RESUMO[1]: O presente trabalho monográfico visa analisar a Defensoria Pública enquanto garantia institucional, resguardando e preservando os direitos fundamentais dos indivíduos em situação de vulnerabilidade dentro do contexto social brasileiro. Inicialmente, verificam-se as noções da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais e a dignidade da pessoa humana com vistas a verificar sua influência no Estado democrático nacional. Em seguida, analisa-se o papel institucional da Defensoria Pública, as características inerentes à sua conformação dentro da ordem jurídica para assegurar a efetividade das normas jusfundamentais, destacando suas atribuições e sua autonomia nas esferas estadual, federal e distrital. Ao final, compreende-se que o status de garantia institucional da Defensoria Pública enquanto instituição essencial à função jurisdicional do Estado vincula-se à promoção da justiça social e à imprescindibilidade deste órgão dentro das estruturas do poder público que se confirmam através de ações voltadas para a tutela do direito-garantia de acesso à justiça dos grupos vulneráveis. A metodologia tem cunho bibliográfico com apoio de livros e artigos científicos de juristas, tais como Paulo Bonavides, J.J. Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Amélia Soares da Rocha e Frederico Rodrigues Viana de Lima, bem como de legislações contidas em sítios oficiais e jurisprudências dos Tribunais Superiores. Conclui-se que a Defensoria Pública é um instrumento essencial para resguardar a efetividade dos direitos fundamentais das pessoas em situação de vulnerabilidade, garantindo-lhes o acesso à justiça de modo a promover uma maior isonomia e a redução das desigualdades sociais que vitimam majoritariamente esse grupo de indivíduos.
Palavras-chave: Defensoria Pública. Direitos Fundamentais. Grupos Vulneráveis. Acesso à Justiça. Garantia Institucional.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 NOÇÕES DE TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 1.1 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: expressões sinônimas? 1.2 As Dimensões dos Direitos Fundamentais: sua evolução e compreensão atual. 1.3 As Acepções (ou Dimensões) Objetiva e Subjetiva dos Direitos Fundamentais. 1.4 Direitos Fundamentais Implícitos, Explícitos e o Bloco de Constitucionalidade. 1.5 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 1.5.1 Raízes Históricas: Cristianismo, Idade Média e Pensamento Kantiano. 1.5.2 Substrato da Dignidade da Pessoa Humana. 1.5.3 A Dignidade da Pessoa Humana como norma-regra e como norma-princípio: limite e meta da atuação estatal. 2 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO GARANTIA INSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 2.1 O Papel Institucional da Defensoria Pública. 2.1.1 Considerações Gerais acerca da Instituição. 2.1.2 Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2.1.3 Garantias de seus Membros. 2.2 Atribuições da Defensoria Pública e sua Dimensão de Garantia Institucional. 2.2.1 Tradicional Compreensão das Atribuições. 2.2.2 Moderna Compreensão das Atribuições. 2.3 A Autonomia da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e da União. 2.3.1 A Autonomia das Defensorias Públicas a partir das Emendas Constitucionais nº 45/04, 69/12 e 74/13. 3 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO GARANTIA INSTITUCIONAL. 3.1 Garantias Institucionais versus Garantias do Instituto. 3.2 Um Recorte sobre os Campos de Atuação da Defensoria Pública no Resguardo aos Direitos Fundamentais de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. 3.3 A Defensoria Pública como Garantia Institucional: caracterização e efeitos. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
A Defensoria Pública surge com a promulgação da Constituição Federal de 1988, momento de redemocratização do Estado brasileiro marcado historicamente pelo fim do período ditatorial e da reestruturação político-social do país, sendo ela instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, a quem se destina, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados.
Os constituintes originários deram início à construção da instituição que, desde então, vem se consolidando dentro da ordem jurídica nacional, ganhando destaque e reconhecimento pela relevância de sua atividade e, consequentemente, ensejando o fortalecimento de sua estrutura enquanto órgão público através da equiparação de garantias em relação aos demais órgãos jurisdicionais, da legitimação dos princípios institucionais e da independência e autonomia de sua atuação, decorrentes da elaboração da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LC nº 80/94) e da edição de Emendas Constitucionais.
Desse modo, a nova ordem constitucional, cujas bases se firmaram na máxima da dignidade da pessoa humana, criou novos instrumentos políticos voltados para a efetivação da justiça social, da redução de desigualdades e do fortalecimento dos meios de proteção dos direitos e garantias dos indivíduos e, quanto à Defensoria Pública, uma atuação direcionada a contextos múltiplos de vulnerabilidade, fato este que fornece subsídios para a compreensão da sua essencialidade institucional.
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Isso reflete a ampliação do Direito, a importância de se ter mecanismos e agentes jurídicos dentro da conformação do poder público que sejam capazes de expandir e robustecer as instituições do sistema de justiça para então torná-los capaz de salvaguardar um determinado contingente de personagens sociais tendentes a serem submetidos a situações de fragilidade e desamparo, a exemplo dos indígenas, das crianças e dos adolescentes, dos idosos, das pessoas com deficiência e dos que ingressam no sistema penitenciário.
Para esses grupos de indivíduos, a concretização eficaz da proteção dos direitos fundamentais que se espera dentro de um Estado democrático e de promoção do bem- estar social, pressupõe o efetivo acesso à justiça assim como os recursos adequados a serem fornecidos para que seja possível e viável acioná-la, sendo elemento mestre nesse processo a presença de instituições sedimentadas e plenamente equipadas para essa atuação, o que confirma a importância fundamental da Defensoria Pública.
Assim, o órgão defensorial, ao albergar amplamente a custódia e a otimização dos direitos fundamentais, sejam eles de caráter civil, político ou social, assume o papel de garante, incumbido de prestar assistência jurídica aos necessitados propiciando a redução das desigualdades e a vedação do retrocesso social, bem como a promoção do exercício da cidadania e da efetivação de seus direitos, revelando o alto grau de comprometimento da instituição.
Portanto, o presente trabalho visa ao exame e compreensão da Defensoria Pública como instrumento primordial e garantia institucional efetiva destinada a assegurar a efetividade das normas jusfundamentais, dos direitos fundamentais e do acesso à justiça àqueles inseridos em contextos de vulnerabilidades múltiplas, tendo como cerne o princípio da dignidade da pessoa humana.
A escolha do tema justifica-se pela sua relevância, pela imprescindibilidade de um enfoque direcionado a resguardar os direitos de grupos que sofrem violações estruturais aos seus direitos de forma sistemática e reiterada, sendo este um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira em decorrência da fragilidade dos mecanismos institucionais e político-sociais voltados para sua proteção no meio social, chamando a atenção para a necessidade de um maior investimento público na construção de ferramentas eficazes para uma atuação voltada à garantia dos direitos desses indivíduos.
Tem-se, pois, como objetivos específicos, o estudo da proteção dos direitos fundamentais de pessoas em situação de vulnerabilidade promovida a partir da atuação da Defensoria Pública, estabelecendo uma análise geral das nuances e particularidades a ela inerentes e da sua relevância dentro da ordem jurídica brasileira enquanto instituição imprescindível para a promoção do acesso à justiça.
No primeiro capítulo, serão abordadas noções da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, com foco no debate acerca da diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais, as dimensões dos direitos fundamentais e a evolução histórica do seu estudo até a compreensão atual, bem como suas acepções objetiva e subjetiva e a sua relevância dentro do bloco de constitucionalidade. Ademais, será objeto de estudo a dignidade da pessoa humana, analisando suas raízes históricas, seu substrato e as especificidades inerentes ao seu caráter dúplice de norma-regra e norma-princípio.
No segundo capítulo, pretende-se tratar a Defensoria Pública enquanto órgão garantidor dos Direitos Fundamentais, a partir do delineamento de seu papel enquanto instituição pública, de suas origens históricas e distinções relevantes, de seus princípios institucionais, das garantias e limitações dos seus membros e das suas atribuições. Outrossim, busca-se uma explanação acerca da autonomia das Defensorias Públicas dos Estados, do Distrito Federal e da União e os impactos promovidos a partir da vigência das Emendas Constitucionais nº 45/04, 69/12 e 74/13.
No terceiro capítulo, objetiva-se a investigação a Defensoria Pública como Garantia Institucional, estabelecendo a diferenciação entre as Garantias Institucionais e as Garantias do Instituto, estabelecendo um recorte sobre os campos de atuação da Defensoria Pública no resguardo aos Direitos Fundamentais de pessoas em situação de vulnerabilidade e, por fim, apresentando as características e os efeitos que fundamentam a atuação defensorial enquanto Garantia Institucional.
A metodologia a ser utilizada será baseada em estudo descritivo-analítico. Em relação à tipologia, será realizada uma pesquisa bibliográfica e documental através de livros, artigos científicos, legislações nacionais e internacionais, publicações e documentos especializados de autores como Paulo Bonavides, J.J. Gomes Canotilho, Ingo Sarlet, Amélia Soares da Rocha e Frederico Rodrigues Viana de Lima, disponibilizados de forma impressa ou pela Internet.
A utilização dos resultados é pura, pois terá como finalidade o conhecimento mais aprofundado a respeito do tema abordado. Segundo a abordagem, é qualitativa, na medida em que se aprofunda na compreensão da atuação da Defensoria Pública e o impacto que ela, enquanto órgão estatal, promove dentro do cenário social. Quanto aos objetivos, é descritivo, posto que busca observar, verificar e compreender o fenômeno analisado.
Logo, a discussão sobre o tema é de grande valia, tendo em vista que apresenta o órgão defensorial como um mecanismo de estrutura do poder público capaz de modificar as conformações sociais, de facilitar a solução de conflitos ao acionar a justiça e de resguardar a proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, partindo de um olhar mais atento que prioriza atender indivíduos em regra colocados à margem da sociedade e, exatamente por isso, postos em um patamar de destaque dentro da atuação defensorial, revelando a tamanha importância de se trazer para o debate acadêmico o estudo da Defensoria Pública enquanto instituição garantidora dos direitos fundamentais de pessoas inseridas no conceito multidimensional de vulnerabilidade.
1.NOÇÕES DE TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Este capítulo terá como tema central a Teoria dos Direitos Fundamentais a fim de realizar uma análise ampla sobre o assunto, suas categorias mais relevantes, sua evolução histórica, seu campo de abrangência, suas dimensões objetiva e subjetiva de eficácia e sua relevância para o bloco de constitucionalidade.
Também constará o debate acerca do princípio da dignidade da pessoa humana como estrutura central do sistema protetivo dos direitos fundamentais e como critério de validade e legitimação dos ordenamentos jurídicos nacionais, a partir de uma abordagem relacionada ao contexto histórico, ao conteúdo axiológico a ele inerente, à relevância jurídico-normativa e seu papel como elemento fundamental para a conformação do atual Estado democrático de direito e para o constitucionalismo contemporâneo.
1.1 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: expressões sinônimas?
Os direitos humanos e os direitos fundamentais representam a base do constitucionalismo contemporâneo e o aprofundamento do seu estudo é basilar para a compreensão da ordem constitucional vigente, na medida em que tais direitos orientam, limitam e organizam tanto a atuação estatal quanto as relações em sociedade, com projeções de âmbito universal e regional na busca pela abrangente efetivação da dignidade da pessoa humana.
Tais direitos, que hoje assumem um compromisso com a efetivação do núcleo básico do direito constitucional, passaram por um longo e intenso processo evolutivo, permeado por inúmeras realidades político-sociais em diferentes lugares e momentos históricos que culminaram no seu reconhecimento por parte do Estado, resultando no surgimento da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.
Consoante depreende-se do pensamento de Mazzuoli (2019, p. 3-5), direitos fundamentais são aqueles que surgem e se exaurem a partir das Constituições dos Estados, são valores e garantias consagrados pela ordem jurídica nacional que, delimitados espacial e temporalmente, voltam-se à proteção dos seus indivíduos. Por outro lado, os direitos humanos são formados por valores e garantias consagrados na ordem jurídica internacional, uma vez que extrapolam a órbita dos Estados soberanos, ou seja, enquanto aqueles se limitam a direitos inseridos na órbita do direito interno, estes configuram direitos e garantias inerentes à essência humana, dotados, portanto, de maior amplitude e abrangência, garantidos por normas de caráter internacional e, confirmando tal lição:
[...] Importa deixar aqui devidamente consignado o sentido que atribuímos às expressões ‘direitos humanos’ (ou direitos humanos fundamentais), compreendidos como direitos da pessoa humana reconhecidos pela ordem jurídica internacional e com pretensão de validade universal, e ‘direitos fundamentais’, concebidos como aqueles direitos (dentre os quais se destacam os direitos humanos) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional. Da mesma forma, registra-se que não se cuida de noções reciprocamente excludentes ou incompatíveis, mas, sim, de dimensões cada vez mais relacionadas entre si, o que não afasta a circunstância de se cuidar de expressões reportadas a esferas distintas de positivação, cujas consequências práticas não podem ser desconsideradas (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p. 311).
Ademais, Bonavides (2004, p. 560) reconhece que os “direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais”, e fazendo uma análise acerca das lições de Carl Schmitt sobre a caracterização de tais direitos, bem afirma que:
Com relação aos direitos fundamentais, Carl Schmitt estabeleceu dois critérios formais de caracterização. Pelo primeiro, podem ser designados por direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, tão formal quanto o primeiro, os direitos fundamentais são aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabänderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschwert), a saber, direitos unicamente alteráveis mediante lei de emenda à Constituição. Já do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos (grifo do autor) (BONAVIDES, 2004, p. 561).
No contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), seguindo as tendências que predominavam no direito comparado à época – com destaque para a Lei Fundamental da Alemanha, de 1949 – foi a primeira Lei Maior a trazer em seu bojo a expressão “Direitos e Garantias Fundamentais”, abrangendo direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade e direitos políticos, revelando a preocupação dos constituintes originários em proteger a dignidade da pessoa humana, marcando um grande avanço na consolidação desta máxima (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p. 308).
A positivação dos direitos fundamentais no texto constitucional pátrio é primordial para a fundamentação e a legitimação de todo a estrutura normativa de um Estado democrático de direito que, vinculado à noção de dignidade da pessoa humana, atua na busca pela limitação do poder do Estado. Nessa toada, os constituintes originários atribuíram propriedades identificadoras dos direitos fundamentais para garantir sua proteção, estabilidade e efetivação na seara jurídica, tanto no plano teórico quanto prático, quais sejam a sua aplicação imediata, haja vista não necessitarem de regulamentação para produzirem efeitos, a sua natureza de cláusula pétrea, advinda do artigo 60, §4º, IV, da CF/88 e sua hierarquia constitucional, refletindo que sua efetividade deve sempre prevalecer em face de normas infraconstitucionais (MARMELSTEIN, 2019, p. 15-17).
