ALEXANDRE NUNES DOS SANTOS[1]
(coautor)
RESUMO: Este artigo aborda a inclusão das mulheres trans nos casos de feminicídio, conforme definido pela Lei nº 13.104/2015. Analisando aspectos legais, sociais e culturais, a pesquisa busca compreender como as barreiras enfrentadas por essas mulheres podem ser superadas. O estudo utiliza uma metodologia qualitativa, apoiada por pesquisa documental e bibliográfica. O objetivo é examinar como as mulheres trans são protegidas pela lei, indo além da identidade sexual para incluir também a identidade de gênero. A pesquisa identifica desafios judiciais e propõe estratégias para melhorar a implementação da lei, visando à promoção da justiça e igualdade de gênero. Ao enfocar os pontos centrais da pesquisa, este resumo proporciona ao leitor uma visão concisa e informativa do artigo, permitindo uma avaliação sobre a relevância do conteúdo.
Palavras-chave: Feminicídio, mulheres trans, identidade de gênero, Lei nº 13.104/2015, inclusão social.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com a Lei nº 13.104/2015, o feminicídio é definido como o assassinato de uma mulher devido à sua identidade de gênero feminino, ou seja, por ser mulher. Além disso, a lei abrange casos em que o crime é cometido por alguém que exerce uma relação de poder sobre a vítima, levando à sua submissão. Essa forma de violência pode ser praticada tanto por homens quanto por mulheres contra uma mulher em uma situação de vulnerabilidade.
Ao analisar a temática, Pasinato (2011) afirma que não é viável atribuir um significado estático ao termo "feminicídio" que se aplique a todas as mortes de mulheres em diversas situações e lugares ao redor do mundo. Além disso, utilizar apenas a categoria de "gênero" como análise dos feminicídios é insuficiente, pois fatores cruciais como classe social, nacionalidade, raça e etnia não devem ser negligenciados. No mesmo raciocínio, Campos (2011) compreende que o artigo 2º da Lei Maria da Penha incorpora o "princípio da não discriminação para o gozo dos direitos fundamentais inerentes ao ser humano", assegurando que nenhum marcador, como classe, etnia, sexualidade ou identidade, possa impedir o exercício desses direitos básicos.
Neste sentido, Gomes de Jesus (2012) estabelece que a vivência de um gênero discordante com as expectativas sociais relacionadas a um determinado sexo biológico é considerada uma questão de identidade. Assim, de acordo com Campos (2011), a proteção legal das mulheres trans vai além da identidade sexual, incluindo também a identidade de gênero.
Neste contexto, surge o problema de pesquisa: Como a inclusão das mulheres trans nos crimes de feminicídio pode ser efetivamente implementada e compreendida, levando em consideração as barreiras legais, sociais e culturais, as experiências das vítimas e os desafios judiciais? Assim, a presente investigação tem como objetivo analisar e descrever as barreiras legais, sociais e culturais que impedem a efetiva inclusão das mulheres trans nos crimes de feminicídio, analisando as experiências das vítimas, os desafios enfrentados pelo sistema judiciário e propondo estratégias para melhorar a implementação e compreensão dessas leis, visando a promoção da justiça e da igualdade de gênero. Para tanto, optou-se pelo uso da metodologia do tipo qualitativa; quanto aos fins, é uma pesquisa de cunho descritivo, já quanto aos meios, é uma pesquisa documental e bibliográfica.
O presente artigo é composto por seis partes, a saber: a introdução, na qual são apresentados o objetivo da pesquisa, o problema e a metodologia; seguido por cinco seções, nos quais são abordados os seguintes temas: (1) Feminicídio: Definição e Contextualização; (2) Aspectos Teóricos sobre Gênero, Identidade e Violência; (3) Estratégias para Implementação. Ao final, são apresentadas as considerações finais e as referências que contribuíram para a sustentação da presente investigação.
