenas parcialmente, pois em contestação, perante a Corte IDH, inovou no tema trazendo novos argumentos. Em razão da preclusão ocorrida, a Corte não acolheu os argumentos novos, analisando apenas aqueles alegados oportunamente. Com relação a estes, apontou-se que não seria razoável, no caso concreto, exigir o esgotamento dos recursos internos, pois, em que pese a ação ordinária que tratava dos fatos ainda estivesse em andamento, já tramitava por mais de 19 anos, sem uma decisão definitiva. A Comissão, assim, aplicou a exceção prevista no art. 46.2.c da CADH, que dispensa o requisito do esgotamento dos recursos internos diante da demora injustificada. A Corte concordou com tal procedimento e asseverou que o Estado não justificou, em qualquer momento, o porquê da demora. Assim, não acolheu a exceção alegada.
No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), a exceção preliminar não foi acolhida pois a Corte apontou que, embora alegada oportunamente, o Brasil não indicou quais recursos não foram esgotados e tampouco esclareceu a eficácia deles. Aplicou-se, assim, sua jurisprudência consolidada, asseverando que não cabe à CIDH nem à Corte a identificação de ofício de eventuais recursos internos não exauridos, sendo tal ônus do Estado demandado. A Corte apontou (2016):
91. Por tanto, durante la etapa de admisibilidad del caso ante la Comisión el Estado debe precisar claramente los recursos que, a su criterio, aún no han sido agotados ante la necesidad de salvaguardar el principio de igualdad procesal entre las partes que debe regir todo el procedimiento ante el Sistema Interamericano. Como la Corte ha establecido de manera reiterada, no es tarea de este Tribunal, ni de la Comisión, identificar ex officio cuáles son los recursos internos pendientes de agotamiento, en razón de que no compete a los órganos internacionales subsanar la falta de precisión de los alegatos del Estado55. Asimismo, los argumentos que dan contenido a la excepción preliminar interpuesta por el Estado ante la Comisión durante la etapa de admisibilidad deben corresponder a aquellos esgrimidos ante la Corte.
No Caso Favela Nova Brasília (2017), a exceção preliminar foi apresentada nos mesmos moldes do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. Assim, a Corte chegou a mesma conclusão.
No Caso Povo Indígena Xucuru (2018), mais uma vez, a Corte entendeu pela insuficiência da alegação do Estado no momento oportuno, por não ter indicado quais recursos internos não haviam sido esgotados e esclarecido sobre a eficácia deles. Asseverou, ainda, que alguns recursos foram indicados somente na contestação perante a Corte, já superada a fase de admissibilidade da denúncia (perante a CIDH).
No Caso Herzog e outros (2018), a Corte constatou que a exceção não foi apresentada perante a CIDH, durante o juízo de admissibilidade, tendo o Estado brasileiro inovado em sua contestação perante a Corte. Assim, como já visto, operou-se a preclusão.
No Caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus (2020) ocorreu uma situação interessante. O Brasil apresentou a exceção oportunamente e esclareceu a eficácia dos recursos não esgotados. Porém, em audiência pública realizada no âmbito da CIDH, o Estado brasileiro apontou que não questionaria qualquer aspecto acerca da admissibilidade do caso, tendo sido iniciado, após, uma tentativa de solução amistosa, que restou infrutífera. Perante a Corte, porém, o Estado alegou novamente tal exceção. Para a Corte, o comportamento do Brasil foi contraditório, violando o princípio do estoppel, que veda comportamentos contraditórios. Assim, não acolheu a exceção.
No Caso Márcia Barbosa de Souza (2021), reconheceu-se que a exceção foi arguida oportunamente e de forma correta. A Corte, assim, enfrentou a exceção. Em seu aspecto material, porém, foi afastada, com base nas peculiaridades do caso. O caso tratava-se de um homicídio praticado um por deputado estadual da Paraíba. Um dos aspectos da discussão do mérito do caso, quando da apresentação da denúncia à CIDH, era justamente a impossibilidade das vítimas de esgotaram os recursos internos (no caso, principalmente o processo penal contra o agressor) em razão da imunidade parlamentar existente, a qual não foi levantada pela corresponde casa legislativa. E, quando da realização do Primeiro Informe pela CIDH, em que pese o processo penal tivesse iniciado, já havia transcorrido mais de 9 anos, sendo que a demora em tal processo passou a figurar como uma faceta do próprio mérito da demanda. Assim, a Corte entendeu que não cabia analisar a questão como exceção preliminar, e sim como mérito.
Por fim, no Caso Sales Pimenta (2022), a Corte constatou que o Brasil não alegou em nenhum momento perante a CIDH tal exceção – embora tenha se manifestado em 3 ocasiões distintas antes do juízo de admissibilidade da denúncia -, tendo inovado perante a Corte. Assim, aplicando a jurisprudência consolidada já exposta, não acolheu a exceção.
3.2. Segunda exceção: Incompetências da Corte IDH
Um segundo gênero identificado de exceções preliminares arguidas pelo Estado brasileiro consiste nas alegações de incompetência da Corte IDH para a apreciação de determinada questão. Como visto, a Corte é um órgão criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual estipula suas competências. O tema, portanto, tem por objeto discutir se para determinado caso concreto a Corte possuiria competência para julgá-lo. Tais alegações variam em alguns aspectos, podendo ser agrupadas conforme o objeto impugnado: a) questões temporais; b) questões sobre pessoas; c) questões sobre a matéria.