Diante de uma abordagem acerca dos direitos humanos, por serem estes dotados de supranacionalidade e universalidade, consubstanciam vetores indispensáveis à uma vida digna, trazendo consigo um rol de padrões jurídicos mínimos e essenciais que vão sendo ampliados à medida em que a sociedade e a história evoluem, a fim de que a todos, sem qualquer distinção, seja garantida a dignidade da pessoa humana (FERREIRA FILHO, 2016, p. 46-47).
Luño (2005, p. 50-53) defende que cada momento da história provoca um impacto nos direitos humanos, na medida em que permite uma releitura conceitual e interpretativa acerca da dignidade, liberdade e igualdade humanas, bem como dos demais axiomas essenciais à garantia da máxima proteção do indivíduo, tanto sob o ponto de vista do direito internacional quanto nacional, ensejando, consequentemente, o reconhecimento dessas alterações nos respectivos ordenamentos jurídicos existentes.
Adotando o mesmo pensamento, Ramos (2019, p. 29) introduz o seu estudo acerca do tema asseverando que “os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna”. Nessa mesma senda é o entendimento de Portela (2017, p. 851):
Direitos Humanos é todo direito inerente e essencial que visa proteger e promover a dignidade humana em todo o mundo, consagrando uma série de direitos dirigidos a todos os indivíduos sem distinção de qualquer espécie,
inclusive de nacionalidade ou do Estado onde a pessoa se encontre. Ou seja, faz jus a todos os indivíduos da espécie humana, sem distinção.
Outrossim, há que se mencionar que os direitos humanos representam verdadeiros padrões jurídicos mínimos, consubstanciando um plexo de direitos considerados indispensáveis, ou seja, não há um rol pré-determinado, pois os direitos basilares vão surgindo à medida que a história e as lutas sociais avançam e, conforme asseveram Dimoulis e Martins (2012, online), os direitos humanos decorreram do processo de internacionalização dos direitos fundamentais que foi alavancado durante o século XX, principalmente com o pós-Segunda Guerra Mundial.
Em que pese o exercício interpretativo a fim de diferenciar os direitos humanos dos direitos fundamentais, delimitando as suas particularidades e a abrangência da sua aplicabilidade, o fato é que ambos integram um amplo sistema normativo voltado para a efetivação da máxima proteção do ser humano, ou seja, do conjunto de direitos essenciais para a consecução de uma vida digna a todo ser humano, tendo como fim precípuo a preservação e valorização da sua dignidade. Nessa linha ensina Piovesan (2018, p. 74) acerca do direito dos direitos humanos em face de ordenamentos nacionais:
[...] No presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno, longe de operarem de modo estanque ou compartimentalizado, se mostram em constante interação, de modo a assegurar a proteção eficaz do ser humano. Como decorre de disposições expressas dos próprios tratados de direitos humanos, e da abertura do direito constitucional contemporâneo aos direitos internacionalmente consagrados, não mais cabe insistir na primazia das normas do direito internacional ou do direito interno, porquanto o primado é sempre da norma — de origem internacional ou interna — que melhor proteja os direitos humanos.
Obsta pontuar que, segundo Bonavides (2004, p. 560-562), em que pese as expressões direitos fundamentais e direitos humanos serem as mais difundidas e corriqueiramente aplicadas no campo jurídico, há que considerar a existência de outras terminologias como direitos naturais, direitos do homem, direitos civis, direitos individuais, liberdades públicas, direitos públicos subjetivos, direitos fundamentais do homem e direitos humanos fundamentais, as quais, não raras vezes, são utilizadas indistintamente por juristas nacionais e internacionais para tratar sobre a mesma questão, sendo esta equiparação equivocada, tendo em vista que todas fazem referência a direitos mais limitados em relação aos direitos fundamentais, à exceção dos direitos humanos.
Nessa mesma senda, Sarlet (2012, p. 24) critica a utilização de tais expressões por considerá-las restritivas e incapazes de abranger a extensa gama de direitos existentes dentro da ordem jurídica nacional e internacional, conforme segue:
[...] A moderna doutrina constitucional, ressalvadas algumas exceções, vem rechaçando progressivamente a utilização de termos como ‘liberdades públicas’, ‘liberdades fundamentais’, ‘direitos individuais’ e ‘direitos públicos subjetivos’, ‘direitos naturais’, ‘direitos civis’, assim como as suas variações, porquanto – ao menos como termos genéricos – anacrônicos e, de certa forma, divorciados do estágio atual da evolução dos direitos fundamentais no âmbito de um Estado (democrático e social) de Direito, até mesmo em nível do direito internacional, além de revelarem, com maior ou menor intensidade, uma flagrante insuficiência no que concerne à sua abrangência, visto que atrelados a categorias específicas do gênero direitos fundamentais.
No que se refere à locução direitos naturais, recebem essa denominação com base em uma linha filosófica que entende o ser humano como titular de direitos, antes mesmo da existência do Estado e que, apesar de estar atrelada ao nascedouro dos direitos humanos e fundamentais, não é tecnicamente adequada a sua aplicação e, nesse sentido, Tavares (2020, p. 354) reconhece a existência dessa conexão ao mesmo tempo em que a critica, conforme se denota:
A expressão ‘direitos fundamentais’ em muito se aproxima da noção de direitos naturais, no sentido de que a natureza humana seria portadora de certo número de direitos fundamentais. Contudo, sabe-se que não há uma lista imutável dos direitos fundamentais, que variam no tempo. Daí́ a inadequação do termo.
A menção aos direitos do homem, por outro lado, exclui o sentido da universalidade dos direitos humanos ao priorizar apenas a figura masculina em detrimento da mulher, fazendo nítida distinção de gênero. Ademais, apesar de existirem doutrinadores que a reconhece como sinônimo dos direitos humanos, a exemplo de Canotilho (1993), na verdade ela está ligada tão somente à sua origem, pois remonta ao período das revoluções liberais do século XVIII, dizendo respeito, na verdade, aos direitos naturais, não positivados, tanto na esfera nacional quanto internacional. Ao tratar do tema, Mazzuoli (2019, p. 5) destaca que:
Trata-se de expressão de cunho jusnaturalista que conota a série de direitos naturais (ou seja, ainda não positivados) aptos à proteção global do homem e válidos em todos os tempos. São direitos que, em tese, ainda não se encontram nos textos constitucionais ou nos tratados internacionais de proteção. Contudo, nos dias atuais, salvo raros exemplos, é muito difícil existir uma gama significativa de direitos conhecíveis que ainda não constem de algum documento escrito, quer de índole interna ou internacional. Seja como for, a expressão direitos do homem é ainda reservada àqueles direitos que se sabe ter, mas não por que se tem, cuja existência se justifica apenas no plano jusnaturalista. Uma crítica à expressão liga-se à determinação de gênero que faz relativamente ao ‘homem’ (sexo masculino), sugerindo eventual discriminação aos direitos da ‘mulher’, o que reforça o seu desuso em muitos países (e legislações) nos dias atuais (grifo do autor).
O termo direitos individuais trata apenas de determinada parcela dos direitos hu- manos, qual seja aqueles voltados à proteção do indivíduo, ignorando direitos transindividuais e sociais, por exemplo. Já a expressão liberdades públicas representa apenas uma fração dos direitos humanos, pois está atrelada às garantias de ação na vida social conferidas ao indivíduo, como os direitos de liberdade, locomoção e reunião. Quanto à locução direitos fundamentais do homem, é utilizada por Silva (2005, p. 178) ao entender ser ela mais cabível do que apenas fazer menção a direitos fundamentais:
Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas (grifo do autor).
Já a terminologia direitos humanos fundamentais, cunhada por Alexandre de Moraes, sendo também adotada por juristas como André Ramos Tavares e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, e pressupõe a reunião de direitos que tutelam o indivíduo em face do arbítrio estatal, o que reduz, novamente, a sua abrangência, uma vez que não insere nessa qualificação o rol de direitos que visam a proteção plena do ser humano, a exemplo dos direitos de liberdade, igualdade e solidariedade. Diante disto, segue apresentação de Moraes (2011, p. 20-22) sobre os direitos humanos fundamentais:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais. [...] O importante é realçar que os direitos humanos fundamentais relacionam-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções internacionais. A previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementariedade.
Desse modo, conclui-se que os direitos fundamentais e os direitos humanos representam ramos autônomos dentro da ciência do Direito, mas que, ao mesmo tempo, estão entrelaçados e visam estabelecer, dentro do âmbito específico de seus estudos, uma base concreta capaz de proporcionar, de forma perene, uma vida digna aos indivíduos, protegendo-os contra quaisquer violações praticadas ou toleradas pelo Estado, tanto no contexto da ordem jurídica nacional quanto internacional.
1.2 As Dimensões dos Direitos Fundamentais: sua evolução e compreensão atual
Para compreender a formação dos direitos fundamentais como hoje se apresentam em grande parte das Constituições no mundo faz-se essencial analisar a evolução histórica percorrida ao longo do tempo, principalmente a partir do século XVIII, com o surgimento das revoluções burguesas que marcaram o surgimento do constitucionalismo.
Tendo como marco temporal precípuo a Revolução Francesa, de 1789, e toda a luta social em face do autoritarismo e da opressão estatal na busca pelo fim do Estado absolutista francês daquele período, a noção de direitos fundamentais surge como um alicerce jurídico-normativo limitador desse poder do soberano, formando a base de um Estado de Direito baseado na separação dos poderes e preocupado com a valorização e a proteção do bem comum.
A divisão dos direitos fundamentais em gerações - ou dimensões como preferem alguns doutrinadores - foi desenvolvida e apresentada por Karel Vasak, em 1979, durante uma aula inaugural dos Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem em Estrasburgo, França, quando, ao abordar os estudos acerca dos direitos fundamentais, o fez relacionando-os com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, lemas da Revolução Francesa (BONAVIDES, 2004 p. 562-563).
Diante do momento histórico em que se vivia, Marmelstein (2019, p. 38-39) afirma que a ideia inicial de Vasak foi traçar uma comparação entre a bandeira francesa e os direitos fundamentais, relacionando-os com os valores da Revolução e dividindo-os em gerações, onde o azul simbolizava a liberdade, o branco a igualdade e o vermelho a fraternidade, fazendo surgir então a “teoria das gerações dos direitos” que se tornou grande referencial nos estudos acerca dos direitos fundamentais até os dias de hoje. Nesse sentido, Ferreira Filho (2016, p. 73) também afirma que “a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade”.
Pontue-se que a expressão “gerações” dos direitos fundamentais é objeto de reiteradas críticas doutrinárias, tendo em vista que traz a ideia de substituição ou sucessão de uma geração por outra ou de que uma geração ultrapassa a outra e assim sucessivamente, enquanto o que se observa é que entre elas há uma congruência, uma interligação fundamental para o fortalecimento e preservação das garantias à dignidade do indivíduo, buscando resguardar os direitos que vão sendo violados ou desrespeitados ao longo do tempo e que necessitam permanentemente da tutela especial da lei e do Estado e, nesse sentido, observa-se que:
A existência de várias dimensões é perfeitamente compreensível, já́ que decorrem da própria natureza humana: as necessidades do Homem são infinitas, inesgotáveis, o que explica estarem em constante redefinição e recriação, o que, por sua vez, determina o surgimento de novas espécies de necessidades do ser humano. Daí falar em diversas dimensões de projeção da tutela do Homem, o que só vem corroborar a tese de que não há um rol eterno e imutável de direitos inerentes à qualidade de ser humano, mas sim, ao contrário, apenas um permanente e incessante repensar dos Direitos (TAVARES, 2020, p. 355).
Ao abordar esse tema, Piovesan (2018, p. 236) destaca a interseção e a indissociabilidade existente entre o rol de direitos voltados à proteção do homem, independentemente de qualquer separação geracional, conforme segue adiante:
Assim, partindo do critério metodológico que classifica os direitos humanos em gerações, compartilha-se do entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a equivocada visão da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe a ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade quando não assegurado o direito à igualdade; por sua vez, esvaziado, revela-se o direito à igualdade quando não assegurada a liberdade.
A primeira dimensão dos direitos fundamentais que trata dos direitos da liberdade, assim considerados os direitos civis e políticos, surgiu durante as revoluções burguesas que lutavam pelo fim do arbítrio e do autoritarismo do Estado, marcando o constitucionalismo moderno e a elaboração das Constituições Americana, de 1787 e Francesa, de 1791, e que, conforme lição de Bonavides (2004, p. 563), esses direitos foram “os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional [...] que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente”. O doutrinador também faz referência à trajetória percorrida para o reconhecimento de tais direitos em âmbito constitucional:
Se hoje esses direitos parecem já pacíficos na codificação política, em verdade se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, conforme a natureza do respectivo modelo da sociedade, mas permitindo visualizar a cada passo uma trajetória que parte com frequência do mero reconhecimento formal para concretizações parciais e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de efetivação democrática do poder. Essa linha ascensional aponta, por conseguinte para um espaço aberto a novos avanços. A história comprovadamente tem ajudado mais a enriquecê-lo do que a empobrecê-lo: os direitos da primeira geração – direitos civis e políticos – já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo Constituição digna desse nome que os não reconheça em toda a extensão (BONAVIDES, 2004, p. 563).
Tais direitos são dotados de grande carga subjetiva e de acentuado caráter individualista, na medida em que têm como titular o indivíduo, visando proteger a personalidade e a dignidade da pessoa humana. Por outro lado, são direitos de resistência, que se opõem à atuação do Estado, dele exigindo uma prestação negativa ou de defesa, ou seja, uma não intervenção na vida pessoal dos indivíduos, tendo em vista que apenas com essa atitude abstencionista seria possível evitar a violação dos direitos da liberdade (FERNANDES, 2011, p. 185-186).
Assim sendo, como forma de garantir o status libertatis do indivíduo, os direitos de primeira dimensão estão inseridos na categoria do status negativus segundo a classificação de Jellinek, representando a omissão do Estado em prol da preservação das liberdades do homem.
A propósito, a teoria desenvolvida por Jellinek dividiu em direitos negativos e positivos os direitos fundamentais, entendendo que aqueles eram identificados como direitos de primeira dimensão, pois formados por direitos civis e políticos, em razão do caráter abstencionista do Estado e da sua não interferência nas liberdades dos indivíduos, ao passo que estes eram compostos por direitos de segunda dimensão, ou seja, direitos sociais e econômicos, os quais necessitavam do imperativo da tutela estatal como garante para a sua consolidação e implementação de políticas públicas voltadas para atender aos anseios da sociedade (NOVELINO, 2014, online).