2. FEMINICÍDIO: DEFINIÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO.
"A palavra 'feminicídio' ganhou destaque no Brasil a partir de 2015, com a aprovação da Lei Federal 13.104/15, conhecida como a Lei do Feminicídio. Esta legislação criminaliza o feminicídio, que é o assassinato de mulheres motivado pelo gênero, ou seja, a vítima é morta por ser mulher. A Lei Maria da Penha, em consonância com a crítica feminista ao essencialismo da categoria 'mulher', busca desconstruir uma identidade feminina universal, adotando um conceito diverso e plural de 'mulher', entrelaçando o gênero com outras categorias como raça/etnia, geração e sexualidade.
Ao utilizar o conceito de gênero para definir a violência doméstica praticada contra mulheres, a Lei Maria da Penha não limita sua aplicação à mulher enquanto ser biológico. Portanto, 'as mulheres trans' são protegidas pela Lei, englobando não apenas a identidade sexual, mas também a identidade de gênero (CAMPOS, 2011, p. 179). A identidade de gênero diz respeito à autopercepção e à forma como as pessoas se expressam socialmente, incluindo-se assim as mulheres trans no conceito de 'mulher' para os fins da Lei Maria da Penha, visto que 'a vivência de um gênero (social, cultural) discordante com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo (biológico) é uma questão de identidade' (GOMES DE JESUS, 2012).
Para analisar as relações do direito com as questões de gênero, adotamos a concepção de Smart (2020), que argumenta que 'o direito tem gênero'. Segundo a autora, esta perspectiva implica abandonar a busca por fixar identidades de gênero em 'sistemas rígidos de significados', compreendendo que essas identidades são construídas por meio de discursos, incluindo o discurso jurídico.
A interseccionalidade entre gênero e outros marcadores sociais deve ser discutida, pois a experiência de ser mulher é variável, e o conceito de 'gênero' está intrinsecamente ligado a essa interseccionalidade (BUTLER, 2003). Portanto, embora todos os feminicídios resultem do poder desigual entre os sexos e controle sobre a vida e o corpo das mulheres (BRASIL, 2006), é crucial evitar generalizações ao categorizar feminicídios.
É importante ressaltar que a simples menção de uma mulher como vítima de um crime descrito no artigo 121 do Código Penal não é suficiente para caracterizar o feminicídio. Para que seja qualificado como tal, é necessário verificar se a mulher foi assassinada por motivos relacionados às condições do sexo feminino, como violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação por sua condição (artigo 121, §2º-A, incisos I e II, do Código Penal).
O artigo 121, §7º, incisos I e II, do Código Penal estabeleceu um aumento de pena de 1/3 até 1/2 para feminicídios cometidos durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, bem como para crimes cometidos contra pessoas menores de quatorze anos ou maiores de sessenta anos, com deficiência ou portadoras de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou vulnerabilidade física ou mental. O objetivo da lei foi fornecer proteção adicional.
Adicionalmente, em 2018, a Lei nº 13.771 incluiu os incisos III e IV no supracitado §7º do artigo 121 do Código Penal, estabelecendo aumento de pena quando o feminicídio é praticado na presença física ou virtual de descendentes e ascendentes (por meio da internet ou aplicativos de celular que permitam videochamada), assim como em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do artigo 22 da Lei nº 11.340/06. O legislador buscou punir de forma mais severa o homicida que comete o crime mesmo diante de medidas protetivas estabelecidas pela Lei Maria da Penha. Estas medidas incluem a suspensão ou restrição do porte de armas (inciso I), o afastamento do lar ou da vítima (inciso II) e a proibição de se aproximar da vítima, familiares e testemunhas, com uma distância mínima definida, além da proibição de contato com eles e de frequentar determinados lugares (inciso III).
O Tribunal do Júri é responsável pelo julgamento de homicídios intencionais, como o feminicídio, conforme estabelecido na Constituição Federal, Artigo 5º, Inciso XXXVIII, Alínea 'd'. Contudo, uma visão mais contemporânea, respaldada por tratados internacionais, princípios constitucionais e decisões da Suprema Corte, argumenta que mulheres transexuais também devem ser reconhecidas como vítimas de feminicídio, garantindo a igualdade substancial. Esta discussão tem levado a decisões judiciais favoráveis à aplicação da qualificadora de feminicídio quando mulheres transexuais são vítimas desse crime.