3.2.1. Incompetência ratione temporis
Dentre as exceções acerca da incompetência da Corte IDH, a discussão acerca da incompetência ratione temporis é a que mais se destacada nas alegações do Estado brasileiro, sendo de importantíssima compreensão a visão da Corte sobre tal temática, uma vez que se trata de uma questão constante na jurisprudência do Tribunal, presente nos mais diversos casos, bem como permite compreender diversas perspectivas das violações dos direitos humanos, que por vezes extrapolam o próprio fato em si.
Tal discussão consiste em reconhecer a existência de um marco temporal para que a Corte IDH possa conhecer de determinado caso; vale dizer, caso os fatos tenham ocorrido anteriormente a tal marco, não poderia a Corte exercer cognição sobre eles, tampouco responsabilizar internacionalmente o Estado. A questão é corolária da segurança jurídica e do princípio da irretroatividade dos tratados, extraído do art. 28 da Convenção de Viena sobre o Direitos dos Tratados.
Conforme visto, o Decreto Legislativo n. 89/98 do Congresso Nacional, que reconheceu a competência contenciosa da Corte IDH, expressamente indicou que tal reconhecimento ocorria somente para os fatos ocorridos a partir de então, de forma que não poderia o Brasil ser condenado por fatos ocorridos anteriormente. A data que constitui o marco temporal é aquela em que foi comunicado ao Secretário-Geral da OEA tal reconhecimento, em 10 de dezembro de 1998. Logo, somente os fatos ocorridos a partir de tal data é que poderiam ser levados ao conhecimento da Corte.
Em diversos casos brasileiros, o Estado alegou tal tese defensiva, aduzindo que o fato objeto do processo internacional teria ocorrido anteriormente ao marco temporal, razão pela qual não poderia ser objeto de apreciação.
O primeiro caso brasileiro em que se discutiu a temática foi o Caso Nogueira Carvalho (2006). Oportuno entender o caso para compreender a visão da Corte. Em síntese, trata-se da morte de Gilson Nogueira de Carvalho, um padre defensor dos direitos humanos, que denunciou diversos atos de um grupo de extermínio formado por agentes estatais em sua cidade, Macaíba/RN; o grupo sequestrava, torturava e assassinava inúmeras pessoas sem qualquer punição; a morte ocorreu em 20 de outubro de 1996, sendo que nunca houve uma efetiva investigação e punição dos culpados. A morte da vítima ocorreu antes do marco temporal, o que impediria a análise do caso. Porém, o entendimento da Corte é mais complexo do que a mera análise da data dos fatos. Com efeito, a Corte reconheceu que não podia apreciar diretamente as questões que envolvem a morte do senhor Gilson Nogueira de Carvalho, em razão do princípio da irretroatividade, bem como da própria sistematicidade da CADH e do ato de reconhecimento da sua competência pelo Estado brasileiro. Porém, assentou que possuia competência para apreciar as violações que decorrem de tal fato e são permanentes, ou seja, alongam-se no tempo de forma a ultrapassar o marco temporal referido; no caso, a impunidade dos ofensores e a falta de indenização aos familiares. Para estes, não haveria qualquer óbice à cognição internacional, uma vez que ocorreram após o marco temporal, ainda que vinculados ao fato ocorrido anteriormente.
No caso em tela, por exemplo, a CIDH, ao apresentar o caso à Corte, entendeu que foram violados, dentre outros, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (arts. 8 e 25, da CADH) dos pais da vítima, os quais não tiveram um acesso efetivo aos recursos internos para obter uma compensação pelos danos sofridos e para obter uma justa responsabilização dos infratores. Ou seja, o Estado brasileiro, ao não garantir o acesso a tais direitos humanos aos familiares da vítima, de forma permanente, acabou por violar a CADH após o marco temporal. Na sentença do caso foi apontado (2006):
44. La Corte ya ha expresado que no puede ejercer su competencia contenciosa para aplicar la Convención y declarar una violación a sus normas cuando los hechos alegados o la conducta del Estado demandado que pudiera implicar responsabilidad internacional son anteriores al reconocimiento de la competencia del Tribunal. En consecuencia, la Corte no puede conocer del hecho de la muerte de Gilson Nogueira de Carvalho.
45. Sin embargo, el Tribunal es competente para examinar las acciones y omisiones relacionadas con violaciones continuas o permanentes, las cuales comienzan antes de la fecha de reconocimiento de la competencia de la Corte y persisten aún después de esa fecha, sin infringir el principio de irretroactividad, y cuando los hechos violatorios son posteriores a la fecha de reconocimiento de su competencia.
46. Por lo tanto, la Corte es competente para conocer las alegadas violaciones de los artículos 8 y 25 de la Convención Americana, a partir de la fecha de reconocimiento de la competencia contenciosa por parte del Estado, y en consecuencia se rechaza la presente excepción preliminar.
Possível concluir, assim, que, na visão da Corte IDH, a omissão do Estado em relação a devida investigação, processamento e punição dos culpados por fatos violadores de direitos humanos, a prática de novos atos violadores de direitos humanos durante a investigação, processamento etc., bem como a falta de acesso das vítimas (lato sensu, que podem ser também familiares etc.) a recursos internos constituem, também, violações a direitos humanos, e que por se tratar de fatos permanentes, que ocorrem posteriormente ao marco temporal, é possível o conhecimento do caso para apreciar tais violações.
