RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo situar o leitor nos debates que envolvem a legitimidade democrática da jurisdição constitucional, acentuados principalmente após o advento do neoconstitucionalismo, que teve como um de seus desdobramentos a expansão da atuação do Poder Judiciário no controle de atos advindos do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Buscou-se também apontar alguns mecanismos e teorias que vem sendo desenvolvidas pela doutrina e pela jurisprudência como instrumentos de mitigações das tensões surgidas entre os Poderes. Na primeira parte do estudo, foi abordado o fenômeno jurídico-político-social do neoconstitucionalismo enquanto reaproximação entre o Direito e a Moral, explicando o contexto do seu surgimento após a 2ª Guerra Mundial, bem como seus efeitos sobre o entendimento e a aplicação do Direito. Na segunda parte, buscou-se explicitar de que forma a expansão do Poder Judiciário pode gerar tensões com os outros poderes, seja através do exercício do controle de constitucionalidade, seja através do exercício do controle de atos administrativos. No ponto, também foram abordados os argumentos daqueles que apontam a ausência de legitimidade democrática do Poder Judiciário para afastar atos e leis editadas por representantes eleitos pelo povo. Por outro lado, também foram trazidos argumentos favoráveis à expansão da jurisdição constitucional. Também se abordou a questão do ativismo judicial como fenômeno distinto da judicialização das políticas públicas. Por fim, buscou-se abordar teorias e técnicas trazidas pela doutrina e pela jurisprudência que tem por escopo mitigar as tensões criadas entre a expansão da jurisdição constitucional e o princípio da Separação dos Poderes, como por exemplo, a Doutrina Chenery, a Doutrina Chevron e a Teoria dos Diálogos Interinstitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: neoconstitucionalismo; controle de atos administrativos; controle de políticas públicas; controle de constitucionalidade; Separação dos Poderes; ativismo judicial; legitimidade democrática; diálogos institucionais.
KEYWORDS: neo-constitutionalism; control of administrative acts; control of public policies; control of constitutionality; Separation of Powers; judicial activism; democratic legitimacy; institutional dialogues.
1.INTRODUÇÃO
O âmbito de atuação do Poder Judiciário passou por profundas transformações ao longo do tempo. Se em um determinado período da história os juízes eram mera boca da lei, com o advento da perspectiva da supremacia da Constituição (trazida pelo juiz Marshall da Suprema Corte Americana em 180xx, no paradigmático julgamento Marbury x Madison) e com surgimento do neoconstitucionalismo, certo é que o papel do Judiciário passou por expressiva expansão. No contexto brasileiro, também a adoção de uma constituição programática como a de 1988 foi elementar para os novos contornos dos poderes jurisdicionais.
Com as revoluções liberais burguesas que suplantaram os Estados absolutistas, a observância estrita da lei era vista como uma garantia contra eventuais investidas de segmentos do Antigo Regime. Assim, surgiram movimentos orientados por um paradigma de supremacia da lei, em que a atividade criativa dos juízes era vista com desconfiança. A aplicação do direito era então pautada por um Estado legalista, tecnicista e hermeticamente fechado.
Após a Segunda Guerra Mundial, verificou-se que a aplicação pura da lei, sem qualquer questionamento de justiça ou moralidade chancelou eventos como o Holocausto, já que toda a perseguição aos judeus e aos grupos “de raça impura” estava amparada pelas leis. Da mesma forma, constatou-se que não é suficiente enunciar e reconhecer direitos, é necessário atuar efetivamente para sua concretização. Surge então o neoconstitucionalismo, movimento político, social e jurídico que promoveu uma aproximação do Direito com a Moral, entendendo que a lei não pode ser compreendida pura e simplesmente como sinônimo de justiça,
Sobre o tema Barroso (2015, p. 9) registra que o século XX foi cenário de superação do paradigma jurídico firmado no século XIX, que era orientado por concepções legalistas, formalistas, positivistas e fundadas no direito privado. Dentre as principais transformações na maneira de pensar o direito, o ministro aponta: a) a superação do formalismo jurídico, deixando-se de compreender a aplicação do direito como sistema completo, em que a concretização da justiça era vista a partir da mera operação lógica e dedutiva de subsunção dos fatos à norma; b) o advento do pós positivismo, com a compreensão de que nem todas as soluções estão contidas na norma, levando o direito a buscar respostas também em outras áreas do conhecimento, como a ética, a sociologia, a filosofia, a economia e a psicologia; c) publicização do direito, que levou à centralidade da Constituição no ordenamento jurídico, de forma que toda a interpretação jurídica é também uma interpretação que leva a Constituição como parâmetro.
