No início de 2025, o tribunal criminal de Côtes-d’Armor, na Bretanha, no noroeste da França, condenou o pai e a mãe de uma menina por estupro agravado. Os abusos haviam começado quando a vítima tinha 10 anos de idade e perduraram de 2017 a 2022.
Este caso seguiu-se ao caso amplamente divulgado dos estupros de Mazan, também na França, em que um pai foi condenado por abusar da filha adotiva por pelo menos 50 vezes, contando com a participação ativa da mãe da vítima, que também participou dos abusos sexuais. Neste caso, o pai foi condenado à pena de 10 anos de prisão, enquanto naquele os pais foram condenados a penas de 17 e 12 anos.
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no final de 2021 que a mãe condenada por omissão imprópria no crime de estupro de vulnerável da filha não pode ter a pena majorada pela condição de ascendente, sendo inaplicável o art. 226, II, do Código Penal. Para a corte, a condição de genitora já havia sido considerada para a configuração da posição de garante prevista no art. 13, §2º, “a”, do CP, por lhe incumbir o dever de agir, já que possui a obrigação legal de cuidado, proteção e vigilância exigida pela norma de extensão.
Essa obrigação emana dos arts. 227 e 229 da Constituição Federal e dos arts. 1.566, IV, e 1.634, I, do Código Civil. Em reforço, o art. 22, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente substituiu o uso da expressão genérica “pais”, preferindo especificar “a mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança”, conforme a inclusão feita pela Lei nº 13.257/2016. Desta forma, para evitar “bis in idem”, a corte redimensionou a pena da mãe de 17 para 12 anos de prisão.
Nos dois primeiros casos, mãe e pai participaram dos abusos em concurso. Para o direito pátrio, a pena nestas circunstâncias eleva-se da quarta parte, aplicando-se o disposto no art. 226, I, do CP. Nada obstante, temos que a conivência da mãe, na qualidade de partícipe do crime, mesmo sem praticar o verbo núcleo do tipo do estupro de vulnerável, igualmente atrai a incidência da majorante. Isso porque, na generalidade dos casos, os abusos só se protraem no tempo por conta do consentimento da genitora.
De fato, no terceiro caso, oriundo do STJ, houve a atuação da mãe na qualidade de partícipe, por omissão imprópria, diferindo dois casos anteriores, em que a mãe praticou o estupro de vulnerável como coautora. Os crimes omissivos sempre encontraram grande dificuldade doutrinária, dada a ideia clássico-helênica de que do nada, nada pode vir (ex nihilo nihil fit).
Para contornar esse impasse o legislador recorreu à tipicidade por extensão, conforme o escólio de Nucci: “Noutros termos, a omissão penalmente relevante, envolvendo a figura do garante, não existe, por si só, nos tipos penais incriminadores; constrói-se a tipicidade por extensão, associando-se o tipo incriminador à norma do art. 13, § 2.°. Assim, se os pais, devendo, por lei, cuidar de seus filhos menores, protegê-los e vigiá-los (art. 13, §2.º, a, deste Código), não o fizerem, permitindo, por omissão, que algum deles, menor de 14 anos, seja estuprado por terceiro, desde que pudessem agir para evitar o resultado, respondem por estupro de vulnerável. A classificação acusatória seria a seguinte: art. 217-A, combinado com o art. 13, § 2.º, alínea a, do Código Penal.” (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 125).
As penas aplicadas nos três casos anteriores foram baixas, mas é comum a pena nos abusos intrafamiliares chegarem ao patamar de 40 anos de prisão, quando aplicado o concurso material de crimes. Temos que a conivência da mãe quanto aos abusos praticados contra a criança no decorrer de meses ou anos também é passível do somatório das penas.
De fato, o STJ entende que no crime de estupro de vulnerável aplica-se a continuidade delitiva simples, e não especifica. Além disso, no tema 1.202, julgado em 2023, a corte firmou a compreensão de que é possível aplicar a fração máxima de dois terços com base no tempo em que as condutas ocorreram, mesmo sem indicação exata do número de estupros cometidos. No caso de vítimas diversas, contudo, prevalece o entendimento pelo cúmulo material de penas.
Estes casos revelam a dificuldade dogmática em lidar com a conduta das mães que se omitem ante os abusos sexuais sofridos pelos filhos. Neste ensaio, buscaremos delimitar as nuances da teoria do delito que dão guarida para a punição das genitoras e demais responsáveis pelo infante frente aos abusos cometidos, principalmente na qualidade de cúmplices do delito.
No final de 2024, o Congresso Nacional se debruçou sobre medidas mais duras para a prática de pedofilia, como o uso da castração química e a criação de um cadastro nacional de abusadores. Mas para a maior proteção das crianças, é preciso alargar o foco de atuação, já que na quase totalidade dos casos de abuso infantil há um terceiro conivente com a conduta, diferindo neste ponto dos abusos sexuais contra adultos.
De fato, a imprensa reporta diuturnamente casos de abuso infantil praticados por companheiros de genitoras que se omitem em tomar qualquer providência, mesmo tendo pleno conhecimento dos fatos. Em muitos casos, os companheiros já possuem extensa ficha criminal em delitos sexuais, escolhendo para a convivência justamente mulheres que possuem filhos pequenos. Em outros casos, as próprias mães inserem os infantes nas redes de pedofilia hospedados na “deep web”, com intuito de lucro. Esses casos reportados pela imprensa são objeto de inúmeras operações policiais, que resultam na prisão dos perpetradores.