No Caso Gomes Lund (2010), mais uma vez, a Corte reafirmou sua jurisprudência, reconhecendo sua competência para apreciar os fatos violadores permanentes. O caso, porém, ostenta uma peculiaridade. Um dos principais objetos do mérito é a prática de desaparecimento forçado praticada pelo Estado brasileiro. Sobre o tema, a Corte relembrou o caráter permanente de tal prática até o devido esclarecimento do ocorrido e a punição dos responsáveis, o que dá ensejo à sua competência mesmo que o fato em si tenha ocorrido anteriormente ao marco temporal. Assim asseverou:
17. Por el contrario, en su jurisprudencia constante este Tribunal ha establecido que los actos de carácter continuo o permanente se extienden durante todo el tiempo en el cual el hecho continúa, manteniéndose su falta de conformidad con la obligación internacional. En concordancia con lo anterior, la Corte recuerda que el carácter continuo o permanente de la desaparición forzada de personas ha sido reconocido de manera reiterada por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos, en el cual el acto de desaparición y su ejecución inician con la privación de la libertad de la persona y la subsiguiente falta de información sobre su destino, y permanece hasta tanto no se conozca el paradero de la persona desaparecida y los hechos no hayan sido esclarecidos. Por tanto, la Corte es competente para analizar las alegadas desapariciones forzadas de las presuntas víctimas a partir del reconocimiento de su competencia contenciosa efectuado por Brasil.
Nos demais casos brasileiros os fatos são semelhantes, o que deu ensejo à aplicação do entendimento consolidado da Corte. No Casos Garibaldi, Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília, Povo Indígena Xucuru, Herzog e outros, Barbosa de Souza e Sales Pimenta, a Corte reiterou sua jurisprudência, assentando sua competência para apreciar as violações de caráter permanente decorrentes dos fatos ocorridos, seja a completa omissão estatal (na investigação, punição, indenização etc.), sejam novos fatos violadores decorrentes das investigações, processos etc.
3.2.2. Incompetência ratione personae
Uma segunda espécie de incompetência da Corte IDH sustentada pelo Estado brasileiro diz respeito às supostas vítimas dos atos violadores de direitos humanos discutidos, seja ante a falta de identificação ou a falta de legitimidade para apresentar fatos diretamente à Corte.
A tese defensiva foi levantada nos Casos Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília e Herzog. Nos dois primeiros os casos, o Brasil questionou a individualização das vítimas, a devida representação destas, a menção expressa pela CIDH destas e o necessário nexo causal entre as elas e os fatos apurados. Para o Brasil, diante da deficiência destes pontos com relação a algumas vítimas, a Corte não poderia conhecer do caso com relação a elas. Com relação ao último caso, o Estado insurgiu-se contra pedidos deduzidos pelas vítimas diretamente à Corte, apontando que inovaram com relação ao relatório da CIDH, o qual delimita as questões submetidas a julgamento.
Nos termos da CADH, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar denúncia à CIDH (art. 44). Nota-se, portanto, que o sistema interamericano não exige que seja a própria vítima que o provoque. Não obstante, por força do art. 35.1 do Regulamento da Corte IDH, é requisito para a submissão do caso a ela que as supostas vítimas sejam devidamente identificadas pela CIDH. Porém, o próprio Regulamento prevê uma exceção: quando se justificar que não foi possível identificar alguma ou algumas supostas vítimas dos fatos do caso, por se tratar de violações massivas ou coletivas, a Corte decidirá em sua oportunidade se as considerará vítimas (art. 35.2).
No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), tal tese defensiva foi alegada em duas perspectivas: primeiro, questionando a correta identificação das vítimas; segundo, questionando uma medida de reparação abstrata pleiteada, que não se relacionava diretamente com as vítimas (estas solicitaram que o Estado fosse condenado a se abster de tomar medidas legislativas que representassem um retrocesso no combate ao trabalho escravo, haja vista projetos de leis em trâmite com este tema).
Com relação à primeira tese, a Corte entendeu ser aplicável a exceção prevista em seu Regulamento, haja vista: a) as peculiaridades do caso (diversas vítimas); b) o transcurso de mais de 20 anos; c) a dificuldade de realizar contato com as vítimas dada suas condições de vulnerabilidade e exclusão; d) atos omissivos de registro atribuíveis ao próprio Estado. Assim, diante da impossibilidade de se individualizar efetivamente as vítimas, entendeu-se por dispensável tal requisitos. Já quanto à segunda tese, a Corte entendeu que uma medida de reparação (medidas concedidas pela Corte ao final do julgamento) é uma questão de mérito, devendo ser analisada sob à luz do nexo causal dos fatos apurados, das violações ocorridas e dos danos perpetrados, e portanto não caberia analisar a questão como exceção preliminar, posto que a alegação do Estado não configura uma.