Esta dimensão tem como marco referencial a Revolução Francesa, de 1789, cujos ideais liberais objetivavam primordialmente a conquista de maior liberdade dos cidadãos frente ao Estado, ensejando, no mesmo ano, a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, instrumento normativo símbolo da proteção dos direitos fundamentais que dispõe expressamente acerca da proteção dos direitos civis e políticos.
Ademais, tem-se que os direitos de primeira dimensão correspondem à fase inaugural do constitucionalismo que, visando a garantia das liberdades públicas dos indivíduos, buscava reverter o cenário histórico desumano em que ficavam à margem de qualquer política pública voltada para a garantia dos seus direitos e, conforme lição de Bonavides (2004, p. 564), “são por igual direitos que valorizam primeiro o homem- singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual”.
No que se refere aos direitos civis, Mazzuoli (2019, p. 31) leciona que estão ligados às diversas manifestações de expressão do indivíduo perante a sociedade, a exemplo das liberdades de manifestação do pensamento, de expressão, de consciência e de crença, de reunião, de locomoção e de propriedade, ao passo que os direitos políticos estão relacionados à participação do povo na vida política do Estado e da regulamentação do exercício democrático do poder, manifestados através do direito de votar e ser votado, do direito de crítica, da participação em plebiscitos, referendos, da iniciativa popular, da filiação partidária, entre outros.
Conforme explana Marmelstein (2019, p. 56), a segunda dimensão dos direitos fundamentais está atrelada aos direitos de igualdade, quais sejam os direitos econômicos, sociais e culturais, cujo surgimento se deu com a Revolução Industrial, no decorrer do século XIX, período marcado pelo avanço no desenvolvimento industrial e de técnicas de produção, mas também de graves violações à dignidade dos trabalhadores, os quais eram submetidos a situações precárias de trabalho e graves violações à condição mínima de vida humana, como jornadas excessivas de trabalho, crianças e mulheres submetidos a trabalhos braçais exaustivos e ausência de descanso semanal, fome e falta de cuidados médicos. É nesse contexto também o pensamento de Sarlet (2012, p. 49):
A segunda dimensão dos direitos fundamentais abrange, portanto, bem mais do que os direitos de cunho prestacional, de acordo com o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante o cunho ‘positivo’ possa ser considerado como o marco distintivo desta nova fase na evolução dos direitos fundamentais. Saliente-se, contudo, que, a exemplo dos direitos da primeira dimensão, também os direitos sociais (tomados no sentido amplo ora referido) se reportam à pessoa individual, não podendo ser confundidos com os direitos coletivos e/ou difusos da terceira dimensão. A utilização da expressão ‘social’ encontra justificativa [...] na circunstância de que os direitos da segunda dimensão podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem à reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econômico.
Assim, os problemas sociais vividos pela classe operária daquela época e a luta por melhores condições de vida e de trabalho provocaram uma grave crise do liberalismo a partir do nascimento de ideologias antiliberais no século XX. Diante da crise econômica e do descenso do Estado liberal, o modelo de Estado social ganhou força, defendendo uma atuação positiva, de interferência do Estado na sociedade.
Portanto, diferentemente dos direitos de primeira dimensão, os direitos econômicos, sociais e culturais exigem uma prestação efetiva e eficiente do Estado a fim de garantir condições adequadas à fruição de uma vida digna e um mínimo de bem-estar social, o modelo político do “welfare state”, ou seja, o auxílio estatal para os indivíduos que dele necessita, passando a adotar uma postura de intervenção nas relações sociais, econômicas e laborais a fim de promover a igualdade social.
Dessa maneira, esta dimensão marca um grande avanço na proteção dos direitos trabalhistas, a partir da compreensão de que a posição de inferioridade econômica e social dos trabalhadores seria minorada com a elaboração de instrumentos legais que contemplassem, ao mesmo tempo, limites aos empregadores e direitos mínimos a serem garantidos aos empregados para que fosse possível estabelecer uma relação trabalhista equilibrada e nas palavras de Marmelstein (2019, p. 47) “entre esses direitos, vale citar: a garantia de recebimento de salário mínimo, piso salarial, o direito de greve e de sindicalização, o direito a férias, a limitação da jornada diária de trabalho etc”.
Esta dimensão tem como grandes marcos referenciais a Constituição Mexicana, de 1917, resultado da Revolução Mexicana, de 1910, e a Constituição de Weimar, de 1919, pois foram as primeiras a inaugurar a positivação destes direitos, reconhecendo constitucionalmente a igualdade nos âmbitos econômico e social, mas, nesse mesmo contexto, afastando-se da tendência liberal clássica do ocidente, surgiu também a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, elaborada durante o período da Revolução Russa, de 1917 e, posteriormente, a Constituição soviética, de 1918 (DIMOULIS; MARTINS, 2012, online).
No Brasil, as Constituições de 1934 e, de forma mais abrangente a de 1946, foram as precursoras na proteção destes direitos de segunda dimensão, ao dispor, por exemplo, sobre direito à educação, assistência social, aposentadoria e direitos dos trabalhadores, formando, assim, as bases para a construção de um Estado do bem-estar social.
Destaque-se que, em que pese as normas que tratam sobre direitos fundamentais serem de eficácia imediata, nos exatos termos da Constituição Federal de 1988 ao dispor que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, aquelas referentes aos direitos de segunda dimensão, por vezes, demandam investimentos, significando que o Estado tem o dever de destinar parcela das verbas públicas para a sua execução e promoção, exigindo dele prestações materiais voltadas para produzir e distribuir bens essenciais aos indivíduos. Nesse contexto, Bonavides (2004, p. 564) afirma o que segue:
De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. De tal sorte que os direitos fundamentais da segunda geração tendem a tornar-se tão justiciáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma.
Assim, tendo em vista que esses direitos de segunda dimensão estão ligados aos valores da igualdade, tanto formal quanto material, priorizando a redução das desigualdades fáticas, é nesse momento que surgem as garantias institucionais e no âmbito nacional, são manifestações de tais direitos o benefício conferido pela LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social, a garantia de uma renda mínima aos cidadãos, o rol de direitos sociais elencado pelo artigo 6º, da CF/88 e o seu título que trata da Ordem Social.
A terceira dimensão dos direitos fundamentais, leciona Moraes (2011, p. 26), está assentada nos direitos de solidariedade e fraternidade, englobando, segundo Vasak, os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. Esta dimensão ganhou força na segunda metade do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, influenciando a elaboração de diversos tratados internacionais hoje existentes, exatamente porque, conforme Marmelstein (2019, p. 51) “simbolizou e ainda simboliza o nascimento de uma nova ordem mundial, muito mais comprometida com os direitos fundamentais, que já se incorporou ao direito consuetudinário internacional”.
Dotada de um caráter transindividual, humanista e universal, esta dimensão volta- se para a superação das diferenças entre os povos e à proteção do próprio gênero humano como um todo e não a um indivíduo, a um grupo delimitado ou a um Estado determinado, certo é que os direitos fundamentais têm um viés coletivo ou difuso, exigindo uma maior participação e cooperação internacional entre os povos ao passo em que visam proteger direitos e garantias inerentes a toda a humanidade (SARLET, 2012, p. 49-50).
No direito brasileiro, a Constituição Brasileira de 1988 trouxe um vasto rol de direitos fundamentais de terceira dimensão, privilegiando de forma enfática a proteção do direito humanitário internacional, a exemplo da proteção ao meio ambiente, inclusive com capítulo específico para tratar sobre o tema.
Destaque-se que Bonavides (2004, p. 571) traz ainda a noção de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais relacionada à globalização política no cenário da normatividade jurídica a fim de possibilitar relações de convivência e garantia da cidadania e da liberdade de todos os povos, evitando que países economicamente mais fortes imponham sua cultura sobre os demais, cujo foco, portanto, são os direitos à democracia em sua dimensão formal (vontade da maioria) e material (proteção dos direitos das minorias), à informação (que decorre de forma direta do princípio republicano e da democracia) e ao pluralismo:
São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. A democracia positivada enquanto direito da quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual.
São manifestações destes direitos no cenário brasileiro, entre outros, o habeas data, previsto no artigo 5º, XXXIII, da CF/88, a legitimidade das ações afirmativas e o respeito ao pluralismo político, assim identificado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos exatos termos do artigo 1º, V, da CF/88.
Assim, em que pese os argumentos críticos acerca das dimensões dos direitos fundamentais, elas possuem grande relevância para o desenvolvimento dos estudos acerca do tema que vem sendo difundido e discutido até hoje, tanto no âmbito nacional quanto internacional, partindo sempre de uma contextualização de tais direitos com a realidade contemporânea, fazendo releituras de direitos pré-existentes para aplicá-los de modo efetivo diante da realidade em que se vive, confirmando seu caráter de inexauribilidade.
1.3 - As Acepções (ou Dimensões) objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais
A evolução e as mudanças sociais que surgem ao longo do tempo em busca da adequação aos interesses da coletividade provocam relevante impacto no estudo do direito e, consequentemente, no ramo dos direitos fundamentais, sobretudo por ter como foco central a dignidade da pessoa humana e todo o conjunto de instrumentos constitucionais de proteção do indivíduo.
As diferentes atuações do Estado frente às demandas da coletividade, em dado momento ocupando uma posição abstencionista ao adotar um modelo de Estado liberal e, posteriormente, assumindo uma posição protecionista e intervencionista, dando início ao Estado social, fizeram surgir, principalmente a partir dos anos 60, a necessidade de reinterpretar os direitos fundamentais e, buscando dar-lhes máxima efetividade, passou- se a analisá-los sob uma dupla perspectiva, abordando suas acepções subjetiva e objetiva.
Sob esse enfoque, Sarlet (2012, p. 183) leciona que na relação entre Estado e indivíduo, sendo este destinatário dos direitos fundamentais, surge o reconhecimento de uma perspectiva dual das funções aptas à sua máxima efetividade através das acepções objetiva e subjetiva, reconhecendo no direito constitucional contemporâneo normas que balizam não apenas direitos individuais, mas também coletivos e, nesse sentido:
[...] Quando se fala em dimensão objectiva e dimensão subjectiva das normas consagradoras de direitos fundamentais pretende-se salientar a existência de princípios e regras consagradores de direitos subjectivos fundamentais (dimensão subjectiva) e a existência de princípios e regras meramente objectivos (dimensão objectiva) (CANOTILHO, 1993, p. 535).
Os estudos acerca da acepção subjetiva dos direitos fundamentais abordam uma acepção clássica por excelência, associada à ideia de status negativo e liberalismo estatal, ou seja, está pautada na utilização dos direitos subjetivos como instrumentos de legitimação e garantia de direitos e liberdades do indivíduo concomitantemente à limitação do intervencionismo do Estado nesses mesmos direitos cujas diretrizes estão contidas no texto constitucional (DIMOULIS E MARTINS, 2012, online).
Ela volta-se, portanto, para uma interpretação do direito fundamental sob o ponto de vista do indivíduo que demanda, frente ao Estado, a ampla tutela dos direitos que lhes são mais caros como pessoa humana, o que novamente se compatibiliza com a ideia de Canotilho (1993, p. 499) ao asseverar que:
Com esta ideia de fundamentação subjectiva procura-se salientar basicamente o seguinte: um fundamento é subjectivo quando se refere ao significado ou relevância da norma consagradora de um direito fundamental para o indivíduo, para os seus interesses, para a sua situação da vida, para a sua liberdade. Assim, [...] verificar-se-á um fundamento subjectivo ou individual se estiver em causa a importância desta norma para o indivíduo, para o desenvolvimento da sua personalidade, para os seus interesses e ideias.
O objeto central desta acepção, portanto, é a máxima efetivação dos direitos fundamentais, os quais funcionam como fonte de direitos subjetivos do indivíduo, sempre priorizando a sua aplicação e proteção do modo mais abrangente possível, de sorte que o seu desrespeito permite ao sujeito ingressar em juízo almejando exigir de outrem uma contrapartida na busca pela tutela de seu direito perante o Estado ou um terceiro, dando ensejo à judicialização do conflito que se apresenta (MARMELSTEIN, 2019, p. 297).
Ressaltando a aplicação abrangente dessa acepção na estruturação jurídica nacional, Sarlet (2012, p. 192) afirma que, em relação ao caráter subjetivo dos direitos fundamentais, estes “não se reduzem aos clássicos direitos de liberdade, ainda que nestes a nota da subjetividade, no sentido de sua exigibilidade, transpareça – de regra – da forma mais acentuada”. No entanto, há que se destacar a existência de limites práticos para recorrer ao poder judiciário na busca pela tutela de direitos violados, haja vista que a demanda pleiteada deve encontrar guarida e fundamentação dentro do ordenamento jurídico vigente, conforme segue:
De modo geral, é possível afirmar que este espectro de variações no que concerne ao objeto do direito subjetivo (fundamental) se encontra vinculado aos seguintes fatores: (a) o espaço de liberdade da pessoa individual não se encontra garantido de maneira uniforme; (b) a existência de inequívocas distinções no que tange ao grau de exigibilidade dos direitos individualmente considerados, de modo especial, considerando-se os direitos a prestações sociais materiais; (c) os direitos fundamentais constituem posições jurídicas complexas, no sentido de poderem conter direitos, liberdades, pretensões e poderes da mais diversa natureza e até́ mesmo pelo fato de poderem dirigir-se contra diferentes destinatários (SARLET, 2012, p. 192).
Desse modo, ao termo direitos subjetivos é possível atribuir inúmeros sentidos e aplicabilidades dentro do mundo jurídico em razão da amplitude que carrega. Em se tratando dos direitos fundamentais, conclui-se que a dimensão subjetiva é essencial para o reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de direitos.
Por sua vez, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais surge como uma forma de complementação da dimensão subjetiva, pois atua como instrumento de interpretação jurídica, levando em conta a forte carga valorativa que carrega o ordenamento jurídico, estando atrelada, portanto, ao caráter axiológico do arcabouço normativo-jurídico (MARMELSTEIN, 2019, p. 338).
Esta dimensão refere-se ao direito fundamental sob a perspectiva do Estado Constitucional, haja vista que nessa acepção o direito é considerado um valor a ser perseguido e resguardado pelo Estado, cabendo ao poder público o dever de consagrá-lo por meio de políticas públicas ou pela abstenção em temas sensíveis à esfera da individualidade de cada pessoa (SARLET, 2012, p. 183-185).