Contudo, o universo de abusadores é enorme, e na rede mundial de computadores ele se estende para todo o mundo. De fato, há muitos casos de negociação de encontros presenciais com crianças, mas na maior parte dos casos essas redes operam mediante a produção e venda de material ilícito. Logo, mesmo que fossem presos todos os pedófilos do país, a exploração das crianças não seria estancada.
Desta forma, ainda que fossem aplicadas penas maiores, como a pena capital e a prisão perpétua, haveria um canal de acesso a redes de pedofilia de outros países. No Brasil, não é incomum essas penas serem aplicadas na prática a estupradores, que podem sofrer justiçamentos antes de serem presos ou no interior das unidades prisionais. Em outros casos, as penas cumuladas em concurso podem chegar a mais de meio século, sendo consideradas em sua integralidade no cálculo da progressão de regime em crime hediondo.
Contudo, é preciso alargar o espectro da lei penal para as genitoras e demais responsáveis pela criança, coniventes com a situação de abuso recorrente, visando a efetiva proteção do bem jurídico. Para isso, existem vários desafios dogmáticos que precisam ser enfrentados para o enquadramento das genitoras coniventes com os abusos, já que estes casos exigem o ingresso no tormentoso campo dos crimes omissivos impróprios, onde impera o dissenso doutrinário.
O art. 13, §2°, do Código Penal apresenta uma norma de extensão causal para os garantes. Segundo o enunciado 29 da I Jornada de Direito e Processo Penal, realizada pelo CJF em agosto de 2020, “a responsabilidade a título de omissão imprópria deve observar a assunção fática e real de competências que fundamentam a posição de garantidor.” Esse enunciado espelha o impasse em lidar com essa figura jurídica nos casos concretos.
Essa norma de extensão causal é utilizada justamente para a ausência de ação do agente. Ela difere da tentativa, prevista no art. 14, II, do CP, que também é uma norma de extensão, mas de caráter temporal, estendendo a punição ao agente mesmo sem a prática de todos as ações exigidas pelo tipo. Essa norma de extensão não se aplica na omissão própria, mas é perfeitamente aplicável na omissão imprópria. Neste último caso, haverá o supedâneo das duas normas de extensão, causal e temporal, que incidirão simultaneamente para possibilitar o alcance da punição ao agente.
Essa dupla incidência das normas de extensão pode trazer alguns desafios práticos. Em setembro de 2021, a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu o AREsp n° 974.254, adotando a teoria objetivo-formal no crime de roubo circunstanciado com uso de arma de fogo. No caso concreto, o agente havia rompido o cadeado e destruído a fechadura, com evidente intuito de subtração patrimonial na residência. Mas para a corte, só há tentativa quando houver efetiva prática do verbo núcleo do tipo, entendo o fato atípico.
A encaixe deste entendimento nos crimes sexuais pode criar situações embaraçosas. O art. 213 do CP, que prevê o crime de estupro, utiliza o núcleo “ter conjunção carnal”, o mesmo previsto no art. 217-A, que prevê o crime de estupro de vulnerável. A parte final do primeiro dispositivo ainda trás o núcleo “permitir que com ele se pratique”, não prevista no segundo.
Pela teoria objetivo-formal, encampada de forma incipiente pelo STJ em contrariedade à maioria da doutrina, caso um estuprador amarrasse a vítima, a despisse, abrisse o zíper e se deitasse sobre ela para iniciar a conjunção carnal, ainda não teria praticado o núcleo do tipo. Logo, caso a polícia chegasse nesse exato instante e interrompesse a conduta, ele nada responderia, tratando-se de fato atípico.
Essa situação revela a dificuldade em delimitar a fronteira entre os atos preparatórios e executivos nos crimes sexuais, em especial no estupro de vulnerável, que dispensa o constrangimento e se configura mesmo diante do consentimento do infante. Aplicar a teoria objetivo-formal nos casos de tentativa deste mesmo delito na modalidade de omissão imprópria por conivência da genitora como garante da criança pode resultar numa proteção insuficiente do bem jurídico, ferindo o imperativo de tutela decorrente do garantismo positivo.
Mesmo em condutas menos invasivas do abusador, a jurisprudência do STJ se firmou pela configuração do crime de estupro de vulnerável, não cabendo a desclassificação para o crime de importunação sexual, ainda que esse tipo penal não faça alusão à idade da vítima, conforme o tema 1.121 julgado em 2022. Circundando esse precedente, alguns tribunais estaduais passaram a aplicar a tentativa no crime de estupro de vulnerável em casos de toques nas partes íntimas como forma de abrandar a dosimetria, com fundamento na adequação e necessidade da reprimenda, expressas na parte final do art. 59 do CP, a exemplo da Apelação criminal n° 1500193-25.2020.8.26.0103 do TJSP, julgada em 2023.
Em reação, a 5° Turma do STJ julgou o REsp n° 2.172.883/SP em dezembro de 2024 entendendo inadmissível a modalidade tentada no crime de estupro de vulnerável. O caso concreto envolvia toques em partes íntimas por cima da roupa de uma criança de seis anos, que reagiu à conduta. Para o STJ, o estupro de vulnerável restou consumado com o toque, mesmo diante da reação do infante. Dogmaticamente, os autores admitem a modalidade tentada do tipo penal do art. 217-A do CP, principalmente quando há conluio com um terceiro cúmplice do crime. É possível ainda vislumbrar a modalidade tentada quando o agente marca com o infante um encontro no quarto, e antes de iniciarem os toques íntimos são surpreendidos por um familiar da criança que impede a consumação da conduta.