Já no Caso Favela Nova Brasília (2017), a Corte acolheu parcialmente a exceção sustentada. Concordou com o Estado brasileiro quanto à falta de identificação adequada de algumas vítimas, o que seria possível na visão da Corte, considerando, especialmente, que o caso tramitou por 21 anos na CIDH. Entendeu que as circunstâncias não autorizavam a aplicação da exceção prevista no art. 35.2 de seu Regulamento, pois seria possível a individualização adequada daquelas. Assim, considerou somente aquelas pessoalmente identificadas e listadas no Relatório da CIDH, excluindo aquelas que foram indicadas como supostas vítimas, porém não devidamente individualizadas. Na parte em que rejeitou a exceção, entendeu que as demais vítimas estavam devidamente representadas e que a suposta conexão ou não com os fatos seria matéria de mérito, devendo ser apreciado como tal.
Com relação ao Caso Herzog (2018), a insurgência brasileira diz respeito aos pedidos novos apresentados pelas vítimas diretamente à Corte, que distoavam daqueles apresentados pela CIDH. Ou seja, segundo o Estado, a Corte não teria legitimidade para a apreciação de tais pedidos, posto que, em inteligência ao art. 61 da CADH, “[s]omente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter caso à decisão da Corte” (BRASIL, 1992). O Tribunal, porém, entendeu que as questões trazidas pelas vítimas não inovaram faticamente, mas apenas consubstanciavam-se em desdobramentos dos fatos apontados pela CIDH. Apontou que as vítimas podem expor fatos que permitam explicar, esclarecer ou contrariar o que foi mencionado no Relatório da CIDH, sendo o que ocorreu no presente caso. Em resumo, a Corte entendeu que todas as matérias trazidas pelas vítimas estavam contempladas no relatório da CIDH, e que portanto não se tratou de novos pedidos. Por tal razão, não acolheu a exceção.
3.2.3. Incompetência ratione materiae
A última espécie de tese acerca da incompetência da Corte IDH é sobre aspectos materiais propriamente ditos. Em diversos casos, o Estado brasileiro apontou a incompetência da Corte para exercer sua jurisdição sobre determinada matéria sob os mais diversos argumentos.
A tese mais recorrente nessa temática é a Teoria da Quarta Instância, tendo o Brasil a sustentado em 5 casos: Gomes Lund, Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília, Herzog e Sales Pimenta.
Segundo referida tese, não poderia a Corte IDH exercer uma função de “quarta instância”, ou seja, revisar decisões judiciais internas à luz do direito interno; não poderia funcionar como mais uma instância a se percorrer pelas partes que não se conformam com o resultado de um processo, visando a revaloração das provas e a reaplicação do direito interno ao caso, sob pena de violação do princípio da subsidiariedade do sistema internacional (vazado da própria CADH, que exige o esgotamento dos recursos internos).
No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), a Corte esclareceu que a teoria – em abstrato - possui fundamento, porém indicou quais elementos se fazem necessários estar presentes para configurá-la:
73. Esta Corte ha establecido que para que la excepción de cuarta instancia sea procedente, “es necesario que el solicitante busque que la Corte revise el fallo de un tribunal interno en virtud de su incorrecta apreciación de la prueba, los hechos o el derecho interno, sin que, a la vez, se alegue que tal fallo incurrió en una violación de tratados internacionales respecto de los que tenga competencia el Tribunal”. Además, este Tribunal ha establecido que, al valorarse el cumplimiento de ciertas obligaciones internacionales, puede darse una intrínseca interrelación entre el análisis de derecho internacional y de derecho interno. Por tanto, la determinación de si las actuaciones de órganos judiciales constituyen o no una violación de las obligaciones internacionales del Estado, puede conducir a que la Corte deba ocuparse de examinar los respectivos procesos internos para establecer su compatibilidad con la Convención Americana.
Vê-se, assim, que a Corte visualiza procedente tal alegação somente quando as vítimas buscam a revisão de um processo interno sem apontar qualquer violação a tratados internacional de direitos humanos os quais a Corte pode conhecer, mas tão-somente a reanálise do caso à luz do direito interno. Ressaltou que é inevitável, em determinados casos, que para se verificar se houve ou não violação a algum tratado que o Estado assumiu compromisso, seja necessária a análise de processos judiciais internos, porém, o parâmetro de julgamento será os tratados internacionais, e não o direito interno. Assim, a Corte julgará se o Estado possui responsabilidade internacional à luz dos tratados com o quais assumiu compromisso, e não se houve violação a alguma norma interna.
Nos 5 casos em que o Brasil sustentou a tese, a Corte reafirmou sua jurisprudência e rejeitou todas as vezes a exceção. Reconheceu-se que as vítimas e a CIDH haviam apontado violações do Estado brasileiro a tratados internacionais de direitos humanos, sendo estes o parâmetro para análise, e que não buscavam simplesmente o reexame dos fatos à luz do direito interno.
Para além da teoria da quarta instância, o Estado brasileiro levantou outras objeções acerca da competência material da Corte.
Nos Casos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016) e Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus (2020), o Brasil sustentou a impossibilidade da Corte analisar violações sobre direito ao trabalho, posto que contemplado exclusivamente no Protocolo Facultativo da CADH (Protocolo de San Salvador), o qual consagra os direitos econômicos, sociais e culturais, e que prevê que somente os direitos à educação e os direitos sindicais, salvo greve, podem ser levados ao conhecimento da Corte IDH sob sua competência contenciosa (art. 6 do Protocolo de San Salvador). No primeiro caso, a Corte entendeu que a matéria não era objeto de análise, e no segundo entendeu que possuia competência para julgar a temática a partir do art. 26 da CADH (que consagra a cláusula de progressividade dos direitos sociais), porém entendeu que a matéria confundia-se com o mérito e resolveria como tal.