Sob o ponto de vista histórico, segundo Sarlet (2012, p. 183-185), em que pese os primeiros registros acerca da dimensão objetiva terem surgido após a Primeira Guerra Mundial, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, é considerada o grande marco propulsor dessa concepção, somado ao julgamento do caso Lüth, em 1958, no qual a Corte Federal Constitucional Alemã proferiu decisão destacando que os direitos fundamentais, além de serem aplicados nas relações travadas entre indivíduo e Estado (dimensão subjetiva) também são dotados de grande carga axiológica que reverberam em todo o ordenamento jurídico, órgãos e poderes estatais (dimensão objetiva).
Associa-se essa dimensão a um grande sistema de valores capazes de orientar a conformação e o exercício da atividade estatal, devendo ser analisados os direitos fundamentais como parâmetro do modo de agir do Estado a fim de possibilitar a eficácia irradiante de seus efeitos sobre uma universalidade de indivíduos, conforme segue:
Em contraste com o subjetivismo clássico cuja unilateralidade se acha de todo ultrapassada, os direitos fundamentais tomaram hoje uma dimensão objetiva, concretizante, axiológica e universalista cada vez mais clara e evidente. Tal dimensão já os transformou na razão de ser de todo o constitucionalismo da liberdade, o qual desce doutrinariamente das esferas abstratas até chegar às regiões concretas de sua constatação efetiva, tendo por destinatário derradeiro menos um indivíduo, uma classe ou uma nação do que, em rigor, o gênero humano mesmo (BONAVIDES, 2004, p. 20-21).
Desse modo, os direitos fundamentais representam um dever-valor que deve ser protegido pelo Estado, pois, segundo as palavras de Fernandes (2011, p. 211) depreende- se que “com o aumento de complexidade percebido pelo direito e o desenvolvimento de novos paradigmas jurídicos, uma nova possibilidade de incidência dos direitos fundamentais foi teorizada para além da dicotomia Estado-Particular”.
Nesses termos, a perspectiva jurídico-objetiva busca desprender-se do caráter pessoal/individual dos direitos fundamentais, criando deveres apriorísticos para sua proteção enquanto o Estado assume um viés preventivo, exercendo uma função de garantidor da coletividade, independentemente de existir um titular que esteja demandando a sua proteção, ideia reforçada por Canotilho (1993, p. 535) ao lecionar que:
Fala-se de uma fundamentação objectiva de uma norma consagradora de um direito fundamental quando se tem em vista o seu significado para a colectividade, para o interesse público, para a vida comunitária. É esta
«fundamentação objectiva» que se pretende salientar quando se assinala à
«liberdade de expressão» uma «função objectiva», um «valor geral», uma
«dimensão objectiva» para a vida comunitária («liberdade institucional»).
Pontue-se, ademais, que a dimensão subjetiva está atrelada à eficácia vertical dos direitos fundamentais, ou seja, à relação entre particular e Estado; no entanto, tendo em vista a necessidade de ampliar a proteção desses direitos às relações extra estatais, surge a dimensão objetiva que se associa à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na medida em que visa proteger as relações entre particulares, reorganizando a dinâmica dos direitos fundamentais, atuando na vedação de omissões, bem como na proibição de uma proteção manifestamente insuficiente (FERNANDES, 2011, p. 211). Nesse mesmo contexto, destaca-se que:
[...] A categoria do direito subjetivo, lavrada no passado por civilistas, não é a mais adequada para lidar com a complexa estrutura e com as multifacetadas funções dos direitos fundamentais. Esses, para além da dimensão subjetiva, ostentam também uma dimensão objetiva, que envolve: (a) a irradiação dos seus efeitos, que atingem várias outras situações e relações jurídicas, para além dos limites do direito subjetivo; (b) o dever do Estado de proteger estes direitos de lesões e ameaças de terceiros, inclusive de particulares; e (c) o direito a organizações e procedimentos adequados à sua tutela. Portanto, os direitos fundamentais não cabem na moldura do direito subjetivo, talhada, historicamente, para lidar com situações típicas do Direito Privado, e hoje questionadas mesmo naquele quadrante (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 539).
Importante ressaltar o entrelaçamento e a complementariedade existente entre tais dimensões, afastando-se a ideia de que se contrapõem, exatamente pelo fato de que tanto a acepção subjetiva quanto a objetiva dos direitos fundamentais fazem parte do ordenamento jurídico, e se inter-relacionam a fim de confirmar a juridicidade dos direitos fundamentais e alcançar a sua mais ampla proteção, o que se confirma pelo que segue:
As funções vinculadas à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, por sua vez, influenciaram a dimensão subjetiva, isto é, a noção de direitos fundamentais como direitos subjetivos, contribuindo para o seu alargamento, de modo a se falar até mesmo numa espécie de hipertrofia dos direitos fundamentais. De qualquer modo, é certo que a dimensão objetiva encontra ressonância na perspectiva subjetiva (fala-se, inclusive, de direitos à proteção e direitos à organização e procedimento), visto que os efeitos jurídicos inerentes à dimensão objetiva implicam, em maior ou menor medida, a possibilidade de invocar tais efeitos perante o Poder Judiciário, por meio dos diversos mecanismos disponíveis (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p. 358).
Desse modo, diante da multifuncionalidade e da eficácia irradiante dos direitos fundamentais na ordem constitucional, certo é que a sua função não se limita ao enquadramento subjetivo, tendo em vista que a sua concepção sob o ponto de vista objetivo é dotado de autonomia, resultando em um arcabouço normativo que direciona a interpretação e aplicação do direito de modo a promover a máxima proteção jurídica possível (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p. 358-360).
Por fim, a amplitude da abordagem acerca dos direitos fundamentais abre espaço para a sua análise sob a ótica das mudanças políticas e sociais ao longo dos anos, fazendo surgir novas concepções e análises da ordem constitucional buscando garantir que as condutas dos órgãos estatais estejam voltadas para promover os meios de tutela dos indivíduos, resguardando, prioritariamente, a dignidade da pessoa humana.
1.4- Direitos Fundamentais Implícitos, Explícitos e o Bloco de Constitucionalidade
O reconhecimento da Constituição como instrumento jurídico de hierarquia máxima dentro do ordenamento jurídico estatal, dotada de força normativa essencial para a estruturação e organização político-social do Estado deu início, durante o século XVIII, a um novo processo de elaboração das Constituições, priorizando a elaboração de textos escritos dotados de rigidez, estabelecendo limites ao poder do soberano e garantindo direitos fundamentais aos indivíduos.
A instauração desse modelo solene de elaboração da Constituição promoveu o surgimento de grandes debates doutrinários e, por conseguinte, vários conceitos acerca da compreensão do novo complexo normativo constitucional que eclodia, entre eles os estudos do jusfilósofo Carl Schmitt, cuja produção intelectual teve grande relevância para o movimento constitucional à época.
O jurista alemão, em sua obra “Teoria da Constituição”, de 1922, defendia um sentido político de Constituição, resultado de uma decisão política fundamental do poder constituinte originário, vale dizer, da deliberação concreta sobre o modo e a forma de estruturação da unidade político-estatal ao afirmar que “la unidad de la Constitución, sin embargo, no reside en ella misma, sino en la unidad política, cuya particular forma de existencia se fija mediante el acto constituyente”1 (SCHMITT, 1996, p. 46).
Dentro da sua concepção política, desenvolveu a teoria decisionista, diferenciando os conceitos de Constituição e leis constitucionais a partir de uma análise da realidade social e não da norma em si, contrapondo-se ao formalismo e ao normativismo kelseniano, ou seja, para Schmitt os fundamentos de existência e validade da Constituição são aqueles que representam a unidade política do Estado, “a Constituição significa uma decisão conjunta e fundamental sobre o modo e a forma de unidade de um povo” nas palavras de Bonavides (2004, p. 175). Complementa ainda Fernandes (2011, p. 50-51):
À luz de seu ‘decisionismo’, concluímos que para Schmitt a essência da Constituição está alocada nas decisões políticas fundamentais do (titular) Poder Constituinte (que seria o povo) e não em normas jurídicas positivadas, o que o coloca em posição contrária e oposta àquela delineada pelo sentido (concepção) jurídico-normativo de Constituição de viés kelseniano anteriormente trabalhado.
Segundo Schmitt (1996, p. 46-48), a Constituição deveria conter apenas normas com relevância política que estivessem de fato relacionadas com a conformação do Estado e sua organização e que tratassem sobre o sistema de direitos e garantias fundamentais, enquanto as leis constitucionais seriam aquelas que, embora estivessem inseridas formalmente na Constituição, seu conteúdo não era dotado de relevância para a formação da unidade política estatal. Nesse contexto, leciona Schmitt (1996, p. 46-47):
Las leyes constitucionales valen, por el contrario, a base de la Constitución y presuponen una Constitución. Toda ley, como regulación normativa, y también la ley constitucional, necesita para su validez en último término una decisión política previa, adoptada por un poder o autoridad políticamente existente. Toda unidad política existente tiene su valor y su «razón de existencia», no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su existencia misma[2]. Lo que existe como magnitud política, es, jurídicamente considerado, digno de existir. [...] Es necesario hablar de la Constitución como de una unidad, y conservar entre tanto un sentido absoluto de Constitución. Al mismo tiempo, es preciso no desconocer la relatividad de las distintas leyes constitucionales. La distinción entre Constitución y ley constitucional es sólo posible, sin embargo, porque la esencia de la Constitución no está contenida en una ley o en una norma. En el fondo de toda normación reside una decisión política del titular del poder constituyente, es decir, del Pueblo en la Democracia y del Monarca en la Monarquía auténtica[3] (grifo do autor).
A diferenciação estabelecida por Schmitt entre Constituição e leis constitucionais fez surgir também os conceitos de normas constitucionalmente formais e materiais. A dimensão formal está relacionada à literalidade do conteúdo constitucional, é dizer, será considerada norma constitucional tudo aquilo que o poder constituinte optou por inserir expressamente na Carta Magna, independente do seu teor, esteja ele relacionado ou não à estruturação e organização estatal; já a dimensão material reconhece como Lei Fundamental tão somente o conteúdo relacionado à decisão política fundamental do Estado, essencial à sua conformação (SCHMITT, 1996, p. 38-41).
Cada Estado possui suas peculiaridades e por isso mesmo aqueles a quem cabe a elaboração de uma Constituição devem estar atentos para a realidade social e as necessidades do povo em determinado tempo e lugar a fim de albergar em sua máxima medida a proteção aos direitos fundamentais. Nesse sentido, aponta Sarlet (2012, p. 88):
Qualquer conceituação – e são inúmeras as definições que aqui poderiam ser citadas – de direitos fundamentais que almeje abranger de forma definitiva, completa e abstrata (isto é, com validade universal) o conteúdo material (a fundamentalidade material) dos direitos fundamentais está fadada, no mínimo, a um certo grau de dissociação da realidade de cada ordem constitucional individualmente considerada. [...] Com efeito, o que é fundamental para determinado Estado pode não ser para outro, ou não o ser da mesma forma. Todavia, não há como desconsiderar a existência de categorias universais e consensuais no que diz com a sua fundamentalidade, tais como os valores da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade humana. Contudo, mesmo estes devem ser devidamente contextualizados, já que igualmente suscetíveis de uma valoração distinta e condicionada pela realidade social e cultural concreta.
Dentro desse contexto, Canotilho (1993, p. 499) sublinha que, partindo da concepção formal de Constituição, os direitos fundamentais podem ser vistos sob quatro diferentes dimensões dentro do panorama constitucional:
A fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização, assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de direitos fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão (cfr. CRP, art. 288.°ld e e); (4) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, acções e controlo, dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais (grifo do autor).
Já a acepção material dos direitos fundamentais, segundo Canotilho (1993, p. 499), “significa que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade” e para Sarlet (2012, p. 87):
A fundamentalidade material, por sua vez, decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Inobstante não necessariamente ligada à fundamentalidade formal, é por intermédio do direito constitucional positivo (art. 5º, § 2º, da CF) que a noção da fundamentalidade material permite a abertura da Constituição a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto e, portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como a direitos fundamentais situados fora do catálogo, mas integrantes da Constituição formal, ainda que possa controverter-se a respeito da extensão do regime da fundamentalidade formal a estes direitos apenas materialmente fundamentais.
Com efeito, há severas críticas doutrinárias à forte dicotomia estabelecida entre normas formal e materialmente constitucionais, que defendem, outrossim, a importância do diálogo contínuo entre normas constitucionais, princípios, atos normativos, leis infraconstitucionais, costumes, tratados internacionais, que albergam o universo amplo e vasto de salvaguarda dos direitos fundamentais, haja vista a inesgotabilidade desse sistema protetivo que tende a expandir cada vez mais, acompanhando os avanços político- sociais e jurídicos (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 526).
No entanto, malgrado os posicionamentos contrários a Schmitt, no cenário jurídico atual a sua produção doutrinária possui grande relevância e vem sendo contextualizada com o desenvolvimento dos estudos acerca do chamado bloco de constitucionalidade, cujo objeto central também é a identificação de normas formal e materialmente constitucionais dentro de um ordenamento jurídico, contudo a partir da análise de novos parâmetros.
O surgimento do bloco de constitucionalidade ocorreu na França em 1974 com Louis Favoreu, em referência às normas constitucionais integrantes do ordenamento jurídico francês que, conforme Bulos (2014, p. 179-180), teve como base a ideia de bloco de legalidade desenvolvida por administrativistas franceses que defendiam o reconhecimento de valor jurídico positivo e constitucional dos preâmbulos. Ao abordar o tema, Novelino (2014, online) explicita que:
O conceito de bloco de constitucionalidade foi desenvolvido por Louis Favoreu, em referência às normas com status constitucional que integram o ordenamento jurídico francês, com o intuito de abranger a Constituição de 1958, o preâmbulo da Constituição de 1946, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, além de outras normas de valor constitucional (grifo do autor).
Entende-se por bloco de constitucionalidade o arcabouço normativo- constitucional amplo no qual está inserido tanto o texto expresso da Carta Constitucional quanto diversos outros documentos que trazem em seu bojo conteúdo de relevância constitucional e, nesse contexto, Barroso (2008, p. 83) destaca que:
[...] o Ministro Celso de Mello tratou do tema nos seguintes termos: ‘É por tal motivo que os tratadistas - consoante observa Jorge Xifra Heras [...] em vez de formularem um conceito único de Constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções, dando ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade (ou de parâmetro constitucional), cujo significado
- revestido de maior ou de menor abrangência material - projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo normativo da própria Constituição formal, chegando, até mesmo a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas a desenvolver em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global’.