O entendimento do STJ se justifica em alguns casos, dado que em diversas situações a conjunção carnal restará impossibilitada, a exemplo da não formação dos órgãos genitais, como uma criança de seis anos. Apesar dessa hipótese não ter sido aventada no acórdão, não houve ressalva quanto à idade da vítima, estendendo-se o entendimento também para vítimas de 13 anos, consumando-se o crime com toques corporais por cima da roupa.
Tecnicamente, a tentativa aplicada pelo TJSP não se encaixa na definição legal do instituto, já que o agente satisfez sua lascívia mediante toques corporais até onde sua vontade o determinou, sem interferência de terceiros. A minorante da tentativa foi urdida apenas como um ardil para diminuir a pena. Trata-se de mais um embate entre o TJSP e as Turnas Criminais do STJ. Ambas as decisões possuem furos dogmáticos evidentes, porquanto se espera que no decorrer de 2025 essa discussão prossiga. Contudo, a sociedade espera uma uniformidade justa e equânime da lei, para além da mera disputa de egos.
Para contornar esse labirinto dogmático, caberia ao legislador criar um tipo penal omissivo específico para a situação de conivência com os abusos. Com isso, a discussão acerca dos contornos científicos da omissão imprópria seria esvaziada, passando os casos a serem regidos pela omissão própria do novo tipo penal.
Essa última espécie de omissão já é objeto de diversos tipos penais envolvendo crianças, estando sedimentada na jurisprudência dos tribunais. Este novo tipo omissivo pode encontrar supedâneo tanto no tipo geral do art. 135 do CP (omissão de socorro), quanto no tipo específico do novo art. 244-C do ECA (incluído pela Lei n° 14.811/2024). Este último pune a conduta omissiva do pai, da mãe ou do responsável legal que, de forma dolosa, deixar de comunicar à autoridade pública o desaparecimento de criança ou adolescente. O legislador teve o cuidado de se referir ao elemento normativo “autoridade” de forma genérica, não se limitando aos policiais. Por outro lado, empregou de modo redundante a expressão “de forma dolosa”, já que não houve previsão da modalidade culposa. Afinal, a infringência a um dever objetivo de cuidado é inerente à conduta omissiva especificada no tipo.
No Código Penal, é possível ainda encontrar guarida no crime de prevaricação, que dentre os verbos nucleares, prevê a conduta omissiva de deixar de praticar ato de ofício, encaixando-se em inúmeras situações envolvendo abuso de crianças, quando há omissão dolosa de conselheiros tutelares e assistentes sociais, por exemplo.
Mas é no ECA que há o maior supedâneo de crimes omissivos próprios. Os arts. 228 e 229 preveem omissões de médicos, enfermeiros e dirigentes de hospitais. Já os arts. 231 e 234 preveem condutas omissivas da autoridade policial no caso de apreensão e liberação de crianças e adolescentes. Em regra, a conduta omissiva é tipificada com o uso do verbo “deixar…de”. Há casos, porém, em que o tipo contém verbos diversos, como o art. 235, que pune a omissão própria de descumprimento de prazo. Mas mesmo neste caso, o núcleo do tipo “descumprir prazo” pode ser substituído por “deixar de cumprir prazo” sem alteração de sentido.
De outro giro, o art. 240 do ECA prevê a conduta de filmar ou fotografar a criança nua ou suas partes íntimas (pornografia infantil), com pena de 4 a 8 anos e multa. A previsão da multa se justifica, pois na maioria dos casos essa conduta é praticada com finalidade lucrativa. No inciso I há um tipo equiparado para quem facilita ou de qualquer forma intermedeia as filmagens, aplicando-se a mesma pena. Já o §2° prevê uma majorante de um terço para os casos de coabitação (inciso II) ou parentesco (inciso III). Por sua vez, o art. 241 pune com a mesma pena a conduta de vender ou expor à venda as imagens. Esses dois tipos penais possuem elementos normativos e descritivos bastante comuns à conivência aqui tratada.
De outro giro, entre as condutas de armazenamento e compartilhamento dos registros visuais, previstas nos arts. 241-A e 241-B do ECA, há concurso material, conforme entendimento da terceira seção do STJ no tema 1.168, julgado em 03/08/2023. De igual maneira, temos que as condutas de filmar e expor à venda, previstas nos arts. 240 e 241 do ECA, são autônomas, não se tratando de consunção, uma vez que as filmagens não se qualificam como fase normal ou meio de execução para a venda, e nem a venda é mero exaurimento ou pós-fato impunível das filmagens.
Por fim, o art. 241-A, §2°, do ECA prevê a conduta omissiva consistente em deixar o prestador de serviço de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito, quando oficialmente notificado, atribuindo-se a pena de 3 a 6 anos e multa. Essa análise deve ser conjugada com os dispositivos que tratam dos crimes sexuais previstos no Código Penal, em especial os arts. 217-A e 218. A esse respeito, Guilherme Nucci assevera:
“O tipo penal criado pela Lei 12.015/2009 é desnecessário e pode causar problemas. Termina-se por dar origem a uma exceção pluralística à teoria monística, ou seja, a participação moral no estupro de vulnerável passa a ter pena mais branda. Afinal, se utilizarmos apenas o disposto no art. 29 do CP, no tocante à indução de menor de 14 anos a ter relação sexual com outra pessoa, poder-se-ia tipificar na figura do art. 217-A (consumado ou tentado). No entanto, passa a existir uma figura autônoma, beneficiando a participação. Sustentamos que o verbo nuclear, apesar de dizer respeito apenas à conduta induzir, deveria ser interpretado de maneira mais ampla, abrangendo a instigação e o auxílio. Revemos essa posição, em face do delicado e importante bem jurídico protegido - a formação moral e sexual do menor de 14 anos. É mais sensato dar uma interpretação literal à exceção criada, inadvertidamente, pelo legislador. Quem induzir o menor de 14 anos a satisfazer a lascívia alheia responde pelo art. 218. Quem for além disso e, além de dar a ideia, instigar o menor, por aliciamento ou persuasão, bem como prestar auxilio direto à satisfação da lascívia de outra pessoa, pode responder por participação de estupro de vulnerável.” (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 1.094).