Luís Roberto Barroso (2015, p. 7) explica que o neoconstitucionalismo teve como marco histórico, o pós Segunda Guerra, com a formação de um Estado Constitucional de Direito; como marco filosófico o pós positivismo, com a mencionada aproximação do Direito com a Moral, e o marco teórico, a partir de uma nova compreensão de Direito e Justiça e de adoção de novas práticas.
Os efeitos de um novo marco teórico se relacionam com a incorporação de valores axiológicos pelo ordenamento através dos princípios, os quais passam a ter força normativa assim como as regras. Como desdobramento da força normativa dos princípios, surge a necessidade de se formular uma nova hermenêutica constitucional. Além disso, ocorre uma expansão da jurisdição constitucional, uma vez que diversos valores sociais são incorporados pelo texto constitucional, ampliando o espectro do parâmetro do controle de constitucionalidade pelos juízes (BARROSO, 2015, p. 7).
Assim, além de representar uma releitura do fenômeno jurídico a partir da constatação da insuficiência da aplicação pura da lei como medidor de justiça, o neoconstitucionalismo pauta-se na busca por efetivação de direitos (ao invés de um mero reconhecimento formal). Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2015, p. 7):
O termo neoconstitucionalismo, portanto, tem um caráter descritivo de uma nova realidade. Mas conserva, também, uma dimensão normativa, isto é, há um endosso a essas transformações. Trata-se assim, não apenas de uma forma de descrever o direito atual, mas também de desejá-lo. Um direito que deixa a sua zona de conforto tradicional, que é o da conservação de conquistas políticas relevantes, e passa a ter, também, uma função promocional, constituindo-se em instrumento de avanço social.
Para Paulo Bonavides (2004, p.127) “A Constituição é cada vez mais, num consenso que vai se cristalizando, a morada da justiça, da liberdade, dos poderes legítimos, o paço dos direitos fundamentais, portanto, a casa dos princípios, a sede da soberania”.
É possível afirmar então, que o neoconstitucionalismo possui algumas palavras de ordem: juridicidade (aqui compreendido como uma legalidade extensa, acrescida de princípios) e efetividade de direitos fundamentais. E é a partir desse desenho que é possível compreender o porquê da ampliação da atuação judicial no controle de atos dos outros Poderes: a juridicidade amplia a possibilidade de apreciação judicial de atos administrativos, pois o parâmetro não é mais de legalidade estrita apenas; a busca por efetividade, por sua vez, possibilita uma maior apreciação judicial das omissões dos outros poderes na implementação de direitos fundamentais, possibilitando, por exemplo, o controle judicial de políticas públicas. Além disso, a própria ideia de supremacia da constituição como expressão dos valores fundantes de uma sociedade permite uma ampliação do controle de constitucionalidade pela via judicial.
Todo esse panorama marcado pela incorporação de valores axiológicos pelo Direito conduz a mudanças na compreensão de categorias político-jurídicas como separação de poderes e democracia. E é nesse contexto que ganha destaque a discussão sobre os limites da atuação de juízes não eleitos pelo povo no afastamento de decisões e atos praticados por representantes eleitos. O grande questionamento que surge é: a quem compete a aferição da conformidade da lei e dos atos do poder público com os valores superiores da Constituição? É devida a preponderância do Poder Judiciário nesse papel? Quais seriam os limites nessa aferição?
Conforme se demonstrará, a leitura que se faz acerca da Separação dos Poderes e da Democracia é o que diferencia aqueles que defendem a expansão da jurisdição constitucional e aqueles que defendem uma postura de autocontenção judicial.