Bulos (2014, p. 180) também pontua que, a partir dos anos 80, “a expressão bloco de constitucionalidade disseminou-se em todo o mundo, sendo usada para designar a solidez e a unidade de sentido de certas normas e princípios de valor constitucional” e que “contemporaneamente, os autores têm ressaltado a importância que emerge da noção de bloco de constitucionalidade para fins de determinação da fidelidade hierárquica dos atos administrativos, legislativos e judiciários perante a constituição do Estado”.
Leis e atos normativos, sejam eles decorrentes de qualquer dos poderes, devem estar em conformidade com a Constituição, subordinando-se formal e materialmente às suas disposições e, levando-se em conta tal fato, a doutrina defende dois parâmetros possíveis para compor o bloco de constitucionalidade, um amplo e outro restrito, que servirão como base na análise de adequação de tais normas ao conteúdo constitucional.
No que se refere ao parâmetro estrito, pode ser entendido como normas formalmente constitucionais, limitadas ao conteúdo expresso no texto constitucional, reconhecidamente dotados de valor jurídico. Já o parâmetro em sentido amplo é o que Canotilho define como ordem constitucional global, ou seja, deve-se legitimar como norma constitucional não apenas o texto literal da Constituição, mas também regras e princípios constantes em outros dispositivos normativos, cujo conteúdo aborde a estruturação e a organização do Estado, bem como direitos e garantias fundamentais considerados essencialmente constitucionais e, sob essa perspectiva, tem-se que:
A ordem constitucional global seria mais vasta do que a constituição escrita, pois abrangeria não apenas os princípios jurídicos fundamentais informadores de qualquer Estado de direito, mas também os princípios implícitos nas leis constitucionais escritas. O parâmetro da constitucionalidade não se reduz positivisticamente às regras e princípios escritos nas leis constitucionais; alarga-se, também, a outros princípios não expressamente consignados na constituição, desde que tais princípios ainda se possam incluir no âmbito normativo-constitucional [...] como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas (CANOTILHO, 1993, p. 980-981).
Nesse âmbito, faz-se necessário abordar as especificidades desse fenômeno no constitucionalismo brasileiro, tendo em vista que, para o direito interno, no conjunto de normas a que se reconhece hierarquia materialmente constitucional também estão inseridos os direitos fundamentais implícitos na própria Constituição, os decorrentes de emendas constitucionais, os princípios adotados pelo Estado e os tratados internacionais de direitos humanos, assim reconhecidos a partir da hermenêutica constitucional (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 42; PIOVESAN, 2018, p. 133-136).
Dentro desse panorama, é pacífico que o rol de direitos fundamentais constantes formalmente na Constituição não é taxativo e, por isso mesmo, reconhecer a existência de direitos materialmente constitucionais que orbitam o texto constitucional, mas não estão incluídos nele de forma expressa, amplia sobremaneira o bloco de constitucionalidade brasileiro, haja vista que, conforme explica Marmelstein (2019, p. 23) “o importante é que, a partir da Constituição (formal ou material), seja possível identificar a fundamentalidade de um dado direito, ainda que de forma implícita”. Sobre o tema, válido citar o entendimento de Miranda (2019, p. 269), para quem a Constituição:
Vem a ser a expressão imediata dos valores jurídicos básicos acolhidos ou dominantes na comunidade política, a sede da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de referência do poder político que se pretende ao serviço desta ideia,
o instrumento último de reivindicação de segurança dos cidadãos frente ao poder. E, radicada na soberania do Estado, torna-se também ponte entre a sua ordem interna e a ordem internacional. [...] A Constituição tem de ser constantemente confrontada com os princípios e é por eles envolvida em grau variável; tem de ser sempre pensada em face da realidade política, económica, social e cultural que lhe está subjacente e que é uma realidade não apenas de factos como ainda de opiniões, de ideologias, de posturas políticas, de cultura cívica e constitucional; e esta cultura carrega-se, por seu turno, de remissões para princípios valorativos superiores (o que significa que se dá uma circulação entre valor, Constituição e realidade constitucional).
Com efeito, no que se refere ao bloco de constitucionalidade nacional, o artigo 5º, §2º, da Constituição Federal é o dispositivo que o fundamenta ao dispor que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988, online), assim identificado como cláusula de abertura do texto constitucional, confirmando o reconhecimento da constitucionalidade de normas externas ao documento solene. Nesse cenário, Sarlet (2012, p. 90) destaca que:
A regra do art. 5º, § 2º, da CF de 1988 segue a tradição do nosso direito constitucional republicano, desde a Constituição de fevereiro de 1891, com alguma variação, mais no que diz com a expressão literal do texto do que com a sua efetiva ratio e seu telos. [...] a citada norma traduz o entendimento de que, para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo. Neste contexto, importa salientar que o rol do art. 5º, apesar de analítico, não tem cunho taxativo (grifo do autor).
Ainda no que alude ao conceito de cláusula de abertura da Constituição, frise-se que, a despeito da importância da previsão de título específico no texto constitucional, os direitos fundamentais não são reduzidos a esse catálogo, o que permite estabelecer um paralelo entre os sentidos formal e material de tais direitos, conforme se denota nas lições de Miranda (1998, p. 152) que, em referência ao direito lusitano, afirma:
[...] O art. 16º, nº 1, da Constituição aponta para um sentido material de direitos fundamentais: estes não são apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciem; são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição material. Não se depara, pois, no texto constitucional um elenco taxativo de direitos fundamentais. [...] Daí poder apelidar-se o art. 16º, n. º 1, de cláusula aberta ou de não tipicidade de direitos fundamentais (grifo do autor).
Logo, em que pese os constituintes originários terem optado em não incluir determinados conteúdos materialmente constitucionais no texto expresso da Constituição, há no ordenamento jurídico uma série de normativas infraconstitucionais que trazem em seu bojo princípios e regras de caráter nitidamente constitucionais, a exemplo do Estatuto do Idoso, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor e de normas de Direito Eleitoral (FERNANDES, 2011, p. 36-37).
Após iniciado o processo de avanços sociais, políticos e jurídicos trazidos pela nova ordem constitucional vigente no país, a inserção de tratados internacionais de direitos humanos tem sido primordial para fortalecer a proteção dos direitos fundamentais e contribuir para a manutenção do Estado democrático de direito, daí sua importância no contexto de bloco de constitucionalidade. Sobre o tema, Piovesan (2018, p. 71-72):
[...] A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional. Essa conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. A esse raciocínio se acrescentam o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, o que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional – abertura que resulta na ampliação do ‘bloco de constitucionalidade’, que passa a incorporar preceitos asseguradores de direitos fundamentais.
A incorporação dos instrumentos normativos internacionais ganhou maior destaque após da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 (EC nº 45/04) que, acolhendo a tese capitaneada por importante segmento da doutrina brasileira, acrescentou o §3º ao artigo 5º da Lei Maior, o qual dispõe que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados nos mesmos moldes do procedimento de emendas constitucionais serão a elas equiparadas, ou seja, passarão a ter status de norma formalmente constitucional, compondo o bloco de constitucionalidade e confirmando a importância da ordem internacional para o direito pátrio (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 755-757).
Os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, além da natureza de emenda constitucional, também podem assumir um status de norma supralegal, sendo assim considerados os tratados internacionais de direitos humanos não recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro através do rito das emendas constitucionais, ocupando posição hierárquica de norma infraconstitucional, porém superior à legislação comum ordinária, prevalecendo sobre esta.
O posicionamento majoritário da doutrina é de que a internalização dos tratados internacionais de direitos humanos ocorrida antes da EC nº 45/04 em quórum de maioria simples, necessário para aprovação de leis ordinárias pelo Congresso Nacional, também confere a eles status de norma supralegal, integrando o conjunto normativo infraconstitucional do ordenamento jurídico brasileiro (MENDES; BRANCO, 2014, p. 157; SARLET, 2012, p. 144).
Sob o ponto de vista ampliado de bloco de constitucionalidade, será considerado materialmente constitucional o conjunto de normas internacionais que fizer referência a direitos fundamentais a serem resguardados pelo Estado brasileiro em prol de seus nacionais, independentemente do status normativo que ocupar dentro do ordenamento brasileiro. Por outro lado, adotando o viés restritivo do bloco de constitucionalidade, os instrumentos normativos internacionais que forem recepcionados pela legislação brasileira através do rito do artigo 5º, §3º, integrarão a ordem jurídica interna, pois, em razão da sua natureza jurídica de emenda à Constituição, somente eles serão considerados solenemente constitucionais (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p. 159-160).
Assim, segue-se a linha protecionista de estudo do bloco de constitucionalidade, preponderando o entendimento de que ele não se limita a examinar o documento formal, pois vai além a fim de buscar princípios constitucionais expressos ou implícitos constantes na legislação infraconstitucional e em documentos internacionais de proteção dos direitos do indivíduo que refletem a essência e o núcleo da Lei Fundamental.
Há que se mencionar também que, não obstante a jurisprudência evidencie a importância jurídica que decorre do bloco de constitucionalidade, os tribunais superiores brasileiros têm optado pelo parâmetro estrito de reconhecimento de normas constitucionais, adotando um posicionamento conservador ao considerar como norma hierarquicamente constitucional tão somente aquelas inseridas expressamente na Lei Maior e aquelas com status de emenda constitucional, indo de encontro ao que defende a maior parte da doutrina. Sobre o tema destacam Souza Neto e Sarmento (2012, p. 44):
Após a edição da EC nº 45/2004, o STF, com composição bastante renovada, revisitou o tema da hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos. [...] A Corte mudou o seu entendimento anterior, passando a atribuir hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, aos tratados internacionais de direitos humanos que não tenham sido incorporados pela forma estabelecida pela EC nº 45. Pelo novo posicionamento, estes tratados internacionais sobre direitos humanos prevalecem sobre a legislação interna, ressalvada apenas a própria Constituição. Todavia, eles não integram o bloco de constitucionalidade, já que se situam em patamar hierárquico inferior ao da Constituição. Com isso, o direito brasileiro aproximou-se, quanto ao tema, de ordenamentos como o alemão (Lei Fundamental de Bonn, art. 25) e o francês (Constituição Francesa, art. 55).
Conclui-se, portanto, que a cláusula de abertura constitucional permitiu uma importante ampliação na definição de bloco de constitucionalidade e na efetivação do sistema protetivo dos direitos fundamentais ao reconhecer como normas materialmente constitucionais regras e princípios constantes tanto expressa quanto implicitamente no texto da Constituição, bem como o conjunto normativo externo à Carta Magna, acompanhando e adaptando-se ao processo evolutivo da sociedade, na busca pela máxima promoção, em todos os graus, da dignidade da pessoa humana.
1.5 - O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O reconhecimento jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana como valor constitucional supremo evidencia a importância que o constitucionalismo contemporâneo confere ao conteúdo axiológico da norma. Esse princípio representa o núcleo central do ordenamento jurídico, orientando a atuação do Estado e as relações em sociedade, além de fundamentar a interpretação e aplicação de normas nacionais e internacionais, com destaque para o sistema de tutela dos direitos fundamentais.
Diante da relevância desse princípio para a ordem constitucional, é vasta a abordagem do tema, razão pela qual faz-se necessário analisar os antecedentes históricos que contribuíram para a construção da categoria de dignidade da pessoa humana, o seu substrato material e, por fim, a relação com o binômio norma-regra e norma-princípio dentro do ordenamento jurídico e sua influência na atuação política do Estado.
.1.5.1 - Raízes Históricas: Cristianismo, Idade Média e Pensamento Kantiano
O precedente histórico que marca o surgimento dos direitos fundamentais é comumente associado ao término da Segunda Guerra Mundial, período a partir do qual houve uma maior preocupação com o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana, tendo em vista as atrocidades ocorridas durante os regimes nazistas e fascistas que se instalaram na Europa.
Outrossim, apesar da inegável contribuição desse momento para alavancar o sistema protetivo de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, Sarlet (2012, p. 38) destaca que “os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontram suas raízes na filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristão”.
Certo é que os campos da religião, da filosofia e da ciência foram primordiais para a compreensão do ideal de dignidade da pessoa humana e as primeiras referências de uma nova visão do ser humano como o centro de sua própria existência e protagonista de todo o sistema protetivo de direitos surge ainda no mundo antigo, período considerado o berço do desenvolvimento de ideias essenciais para o reconhecimento dos direitos humanos e, por conseguinte, dos direitos fundamentais.
Durante esse período, o surgimento de ideias críticas acerca da mitologia grega a partir do exercício da razão marca o nascimento da filosofia, estimulando a formulação de questionamentos acerca da superioridade da tradição mitológica sobre o indivíduo a fim de compreender a condição humana e o seu papel na sociedade. Nesse sentido, Comparato (2019, p. 25), definindo esse momento como período axial, leciona que:
Em suma, é a partir do período axial que, pela primeira vez na História, o ser humano passa a ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação da existência de direitos universais, porque a ela inerentes.
Ademais, ganha destaque o pioneirismo da democracia ateniense que já naquele tempo elaborou leis escritas cujo objetivo era ratificar a igualdade entre os indivíduos sociais e fundamentar a sociedade política através daquela cidade, como bem ressalta Sarlet (2012, p. 38) ao afirmar que “a democracia ateniense constituía um modelo político fundado na figura do homem livre e dotado de individualidade”. Nesse mesmo sentido, segue lição de Comparato (2019, p. 26):
A lei escrita alcançou entre os judeus uma posição sagrada, como manifestação da própria divindade. Mas foi na Grécia, mais particularmente em Atenas, que a preeminência da lei escrita tornou-se, pela primeira vez, o fundamento da sociedade política. Na democracia ateniense, a autoridade ou força moral das leis escritas suplantou, desde logo, a soberania de um indivíduo ou de um grupo ou classe social, soberania esta tida doravante como ofensiva ao sentimento de liberdade do cidadão. Para os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto contra o arbítrio governamental.
Somado à produção de leis escritas, os gregos também foram responsáveis pelo surgimento de normas não escritas relativas a leis com enfoque religioso, bem como a costumes sociais relevantes para a ordem jurídica, ambos dotados de caráter universal a ser aplicado a todos os povos, inviabilizando qualquer limitação territorial quanto à sua abrangência.
Durante a antiguidade havia uma hierarquização da dignidade baseada em um critério de quantificação, ou seja, adotava-se um grau de reconhecimento da posição social ocupada por um indivíduo dentro de sua comunidade, admitindo a divisão entre pessoas mais ou menos dignas (SARLET, 2011, p. 31).
Nesse ambiente em que o homem passa a ser o principal objeto de análise e reflexão, a tendência ao uso da racionalidade exerce grande impacto no âmbito religioso na medida em que o culto a deuses, os rituais fantásticos e as adorações a divindades mitológicas são substituídos por uma visão monoteísta de devoção a um único Deus universal, pregada pelo cristianismo (ocidente) e pelo islamismo (oriente).