Como exemplo na jurisprudência: “Destarte, a conduta perpetrada por ré excedeu os elementos descritivos do tipo penal de corrupção de menores (art. 218 do Código Penal). De outro modo, tratar-se de uma vítima menor de 14 (catorze) anos, não pode a indução da vítima a satisfazer a lascívia de outrem consistir em conjunção carnal ou atos libidinosos diversos da cópula normal, pois, nesses casos, existe o crime de estupro de vulnerabilidade" (TJRGS, Ap. Crim. 70082544628, 7.º С. Crim., rel. José Conrado Kurtz de Souza, 21.11.2019).
Sobre o confronto entre o art. 244-A e 218-B do Código Penal, Nucci pondera:
“Todo o conteúdo do art. 244-A foi reproduzido pelo art. 218-B do Código Penal, inserido pela Lei 12.015/2009. Tratando-se esta de lei mais recente, o art. 218-B evitaria a aplicação do art. 244-A. Opinamos pela revogação tácita do art. 244-A. Entretanto, diante da edição da Lei 13.440/2017, alternando a pena do art. 244-A, quer-se crer tenha o legislador acreditado na manutenção do art. 244-A. Vale a pena, então, fazer seleções de lei especial afastando a lei geral. Logo, o 244-A salvaguardaria o art. 218-B, na parcela nele prevista. Subsistiria o referido art. 218-B quanto à parte da conduta não tutelada pelo art. 244-A.” (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 1.098).
Por fim, tratando sobre a inviabilidade de concurso de crimes entre o art. 218-B e 217-A, assevera o ilustre penalista:
“Assim não nos parece, pois o objeto jurídico tutelado é exatamente o mesmo: a proteção à liberdade sexual do vulnerável. Ademais, cuida-se da mesma pessoa (vítima), razão pela qual deve prevalecer, pelo seleções da análise, a infração penal mais grave, cujos fatos são mais abrangentes, vale dizer, o tipo penal do estupro de vulnerável, constante do art. 217-A.” (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 1.096).
Os excertos acima revelam as controvérsias doutrinárias que grassam sobre o tema. Contudo, enquanto não sobrevém um tipo omissivo próprio para punir as genitoras coniventes com os abusos sexuais infantis intrafamiliares, é preciso enfrentar os contornos científicos da omissão imprópria.
Esta modalidade de omissão pode ocorrer em diferentes intervalos temporais. De fato, o crime pode se verificar na omissão de um minuto, como no caso do controlador de voos ou trilhos; de um dia, como no caso do enfermeiro com a incumbência de administrar medicamento essencial a paciente gravemente enfermo; ou de uma semana, como no caso clássico dos genitores que deixam de alimentar o bebê. Em todos esses casos, haverá responsabilidade penal pelo resultado morte a título doloso. No último caso, o resultado pode advir da soma de seguidas omissões, assemelhando-se aos crimes habituais, mas ao invés do cúmulo de ações, o crime irá se materializar pelo somatório de omissões. O mesmo ocorre com a omissão em fornecer medicamentos de uso diário para presos e menores apreendidos, tanto que essa circunstância é indagada já na audiência de custódia.
Além disso, pode haver certa confusão entre a omissão imprópria dolosa por assunção de risco (dolo eventual) e a modalidade culposa do mesmo crime, já que em ambos está presente a infringência a um dever de cuidado. Neste ponto, os dois institutos se diferenciam apenas no quesito voluntariedade, apesar de o dilema persistir em situações limítrofes. De fato, a distinção entre indiferença e descuido é mais perceptível em ações do que em omissões.
No exemplo do enfermeiro, pode ele alegar mero descuido, buscando o enquadramento em homicídio culposo, arguindo que não administrou o medicamento essencial por esquecimento. Contudo, o lapso temporal neste caso depõe em seu desfavor, já que teve várias oportunidades durante o dia para lembrar de seu dever legal, ignorando os dispositivos de alerta. O mesmo ocorre com os genitores da criança que morre de inanição, que fazem pouco caso dos insistentes choros do infante por dias seguidos. Nos dois casos sobreleva a indiferença com o resultado, perfazendo a modalidade dolosa do homicídio, seja por dolo direito ou por assunção do risco.
Afora o aspecto temporal, os crimes omissivos reclamam ainda um exame normativo da conduta, que pode ser ativa ou passiva. Em outros termos, a lei penal pode proibir uma ação ou ordená-la. A ação consiste em movimento corporal, enquanto a omissão se caracteriza por deixar de realizar um movimento, ou fazer um movimento diverso do exigido. Este último caso pode ser exemplificado pela conduta do operador de trilhos ou controlador de voo que propositalmente realiza outra tarefa no momento da aproximação do trem ou da aeronave, respondendo pelo crime de homicídio doloso por omissão imprópria, ainda que propriamente não tenham ficado inerte.