De acordo com Lagarde (2004), ocorre feminicídio quando o Estado não assegura a segurança das mulheres em suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer, especialmente quando as autoridades não cumprem eficientemente suas funções. Portanto, o feminicídio é considerado um crime de Estado. De maneira geral, o feminicídio pode ser interpretado como uma forma extrema de misoginia, ou seja, ódio e repulsa às mulheres ou a tudo relacionado ao feminino.
Por se tratar de uma legislação recente e de abordagem multidisciplinar, nem sempre é fácil reconhecer a ocorrência de feminicídios nos casos concretos. Por esse motivo, na pesquisa em questão, foram analisadas todas as denúncias envolvendo a morte violenta de uma mulher motivada por questões de gênero, mesmo na ausência de referência explícita ao artigo da lei do feminicídio (CUNHA, 2016).
As penalidades do feminicídio são agravadas em casos como o crime durante a gravidez, nos três meses após o parto, contra menores de 14 anos, maiores de 60 anos ou pessoas com deficiência, ou na presença de parentes. Com a promulgação da Lei nº 13.104/15, o feminicídio se tornou a sexta forma qualificada de homicídio no Brasil. A pena varia de 12 a 30 anos de reclusão, e o crime é considerado hediondo, sujeitando-se às disposições da Lei 8.072/90. O § 2o-A foi adicionado ao Art. 121 para esclarecer quando a morte de uma mulher é considerada devido à sua condição feminina, incluindo casos de violência doméstica e menosprezo. No entanto, essa adição causou confusão e não se alinhou adequadamente com os esforços de clareza e coesão, buscando conectar-se com os termos da Lei Maria da Penha, que trata da violência de gênero no Brasil desde 2011.
A redação do inciso I do § 2º-A do artigo 121 da Lei do Feminicídio apresenta uma inadequação linguística ao exigir que a situação envolva tanto "violência doméstica" quanto "familiar", como se fossem termos idênticos. No entanto, nem toda violência doméstica é necessariamente familiar, podendo ocorrer em contextos não estritamente familiares, como em relações de coabitação ou empregatícias. A formulação "violência doméstica ou familiar" pode gerar interpretações ambíguas ou excessivamente restritivas.
Apesar de ser um crime fundamentado na discriminação da mulher, o texto legal qualifica o homicídio em duas hipóteses distintas: (i) quando se tratar de violência doméstica ou familiar ou (ii) quando for motivado por menosprezo ou discriminação em relação à condição de mulher. Na primeira hipótese, o legislador presume o menosprezo ou a discriminação, que estão implícitos devido à vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica ou familiar. O ambiente doméstico e/ou familiar são situações caracterizadoras em que ocorre com mais frequência a violência contra a mulher por discriminação. Na segunda hipótese, o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação em relação à condição de mulher. Além disso, a vulnerabilidade da mulher, tanto física quanto psicologicamente, é explorada por homens covardes que praticam violência, presumivelmente confiantes na dificuldade da mulher em oferecer resistência ao agressor machista (BRASIL, 2015).
A misoginia, discriminação, aversão ou ódio contra as mulheres ou contra a condição feminina ainda persistem em todo o mundo. O feminicídio é um crime que ocorre devido à discriminação de gênero, direcionado às mulheres e aos objetos da sociedade. Isso pode incluir a crença de que os homens controlam a liberdade das mulheres e a misoginia. O feminicídio é qualificado em casos relacionados à discriminação de gênero, como em contextos de violência doméstica ou contra mulheres devido à sua condição de gênero (BRASIL, 2015).
A definição de "mulher" é ampla, incluindo lésbicas, transexuais e travestis que se identificam como femininas. A qualificação do feminicídio é complexa e envolve critérios diversos, não se aplicando a assassinatos sem relação com a discriminação de gênero. Os critérios psicológicos são fundamentais na identificação de transexuais como mulheres, pois muitos deles nascem biologicamente como homens, mas têm uma identificação psicológica profunda com o sexo feminino. Isso leva muitos transexuais a buscar procedimentos cirúrgicos e tratamentos de readequação de gênero para alinhar sua identidade de gênero com sua identificação. A luta para afirmar essa identidade pode ser emocionalmente desafiadora, resultando em reações de violência e devido ao desespero, ao estigma e à pressão social associada à transexualidade. Assim, a classificação psicológica é crucial para entender as experiências de pessoas transgênero (DE CAMPOS, 2015).