A concepção que prepondera no constitucionalismo contemporâneo quanto à dignidade da pessoa humana adequa-se à visão ocidental oriunda da doutrina cristã, na medida em que se vincula a um ideal de universalidade de direitos fundamentais, fortalecendo a noção de humanidade e igualdade entre os povos. Já a cultura islâmica também reconhece os direitos do homem, mas por outro lado:
[...] Não aceita, entre outros, o princípio da igualdade entre fiéis e infiéis, bem como entre homens e mulheres, óbice intransponível à sua compatibilização com a doutrina dos direitos fundamentais. Recusa, também, a liberdade de crença, não aceitando que o muçulmano abandone a religião islâmica. Na verdade, deve ele ser morto, se o fizer. Não aceita, para o homem, a liberdade de contrair casamento com pessoas de determinadas religiões, tolerando o matrimônio com mulheres cuja religião tenha livros reconhecidos (é o caso do cristianismo); para a mulher, proíbe rigorosamente o casamento com não muçulmano. Reserva os direitos políticos aos muçulmanos. Não tolera, sequer, o princípio da igualdade de acesso a cargos públicos: a função de juiz há de ser de muçulmano. Seu direito penal consagra penas que, na opinião dos ‘ocidentais’, seriam intoleráveis, cruéis, desmedidas: o apedrejamento da adúltera, a amputação de membros dos culpados de certos crimes — da mão do ladrão —, as marcas infamantes etc. E ninguém se esqueça de que o Islã̃ abençoa a poligamia, e, na prática, tolera a escravidão (grifo do autor) (FERREIRA FILHO, 2016, p. 220).
Em Atenas também surgiu o estoicismo cuja influência sob a dignidade da pessoa humana paira nos ideais de bem-estar moral do indivíduo e de igualdade entre os homens no contexto das relações interpessoais, tendo em vista serem todos produtos da natureza, como bem destaca Comparato (2019, p. 30):
Muito embora não se trate de um pensamento sistemático, o estoicismo organizou-se em torno de algumas ideias centrais, como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor, em consequência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais.
Ademais, contextualizando a dignidade da pessoa humana durante a antiguidade e o estoicismo, com destaque para as peculiaridades de cada momento, Sarlet (2011, p.
31) assevera que:
No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à ideia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.
Assim, apesar da contribuição dos estoicos, inclusive para os primórdios do cristianismo, é na doutrina cristã que está a base do reconhecimento do indivíduo como ser dotado de dignidade, pois, partindo da premissa – encontrada de início no antigo testamento e desenvolvida e amplificada no novo testamento – de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus como resultado de um ato divino, todos os indivíduos assumem uma posição de igualdade na sociedade, devendo ter sua vida e liberdade preservadas. Em breve síntese de tais fatos históricos, Sarlet (2012, p. 39), destaca que:
Do Antigo Testamento, herdamos a ideia de que o ser humano representa o ponto culminante da criação divina, tendo sido feito à imagem e semelhança de Deus. Da doutrina estoica greco-romana e do cristianismo, advieram, por sua vez, as teses da unidade da humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade (para os cristãos, perante Deus).
Já na Idade Média o indivíduo passa a ser visto como ‘substantia’ ou ‘hypóstasis’, quer dizer, substância individual dotado de racionalidade, conceito este que refletiu nos ideais de dignidade da pessoa humana. Nesse período ganhou destaque a doutrina de São Tomás de Aquino ao defender a dignitas humana, ou seja, que o homem é composto tanto pelo elemento corporal quanto espiritual, reafirmando a concepção de que a dignidade tem fundamento na doutrina cristã de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também reconhecendo ser inerente ao homem, como ser livre e detentor das próprias vontades, sua aptidão para se autodeterminar, conforme se depreende a seguir:
Na Idade Média houve quem propagasse a ideia da existência de postulados de cunho suprapositivo, que, por orientarem e limitarem o poder, atuariam como critérios de legitimação do seu exercício. De particular relevância, foi o pensamento de Santo Tomás de Aquino, que, além da já referida concepção cristã da igualdade dos homens perante Deus, professava a existência de duas ordens distintas, formadas, respectivamente, pelo direito natural, como expressão da natureza racional do homem, e pelo direito positivo, sustentando que a desobediência ao direito natural por parte dos governantes poderia, em casos extremos, justificar até mesmo o exercício do direito de resistência da população (SARLET; MARINONI; MITIDIERO; 2019, p. 313).
O humanismo renascentista também teve grande contribuição para o estudo da dignidade, com destaque Giovanni Pico della Mirandola, que, rompendo com os dogmas do cristianismo e aproximando-se dos ideais antropocêntricos, em sua obra “Discurso sobre a Dignidade do Homem”, de 1486, sustentava a importância do exercício da razão, através do qual o homem é ser dotado de liberdade para formar a sua personalidade, decidindo de forma autônoma os rumos da sua vida, confirmando, assim, a sua própria existência (LIBERATO; CRUZ; MINEIRO, 2010).
Mirandola acreditava ser a racionalidade humana o elemento diferenciador que colocava o homem em uma posição de superioridade em relação aos demais animais, pois sendo detentor de uma natureza indefinida, era limitado unicamente pelo seu próprio livre-arbítrio, cabendo a ele dispor soberanamente sobre seus atos, além de qualificar a dignidade como valor natural, incondicionado e indisponível, ínsito ao ser humano, ocupando um patamar central na sua formação pessoal, conforme se denota a fio:
[...] Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: «Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo» (MIRANDOLA, 2011, p. 57).
A dignidade no pensamento de Mirandola é dimensionada pelo livre-arbítrio, na medida em que o homem, enquanto ente passível de ser aperfeiçoado, possui, através da sua capacidade racional, plena consciência da liberdade de escolha a ele concedida e, consequentemente, da possibilidade de recriar-se da forma que lhe parecer mais conveniente, decorrendo dessa conduta a sua dignificação. A esse respeito, Sarlet (2011, p. 32) leciona que:
Mesmo no auge do medievo – de acordo com a lição de Klaus Stern – a concepção de inspiração cristã e estóica seguiu sendo sustentada, destacando- se Tomás de Aquino, o qual, fortemente influenciado também por Boécio, chegou a referir expressamente a expressão ‘dignitas humana’, secundado, já em plena Renascença e no limiar da Idade Moderna, pelo humanista italiano Pico della Mirandola, que, partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino.
Posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana começa a ser analisada sob a influência dos ideais jusnaturalistas, privilegiando novamente a racionalidade humana, mantendo os ideais igualitários e libertários de todos os indivíduos, mas por outro lado estimulando a valorização da laicização, ou seja, de uma visão de dignidade que não tivesse como base a necessária relação do homem com Deus ou com qualquer outra questão metafísica.
Nesse período ganhou destaque o pensamento de Immanuel Kant que, influenciado pelos ideais iluministas de conhecimento racional, formulou uma visão do homem sob uma perspectiva universal, também abandonando a forte influência cristã e evidenciando que o comportamento humano é pautado na autodeterminação e na espontaneidade dos seus atos através de postulados éticos e, diante da grande relevância dos seus postulados acerca do substrato da dignidade da pessoa humana, o estudo sobre o tema será aprofundado no tópico que segue.
1.5.2 - Substrato da Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade é uma qualidade intrínseca a todo ser humano, consubstancia o espaço de integridade ética, moral e material do indivíduo, refletindo no conjunto de valores civilizatórios e espirituais conformadores da sua personalidade e do seu papel dentro das relações em sociedade que, ao longo do tempo, vem recebendo influências de movimentos sociais, políticos e filosóficos que contribuíram para a construção da sua atual concepção e aplicabilidade dentro do ordenamento jurídico e da sua essencialidade como vetor fundamental para a existência humana.
Durante o processo de conformação da dignidade da pessoa humana o pensamento kantiano foi imprescindível, com destaque para a sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de 1785, na qual defende a sua concepção moderna de que o substrato da dignidade paira sobre a autonomia da vontade do homem, este visto como ser dotado de uma racionalidade que lhe é inerente e nesse sentido Sarlet (2011, p. 35) afirma que “a dignidade pode ser considerada como o próprio limite do exercício do direito de autonomia, ao passo que este não pode ser exercido sem o mínimo de competência ética”, e nessa mesma seara, bem destaca Camargo (2007, p. 115):
Kant desenvolve a idéia de que todos os seres humanos, quaisquer que sejam são igualmente dignos de respeito, sendo que o traço distintivo do homem, como ser racional, está no fato de existir como um fim em si mesmo. Por esta razão ele não pode ser usado como simples meio, o que limita, nessa medida, o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Para o filósofo de Königsberg o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional está na autonomia da vontade (grifo do autor).
Destaca Comparato (2019, p. 34) acerca da elaboração teórica deste filósofo que “o primeiro postulado ético de Kant é o de que só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática” e a manifestação desse comando de atuação ética se divide nos imperativos hipotético e categórico, conforme segue:
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. [...] No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a acção é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico (grifo do autor) (KANT, 2007, p. 50).
O imperativo hipotético vincula-se à ideia de que as ações humanas são realizadas para se atingir um determinado fim, na medida em que os interesses e intenções reais do indivíduo devem justificar os seus atos na busca para obter aquilo que pretende; já o imperativo categórico parte da ideia de um dever puro que é o de respeito à lei universal, ou seja, o homem deve praticar condutas que as demais pessoas sejam igualmente capazes de realizar a fim de que toda a coletividade possa agir de forma ética, conforme segue:
O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal [...] Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza (grifo do autor) (KANT, 2007, p. 59).
A filosofia de Kant, portanto, sustenta a existência de um dever moral de caráter universal para guiar as ações humanas a fim de que os comportamentos individuais estejam em conformidade com o que deve valer para toda a coletividade partindo da construção de imperativos que guiarão o ser humano até alcançar a sua própria felicidade. Ademais, reconhecendo que a racionalidade é o elemento diferenciador do homem se comparado aos demais seres e que ele, dotado da capacidade de autodeterminar-se, reforça a sua autonomia da vontade, Kant (2007, p. 68-69) assevera que:
Ora digo eu: — O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. [...] Seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto do respeito). [...] Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que respeita à vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si mesmo, faça um princípio objectivo da vontade, que possa por conseguinte servir de lei prática universal. O fundamento deste princípio é: a natureza racional existe com fim em si (grifo do autor).
A perspectiva de Kant está alicerçada, portanto, na visão de que ao homem não se pode atribuir um preço sob pena de coisificá-lo, utilizando-o como mecanismo para se atingir certa finalidade ou satisfazer determinado interesse inapropriadamente, afinal deve ele ser reconhecido como um fim em si mesmo, cuja racionalidade e autonomia fundamentam a sua dignidade, consoante se observa abaixo:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade. [...] Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional (grifo do autor) (KANT, 2007, p. 77-79).
Nesse âmbito, conforme lições de Comparato (2019, p. 37-39), o filósofo prussiano defende que a vontade do indivíduo somente será reconhecidamente autônoma se, concomitantemente, a norma que ditou uma ação individual tornar-se universal e essa mesma norma universal passar a vincular as normas que a criou, estabelecendo máximas que estejam de acordo com as leis morais, conforme segue:
A nossa própria vontade, na medida em que agisse só sob a condição de uma legislação universal possível pelas suas máximas, esta vontade que nos é possível na ideia, é o objecto próprio do respeito, e a dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação (KANT, 2007, p. 86).
Desse modo, a dignidade em Kant é formulada por meio da união de dois elementos, quais sejam a finalidade (homem como fim em si mesmo) e a autonomia da vontade, sendo esta por ele considerada o princípio supremo da moralidade, o que permite constatar que a finalidade se encontra alicerçada no exercício da razão, enquanto a autonomia confere liberdade às suas ações. Nessa senda, destaque-se:
Ao estabelecer que todos os seres racionais possuem um fim em si mesmo, o filósofo iguala os seres humanos, razão pela qual é possível estabelecer um paralelo do raciocínio de Immanuel Kant com a igualdade preconizada pelo cristianismo enquanto fundamento da dignidade humana, se bem que em bases teóricas completamente diversas daquelas teológicas. Em outra vertente, Immanuel Kant trabalha com o conceito de autonomia da vontade, ao que se pode novamente aproximá-lo da liberdade dos gregos, com a ressalva de que para o filósofo a vontade do ser humano só é plenamente livre na medida em que deve respeito à lei universal que ela própria criou (grifo do autor) (RIBEIRO, 2012, online).
Diante de todo o exposto, Barroso (2009, p. 250) bem sintetiza os preceitos defendidos por Kant no cenário do seu estudo acerca do vetor supremo da dignidade, ao lecionar que:
A dignidade da pessoa humana e a ideia que informa, na filosofia, o imperativo categórico kantiano, dando origem a proposições éticas superadoras do utilitarismo: a) uma pessoa deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse transformar-se em uma lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio para realização de metas coletivas ou de outras metas individuais. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. Do ponto de vista moral, ser é muito mais do que ter (grifo do autor).
Por fim, o substrato da dignidade da pessoa humana, segundo o pensamento kantiano, reside na autonomia da vontade do indivíduo, que através do exercício da razão é ser capaz de autodeterminar-se e de conduzir sua vida de forma livre e independente, devendo se adequar tão somente às limitações impostas pelas leis universais por ele editadas e aplicadas a todos os indivíduos de forma igualitária dentro da sociedade. Assim, conclui-se que, para Kant, a causa da dignidade humana nada mais é do que a simples presença da razão, sendo o homem um fim em si mesmo, dotado de potencial autonomia e resguardado pelo princípio da dignidade a ele inerente.
1.5.3 - A Dignidade da Pessoa Humana como norma-regra e como norma- princípio: limite e meta da atuação estatal
A consolidação da dignidade da pessoa humana como valor fundamental da ordem jurídica é reconhecidamente fruto da vasta produção doutrinária de pensadores que, durante séculos, dedicaram-se a aprofundar o seu estudo, confirmando o lugar central que ela ocupa no pensamento filosófico, jurídico e político até os dias atuais.
No constitucionalismo contemporâneo, cuja conformação teve início com o segundo pós-guerra, não é possível pensar na consolidação de um Estado democrático dissociado da proteção à dignidade da pessoa humana, notadamente por consagrar, através do conjunto de princípios e diretrizes normativas nacionais e internacionais, ser o homem titular dos direitos e garantias fundamentais por ele conquistados ao longo do tempo, como averba Novelino (2014, online):
[...] Se por um lado essas experiências históricas produziram uma mancha vergonhosa e indelével na caminhada evolutiva da humanidade, por outro, foram responsáveis pela reação que culminou por alçar a dignidade da pessoa humana à categoria de núcleo central do constitucionalismo contemporâneo, dos direitos fundamentais e do Estado constitucional democrático. Consagrada expressamente em importantes declarações internacionais de direitos humanos e em praticamente todos os textos constitucionais surgidos no segundo pós- guerra, a noção de dignidade une juristas, cientistas e pensadores a ponto de se afirmar que ela estabelece uma espécie de ‘consenso teórico universal’ (grifo do autor).