Essa discussão dogmática é travada com frequência em casos de acidentes de trânsito envolvendo o uso de aparelhos celulares, buscando definir se houve descuido caracterizador do homicídio culposo, indiferença que perfaz a modalidade dolosa por omissão imprópria ou verdadeira ação dolosa. Nestes casos o motorista não comete nenhuma omissão, mas faz uma ação distinta da exigida pela norma, o que equivale à omissão imprópria. Contudo, prevalece que a ação nestes casos perfaz o delito de homicídio doloso por assunção do risco, sem necessidade da norma de extensão caracterizadora da omissão imprópria.
Essa análise da conduta ao dirigir é anterior à possível configuração do crime de omissão própria, consistente na omissão de socorro, que se dá após a ocorrência do sinistro. Ao contrário da omissão imprópria, que pode fundamentar tanto o homicídio culposo quanto doloso, a omissão de socorro só ocorre na modalidade dolosa e se dá num momento posterior ao acidente, podendo se configurar por ausência de movimento corporal ou por movimento distinto do exigido pela norma, e que perdure enquanto o socorro é possível.
Na omissão imprópria, o legislador equiparou a omissão à ação quando o omitente tinha o dever legal de evitar o resultado e a possibilidade fática e jurídica de agir conforme a norma. É o que ocorre quando uma mãe deixa de alimentar seu filho ou quando um salva vidas deixa de socorrer um banhista que morre afogado. Nestes casos não existe ação positiva de matar, e tampouco a causação naturalística da morte, mas a norma do art. 13, §2°, do CP permite a imputação do resultado à omissão, diante do “dever de agir” atribuído a certas pessoas e da “possibilidade” de evitação do fato.
A doutrina há muito se debruça sobre os critérios materiais para equiparar a ação à omissão nestes casos, desde a existência de um domínio fático do perigo à infração de dever, até a ideia de lesividade própria da omissão. Mas há consenso acerca do requisito básico para configuração da omissão imprópria, consistente no dever de impedir a ocorrência do resultado típico.
De fato, se uma pessoa comum observa uma criança se afogar no mar, não lhe será atribuído o resultado morte, podendo responder apenas por omissão de socorro (omissão própria). Mesmo para quem tem o dever de agir, poderá haver isenção de responsabilidade penal nestes casos, a depender da “possibilidade de agir”, como no caso do alto risco de ataque de tubarões, a exemplo das praias de Recife, ou afogamentos em poços artesianos, que liberam gases tóxicos fatais.
O aprofundamento dessa discussão pode tornar viável o enquadramento típico de todos os que contribuem para os crimes de abuso infantil intrafamiliar. No tocante à conivência da genitora, também é necessário perscrutar a possibilidade de agir, em especial diante de graves ameaças proferidas pelo abusador. Já quanto aos demais familiares e vizinhos que tenham conhecimento dos fatos, podem eles responder por omissão de socorro, mesmo não tendo o dever legal de agir.
De outro giro, em muitos casos o móvel da genitora vai além do dinheiro, buscando também presenciar o abuso para satisfazer a lascívia do casal. Dinheiro, ameaças e lascívia compõem a trinca do abuso sexual de crianças e devem ser combatidos penalmente com o manejo de elementos normativos e majorantes.
Em outros casos, a genitora pode criar o risco à criança, por ter pleno conhecimento do histórico abusador do companheiro ao trazê-lo para coabitação, reforçando ainda mais o dever de agir para interromper o nexo causal. Pela legislação, quem cria o risco e não busca evitar o resultado não responde por omissão de socorro (omissão própria), mas sim pelo resultado (omissão imprópria), seja homicídio doloso ou estupro de vulnerável.
De seu turno, se a genitora estimula e incentiva o abuso sexual, como forma de evitar o rompimento com o companheiro, irá praticar o crime como partícipe, o que não impede que sua pena seja maior que a do próprio abusador, que responde como autor do crime.
Na dogmática dos crimes omissivos, a criação de um risco advém de um ato positivo, atrelado a um movimento corporal voluntário, ou a um comportamento que se projeta materialmente sobre o mundo exterior, colocando o bem jurídico em perigo concreto ou potencial. Mas criar o risco não é suficiente, já que a sociedade aceita alguns riscos, havendo a diferenciação entre os riscos permitidos e não permitidos, e os deveres de controle e de salvamento, este último quando o risco sai do controle.
De uma maneira geral, cabe ao agente evitar que o risco ultrapasse os limites do permitido, e restituir o risco ao nível permitido quando isso ocorre, sob pena de transformar o risco permitido em não permitido. Pode-se exemplificar com um produto fabricado com defeito, que é possível e normal na sociedade atual. Contudo, após a colocação do produto defeituoso no mercado, rompendo-se o dever de controle, entra em cena o dever de salvamento, visando retirá-lo de circulação e prestar socorro a quem for por ele prejudicado.
A aplicação do dever de salvamento aos riscos não permitidos é assente na doutrina, mas o mesmo não é possível afirmar quanto aos riscos permitidos. Essa discussão tem forte repercussão legal, já que a depender do entendimento adotado pode o omitente ser enquadrado em homicídio doloso ou responder apenas por omissão de socorro, que tem pena de 1 a 6 meses e multa.