O feminicídio é um crime mais grave do que o homicídio comum, acarretando penas mais severas que variam de 12 a 30 anos de reclusão, em comparação com as penas de 6 a 20 anos para o homicídio simples. Além disso, o feminicídio é classificado como um crime hediondo. Durante o julgamento, a decisão sobre a culpa do réu é influenciada pelos jurados, exceto em casos de absolvição comprovada por provas, e a duração da pena de reclusão depende do processo e das decisões judiciais (BRASIL, 2015).
3. ASPECTOS TEÓRICOS SOBRE GÊNERO, IDENTIDADE E VIOLÊNCIA.
A violência contra a mulher possui raízes profundas e transcende culturas, persistindo ao longo da história, desde a antiguidade até os dias atuais. Este fenômeno, como destacado por Bianchini (2016), manifesta-se de diversas formas, resultando em assassinatos de mulheres e meninas simplesmente devido ao seu gênero, incluindo estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios e abusos sexuais.
Os seres humanos nascem com um sexo biológico definido pelos órgãos sexuais externos distintos em homens e mulheres. A orientação sexual, por sua vez, está relacionada à atração pelo mesmo sexo (homossexual), pelo sexo oposto (heterossexual) ou por ambos os sexos (bissexual). Quanto à identidade de gênero, ela envolve a congruência entre o sexo biológico e psicológico. Se houver concordância, a pessoa é considerada cisgênera; caso contrário, é denominada transgênera ou transexual (LOURO, 2018).
França (2017, p. 143) observa que “as características clínicas do transexualismo se evidenciam com a convicção de pertencer ao sexo oposto, levando a pessoa a contestar essa determinação, muitas vezes de forma violenta e desesperada”.
O gênero está ligado às expectativas e pré concepções sociais sobre comportamentos esperados para homens e mulheres, sendo uma forma simplista de categorizar a sociedade. Ele não opera por necessidade, mas de acordo com as normas sociais estabelecidas (SMITH, 2019). Para Scott (1995), o gênero tornou-se um meio de distinção e de imposição de papéis sociais, além de influenciar as relações de poder existentes.
Importante destacar, conforme Foucault (2015), que toda relação social é uma relação de poder, fundamentada em discursos que o legitimam, bem como em uma estrutura social que busca reprimir mudanças e manter as dominações existentes. O poder não se limita apenas a negações; ele circula e cria saberes.
A identidade de gênero não se restringe ao aspecto biológico, sendo moldada pela sociedade em que a pessoa vive. É um conceito complexo, influenciado tanto pelo consciente quanto pelo subconsciente. A identidade de gênero refere-se ao sentimento interno de ser homem ou mulher, contudo, a sociedade tende a categorizar rigidamente as pessoas como masculinas ou femininas, deixando pouco espaço para quem não se encaixa nesses padrões (LOURO, 2018).
A definição de gênero também está relacionada às performances sociais, frequentemente associando certos comportamentos à homossexualidade. No nascimento, a identidade de gênero é muitas vezes atribuída com base nas genitálias externas, ignorando a complexidade da identidade psicológica da pessoa (LOURO, 2018).
O sexo civil deve refletir a identidade vivenciada socialmente pela pessoa, eliminando ambiguidades. A identidade de gênero é um conceito complexo, influenciado por diversos fatores históricos, genéticos, hormonais, legais e de criação, além de genitais, aspectos eróticos, sociais e psicológicos, e tem evoluído ao longo do tempo (CNJ, 2018).
A questão da identidade sexual vai além da análise morfológica, considerando também os aspectos psíquicos envolvidos. A sexualidade é multifacetada, envolvendo variáveis como transexualidade, homossexualidade, bissexualidade, travestismo, fetichismo e hermafroditismo, cada um demandando compreensão individual (SAADEH, 2004).
De acordo com Escoura (2014), a homossexualidade refere-se a indivíduos satisfeitos com seu sexo, se relacionando com pessoas do mesmo sexo, seja em termos de contato físico ou emocional. Por outro lado, a transexualidade masculina envolve um homem que se considera mulher e se relaciona com outro homem, sendo uma relação considerada heterossexual. Transexuais masculinos não são efeminados, mas femininos, diferentemente dos homossexuais que podem ser efeminados.