Ainda no Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), o Brasil sustentou a incompetência da Corte para conhecer a responsabilidade do Estado acerca da violação de compromisso internacionais assumidos acerca da proibição do tráfico de pessoas, apontando que o art. 6º da CADH versou apenas sobre o tráfico de escravos e mulheres, razão pela qual tanto a CIDH quanto a Corte só possuiria competência para apreciar tais matérias. A Corte asseverou que não era objeto de análise suposta violação pelo Brasil de compromissos assumidos em outros tratados, mas que, segundo o art. 29 da CADH e das regras gerais de interpretação de tratados (reconhecidos na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados), é possível interpretar a CADH com relação a outros instrumentos internacionais, assim, pode a Corte analisar outros tratados para verificar a responsabilidade do Estado perante a própria Convenção. Por tais razões, não acolheu a tese defensiva.
No Caso Favela Nova Brasília (2017), o Brasil sustentou a incompetência da Corte para apreciar violações à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (CIPPT) e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). No primeiro caso, apontou que a própria CADH limita a competência da Corte e que seria necessário reconhecimento expresso acerca de sua competência contenciosa para ter como parâmetro a CIPPT; no segundo, apontou que a própria Convenção não outorga competência à Corte, mas somente à CIDH.
Quanto à CIPPT, a Corte reafirmou sua jurisprudência no sentido de que quando uma convenção prevê como mecanismo de supervisão internacional o sistema de petições individuais (denúncias), ela possui competência para analisar supostas violações a tal convenção, de forma que basta o reconhecimento de sua competência contenciosa nos termos do art. 62 da CADH para possibilitar a análise de outros tratados que formam o Sistema de Proteção Interamericano de Direitos Humanos. Destacou, ainda, que a omissão sobre sua competência na referida convenção possuía razões históricas, pois existiam (e ainda existem) países que são membros da OEA mas não da CADH, e que prever a competência da Corte (órgão jurisdicional vinculado à CADH) poderia ser um obstáculo à adesão desses Estados.
Já quanto à Convenção de Belém do Pará, a Corte assentou que, embora tal Convenção não faça menção expressa sobre sua competência, apenas da CIDH, dispõe, em seu art. 12, que este órgão deve “considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos em os Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições” (BRASIL, 1996). Entende, assim, que possui competência para a análise, já que referida Convenção não fez qualquer exceção sobre o tema e que, de acordo com o procedimento da CADH – que deve ser observado -, pode a CIDH submeter o caso a ela.
No Caso Herzog (2018), o Brasil sustentou a mesma exceção quanto à competência da Corte sobre a CIPPT, tendo a Corte adotado o mesmo posicionamento do Caso Favela Nova Brasília, exposto acima.
Por fim, no Caso Povo Indígena Xucuru (2018), o Estado brasileiro sustentou a incompetência da Corte para analisar violações à Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – principal tratado sobre direitos dos povos indígenas -, sob o argumento de que tal instrumento internacional não integra o sistema de proteção da OEA. A Corte apontou que, de fato, em matéria contenciosa, só tem competência para declarar violações à CADH e outros instrumentos interamericanos de proteção dos direitos humanos, porém, em diversos casos considerou apropriado e útil utilizar-se de outros tratados internacionais (como a Convenção n. 169/OIT) para definir o conteúdo e o alcance dos direitos consagrados em instrumentos interamericanos, de acordo com a evolução de tal sistema. Ou seja, embora não se possa declarar violações sobre tais tratados, é possível utilizá-los com uma função hermenêutica, de forma integrativa com os instrumentos interamericanos. Como a Corte entendeu que não se buscava a declaração de violação à Convenção n. 169/OIT, mas apenas sua utilização para tais fins, não acolheu a tese defensiva apresentada.
3.3. Terceira exceção: Publicação do Segundo Informe pela CIDH
Para compreender este terceiro gênero de exceção preliminar arguida pelo Brasil, é necessário relembrar o procedimento previsto na CADH exposto no capítulo anterior. Após o processamento da denúncia pela CIDH, não se chegando a uma solução amistosa, esta possui a possibilidade de produzir um relatório (Relatório Preliminar), com suas observações e recomendações sobre o caso, o qual será transmitido ao Estado de forma sigilosa e confidencial. Este, por sua vez, possui o prazo de três meses para adotar eventuais medidas necessárias. Esgotado o prazo, surgem duas possibilidades à CIDH: a) produzir um segundo relatório (Relatório Definitivo), o qual será público e comunicado à OEA, tendo por finalidade precípua constranger o Estado internacionalmente; b) submeter o caso à Corte IDH. Esse é regramento trazido pelos arts. 50 e 51 da CADH.
Nota-se que o Relatório Definitivo e a submissão do caso à Corte são hipóteses excludentes entre si, não podendo a CIDH adotar as duas providências simultaneamente. No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), a Corte IDH deixa claro tal exegese:
23. Es interpretación constante de este Tribunal que los artículos 50 y 51 de la Convención aluden a dos informes distintos, el primero identificado como informe preliminar, y el segundo como definitivo. Cada uno tiene distinta naturaleza, al corresponder a etapas distintas.