2. DISCUSSÕES SOBRE A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA NA INVALIDAÇÃO JUDICIAL DE ATOS PROVENIENTES DOS PODERES LEGISLATIVO E EXECUTIVO
Aqueles que se posicionam favoravelmente à expansão da jurisdição constitucional compreendem que o princípio da separação dos poderes deixou de ter uma perspectiva meramente estática para ser lido à luz do novo constitucionalismo e do papel do Estado na realização de direitos sociais através de uma postura ativa da Administração Pública (BARBOZA; KOZICKI, 2012, p. 78).
Carvalho Filho (2014, p. 160) explica que a acepção clássica e rígida da Separação dos Poderes desenvolvida por Montesquieau foi concebida com foco no paradigma da supremacia da lei, na qual o Judiciário é um poder praticamente nulo e adstrito a aplicação da lei no caso concreto. Com o advento do Estado Constitucional de Direito, passou-se a compreender a relação entre os poderes sob um viés de interdependência, coordenação e cooperação na realização dos direitos fundamentais e dos valores constitucionais supremos que orientam toda a vida em sociedade.
Além disso, para essa corrente, a própria ideia de democracia deixa de ser vista apenas como uma manifestação de maiorias que se esgota no processo eleitoral. Surge então a concepção de democracia substantiva ou constitucional, que inclui igualdade de consideração e respeito pelos indivíduos e suas particularidades. Aponta-se também a existência de uma crise de representatividade entre a vontade popular e os titulares de mandato eletivo, os quais, não raramente, conduzem sua atuação política de forma dissociada dos fins pelos quais foram eleitos, ou ainda, priorizando a manutenção de seus privilégios.
Lucas Azevedo Paulino (2018, p. 31) citando Dworkin assevera que:
A concepção constitucional da democracia entende que o “autogoverno não é o governo de uma maioria que exerce sua autoridade sobre todos, mas o governo de todas as pessoas atuando como parceiras” (grifo do autor).
(...)
Para essa interpretação da democracia, não deixam de ser importantes os aspectos participativos da democracia, como o sufrágio universal e a liberdade de expressão, mas eles devem ser instrumentos que devem ser interligados com as outras metas substantivas da democracia.
Na defesa da compatibilidade da jurisdição constitucional com a democracia argumenta-se também que após o neoconstitucionalismo surgiram novos lugares de representação da vontade popular. Já que a Constituição é a vontade popular suprema e consagradora dos valores mais caros de um povo, então o exercício do controle de constitucionalidade pelo Judiciário e a decisão judicial que determina a implementação de direitos fundamentais elementares nela contidos estão em verdade prestigiando a vontade popular consignada na Carta Magna, estando no âmbito da atividade judicial típica de interpretar a lei. Paulino (2018) explica que:
Os teóricos constitucionais geralmente justificam a supremacia judicial na interpretação constitucional e no controle de constitucionalidade das leis com fundamentos na superioridade do poder constituinte originário, que representaria diretamente o povo mobilizado e engajado civicamente, em detrimento da política cotidiana, na qual os cidadãos se preocupariam mais com seus interesses privados enquanto delegariam o exercício da política a representantes indiretos.
Além disso, há quem sustente, a exemplo de Robert Alexy, que enquanto a representatividade dos poderes Executivo e Legislativo se dá por intermédio do voto, a representatividade do Poder Judiciário se dá por meio da argumentação e da fundamentação racional.
Para Jhon Rawls, o Judiciário seria o poder mais capaz de orientar sua atuação com base em razões públicas, o que justificaria sua preponderância na interpretação da Constituição. Os cidadãos e os legisladores, contrariamente, podem votar de acordo com suas visões de mundo sem necessidade de fundamentação racional (PAULINO, 2018, p. 42 a 45).
Em uma sociedade complexa e pluralista, a conciliação de interesses conflitantes e a legitimidade das decisões públicas pressupõe a adoção de decisões políticas racionais assentadas em “um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes razoáveis”, entendidas como concepções que “todos os cidadãos, em suas condições livres e iguais, possam razoavelmente endossar” (PAULINO, 2018, p.41).