Destaque-se que a dignidade é atributo inerente e intrínseco ao ser humano, cuja existência independe de qualquer reconhecimento formal pelo ordenamento jurídico. Entretanto, com a finalidade de confirmar o seu papel no processo de ascensão da sociedade a patamares de civilidade e de proteção do indivíduo, buscou-se consolidar no plano normativo constitucional não apenas o seu valor essencialmente moral, mas também jurídico (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 17).
Portanto, tendo em vista que a dignidade corresponde não apenas a uma característica peculiar do indivíduo, mas também a um axioma constitucionalmente legitimado, é dever do Estado manter-se em constante processo de construção e desenvolvimento visando promover a sua máxima efetividade, compatibilizando a ordem jurídica com os avanços decorrentes dos plúrimos movimentos democráticos na sociedade e, nesse viés, destaca Sarlet (2011, p. 43):
[...] Neste contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que a dignidade da pessoa humana (por tratar-se, à evidência – e nisto não diverge de outros valores e princípios jurídicos – de categoria axiológica aberta) não poderá ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas, razão pela qual correto se afirmar que (também aqui) nos deparamos com um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. Assim, há que reconhecer que também o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico- normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais.
Notadamente, Sarlet (2011, p. 43-45) ainda assevera que, enquanto em alguns países há certo debate acerca da posição mais adequada que esse vetor fundamental deve ocupar no ordenamento jurídico, no contexto nacional ele está expressamente positivado como princípio constitucional e como fundamento da República Federativa do Brasil, confirmando tanto o seu forte teor axiológico quanto a sua normatividade formal e material, atribuindo à dignidade a qualidade de cláusula pétrea, dotada de valor essencial e de eficácia vinculante.
Outrossim, quanto à hierarquização dos valores constitucionais, o postulado da dignidade assume a posição mais alta dentro da cadeia normativa, servindo como marco referencial para a elaboração e a aplicação do conteúdo jurídico material, buscando harmonizar o ordenamento e efetivar a proteção dos direitos e garantias fundamentais, adotando-se, desse modo, uma ordem sistêmica e unitária (CAMARGO, 2007, p. 116).
Quanto aos dispositivos normativos que dispõem acerca da dignidade da pessoa humana, Robert Alexy reconhece que a eles também se aplica a concepção de norma enquanto gênero, cujas espécies dividem-se em norma-regra e norma-princípio, haja vista a natureza mista desse vetor constitucional. Levando-se em consideração essa dupla caracterização normativa da dignidade, enquanto no campo das regras adota-se uma postura absoluta de dever de respeito e de proibição de condutas que a violem em razão da sua imperatividade, o seu reconhecimento na seara principiológica suscita a aplicação da técnica da ponderação e, em caso de eventual conflito axiológico, admite-se o sopesamento da dignidade em relação aos demais princípios, pois a depender da situação apresentada estes podem preferir àquela, conforme lição de Alexy (2008, p. 113):
Que o princípio da dignidade humana é sopesado diante de outros princípios, com a finalidade de determinar o conteúdo da regra da dignidade humana, é algo que pode ser percebido com especial clareza na decisão sobre prisão perpétua, na qual se afirma que ‘a dignidade humana [...] tampouco é violada se a execução da pena for necessária em razão da permanente periculosidade do preso e se, por essa razão, for vedada a graça’. Com essa formulação fica estabelecido que a proteção da ‘comunidade estatal’, sob as condições mencionadas, tem precedência em face do princípio da dignidade humana.
O que se denota, portanto, é que partindo da interpretação da dignidade sob o ponto de vista de uma norma-regra, ela assume um viés inflexível, enquanto uma análise a partir do seu reconhecimento como norma-princípio assume um caráter circunstancial, um mandamento de otimização que pode ser relativizado a depender da situação enfrentada, sendo essa a sequência do pensamento de Alexy (2008, p. 113-114):
Por isso, é necessário que se pressuponha a existência de duas normas da dignidade humana: uma regra da dignidade humana e um princípio da dignidade humana. A relação de preferência do princípio da dignidade humana em face de outros princípios determina o conteúdo da regra da dignidade humana. Não é o princípio que é absoluto, mas a regra, a qual, em razão de sua abertura semântica, não necessita de limitação em face de alguma possível relação de preferência. O princípio da dignidade humana pode ser realizado em diferentes medidas. O fato de que, dadas certas condições, ele prevalecerá com maior grau de certeza sobre outros princípios não fundamenta uma natureza absoluta desse princípio, significando apenas que, sob determinadas condições, há razões jurídico-constitucionais praticamente inafastáveis para uma relação de precedência em favor da dignidade humana. Mas essa tese sobre a existência de uma posição nuclear também vale para outras normas de direitos fundamentais. Ela não afeta sua natureza de princípio. Por isso, é possível dizer que a norma da dignidade humana não é um princípio absoluto. A impressão de um caráter absoluto advém, em primeiro lugar, da existência de duas normas da dignidade humana: uma regra e um princípio; além disso, essa impressão é reforçada pelo fato de que há uma série de condições sob as quais o princípio da dignidade humana prevalecerá - com grande grau de certeza - em face de todos os outros princípios.
Nesse mesmo contexto, a fim de ressaltar a diferenciação no reconhecimento da dignidade como regra e princípio, leciona Sarlet (2011, p. 95) da seguinte maneira:
Ainda no que diz com a dupla estrutura (princípio e regra) da dignidade, verifica-se que, para Alexy, o conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas a partir do processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão, se poderá aplicar, com as necessárias ressalvas, a lógica do ‘tudo ou nada’), mas jamais o princípio.
O complexo normativo no qual estão inseridos os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana visam tutelar a autonomia da vontade dos indivíduos, garantindo-lhes o mínimo existencial, a proteção da sua personalidade e a prevenção da violação de direitos e garantias, cabendo ressaltar que, dentro desse sistema, a atuação estatal e a coordenação de suas políticas públicas também são imprescindíveis para a sua máxima efetividade (BARROSO, 2009, p. 253).
Assim, a dignidade da pessoa humana enquanto vetor máximo de toda estruturação da ordem jurídica produz relevante impacto no âmbito dos direitos fundamentais buscando reforçar a simetria normativa que fortalece o dever de respeito dos seus pressupostos, tanto pelo Estado quanto pelos indivíduos e, quanto a estes, tais direitos fundamentais auxiliam sobremaneira no exercício da sua autodeterminação.
Conforme Bulos (2014, p. 512) a dignidade da pessoa humana reflete um sobreprincípio, por ser elemento de observância obrigatória na elaboração das demais normas jurídicas, sejam elas regras ou princípios, afinal, sua força centrípeta rege todo o sistema de direitos e garantias fundamentais e como forma de promover a sua ampla proteção, englobando direitos atinentes às dimensões de liberdade, igualdade e solidariedade, inatos à personalidade do homem e à sua própria existência, a dignidade da pessoa humana é pilar de justiça e de combate a violações, opressões e restrições de valores civilizatórios e um primado para o fortalecimento da vedação do retrocesso social.
Assim, o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe mandamentos de proteção e de promoção do indivíduo, exigindo a criação de mecanismos estatais e legais que garantam a sua efetiva aplicação social, proporcionando o acesso a recursos indispensáveis à uma qualidade de vida digna e consagrando a efetividade das normas referentes aos direitos fundamentais.
Vale comentar, ademais, que a noção de dignidade se consubstancia a partir do contexto jurídico dos diferentes povos, pois, ao mesmo tempo em que ela possui um caráter universal, também recebe influências culturais, econômicas e sociais peculiares de determinado local e período, fatores estes que auxiliam na composição dos instrumentos mais adequados para a sua aplicabilidade dentro de cada sociedade, oferecendo aos seus indivíduos a garantia dos seus direitos basilares, conforme segue:
No que se refere à concepção da dignidade como norma-regra, está relacionada com a proteção jurídica que ela confere ao indivíduo e à base de seus direitos fundamentais, afastando a possibilidade de sua instrumentalização, ou seja, com a atuação legal que impõe o dever de proteção e resguardo dos direitos fundamentais inerentes ao homem em face das violações provocadas por condutas do Estado e de particulares, guiando a conduta de todos aqueles que de algum modo interferem na organização e na estruturação de uma determinada sociedade, conforme se depreende a seguir:
O dever de respeito (observância) se consubstancia, em uma regra, de caráter eminentemente negativo, que impõe a abstenção da prática de condutas violadoras da dignidade, impedindo o tratamento da pessoa humana como um simples meio para se atingir determinados fins. Esta concepção deve ser matizada pelo entendimento de que a violação da dignidade só ocorre quando este tratamento como objeto constitui uma ‘expressão do desprezo’ pela pessoa humana (CAMARGO, 2007, p. 121).
Isto posto, conclui-se que a dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial dos direitos fundamentais, atuando como vetor interpretativo de todo o ordenamento jurídico, com o fim de promover a pacificação e a harmonização da sociedade a partir do reconhecimento do indivíduo como a figura a quem se destinam todos os mecanismos de proteção existentes na ordem constitucional e legal que visem à tutela efetiva de seus interesses e à garantia máxima de sua autonomia.
2 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO GARANTIA INSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Este capítulo terá como enfoque a Defensoria Pública dentro do ordenamento jurídico brasileiro, com destaque para as garantias e prerrogativas inseridas na Constituição Federal de 1988 que visam a máxima efetivação dos direitos fundamentais do indivíduo. Inicialmente, será analisado o papel que esse órgão exerce dentro da conformação do Estado democrático de direito, perpassando por origens históricas, conceitos, natureza jurídica, características, princípios institucionais, bem como as garantias e limitações de seus membros.
Também serão abordadas as atribuições da instituição a fim de promover a assistência jurídica integral e gratuita àqueles que, em razão de sua condição de hipossuficiência, necessitam da atuação defensorial para a garantia de seus direitos. Por fim, serão estudadas as Emendas Constitucionais nº 45/04, 69/12 e 73/14 que conferiram autonomia, respectivamente, às Defensoria Públicas estaduais, do Distrito Federal e da União, que contribuíram para o reconhecimento da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, confirmando o seu patamar de órgão permanente dentro da ordem jurídica nacional.
2.1 – A Defensoria Pública e seu Papel Institucional
A Constituição Federal de 1988 consolidou o início do período de redemocratização do Brasil após longos anos de regime autoritário marcados por graves violações de direitos e cerceamento de liberdades. O rompimento do autoritarismo estatal fez surgir uma nova ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa humana, trazendo mecanismos que efetivação da justiça social e da máxima proteção dos direitos e garantias do indivíduo, contexto no qual se insere a Defensoria Pública.
A criação do órgão defensorial nesse cenário de reestruturação político-social e de consolidação do Estado democrático de direito tem por escopo basilar a garantia do amplo acesso à justiça àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade dentro da sociedade, garantindo-lhes a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, de seus direitos e nesse contexto, leciona Rocha (2013, p. 47-48):
A razão de existir da Defensoria Pública é o ser humano em condição de vulnerabilidade, cabendo-lhe, enquanto serviço público, adotar as providências jurídicas e políticas, extrajudiciais ou judiciais a conferir-lhe a dignidade necessária ao bem viver. Não interessa apenas ao seu Usuário, mas a toda a sociedade, diante da indivisibilidade dos direitos humanos e da interligação que caracteriza a sociedade contemporânea.
Há que se destacar que a menção expressa acerca da Defensoria Pública trazida pelos constituintes originários demonstra a preocupação em proporcionar o máximo acolhimento, por parte do Estado, daqueles que necessitam sobremaneira do seu suporte, estruturando a instituição a fim de realizar um atendimento essencialmente humanitário, confirmando a essencialidade da sua existência no contexto brasileiro.
Outrossim, o patamar em que a Defensoria Pública se encontra atualmente é resultado de uma longa trajetória marcada por grandes e persistentes lutas voltadas para ampliar o reconhecimento da instituição e fortalecer o seu papel dentro do ordenamento jurídico pátrio, notadamente através da equiparação de garantias em relação aos demais órgãos jurisdicionais, da legitimação dos princípios institucionais e da autonomia de sua atuação, conforme será abordado a seguir.
2.1.1 – Considerações Gerais acerca da Instituição
Para compreender a atual formação e as atribuições destinadas à Defensoria Pública na ordem jurídica contemporânea faz-se necessário realizar uma retrospectiva histórica, apresentando o percurso trilhado pela instituição até a promulgação da Carta Magna de 1988 e sua consequente evolução no âmbito da proteção de direitos fundamentais promovida até os dias atuais.
Por definição constitucional, a Defensoria Pública é função essencial à justiça, expressão e instrumento do Estado democrático que preza pela promoção de direitos humanos e pela ampla e completa defesa dos direitos individuais e coletivos, seja em âmbito judicial ou extrajudicial. A instituição presta assistência jurídica integral e gratuita àqueles indivíduos que não possuem recursos financeiros para arcar com as custas processuais, oferecendo suporte para a efetiva tutela de seus direitos em paridade de armas com as demais pessoas físicas ou jurídicas buscando promover, em última análise, a isonomia formal e material.
O precedente histórico de maior relevância no âmbito da garantia de acesso à justiça aos necessitados remete à Constituição Federal de 1934, que trazia um capítulo destinado aos direitos e garantias individuais e dispunha sobre a criação, por parte da União e dos Estados, de órgãos especiais para assegurar a concessão de assistência judiciária aos necessitados, os quais estariam isentos do pagamento de emolumentos, custas, taxas e selos durante o curso do processo, órgãos estes que hoje correspondem às Defensorias Públicas (LIMA, 2015, p. 19).
Destaque-se que, durante a sua vigência desta Constituição, Rocha (2016, p. 271) ensina que alguns Estados instituíram sua própria assistência jurídica, a qual era vinculada a órgãos estatais, a exemplo do Ceará que por meio do decreto estadual nº 1.560/35 veio prever a “nomeação de titulados em direito para o exercício da assistência judiciária, e, excepcionalmente, ainda admitia aos adjuntos de promotor a manutenção da atribuições para o patrocínio dos necessitados na seara cível”, e de São Paulo, através do decreto nº 7.078/35[4] e, posteriormente, da lei nº 2.497/35[5]4, que dispunha sobre a organização do Departamento de Assistência Social do Estado.