Exemplifica-se com o operário da construção civil e o limpador de janelas, duas funções comuns nas grandes cidades, cujo riscos inerentes ao desempenho normal das atividades foi absorvido pela sociedade, tratando-se de riscos permitidos. Ambos trabalham em edifícios, sendo o primeiro em prédios em construção e o segundo em prédios já construídos. Esta diferença importa, já que os transeuntes têm mais cuidado ao passar por prédios em construção, e reduzem o estado de alerta ao transitarem por prédios concluídos.
Se o operário ou limpador não seguir as regras técnicas para o manejo dos materiais de construção ou as vidraças, ocasionando um acidente com um transeunte por risco não permitido, atrairá para si o dever de salvamento, devendo descer e prestar imediato socorro à vítima, sob pena de responder por homicídio e não por omissão de socorro, considerando que o socorro ainda é viável. Por outro lado, se ambos seguirem as regras técnicas, mas ainda assim decorrer a queda do material e o acidente com o transeunte por risco permitido, caso não prestem socorro à vítima, poderá haver dois enquadramentos: omissão de socorro ou homicídio, a depender do entendimento pela extensão do dever de salvamento também aos riscos permitidos.
Mesmo o enquadramento em homicídio nestes casos, em especial no risco não permitido, gera intenso dissenso sobre as modalidades dolosa e culposa do homicídio, já que o art. 121, §4°, do CP prevê o aumento da pena em um terço pelo descumprimento de regra técnica de profissão, arte ou ofício.
A incompatibilidade legislativa se torna ainda mais evidente nos acidentes de trânsito. Se após um acidente culposo, o motorista tem condições de prestar socorro à vítima e não o faz, daí decorrendo o falecimento, responderá por homicídio doloso omissivo (omissão imprópria), e não por omissão de socorro (omissão própria).
Se a vítima falecer de imediato, não havendo possibilidade de socorro, o motorista responderá por homicídio culposo. Logo, a omissão imprópria incide entre o acidente e o falecimento, havendo neste intervalo a viabilidade de socorro, estando presente o dever de salvamento decorrente da criação de um risco não permitido.
Por outro lado, se o acidente decorrer de um risco permitido, sem culpa do motorista, ainda assim haverá dever de agir, caso o socorro seja possível. Contudo, se o motorista fugir sem prestar socorro nesta hipótese, haveria embate no enquadramento entre o homicídio doloso omissivo, decorrente do dever de salvamento extensível ao risco permitido, e a simples omissão de socorro, a que estão sujeitos todos os motoristas que presenciaram o acidente.
Em suma, se entre o atropelamento culposo e a morte da vítima, o motorista podia salvá-la, o homicídio culposo por ação se transforma em doloso por omissão pela alteração do estado psíquico do agente neste segundo momento. Contudo, essa linha dogmática esbarra no disposto no art. 302, §1°, II, do Código de Trânsito Brasileiro, que majora a pena no acidente culposo quando o condutor não presta socorro à vítima, quando possível fazê-lo sem risco pessoal. Logo, ao invés de responder por homicídio doloso omissivo ou por omissão de socorro, responderá por homicídio culposo com aumento de um terço à metade. Mas esse dispositivo não se aplica caso não haja culpa do motorista no acidente, persistindo a discussão nestes casos.
O maior acidente rodoviário do Brasil ocorreu em 1987 envolvendo o choque de dois ônibus na cidade mineira de Belo Vale, resultando em 68 mortes. Já o maior acidente envolvendo um único ônibus ocorreu no dia 21 de dezembro de 2024, em Teófilo Otoni, também em Minas Gerais, vitimando 41 pessoas, inclusive o motorista do ônibus. Já o motorista do caminhão bitrem que colidiu com o ônibus fugiu após o acidente.
Inicialmente, pensava-se que um pneu do ônibus havia estourado. Posteriormente, essa hipótese foi descartada, e que na verdade um grande bloco de granito se soltou da carroceria da carreta e atingiu o ônibus. Além da fuga sem prestar socorro, ainda foram apontadas outras irregularidades, como o sobrepeso da carreta, a falta de conferência das condições de transporte da carga, o excesso de velocidade e o tráfego em horário não permitido para o trecho da via, além de o motorista está em excesso de jornada e sob o efeito de rebite. Estas condições revelam um risco não permitido, atraindo indubitavelmente o dever de salvamento. Porém, como se trata de acidente em veículo automotor, a lei possui uma regência própria do risco nestas situações, oscilando o enquadramento entre o homicídio culposo com majoração de pena e o homicídio doloso com dolo eventual, descartando de qualquer forma a omissão imprópria. Segundo a decisão que decretou a prisão preventiva do motorista: “o caso revela mais que simples descuido ou inobservância de um dever de cuidado objetivo, mas em deliberada assunção de risco, mormente quando embalado pelo uso de drogas diversas.”
Esse raciocínio jurídico pode servir de norte para o enquadramento de inúmeros casos de genitoras que criam o risco para seus filhos e são coniventes com os recorrentes abusos sexuais intrafamiliares, e o aparato doutrinário sobre os crimes omissivos fornece guarida necessária para esse exame. Para maior aprofundamento, confira-se o magistério de Guilherme Nucci, que tratando sobre a conduta normativa, assim pontua:
“é a alteração gerada no mundo jurídico, seja na forma de dano efetivo ou na de dano potencial, ferindo interesse protegido pela norma penal. Sob esse ponto de vista, toda conduta que fere um interesse juridicamente protegido, causa um resultado. Ex.: a invasão de um domicílio, embora não possa causar nada sob o ponto de vista naturalístico, certamente provoca um resultado jurídico, que prejudica o direito à inviolabilidade de domicílio do dono da casa. Os regulamentos jurídicos foram adotados pelo legislador, bastando analisar o disposto na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, que a Reforma Penal de 1984 manteve, mencionando que "não há crime sem resultado". (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 109).