24. El informe preliminar responde a la primera etapa del procedimiento y está previsto en el artículo 50 de la Convención, el cual dispone que la Comisión, si no llegare a una solución, redactará un informe en el que expondrá los hechos y sus conclusiones, mismo que transmitirá al Estado interesado. Este documento es de carácter preliminar, por lo que el informe se transmitirá con calidad de reservado al Estado a efecto de que adopte las proposiciones y recomendaciones de la Comisión y solucione el problema planteado. La calidad de preliminar y reservado del documento hacen que el Estado no tenga la facultad de publicarlo, por lo que, en observancia a los principios de igualdad y equilibrio procesal de las partes, es razonable considerar que la Comisión tampoco se encuentra en posibilidad material y jurídica de publicar ese informe preliminar.
O Estado brasileiro, diante de tal regramento, suscitou nas contestações dos Casos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília, Povo Indígena Xucuru, Herzog e Trabalhadores da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus, como exceção preliminar, a indevida atuação da CIDH. Isso porque, segundo o Estado, a Comissão publicou o seu Relatório Preliminar em sua página na internet, mantendo-o público – e que deveria ter natureza sigilosa nos termos da CADH -, e mesmo assim submeteu o caso à Corte, em procedimento vedado pela Convenção. Assim, defendeu que diante da publicação do relatório, restaria vedada a possibilidade de submissão do caso à jurisdição da Corte.
A Corte, porém, não acolheu a exceção. Para o Tribunal, o sigilo do primeiro relatório possui fundamento no princípio do equilíbrio processual entre as partes, de forma a resguardar a possibilidade do Estado em tomar as atitudes para salvaguardar os direitos humanos vilipendiados e impedir que a CIDH publique tal documento, constrangendo-o internacionalmente.
Tal sigilo, porém, na visão da Corte, só possui razão de existir durante o prazo que goza o Estado para a solução da controvérsia (três meses), uma vez que seria indevido constrangê-lo internacionalmente neste interregno, em violação ao princípio citado. Uma vez superado o prazo e já submetido o caso à Corte, não haveria óbice a publicação do Relatório Preliminar, posto que o Estado já teve conhecimento prévio dele e a oportunidade de cumprir com suas recomendações. Para a Corte, a publicação do Relatório Preliminar, após a submissão do caso a sua jurisdição, não se confunde com a realização e publicação do Relatório Definitivo – este sim incompatível com sua jurisdição -, posto que o primeiro relatório apenas fez recomendações prévias, sem assentar qualquer responsabilidade do Estado, diferentemente do segundo. Constatou, ainda, que se trata de uma prática reiterada da CIDH, em especial desde a reforma de seu Regulamento, em 2009.
Em todos os casos brasileiros em que foi arguida a exceção, a Corte asseverou que, embora seja possível a publicação do relatório preliminar, é indispensável que esta seja feita somente após a submissão do caso a sua jurisdição. Concluiu, porém, que o Estado brasileiro não demonstrou, em nenhum caso, que a publicação do relatório se deu antes da submissão do caso à Corte, ao passo que a CIDH comprovou que se deu em momento posterior. Anotou, assim, que não houve qualquer violação às normas da Convenção. Assim, rejeitou a tese defensiva em todos os casos.
3.4. Quarta exceção: Inobservância do prazo regulamentar para a apresentação do escrito de petições, argumentos e provas
Para a Corte IDH, a presente tese defensiva não consubstancia propriamente em exceção preliminar, razão pela qual rejeitou em todos os casos, porém como foi arguida sob tal instituto assim será analisado, como fez a própria Corte.
Dispõe o art. 36 do Regulamento da Corte IDH que a vítima, seus familiares ou representantes dispõem de um prazo improrrogável de dois meses para apresentar seu escrito de petições, argumentos e provas (EPAP), após sua notificação. No Casos Escher e Garibaldi, o Estado brasileiro arguiu que não houve a observância de tal prazo pelas vítimas/familiares, prejudicando, assim, sua defesa.
Na visão da Corte, a tese não consubstancia exceção preliminar, pois não impede a admissão e a análise do caso, mas em verdade diz respeito sobre às provas do caso, de forma a permitir ou não a análise das alegações das vítimas. Logo, a exceção preliminar foi rejeitada em todos os casos, porém o Tribunal ressaltou que analisaria as alegações quando da análise das provas produzidas.
3.5. Quinta exceção: Falta de interesse processual
No Caso Gomes Lund (“Guerrilha do Araguaia”) (2010), o Estado brasileiro sustentou a falta de interesse de agir, uma vez que a CIDH havia reconhecido e valorado as medidas de reparação adotadas pelo Estado diante do Relatório Preliminar, porém teria apontado de forma genérica que outras medidas deveriam ter sido implementadas.