Escoura (2014) define hermafroditismo como a condição de pessoas que possuem órgãos sexuais de ambos os sexos, sendo uma condição rara. Além disso, o autor sugere que transexuais podem ser considerados hermafroditas psíquicos, pois nascem com sexo biológico masculino, mas com identidade de gênero feminina.
No contexto da bissexualidade, Escoura (2014) descreve pessoas que são atraídas por ambos os sexos, independentemente do sexo que eles representem. A atração varia conforme o sexo da pessoa, e podem sentir forte impulso erótico ao se vestirem com roupas de outro sexo.
O termo "travesti", segundo Escoura (2014), refere-se a pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se identificam como homens ou mulheres, considerando-se parte de um terceiro gênero ou de um não-gênero. É apropriado tratá-los com pronomes femininos, sendo uma forma respeitosa de abordagem.
Escoura (2014) também discute a terminologia "queer", "andrógino" ou "transgênero", que se refere a pessoas que não se enquadram em nenhuma identidade ou expressão de gênero específica, destacando que o termo ainda não possui consenso universal.
O termo "transexualismo", conforme definido por Escoura (2014), foi introduzido em 1953 pelo médico Henry Benjamin para descrever a divergência psicossocial de indivíduos transgênero. Este transtorno de identidade de gênero, reconhecido pelo CID 11, envolve uma desconexão entre o sexo biológico e a identidade de gênero, levando a um sentimento de inadaptação e um desejo de realizar intervenções cirúrgicas e tratamento hormonal para alinhar o corpo com a identidade de gênero desejada. O reconhecimento desse direito está alinhado com a igualdade perante a lei e as tendências do direito civil, permitindo a evolução no campo da cirurgia de mudança de sexo e a modificação do nome social nos registros públicos.
A transfobia, para Escoura (2014), refere-se ao preconceito e/ou discriminação com base na identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis. O "nome social" é o nome pelo qual as travestis e pessoas transexuais preferem ser identificadas, enquanto seu registro civil não reflete sua identidade e expressão de gênero. Além disso, o "Processo Transexualizador e Cirurgia de Redesignação Genital" representa a jornada que pessoas transgênero percorrem para alinhar as características físicas do corpo com sua identidade de gênero, podendo incluir tratamento hormonal e diversos procedimentos cirúrgicos, como a cirurgia de redesignação genital, que altera os órgãos genitais para criar uma neovagina ou neofalo. No entanto, é importante notar que essa cirurgia é apenas uma etapa dentro do processo transexualizador e não é realizada por todas as pessoas transgênero.
Conforme Escoura (2014) destaca, os debates sobre transexualidade são essenciais e contínuos, proporcionando a busca por direitos e reconhecimento. Os movimentos sociais desempenham um papel fundamental ao contribuir para novas perspectivas, incluindo a conquista do direito civil de alteração de sexo e nome nos registros públicos. A transexualidade levanta questionamentos fundamentais sobre diferença, liberdade, saúde e doença, promovendo uma reflexão constante na sociedade contemporânea.
3.1 O direito para mulheres trans
As violações contra mulheres transexuais seguem um padrão de crimes de ódio, impulsionados pelo preconceito contra suas características que as identificam como parte de um grupo socialmente discriminado. Esses crimes são notáveis por sua extrema violência, como múltiplas facadas, disparos repentinos e apedrejamento, refletindo a violência sistemática e degradante que as pessoas trans enfrentam no Brasil. A população trans tem sido historicamente marginalizada, estigmatizada e perseguida devido à crença em sua anormalidade, derivada do estereótipo de que o gênero atribuído ao nascimento deve coincidir com a identificação de gênero, pressupondo que se comporte conforme os padrões considerados 'adequados' para esse gênero (JESUS, 2015, apud OS MEIOS, 2015).