Em seguida, o penalista adverte:
“Os delitos de atividade (formais ou de mera conduta), que se configuram na mera realização da conduta, pouco importando se há ou não resultado naturalístico, pouco se valem da teoria do nexo causal…O importante é deixar bem claro que a conduta humana é, ontologicamente, regida pela vontade e pela consciência. Nenhuma teoria jurídica pode alterar a realidade. Tais atributos da conduta permitem ao ser humano desenvolver o seu livre-arbítrio, conduzindo-o para o bem ou para o mal.”
Ele pondera na sequência:
“No prisma jurídico, o conceito de conduta adquire diferentes pontos de vista. Na visão finalista, que adotamos, conduta é a ação ou omissão, voluntária e consciente implicando um comando de movimentação ou inércia do corpo humano, voltado a uma finalidade (tomando o conceito de conduta como gênero, do qual são espécies a ação e a omissão, ver ainda ZAFFARONI E PIERANGELI, Manual de direito penal - Parte geral, p. 413: PIERANGELI, Escritos juridico-penales, p. 441; WELZEL, Derecho penal alemán, p. 238, este último dizendo que ‘ação e omissão de uma ação são duas subclasses independentes dentro da 'conduta susceptível de ser regida pela vontade final’). Há finalistas, no entanto, que não admitem a possibilidade de se elaborar um conceito genérico de conduta, envolvendo ação e omissão, preferindo visualizar a ação separada da omissão (Lutz REGIS PRADO, Curso de die retto penal brasileiro, v. 1, p. 247-248). Parece-nos, no entanto, que, embora a omissão tenha regramento particularizado e uma existência diferenciada da ação, não é inviável considerá-la, para efeito de estudo da conduta humana, como a ação negativa, pois tanto a ação propriamente dita (positiva) quanto a omissão (negativa) são frutos finalísticos da atuação do ser humano…Assim é a lição de NORONHA: ‘A ação positiva é sempre constituída pelo movimento do corpo, quer por meio dos membros locomotores, quer por meio de músculos, como se dá com a palavra ou o olhar. Quanto à ação negativa ou omissão, ingressa no conceito de ação (genus), de que é espécie. É também um comportamento ou conduta e, consequentemente, manifestação externa, que, embora não se concretize na materialidade de um movimento corpóreo - antes é abstenção desse movimento, por nós é percebida como realidade, como sucedido ou realizado.’’
Ainda discorrendo sobre a conduta omissiva, ele assevera:
“sob o prisma finalista, omissão é a conduta negativa, voluntária e consciente, implicando um não fazer, voltado a uma finalidade. O que se disse acerca dos elementos da ação tem a mesma aplicação no contexto da omissão. Conforme GIMBERNAT ORDEIG, ‘a omissão é uma espécie do gênero não fazer, espécie que vem caracterizada porque, dentre todos os possíveis comportamentos passivos, selecionam-se (normativamente) somente aqueles que merecem um juízo axiológico negativo: a omissão é um não fazer que se deveria fazer ou, em outras palavras, a diferença específica da omissão frente ao gênero não fazer, ao qual pertence, é a de que consiste em um não fazer desvalorado.’"
Sobre os crimes omissivos próprios, Nucci ressalta:
“Na lição de JOÃO BERNARDINO GONZAGA, ‘Ο sujeito se abstém de praticar um movimento tendente a obter determinado efeito útil ou deixa de impedir a atuação de forças modificadoras da realidade, possibilitando o surgimento do mal’”. Acerca dos crimes omissivos impróprios, o autor ensina: “São crimes omissivos impróprios os que envolvem um não fazer, que implicam a falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado. Não possuem tipos específicos, gerando uma tipicidade por extensão. Para que alguém responda por um delito omissivo impróprio é preciso que tenha o dever de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa ou culposamente, auxiliando na produção do resultado.”
Tratando sobre a natureza jurídica da omissão própria, o autor expõe:
“há duas posições: a) existência normativa: a omissão não tem existência no plano naturalístico, ou seja, existe apenas no mundo do dever-ser, sendo uma abstração. Afirmam alguns que "do nada, nada surge", por isso a existência da omissão é normativa. Somente se pune o agente que nada fez, porque a lei assim determina; b) existência física: a omissão é um trecho do mundo real, embora não tenha a mesma existência física da ação. Trata-se de um fenômeno perceptível aos sentidos humanos…Na realidade, cremos que o Código Penal adotou uma teoria eclética quanto à omissão, dando relevo à existência física, no caput do art. 13, tal como diz a Exposição de Motivos: "Pôs-se, portanto, em relevo a ação e a omissão como as duas formas básicas do comportamento humano", embora concedendo especial enfoque à existência normativa no § 2.º do mesmo artigo. Há, na omissão, no ensinamento de MIGUEL REALE JÚNIOR, um dado naturalístico, sujeito a um enfoque normativo.”