A Corte ressaltou que o juízo de conveniência de submeter um caso à Corte é exclusivo da CIDH, não cabendo ao Tribunal imiscuir-se em tal assunto, salvo se restar configurado alguma ofensa às normas convencionais ou algum procedimento que prejudica o direito de defesa das partes. No caso, não entendeu que a CIDH havia agido de forma indevida. E quanto às medidas de reparação adotadas, a Corte ressaltou sua jurisprudência no sentido de que a responsabilidade internacional surge imediatamente após o cometimento de um ato ilícito (inconvencional), e que a vontade de repará-lo não inibe a atuação da Comissão ou da Corte para conhecer do caso, uma vez que a proteção internacional dos direitos humanos é coadjuvante e complementar a que oferece o direito interno (conforme consta no preâmbulo da CADH). Apontou que não havendo o cumprimento cabal das obrigações de reparar os danos, cabe a Corte conhecer do caso, sendo que todas as medidas adotadas pelo Estado invariavelmente serão relevante para a análise do caso, porém não tem o efeito de obstar a competência do Tribunal.
3.6. Sexta exceção: Prescrição
No Casos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016) e Herzog (2018), o Estado brasileiro sustentou a prescrição do caso, quanto a este último, e a possibilidade de indenização por danos morais e matérias, quanto ao primeiro. Sustentou suas alegações no disposto no art. 46.1.b da CADH, que exige que a denúncia perante a CIDH seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que as vítimas tenham sido notificadas da decisão definitiva, e, subsidiariamente, na proporcionalidade, apontando que excepcionalmente na inaplicabilidade de tal prazo (em caso de inexistência de recursos internos, por exemplo), a petição deve ser apresentada num prazo razoável.
No Caso Herzog, a Corte ressaltou que a exceção preliminar arguida diz respeito ao próprio juízo de admissibilidade da denúncia no sistema interamericano, realizado pela CIDH. Assim, para que o Tribunal possa realizar o controle de tal ato, seria necessário verificar se, no momento oportuno – perante a CIDH -, o Estado devidamente realizou a objeção.
No Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, a Corte verificou que o Brasil não havia discutido a questão no momento oportuno, tendo inovado em sua contestação. Assim, a defesa era extemporânea, razão pela qual não merecia acolhida. Já no Caso Herzog, a Corte verificou que o Estado brasileiro arguiu oportuna e adequadamente a questão, enfrentando, assim, seu mérito.
No mérito, porém, o Estado não obteve êxito. A Corte asseverou que o Brasil reconheceu - ficando incontroverso -, que na hipótese do caso inexistia recursos internos disponíveis às vítimas para a tutela dos direitos humanos violados (em razão da lei de anistia promulgada). Assim, assentou a inaplicabilidade do prazo de seis meses, devendo ser verificada a razoabilidade em que foi apresentada a denúncia à CIDH. E neste ponto, entendeu que, à luz do caso concreto, foi razoável o lapso entre diversos acontecimentos internos e a apresentação da denúncia. O caso tratava da falta de investigação e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorridos durante o período de ditadura militar. Em resumo, a Corte entendeu que as vítimas (familiares de Vladimir Herzog) possuíam uma razoável expectativa que a situação de impunidade fosse resolvida, em razão de diversos acontecimentos internos: a) redemocratização do país; b) a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecido Políticos, pela Lei n. 9.140/95, tendo esta emitido seu relatório em 2007; c) a apresentação de denúncia pelo Ministério Público Federal com base em tal relatório, que foi arquivado em 9 de janeiro de 2009. Tendo em vista que a denúncia perante a CIDH ocorreu em 10 de julho de 2009 (poucos meses depois do arquivamento do processo movido pelo MPF), o Tribunal entendeu razoável o prazo e não acolheu a exceção sustentada.
3.7. Sétima exceção: Impossibilidade de analisar violações não discutidas perante a CIDH
A presente tese defensiva foi levantada nos Casos Escher (2009) e Garibaldi (2009). Segundo o Estado brasileiro, não seria possível discutir violações de direitos que não foram expressamente discutidos perante a CIDH. Ou seja, esta não poderia, ao submeter o caso à Corte, acrescentar dispositivos que teriam sido violados pelo Estado mas que não foram devidamente debatidos em seu procedimento.
Em ambos os casos, o Brasil insurgiu-se contra a indicação da CIDH da violação do art. 28 da CADH, o qual não teria sido discutido perante a Comissão. Ainda, alegou que referido artigo contém apenas uma regra de interpretação, não consagrando qualquer direito ou liberdade do indíviduo, o que impediria a Corte de declarar qualquer violação a ele, pois conforme o art. 48.1 e 63 da Convenção, os órgãos do Sistema Interamericano só podem examinar eventuais violações a direitos e liberdades. Referido artigo consagra a cláusula federal, apontando que o governo nacional cumprirá todas as disposições da Convenção, devendo adotar, ainda, as medidas pertinentes para que os demais entes da federação cumpram com as obrigações assumidas.
A Corte IDH, ao enfrentar a exceção, destacou que a CIDH possui autonomia em sua atuação, cabendo a supervisão de sua atuação somente nos casos em que o Tribunal vier e conhecer e somente se restar configurado algum erro grave que viole o direito de defesa das partes. Na hipótese, o Tribunal entendeu que não restou configurado qualquer erro grave. Isso porque, a despeito da alegação estatal, a CIDH havia apreciado os fatos à luz do disposto no art. 28, tendo o Estado a oportunidade de se manifestar ainda nessa fase do procedimento; ou seja, em momento alguma havia inovado ao apresentar o caso à Corte. Ademais, assentou que, nos termos do art. 62.3 da CADH, possui competência para “conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção (...)” (BRASIL, 1992), e que portanto sua competência envolvia a análise de qualquer dispositivo independentemente de sua natureza jurídica, seja uma obrigação geral, um direito ou uma norma de interpretação, não se limitando a análise de violações de direitos e liberdade, como sustentando pelo Estado.