Por outro lado, há aqueles que concebem que a condução de uma sociedade democrática deve ser pautada pelo critério majoritário, de forma que a última palavra não deve ser conferida ao Poder Judiciário sob pena de afronta à democracia. Explicando o entendimento de Jeremy Waldron, Lucas Azevedo Paulino aduz que os sujeitos e grupos divergem acerca do que são os valores e regras fundamentais de uma sociedade, bem como qual sua extensão e limites. Nesse contexto, diante da necessidade de se chegar a um consenso mínimo, “deve-se buscar um procedimento que todos considerem legítimo, independente da opinião sobre o mérito da questão” (PAULINO, 2018, p.62).
Em função disso, os procedimentos e as instituições devem ser arquitetados de forma que a decisão coletiva, reconhecendo o desacordo, trate todos os indivíduos como agentes com igual respeito e consideração e detentores de autonomia moral para definir os rumos da vida em coletividade. (...) a decisão majoritária é esse procedimento técnico que permite escolher um curso de ação em circunstâncias onde existe um impasse sobre o que fazer. (...) A decisão majoritária, além disso, é neutra em relação aos resultados, porquanto trata os participantes e suas opiniões com igualdade (WALDRON apud PAULINO, p. 62-64).
Assim, para Waldron, a qualidade democrática das decisões e atos que conduzem um povo reside não no resultado, mas no procedimento garantidor de participação e de voz a todos os cidadãos. O critério majoritário, enquanto respaldado por um juízo de equidade, é o mais apto a aplacar os conflitos políticos e legitimar as decisões ao ponto de vista dos que consideram o resultado insatisfatório (PAULINO,2018, p. 73-74).
No tocante ao argumento suscitado pela doutrina favorável ao judicial review de que a prevalência das decisões de maiorias pode ensejar opressão a direitos de minorias, Waldron sustenta que em qualquer dissenso sobre direitos, o lado “perdedor” entenderá que o lado contrário é potencialmente tirânico. Não obstante, o próprio Waldron entende que em casos atípicos de violação de direitos, tal como sucedeu com a segregação racial estadunidense, sua objeção ao judicial review não é aplicável (PAULINO, 2018, p. 91-92).
Paulino expõe também os argumentos trazidos por Richard Bellamy no sentido de que não há nenhum indicativo concreto de que as decisões tomadas pelo Legislativo são mais suscetíveis a desvirtuamentos do que as do Judiciário, como se esse último fosse imune a ideologias e grupos de pressão (PAULINO, 2018, p.104-105).
Embora traga argumentos importantes para o aprimoramento dos debates, a doutrina refratária ao poder judicial de invalidação de atos administrativos e normativos, atualmente, é minoritária. A questão principal que parece se impor atualmente não é sobre a legitimidade do judicial review, mas sobre quais os limites devem ser observados para que os valores democráticos não sejam comprometidos.
Aliás, nesse sentido, alguns doutrinadores entendem que há diferenciação entre a judicialização da política (como fenômeno natural e inevitável advindo do neoconstitucionalismo e de constituições programáticas) e o denominado ativismo judicial (a ser compreendido sobre os limites que devem pautar a conduta do juiz no exercício da jurisdição). BARROSO.
Diante das considerações supra, parte-se para a análise de algumas técnicas e parâmetros de atuação que visam limitar o exercício da jurisdição constitucional. São técnicas que devem ser observadas pelo próprio Poder Judiciário e fiscalizadas pelos outros poderes, a fim de se equilibrar, de um lado, a efetiva proteção a direitos fundamentais e princípios e de outro, a democracia como vontade popular.
3. INSTRUMENTOS DE EQUILÍBRIO ENTRE A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E A SEPARAÇÃO DOS PODERES
No tocante à tensão entre a função jurisdicional e a governança do Poder Executivo, surgem as doutrinas Chenery e Chevron, de inspiração norte-americana.