Seguindo o escólio de Nucci acerca do dever de agir:
“a omissão que não é típica, vale dizer, quando o não fazer deixa de constar expressamente num tipo penal (como no caso da omissão de socorro art. 135, CP), somente se torna relevante para o direito penal caso o agente tenha o dever de agir. Do contrário, não se lhe pode exigir qualquer conduta…a legislação impõe a várias pessoas o dever de cuidar, proteger e vigiar outras, tal como o faz com os pais em relação aos filhos, com os tutores em relação aos tutelados, com os curadores em relação aos curatelados e até mesmo com o administrador de um presídio em relação aos presos. Assim, se um detento está gravemente enfermo e o administrador da cadeia, dolosa ou culposamente, deixa de lhe conferir tratamento adequado, pode responder por homicídio…Podem tais deveres, outrossim, derivar de norma penal, como de norma extrapenal, tanto de direito público como de direito privado"
No exemplo da jurisprudência: "2. No caso, o paciente, na qualidade de Guarda Municipal, nas mesmas condições de tempo e local dos demais acusados, teria se omitido em face das condutas praticadas pelos corréus - submissão da vítima que estava sob sua guarda e poder, com emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental -, quando tinha o dever legal de evitá-las, de maneira que deve responder o paciente pelo delito de tortura propriamente dita, prevista no art. 1.º, inciso II, da Lei n. 9.455/1997, consoante o disposto no art. 13, § 2.º, do Código Penal" (HC 467.015-SP, 6.ª T., rel. Antonio Saldanha Palheiro, 30.05.2019).
De seu turno, em análise sobre os elementos normativos do crime de omissão de socorro, Nucci arremata:
“Criança abandonada ou extraviada: criança é um termo que não encontra unanimidade de interpretação na doutrina e na jurisprudência. Entendemos, no entanto, na esteira do preceituado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que é toda pessoa humana até 12 anos incompletos. Logicamente, é indispensável, para configurar o tipo penal do art. 135, que a criança não saiba se defender no local onde se encontra. Uma criança que vive na rua habitualmente, por exemplo, não preenche a figura do sujeito passivo, até mesmo porque não foi abandonada ou extraviada nesse local. Vive dessa forma por falta de condições materiais fornecidas pelo Estado ou pela sua própria família, apesar de saber se defender e se ‘virar’ nesse ambiente, que, no entanto, pode ser completamente hostil a outro infante perdido, acostumado ao constante amparo familiar. Este último corre perigo, pois não tem a menor noção de como fazer para livrar-se da situação inusitada, enquanto o outro sabe perfeitamente aonde ir, nem sequer admitindo auxílio ou amparo de terceiros. Além disso, é conveniente fixar a diferença existente entre criança abandonada e extraviada: a primeira foi largada à própria sorte por seu responsável, enquanto a segunda perdeu-se, desligou-se de seu protetor por acaso.” (Código Penal Comentado, editora Forense, 24° edição, 2024, p. 744).
Por fim, o ilustre penalista sentencia:
“Já tivemos oportunidade de expor anteriormente (ver comentários ao art. 132) que o legislador foi infeliz ao utilizar a expressão "perigo iminente", pois o perigo interessante aos delitos previstos neste capítulo é o atual, vale dizer, o que coloca a vítima em risco iminente de dano. Perigo iminente é uma situação obscura e impalpável, incompatível com a segurança almejada pelo tipo penal (princípio da reserva legal). Portanto, sustentamos que, neste caso, é preciso que qualquer pessoa, mesmo saudável física e mentalmente, esteja correndo risco iminente e sério à sua vida ou à sua saúde.”
Considerações Finais
Em conclusão ao presente ensaio, temos que a atual regência do direito positivo não é suficiente para proteger as crianças contra o abuso sexual intrafamiliar, a despeito de todo o esforço dogmático da doutrina. A omissão imprópria possui uma definição genérica, esbarrando na intervenção mínima que rege o direito penal. Logo, apenas condutas muito graves são punidas por meio desse recurso legal. A Lei nº 11.829/2008 procedeu a profundas alterações nos crimes previstos no ECA, buscando combater os abusos sexuais contra crianças. No ano seguinte, foi a vez do Código Penal ser profundamente alterado pela Lei nº 12.015/2009, em especial no capítulo II - Dos Crimes Sexuais contra Vulneráveis, com idêntico objetivo. A recente Lei nº 14.811/2024 alterou ambos os diplomas legais, visando combater esse abuso no ambiente virtual. No entanto, essas leis focaram majoritariamente em condutas comissivas, com uso de verbos ativos, mirando o abusador. Mas por trás dele sempre haverá um agente facilitador, que na maioria dos casos é a própria genitora ou um parente próximo à criança.
Na câmara, o projeto de lei 4.299/2020 busca inserir um novo tipo penal comissivo no Código Penal para alargar o espectro de condutas vinculadas à prática da pedofilia. Já no senado, o projeto de lei 502/2018 busca criar uma figura equiparada à omissão de socorro para quem presenciar atos de violência contra crianças e não comunicar o fato imediatamente ao conselho tutelar ou à autoridade policial. Apesar das boas intenções, as duas propostas não atingem o cerne do problema, que só será debelado com a criação de um tipo misto alternativo omissivo, contendo penalidade em patamar semelhante ao de estupro de vulnerável, englobando condutas físicas e virtuais. Visando conciliar esse tipo penal com o princípio da intervenção mínima, pode o legislador se valer de elementos normativos, além de incluir causas de aumento, como no caso da recorrência das condutas. Com isso, estar-se-ia fechando o cerco em ambos os lados do abuso infantil intrafamiliar, modificando-se uma cultura de conivência e leniência com essa prática nefasta.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O Abuso Infantil Intrafamiliar e a Extensão do Nexo Causal para os Garantes dos Infantes. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2025, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67901/o-abuso-infantil-intrafamiliar-e-a-extenso-do-nexo-causal-para-os-garantes-dos-infantes. Acesso em: 01 mar 2025.
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