Crime de dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação e viabilidade da denúncia
A Primeira Turma iniciou julgamento de inquérito no qual se imputa a deputado federal a prática dos crimes previstos no art. 89 da Lei 8.666/1993 [“Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”] e no art. 1º, XIII, do Decreto-Lei 201/1967 [“XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei”], por condutas supostamente praticadas enquanto ocupante de cargo de prefeito municipal.
Para a acusação, teria havido irregularidades na contratação de OSCIP por ente municipal, com a verdadeira finalidade de admissão direta de servidores sem a observância da regra constitucional do concurso público. A defesa sustenta, em suma, a atipicidade da conduta imputada ao acusado.
O ministro Luiz Fux (relator) rejeitou a denúncia, nos termos do disposto no art. 395, III, do CPP (“Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: III - faltar justa causa para o exercício da ação penal”).
Reconheceu, de início, a ocorrência da prescrição quanto ao crime definido no art. 1º, XIII, do Decreto-Lei 201/1967, referente à suposta contratação de pessoal sem observância da regra do concurso público.
Quanto ao crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993, consignou que a dispensa ou inexigibilidade é incriminada, de acordo com o tipo penal, quando o fato não se enquadra nas hipóteses legais de dispensa ou de inexigibilidade (Lei 8.666/1993, arts. 24 e 25) ou as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade não são observadas (Lei 8.666/1993, art. 26).
Ressaltou, ademais, que o tipo penal do art. 89 da Lei de Licitações prevê crime formal, que dispensa o resultado danoso para o erário. Nesses termos, a não exigência de prejuízo patrimonial, para a consumação do delito, não afasta a necessidade de que, para adequação da conduta à norma penal, sua prática revele desvalor maior para o ordenamento jurídico do que a observância parcial ou imperfeita de normas procedimentais. Assim, se, por um lado, o ilícito administrativo se aperfeiçoa com o simples atuar do administrador público, que não esteja estritamente em consonância com o princípio da legalidade, por outro, a prática de um delito penal exige uma conduta planejada e voltada finalisticamente a executar a conduta criminosa, com o fim de obter um proveito criminoso de qualquer natureza.
Para o relator, diante das peculiaridades que envolvem a distinção entre, de um lado, o ilícito cível e administrativo e, de outro lado, com maior desvalor jurídico, o ilícito penal, há a necessidade de sistematizar critérios para análise da ocorrência ou não do tipo previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993. Busca-se, com isso, reduzir o elevado grau de abstração da conduta estabelecida no tipo penal e, por consequência, atender aos princípios da “ultima ratio”, da fragmentariedade e da lesividade.
Entendeu que podem ser estabelecidos três critérios para a verificação judicial da viabilidade da denúncia que trate da prática do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993. Esses critérios permitem que se diferencie, com segurança, a conduta criminosa definida no art. 89 da Lei 8.666/1993 das irregularidades ou ilícitos administrativos e de improbidade, intencionais ou negligentes.
O primeiro critério consiste na existência de parecer jurídico lavrado idoneamente pelo órgão competente. Nesses termos, o parecer do corpo jurídico, quando lavrado de maneira idônea, sem indício de que constitua etapa da suposta empreitada criminosa, confere embasamento jurídico ao ato, inclusive quanto à observância das formalidades do procedimento. O parecer jurídico favorável à inexigibilidade impede a tipificação criminosa da conduta, precisamente por afastar, desde que inexistentes outros indícios em contrário, a clara ciência da ilicitude da inexigibilidade e determina o erro do agente quanto a elemento do tipo, qual seja, a circunstância “fora das hipóteses legais” (CP, art. 20).
No tocante a esse aspecto, aduziu que, no caso, a procuradoria-geral do município foi consultada, quanto à necessidade de realização de licitação, anteriormente à assinatura do termo de parceria entre o Município e a OSCIP. A existência de parecer do órgão jurídico especializado, no sentido da licitude da dispensa ou da inexigibilidade da licitação, constitui óbice ao enquadramento típico da conduta do administrador público que, com base nele, assinou o termo contratual no exercício de sua função, salvo indicação de dolo de beneficiar a si mesmo ou ao contratado e/ou narrativa mínima da existência de união de desígnios entre os acusados, para realização comum da prática delitiva.
O segundo critério a ser observado, segundo o relator, corresponde à indicação, na denúncia, da especial finalidade de lesar o erário ou promover enriquecimento ilícito dos acusados. Para tanto, o crime definido no art. 89 da Lei 8.666/1993, de natureza formal, independe da prova do resultado danoso. Nada obstante, é exigível, para que a conduta do administrador seja criminosa, que a denúncia narre a finalidade do agente de lesar o erário, de obter vantagem indevida ou de beneficiar patrimonialmente o particular contratado, ferindo com isso a razão essencial da licitação (a impessoalidade da contratação).
Sobre esse critério, asseverou que a denúncia não mencionou a existência de indício de que o acusado teria agido com o fim de obter algum proveito ilícito ou de beneficiar a OSCIP contratada, em detrimento do erário. Ponderou, ainda, que o tipo previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993 tem como destinatário o administrador e adjudicatários desonestos e não os supostamente inábeis. É que a intenção de ignorar os pressupostos para a contratação direta ou a simulação da presença desses são elementos do tipo, que não se perfaz a título de negligência, imprudência ou imperícia — caracterizadores de atuar culposo.
Como último critério, destacou a necessária descrição do vínculo subjetivo entre os agentes. Assim, a imputação do crime definido no art. 89 da Lei 8.666/1993 a uma pluralidade de agentes demanda a descrição indiciária da existência de vínculo subjetivo entre os participantes para a obtenção do resultado criminoso, não bastando a mera narrativa de ato administrativo formal eivado de irregularidade. Em outros termos, deve-se perquirir se a denúncia, ao narrar a prática de crime em concurso de agentes, indica a presença dos elementos configuradores da união de desígnios entre as condutas do acusados, voltadas à prática criminosa comum.
Quanto ao ponto, afirmou que, na espécie, a investigação não reuniu indícios mínimos da existência de vínculo subjetivo entre os acusados, voltado à obtenção de proveito criminoso.
Após o voto do ministro Roberto Barroso, que acompanhou o relator, a ministra Rosa Weber pediu vista dos autos.
Inq 3674/RJ, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 21.2.2017. (Inq-3674)
Decisão publicada no Informativo 855 do STF - 2017
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