3.8. Oitava exceção: Momento adequado para se analisar os requisitos de admissibilidade
No Caso Favela Nova Brasília (2017), o Estado brasileiro apresentou exceção preliminar articulando dois argumentos: a CIDH teria analisado de forma incorreta a demora injustificada dos processos internos e o não esgotamento dos recursos internos.
Segundo apontado pelo Estado, os requisitos de admissibilidade da denúncia perante o Sistema Interamericano não estavam presentes quando da sua apresentação. Apontou que não havia se esgotado os recursos internos, tampouco havia transcorrido um prazo demasiado de forma injustificada dos processos internos de forma a permitir a incidência da exceção a tal requisito. Oportuno lembrar que o art. 46.1.a da CADH exige o prévio esgotamento dos recursos internos para a realização da denúncia, excepcionando tal regra diante de uma demora injustificada (art. 46.2.c).
A CIDH considerou que os requisitos de admissibilidade devem restar preenchidos quando do juízo de admissibilidade realizado por ela, e não propriamente quando da apresentação da denúncia. Ou seja, seria possível que os requisitos fossem preenchidos durante a tramitação perante a Comissão, o que teria ocorrido no caso. Assentou que, no momento em que realizou o juízo de admissibilidade sobre a denúncia, estava caracterizada a demora injustificada dos processo internos.
A Corte apontou que já havia entendido correto o procedimento da CIDH no Caso Wong Ho Wing vs. Perú, destacando que os requisitos de admissibilidade devem estar presentes no momento do juízo de admissibilidade, e não propriamente no momento de denúncia. Ainda, apontou que a análise acerca da demora dos processos internos e sua efetividade confundiam-se com o mérito da questão, e que portanto deveria ser analisado como tal, e não como exceção preliminar. Outrossim, destacou que o Brasil não havia indicado, no momento oportuno (perante a CIDH), os recursos internos que ainda não estavam esgotados, tampouco esclareceu sobre a efetividade deles. Por tais razões, a Corte não acolheu a exceção arguida.
4. CONCLUSÃO
Após a análise da atuação do Estado brasileiro em sua defesa com relação às exceções preliminares apresentadas perante a Corte IDH, constata-se a quase inexpressiva taxa de sucesso alcançada, não obstante a arguição de teses defensivas nesta rubrica em todos os casos já julgados.
Verifica-se, ademais, a presença marcante de alguns tipos de exceções, como a tese atinente a ausência de esgotamento dos recursos internos, presentes em todos os casos, ou a tese acerca de incompetências da Corte, presentes na grande maioria deles, assumindo formas e focos diversos em cada um.
Nota-se, ainda, que a Corte IDH enfrenta com regularidade exceções preliminares arguidas pelos Estados, construindo uma jurisprudência sólida e coerente em suas sentenças, nos quais sempre dialoga com os precedentes do tema e indica-os expressamente, evidenciando sua preocupação com a estabilidade e a segurança jurídica de seus julgados.
Ainda, é possível concluir pela falta de técnica adequada do Estado brasileiro com relação a sua defesa perante o Sistema Interamericano, em especial com relação a algumas exceções, o que justifica, em parte, o insucesso constatado. Salta aos olhos, por exemplo, a quantidade de vezes que Corte não acolheu uma exceção preliminar sob o argumento de que ela não foi alegada no momento oportuno perante a CIDH, por se tratar de tese atinente ao juízo de admissibilidade da denúncia, e que portanto deveria ter sido discutida perante aquele órgão, ao qual compete tal juízo. No Caso Ximenes Lopes, por exemplo, a primeira condenação do Brasil, a Corte já havia jurisprudência consolidada exigindo que a exceção sobre a falta de esgotamento dos recursos internos fosse alegada perante a CIDH, dado que é um requisito de admissibilidade da denúncia, apontando como indevido o comportamento do Estado em trazer tal questão somente em sua contestação perante o Tribunal, etapa posterior ao juízo de admissibilidade. Não obstante, em inúmeros outros casos posteriores, como os Casos Herzog e Sales Pimenta, o Estado brasileiro insistiu na atuação em descompasso com o entendimento da Corte.
Como exposto inicialmente, na data de encerramento deste artigo (07/06/2023) encontram-se pendentes de julgamento nove casos contra o Estado brasileiro na Corte IDH. Cabe aguardar o pronunciamento do Tribunal da CADH para verificar se o Estado adequará sua estratégia à luz da jurisprudência da Corte ou continuará insistindo nos mesmos erros.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 9/11/1992. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 07 jun. 20023.
_______. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2/8/1996. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm. Acesso em 07 jun. 2023.
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_________. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, 7 de setembro de 2021. Serie C No. 435. Disponível em:
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RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP); Pós-graduando em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (CEI); Advogado. OAB/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUOGHI, LEONARDO SEEFELDT. O Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma análise sobre as exceções preliminares apresentadas pelo Estado brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2023, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61831/o-brasil-perante-a-corte-interamericana-de-direitos-humanos-uma-anlise-sobre-as-excees-preliminares-apresentadas-pelo-estado-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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