A doutrina Chenery preconiza que o Poder Judiciário não pode se imiscuir na definição ou na interpretação de critérios técnicos que amparam decisões do Poder Executivo. Isso porque os atos administrativos não são imbuídos apenas de princípios e regras do ordenamento jurídico, mas também de fatores de ordem técnica, cuja expertise é de conhecimento próprio de órgãos atuantes em políticas públicas. Dessa forma, a intervenção do Judiciário, nesses casos, deve ser pautada por uma postura de autocontenção, sendo válida somente se houver ilegalidades no ato apreciado.
O Superior Tribunal de Justiça já aplicou a referida teoria no ano de 2017 (AgInt no AgInt na SLS 2.240/SP), em caso de impugnação ao aumento das tarifas do transporte público em São Paulo. Na ocasião, os ministros entenderam que os critérios mercadológicos e operacionais que levaram ao aumento da tarifa não eram passíveis de serem apreciados pelo Poder Judiciário em razão da sua ausência de capacidade técnica para tanto.
A doutrina Chevron, por sua vez, trata sobre casos em que há multiplicidade de interpretações possíveis para a solução de um caso que envolva atos administrativos. Nesses casos, o juiz deve adotar uma postura de deferência, prestigiando o papel do Poder Executivo na resolução da questão. Assim, pela doutrina Chevron, o juiz não deve procurar a melhor interpretação possível da norma, mas aceitar como legítima uma interpretação razoável dada pelo gestor ( RODRIGUES JR. e ARAÚJO, 2023).
Dessa forma, pode-se afirmar que por essa corrente de pensamento, as decisões administrativas, normalmente permeadas de questões complexas e específicas, não precisam estar num estado ideal para serem legítimas, basta que sejam razoáveis a partir dos elementos disponíveis na realidade fática.
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADI 4874 citou a doutrina Chevron para fundamentar a improcedência do pedido de inconstitucionalidade da Resolução da Agência de Vigilância Sanitária – Anvisa que proibia a importação e comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco contendo aditivos de sabor e aromas. Na ementa oficial, consta o seguinte:
A competência específica da ANVISA para regulamentar os produtos que envolvam risco à saúde (art. 8º, § 1º, X, da Lei nº 9.782/1999) necessariamente inclui a competência para definir, por meio de critérios técnicos e de segurança, os ingredientes que podem e não podem ser usados na fabricação de tais produtos. Daí o suporte legal à RDC nº 14/2012, no que proíbe a adição, nos produtos fumígenos derivados do tabaco, de compostos ou substâncias destinados a aumentar a sua atratividade. De matiz eminentemente técnica, a disciplina da forma de apresentação (composição, características etc.) de produto destinado ao consumo, não traduz restrição sobre a sua natureza. 9. Definidos na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa (Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council).
(...)
ADI 4874, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019
Ainda no âmbito da justiciabilidade de atos do Poder Executivo junto ao Judiciário, situa-se a questão do controle judicial de políticas públicas. Embora a possibilidade de pronunciamento judicial frente às omissões injustificadas na implementação de direitos fundamentais de envergadura constitucional venha sendo cada vez mais aceita no âmbito da doutrina e da jurisprudência, fato é que os limites e balizas desse controle precisam ser mais bem delineados, merecendo uma atenção especial dos estudiosos do Direito.
Atento a essas questões, o Supremo Tribunal Federal fixou em sede de Repercussão Geral (Tema 698), alguns limites que devem ser observados pelo Poder Judiciário nas demandas que determinem obrigações de fazer ao Estado e que tenham repercussão na implementação de políticas públicas.
6. Fixação das seguintes teses de julgamento:
“1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado; 3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)”.
Em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso também destacou os seguintes parâmetros: i) primeiramente, deve estar comprovada a omissão grave e injustificada do Poder Público; ii) observar a possibilidade de universalização da providência a ser determinada, considerados os recursos efetivamente existentes; iii) o órgão julgador pode determinar a finalidade a ser atingida, mas não o modo como ela deverá ser implementada; iv) o órgão julgador deve privilegiar medidas estruturais de resolução do conflito; v) o Judiciário deve considerar sua ausência de expertise e capacidade institucional para solucionar determinadas questões; vi) o Judiciário deve ampliar ao máximo a abertura do debate com as instâncias democráticas e com a sociedade civil, a fim de possibilitar uma visão global do problema e uma tomada de decisão qualificada, mediante a admissão de amicus curiae ou realização de audiências públicas.