Ao analisar historicamente o transexualismo, dividimos a transexualidade em fases, destacando o dualismo teórico protagonizado pelas correntes psicológicas. O Conselho Federal de Medicina define o transexualismo como um desvio permanente de identidade sexual, sendo objeto de resoluções como a RES CFM n° 1482/97 e n° 1652/1955/10, que estabelecem que aqueles que desejam ser do sexo oposto, de forma contínua, podem realizar cirurgia de mudança de sexo. Independentemente de ter passado por cirurgia de mudança de gênero, uma pessoa transexual tem o direito de modificar seu nome e viver de acordo com a identidade de gênero que reconhece, sem enfrentar discriminação (CNJ, 2018).
No Brasil, os direitos dos transexuais foram conquistados após anos de luta. Em relação à cirurgia de transgenitalização, não há uma legislação específica, mas o Conselho Federal de Medicina regula a prática através da Resolução nº 1.955/2010, permitindo intervenções médicas para alinhar o sexo psicológico ao biológico. A Constituição Federal de 1988, fundamentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais, como a intimidade, vida privada, honra, imagem e igualdade, sugere a proteção da identidade de gênero sem discriminação. Além disso, o Pacto de San José da Costa Rica, internalizado no Brasil pelo Decreto nº 678/92, dispõe sobre o respeito ao direito ao nome (art. 18); ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º); à liberdade pessoal (art. 7.1) e à honra e à dignidade (art. 11.2).
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu a Opinião Consultiva nº 24, afirmando que a mudança de nome e a correção dos registros públicos para refletir a identidade de gênero autopercebida são um direito, obrigando os Estados a reconhecer, regulamentar e estabelecer procedimentos adequados para isso. A Corte enfatizou que a alteração de nome e gênero deve ser baseada no consentimento livre e informado do solicitante, sem exigir certificados médicos ou cirurgias de transgenitalização como requisitos (PAIVA e HEEMAN, 2020, p. 510).
Diante das previsões na Constituição Federal, no Pacto de San José da Costa Rica e da Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, ao julgar a ADI 4275, deu uma interpretação conforme à Constituição para o artigo 58 da Lei 6015/73, a fim de permitir a alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização. O STF impulsionou mudanças legais em relação às pessoas transexuais. O CNJ lançou o Provimento nº 73/2018, permitindo que maiores de 18 anos e habilitados civilmente alterem prenome e gênero para refletir identidade autopercebida. Os Princípios de Yogyakarta abordam direitos humanos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero, incluindo direitos à vida e à proteção contra tortura, tratamento cruel ou degradante, inclusive em situações de prisão.
Os índices de violência contra transexuais são alarmantes, e pouco tem sido feito para combater tais práticas. Segundo a ONG Transgender Europe, o Brasil admitiu entre janeiro de 2008 e abril de 2013 o assassinato de 486 transexuais e travestis, número quatro vezes maior do que os verificados no México, o segundo país com maior número de homicídios contra essa população em todo o mundo (SCHWARCZ, 2019). A ONU (Organização das Nações Unidas), em 2014, incluiu a morte de mulheres transgênero ou transexuais motivada por desprezo de gênero como uma forma de feminicídio. Isso levanta a questão se a qualificadora do feminicídio se aplica a homicídios de mulheres transexuais. A doutrina tem opiniões divergentes: enquanto alguns argumentam que a mulher transexual não é considerada mulher para fins da qualificadora, mesmo após cirurgia e alteração de registro civil, outros entendem o contrário.
A corrente doutrinária que ganha destaque argumenta a favor da inclusão das mulheres transexuais como vítimas de feminicídio. De acordo com o professor Estefam (2016), ao serem reconhecidas legalmente como mulheres pelo Direito Civil, o Direito Penal deve tratá-las de forma igualitária, garantindo que sejam consideradas como sujeitos passivos do crime de feminicídio, em conformidade com o Princípio da Igualdade. Segundo Bittencourt (2017), qualquer pessoa do sexo feminino pode ser vítima do crime de feminicídio, desde que o crime tenha sido cometido por razões de sua condição de gênero, e o substantivo 'mulher' abrange transexuais e travestis que se identifiquem como pertencentes ao sexo feminino.
Portanto, defende-se que as mulheres transexuais sejam reconhecidas juridicamente como tal, inclusive aquelas que obtiveram a alteração de gênero e nome em seu registro civil. Isso encontra respaldo no entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4275, que permitiu a alteração de nome e gênero no registro civil sem a necessidade de cirurgia ou autorização judicial, em conformidade com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (CUNHA, 2019). A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou, em maio de 2019, uma proposta para incluir explicitamente mulheres transexuais como vítimas de violência doméstica na Lei nº 11340/06. Essa inclusão também poderia permitir que fossem reconhecidas como vítimas de feminicídio. A proposta foi encaminhada à Câmara dos Deputados e ainda não foi votada. A ideia da emenda é que o artigo 2º da Lei nº 11340 passe a garantir que toda mulher, independentemente de identidade de gênero, tenha direitos fundamentais protegidos e seja resguardada de qualquer tipo de violência.
Em agosto de 2022, após a decisão do STJ, a Polícia Civil de Minas Gerais emitiu a Resolução 8.225, modificando uma resolução anterior para garantir que mulheres transexuais e travestis vítimas de violência doméstica ou familiar baseada no gênero fossem atendidas em delegacias especializadas, independentemente de mudanças nos registros civis ou de cirurgias de redesignação sexual. Entre 2020 e 2022, a Polícia Civil de Minas contabilizou o atendimento de 224 mulheres transexuais vítimas de violência doméstica. A decisão do STJ está influenciando ações práticas em várias instituições. Em São Paulo, as Delegacias de Defesa da Mulher têm a atribuição de investigar crimes de violência doméstica ou familiar e crimes contra a dignidade sexual que envolvem pessoas de identidade de gênero feminina, sejam mulheres cisgênero, trans ou travestis. Em 2022, 140 mulheres trans e travestis foram atendidas pela Polícia Civil de São Paulo em casos de violência doméstica ou familiar. Além disso, a Polícia Civil de São Paulo editou a Portaria DGP 08/2022, garantindo direitos como o respeito ao nome social para travestis e transexuais nas delegacias do estado.
A interpretação do STJ alinha-se a propostas legislativas não votadas. Na Câmara, o projeto de lei 8.032 visa incluir transexuais e transgêneros na Lei Maria da Penha e aguarda parecer na Comissão de Direitos Humanos e Minorias. No Senado, o projeto de lei 191, que buscava garantir proteção legal a todas as mulheres, independentemente do sexo biológico, foi arquivado após tramitação em 2017.
4. ESTRATÉGIAS PARA IMPLEMENTAÇÃO.
Diversos aspectos revelam-se inerentes, especialmente no contexto das vítimas de crimes de feminicídio e LGBTfobia. Destaca-se a proximidade entre a vítima e o agressor. Observa-se uma desconfiança em relação à eficácia das ações judiciais e à possibilidade de reparação pela justiça, mesmo entre aqueles que formalmente registraram as ocorrências. Vale ressaltar que a situação das pessoas trans e travestis apresenta complicações adicionais, com uma percepção generalizada de uma resposta insuficiente por parte das instituições em relação ao reconhecimento das violências transfóbicas (CNJ, 2022).
Segundo o CNJ (2022) o desconhecimento sobre os procedimentos para acessar o sistema de justiça, a opacidade do funcionamento do Judiciário e a linguagem hermética do sistema de justiça contribuem para a percepção do ambiente como hostil. O ingresso na esfera judicial depende do registro e investigação pela polícia, sendo a filtragem realizada por esta última de particular relevância, uma vez que há dificuldades iniciais no acolhimento de ocorrências pela segurança pública.
O acesso à justiça muitas vezes tem origem em organizações da sociedade civil, movimentos sociais, advogados(as) particulares ou serviços especializados de atenção à população LGBTQIA+, como Centros de Referência e Centros de Cidadania, além do acesso à Defensoria Pública ou Ministério Público, especialmente por meio de núcleos especializados (CNJ, 2022).
Quanto à implementação de uma estratégia positiva, fatores cruciais para avanço significativo são apontados por Sprechmann (2020). Isso inclui garantir que sobreviventes e pessoas em risco de violência tenham acesso abrangente a serviços de saúde de qualidade, apoio psicossocial, justiça, serviços jurídicos, abrigos, espaços seguros e assistência econômica. Além disso, é essencial promover o empoderamento econômico, social e político, apoiando programas de capacitação econômica, redes de segurança e proteção social, visando a igualdade de gênero nas normas e comportamentos sociais, bem como abordar as causas profundas da violência.