Já no tocante às tensões democráticas advindas do controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais, é possível citar a tese dos diálogos interinstitucionais como uma racionalidade que visa compatibilizar a função das cortes como guardiãs da constituição e a soberania popular. Trata-se de um modelo que visa estimular a interação dialógica entre os poderes, em que as decisões finais sobre determinado tema são dadas em caráter provisório, tendo em vista que as questões podem ser reabertas e debatidas novamente. (PAULINO, 2018, p.135)
Carvalho Filho (2014) sustenta que no ordenamento jurídico brasileiro é possível se vislumbrar alguns mecanismos de cooperativismo entre o Judiciário e o Legislativo, a exemplo do art. 102, §2º da Constituição Federal, segundo o qual as decisões do STF em controle de constitucionalidade, embora possuam eficácia vinculante e erga omnes, não vinculam o Poder Legislativo na sua atuação legiferante. Assim, o Poder Legislativo pode editar uma nova norma, com conteúdo contrário ao que foi decidido pelo Supremo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a edição da emenda constitucional que dispôs sobre as vaquejadas como forma de manifestação cultural a protegida pela Constituição logo após a decisão do STF que havia decidido pela incompatibilidade do referido esporte com os valores constitucionais.
O autor cita ainda que a técnica das decisões de apelo ao legislador, aplicada nos casos de omissão inconstitucional, também retrata um instrumento de atuação cooperativa entre os poderes. No ponto, o Poder Judiciário reconhece uma situação de inconstitucionalidade e mora legislativa sobre determinado tema, sem proferir decisão que tenha repercussões efetivas na realidade, mas provocando o legislador a agir para suprir determinada omissão.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O advento do neoconstitucionalismo trouxe um novo paradigma na compreensão do Direito e da interpretação jurídica. O pós-positivismo trouxe uma aproximação entre o Direito e a Moral, possibilitando que valores axiológicos interpenetrassem no mundo jurídico através dos princípios, das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, ampliando a margem de atuação do juiz na interpretação das normas jurídicas.
Além disso, também como consequência do movimento neoconstitucionalista, a tônica do ordenamento jurídico passou a ser a implementação e concretização dos direitos, de forma que todos os Poderes passam a ter responsabilidade e proatividade na efetivação de políticas públicas.
Nesse contexto de expansão da jurisdição constitucional e de ampliação do papel do Poder Judiciário surgiram debates sobre a postura que o juiz e os tribunais devem adotar para não ingressar indevidamente na esfera de atuação própria dos outros Poderes. A legitimidade democrática da atuação do Poder Judiciário tem sido, portanto, um dos grandes debates jurídico-políticos da atualidade, debate esse que convoca todas as instâncias de poder e a sociedade civil a aprimorar técnicas de decisões e de atuação que permitam harmonizar a implementação de valores essenciais a uma sociedade com a estabilidade das instituições e dos três poderes.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; KOZICK, Katya. Judicialização da política e controle judicial de políticas públicas. Revista Direito GV, São Paulo. Jan-jun 2012. P. 059-086. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/99927/1/judicializacao_politica_controle_kozicki.pdf. Acesso em|: 26/12/2023.
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MENDES, Gilmar. A Jurisdição constitucional no Brasil e seu significado para a liberdade e a igualdade. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaArtigoDiscurso/anexo/munster_port.pdf. Aceso em 23/10/2023.
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Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt na SLS 2.240/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 07/06/2017, DJe 20/06/2017
Supremo Tribunal Federal. ADI 4874, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019.
Supremo Tribunal Federal. RE 684612, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/07/2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 04-08-2023 PUBLIC 07-08-2023.
formada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Assessora Jurídica no Ministério Público Federal em Sergipe
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Vivian Leite. Neoconstitucionalismo, expansão da jurisdição constitucional e tensão entre os poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jan 2024, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64540/neoconstitucionalismo-expanso-da-jurisdio-constitucional-e-tenso-entre-os-poderes. Acesso em: 22 nov 2024.
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