Sprechmann (2020) destaca a importância de envolver homens, meninos, líderes comunitários e outros membros da comunidade para desafiar e transformar normas, práticas e crenças patriarcais que justificam a violência. Finalmente, é crucial aumentar o financiamento, apoio e espaço para organizações que promovem os direitos das mulheres e meninas, a igualdade de gênero, especialmente organizações locais lideradas por mulheres e de direitos das mulheres, bem como organizações lideradas por jovens e de direitos LGBTQI+. Isso inclui garantir a integração dos princípios de igualdade de gênero e análise de gênero nos processos de planejamento, orçamento público e sistemas financeiros públicos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A inclusão de mulheres trans nos casos de feminicídio constitui uma matéria de profunda relevância e significado, destacando a necessidade de uma abordagem abrangente na luta contra a violência de gênero. No curso deste estudo, foram analisados os desafios legais, sociais e culturais associados a essa questão complexa, ressaltando a imperatividade de reconhecer e salvaguardar mulheres trans contra violência motivada por gênero. A conclusão reitera os pontos fundamentais delineados na presente pesquisa.
É imperativo reconhecer que a diversidade de gênero é incontestável na sociedade contemporânea. Mulheres trans enfrentam uma história prolongada de marginalização e discriminação, colocando-as frequentemente em situações de vulnerabilidade perante a violência de gênero. A inclusão de mulheres trans nos casos de feminicídio representa uma etapa crucial para assegurar que suas vidas sejam equiparadas em valor e dignidade às de qualquer outra mulher.
Durante a análise, identificaram-se diversos desafios ligados à inclusão de mulheres trans nos casos de feminicídio. Entre estes, destacam-se a ausência de reconhecimento legal em várias jurisdições, a persistência de estereótipos de gênero prejudiciais e a falta de conscientização sobre as experiências singulares das mulheres trans em relação à violência de gênero. Superar tais obstáculos é essencial para garantir uma proteção eficaz e equitativa.
Legislações e políticas públicas desempenham um papel crucial na promoção da igualdade de gênero e prevenção da violência. A pesquisa indica a necessidade de alterações legislativas e políticas que incluam explicitamente mulheres trans nos casos de feminicídio, reconhecendo suas vivências e desafios. Ademais, é essencial que tais mudanças sejam acompanhadas de esforços educacionais e de conscientização para combater preconceitos arraigados.
A inclusão de mulheres trans nos casos de feminicídio não apenas amplia a proteção legal, mas também transmite uma mensagem poderosa: todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero, merecem proteção contra violência motivada por gênero. Este passo contribui para uma sociedade mais justa, onde a igualdade de gênero seja uma realidade, e todas as formas de violência de gênero sejam eficazmente combatidas. Em última análise, a inclusão de mulheres trans nos casos de feminicídio é uma medida necessária para abordar de maneira completa e justa a violência de gênero.
Este estudo destaca a importância de uma abordagem inclusiva, reconhecendo a diversidade de experiências e identidades de gênero, e ativamente trabalhando para erradicar a violência motivada por gênero em todas as suas manifestações.
Diante do exposto, o presente trabalho teve como escopo primordial tratar da temática do feminicídio e debater a aplicabilidade desta qualificadora para as hipóteses em que mulheres transexuais figuram como vítimas. Ao longo deste estudo, abordou-se a questão de gênero e transexualidade, bem como a violência à qual mulheres, inclusive transexuais, estão sujeitas.
REFERÊNCIAS
BIANCHINI, Alice. A qualificadora do feminicídio é de natureza objetiva ou subjetiva. Revista Emerj, v. 19, n. 72, p. 203-219, 2016.
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graduanda em Direito pelo Centro Universitário UNA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Marcella Vilas Boas. Feminicídio e inclusão das mulheres trans: barreiras legais, sociais e culturais na busca pela justiça e igualdade de gênero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64447/feminicdio-e-incluso-das-mulheres-trans-barreiras-legais-sociais-e-culturais-na-busca-pela-justia-e-igualdade-de-gnero. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
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