Com a Constituição Federal de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, iniciou-se um período de enfraquecimento da assistência judiciária, haja vista que a nova ordem constitucional não trouxe em seu bojo a concessão desta garantia, porém ainda permitia que a União e os Estados editassem leis e criassem órgãos voltados para a sua proteção e execução.
Todavia, nesta mesma década, foi elaborado o Código de Processo Civil de 1939 que, indo de encontro ao movimento político e constitucional instaurado, inovou o ordenamento jurídico ao trazer o instituto da justiça gratuita, atribuindo-lhe caráter personalíssimo, voltado àqueles que não tinham condições de pagar as custas processuais:
Art. 68. A parte que não estiver em condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, gozará do benefício de gratuidade, que compreenderá as seguintes isenções:
I – das taxas judiciárias e dos selos;
II – dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;
III – das despesas com as publicações no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais;
IV – das indenizações devidas a testemunhas; V – dos honorários de advogado e perito.
Parágrafo único. O advogado será escolhido pela parte; si esta não o fizer, será indicado pela assistência judiciária e, na falta desta, nomeado pelo juiz (BRASIL, 1939, online).
Posteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1946, advinda após um período marcado pela instabilidade política, retomou-se a preocupação com o catálogo de direitos fundamentais, dispondo de forma expressa a concessão de assistência judiciária aos necessitados por parte do poder público, atribuindo ao legislador ordinário a elaboração de lei para a sua regulamentação, apesar de não prever a criação de órgãos especiais como na Carta Magna de 1934.
Lima (2015, p. 21-22) destaca que, seguindo as recomendações da então vigente Carta Constitucional de 1946, foi editada a lei nº 1.060/50, estabelecendo normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados e efetivando a implantação desse sistema na ordem jurídica nacional. Referida lei é considerada uma relevante base jurídica para a concretização do amplo acesso à justiça no contexto democrático do Estado brasileiro, mesmo após as atualizações em seu texto decorrentes da criação da Defensoria Pública e da revogação de alguns de seus dispositivos pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15).
Tendo em vista que esse instrumento normativo determina ser de incumbência precípua da União e dos Estados a prestação da assistência judiciária, ainda que por ventura haja a colaboração de outros entes federados ou de instituições privadas, Lima (2015, p. 22), assevera que:
A primeira conclusão a que se chega é a de que a assistência judiciária é função do Poder Público, por ele devendo ser prestada. E mais. No caso, deixou-se evidente que nas órbitas federal e estadual, apenas. A atuação supletiva outorgada aos municípios e à Ordem dos Advogados do Brasil somente foi inserida neste dispositivo por força da Lei 7.510/86. O conceito de assistência judiciária não foi modificado com esta alteração legal, haja vista que os municípios e a OAB são colaboradores eventuais da assistência; por isso, quando auxiliam judiciariamente os necessitados, não encarnam as prerrogativas inerentes à assistência prestada pelo Estado (grifo do autor).
É importante observar, ainda, que a lei nº 1.060/50 revogou as disposições sobre justiça gratuita do Código de Processo Civil de 1939, porém manteve o caráter personalíssimo da garantia da gratuidade e previu a integralidade da assistência judiciária ao informar que ela compreende todos os atos processuais em qualquer instância até a decisão final.
No que se refere à Constituição Federal de 1967, outorgada sob o pálio de um manietado congresso constituinte por militares durante o período ditatorial do Brasil, esta não trouxe alterações nesse contexto, novamente prevendo expressamente em seu texto a concessão de assistência judiciária aos que dela necessitassem, mantendo condicionada a plena eficácia dessa norma constitucional à existência de lei.
Sob a vigência da Carta Magna de 1967 houve a elaboração do Código de Processo Civil de 1973 que, assim como o seu predecessor, disciplinava tão somente acerca da gratuidade da justiça e não sobre o serviço de assistência judiciária – cujos conceitos se diferenciam, conforme será abordado adiante. Ademais, a previsão na novel legislação foi sintética, tendo em vista a vigência da lei nº 1.060/50 que tratava especificamente sobre o tema, consoante se denota a seguir:
Art. 19. Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença (BRASIL, 1950, online).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram promovidas relevantes modificações no âmbito da assistência judiciária a fim de estender a sua aplicação e proteger de forma mais abrangente os direitos dos necessitados. Uma das grandes mudanças propostas pela nova ordem constitucional foi a alteração do termo “assistência judiciária” por “assistência jurídica”, legitimando uma atividade estatal voltada não apenas à seara judicial, mas também extrajudicial, a exemplo da atuação em processos administrativos, aplicação de meios alternativos de solução de conflitos e consultorias jurídicas (LIMA, 2015, p. 23-24).
Nessa toada, oportuno destacar que a inserção inaugural da Defensoria Pública no texto constitucional vigente teve como grande referência a Defensoria Pública do Rio de Janeiro que, já antes da promulgação da CF/88, trazia previsões inovadoras acerca das funções institucionais que garantissem uma ampliação do acesso à justiça, como bem assevera Rocha (2016, p. 275):
Deve ser ressaltado que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, mesmo antes da Constituição Federal de 1988, já prescrevia dentre suas funções “a defesa dos direitos dos consumidores”, de nítida índole coletiva, dentre os chamados “novos direitos”, bem como “tentar a conciliação das partes antes de promover a ação”, como a demonstrar a capacidade de a instituição promover o acesso à justiça na linha das três ondas descritas por Cappelletti e Bryant, e de conseguir se adaptar às novas necessidades da sociedade. Foi com esta visão que os movimentos buscaram colocar a Defensoria Pública na Constituição, pela primeira vez e de forma expressa, como a instituição responsável pela prestação da assistência judiciária e, consequentemente, corroborando com o acesso à Justiça, que já havia sido tratada como direito e garantia fundamental em Cartas anteriores (grifo do autor).
A criação da Defensoria Pública pelos constituintes originários decorreu da necessidade de se instituir um órgão permanente e independente para exercer a função jurisdicional do Estado direcionada para a promoção e a execução da assistência jurídica integral e gratuita dos hipossuficientes. Nesse sentido, é a lição de Lima (2015, p. 24).
Até 1988, as Constituições faziam referência expressamente à atividade (assistência judiciária), mas não ao órgão que deveria prestá-la, o que, numa palavra, acarretava a inoperância e a ineficiência do serviço. Com efeito, ao invés da atribuição da assistência a órgãos inseridos na estrutura do Poder Executivo, o legislador de 1988 definiu que a assistência jurídica deveria ser prestada por uma instituição independente, especialmente incumbida deste mister, designada como Defensoria Pública. Agora, com a existência de uma instituição especificamente voltada para prestar assistência jurídica aos necessitados, o serviço, público passa a ser realizado por um corpo especializado de agentes, que possuem estrutura própria e se dedicam exclusivamente a esta tarefa.
Com o advento do CPC/15 reforçou-se a relevância da Defensoria Pública dentro do ordenamento jurídico brasileiro que, em título específico, passou a dispor acerca das suas funções, direitos e prerrogativas voltados para a defesa dos direitos fundamentais individuais e coletivos daqueles a quem a instituição confere a assistência jurídica, com destaque para a atuação como curador especial, as prerrogativas do prazo em dobro para as manifestações processuais e a necessidade de intimação pessoal do defensor público.
Ademais, o atual Código processualista (Brasil, 2015, online) estabelece deveres e responsabilidades aos defensores públicos, pois, como sujeitos do processo, devem atuar com diligência e ética, preservando a boa-fé processual, podendo sofrer sanções tanto administrativas, no âmbito interno da instituição, quanto civis, de forma regressiva, caso venham a descumprir tais preceitos, a exemplo do que dispõe o artigo 187 ao determinar que “o membro da Defensoria Pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções”.
Por fim, levando-se em consideração que o advento da Constituição Federal vigente ensejou a separação conceitual dos institutos da justiça gratuita, da assistência judiciária e da assistência jurídica, é imprescindível expor as características que os diferenciam, delimitando a sua abrangência e aplicabilidade nos cenários processual e jurídico internos.
A justiça gratuita, conforme lição de Esteves e Silva (2018, p. 163), está vinculada essencialmente à dispensa de pagamento antecipado das despesas processuais por aqueles indivíduos que apresentam situação econômica fragilizada e não dispõem de recursos para custeá-las. Não obstante tal benefício só possa ser pleiteado quando do ajuizamento de uma ação judicial - por ser instrumento tipicamente processual -, sua postulação pode ser realizada no âmbito de qualquer processo, independentemente da temática e da fase em que ele se encontre, sendo necessário tão somente apresentar declaração de hipossuficiência atestando a ausência de recursos financeiros para adiantar as custas judiciais, podendo o seu deferimento ocorrer em todas as instâncias do Poder Judiciário.
Quanto à assistência judiciária, também é um instituto que se vincula ao processo judicial, podendo ser definido como o auxílio estritamente jurídico prestado a um indivíduo durante o curso da ação processual, de forma gratuita ou onerosa, por meio de advogado particular, de advogado dativo ou da Defensoria Pública, a depender da situação. Refere-se, portanto, à efetiva defesa em juízo dos interesses dos necessitados por meio da prestação gratuita de serviços advocatícios e, atinente à atuação da Defensoria Pública, por ser instituição pública, exerce essa atribuição de forma gratuita, sem exigir qualquer contraprestação do assistido hipossuficiente (LIMA, 2015, p. 56-58).
Por fim, a assistência jurídica constitui-se em instituto jurídico de Direito Público e tem por escopo auxiliar, de forma integral e gratuita, todos aqueles que comprovarem insuficiência de recursos, tanto na seara judicial quanto extrajudicial, revelando-se, assim, um instituto que se desvincula da necessária existência de um processo tramitando em juízo. Esse benefício decorre de previsão constitucional expressa e quem detém competência exclusiva para exercê-lo é a Defensoria Pública, cuja função é a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 164-165).
O modelo de acesso à justiça adotado no Brasil para fins de prestação da assistência jurídica gratuita pela Defensoria Pública é o salaried staff model, segundo o qual, nas palavras de Esteves e Silva (2018, p. 6) “os advogados laboram em regime empregatício e recebem remuneração fixa por período de trabalho diário, independentemente da carga de serviço ou de tarefas efetivamente cumpridas”. Ademais, acerca do tema, Lima (2015, p. 61) leciona que:
Consiste na remuneração de agentes públicos pelo Estado para realizarem assistência judiciária gratuita. [...] A Defensoria Pública é o reflexo da adoção, pelo Brasil, do salaried staff model de prestação de assistência judiciária gratuita, porquanto consubstancia instituição designada pela Constituição com o fim específico de auxiliar juridicamente os carentes de recursos financeiros, sendo aparelhada com uma complexa estrutura organizacional e aprovisionada de agentes públicos cuja missão se traduz na proteção jurídica aos hipossuficientes.
Desse modo, conforme lição de Esteves e Silva (2018, p. 167), “ao contrário do que ocorre com a gratuidade de justiça, o direito à assistência jurídica gratuita desperta uma conduta positiva do Estado, que deverá assumir postura atuante para garantir a adequada proteção dos direitos do economicamente necessitado”. Assim, não obstante a forte correlação entre tais instrumentos jurídicos, cada um possui características típicas, denotando a sua relevância e o papel que individualmente exercem dentro da ordem jurídica brasileira, garantindo a todos, de forma isonômica, o acesso à justiça.
2.1.2 – Princípios Institucionais da Defensoria Pública
Os princípios são normas jurídicas reconhecidamente dotadas de alto grau de abstração, generalidade e amplitude, que, conforme lição de Alexy (2008, p. 90-94), ao prescreverem valores básicos voltados para a orientação dos órgãos estatais responsáveis por atividades de aplicação e criação do direito, conferem harmonia e unidade a todo o ordenamento jurídico.
Este instrumento normativo promove, ao lado das regras, o equilíbrio do sistema jurídico nacional que, uma vez inseridos na Constituição Federal, reverberam também no âmbito da Defensoria Pública, direcionando a atuação deste órgão através de princípios institucionais específicos ao cumprimento das funções a ele inerentes. Nesse contexto, asseveram Esteves e Silva (2018, p. 350):
No âmbito da Defensoria Pública, os princípios institucionais espelham os postulados básicos e os valores fundamentais da Instituição, formando o núcleo essencial de sua sistemática normativa. Em virtude de sua natureza normogenética, os princípios institucionais atuam como diretrizes que informam as atividades produtiva, interpretativa e aplicativa das regras que, de algum modo, guardam relação com a Defensoria Pública.
Destaque-se que, em que pese a criação da Defensoria Pública ter advindo do poder constituinte originário, a inserção dos princípios voltados para resguardar a atuação defensorial se deu apenas por força da Emenda Constitucional nº 80/14 que inseriu ao artigo 134 o seu §4º, passando a prever expressamente no texto constitucional a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional como princípios institucionais, neste exatos termos “são princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal” (BRASIL, 1988, online).
Ademais, a incorporação de tais princípios na Lex Mater os alçou à categoria de normas constitucionais, reforçando a importância destes postulados normativos no bojo da instituição, entretanto tais preceitos axiológicos foram introduzidos no ordenamento jurídico a partir da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, que organiza e prescreve normas gerais acerca da instituição, dispondo em seu artigo 3º que “são princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional” (BRASIL, 1994, online) e nesse âmbito a lição de Fensterseifer (2017, p. 136) segue abaixo:
A EC 80/2014 tratou de incorporar ao regime constitucional da Defensoria Pública, precisamente no § 4º do art. 134 da CF/88, os princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional, tal como já o fazia em relação ao Ministério Público desde a gênese do texto constitucional (art. 127, § 1º). Somados à autonomia institucional já tratada anteriormente, os princípios em questão reforçam o estatuto jurídico da Defensoria Pública ao trazer para a norma constitucional regramento previsto anteriormente apenas em sede infraconstitucional, notadamente no art. 3º da LC 80/94. A relevância dos princípios em questão está associada, juntamente com a autonomia atribuída à instituição, ao livre exercício de suas atribuições institucionais, afastando qualquer ingerência indevida, tanto externa quanto interna (grifo do autor).
Desse modo, o reconhecimento dos princípios em âmbito constitucional apenas confirmou na perspectiva formal o que já era materialmente constitucional pois, considerando-se o parâmetro amplo de bloco de constitucionalidade e tendo em vista que todas as normas infraconstitucionais devem tomar como base os preceitos da CF/88, é possível asseverar que as previsões contidas na LC nº 80/94 e estão em consonância com os ideais constitucionais pátrios.
Segundo o princípio da unidade, a Defensoria Pública é formada por um todo unitário, dotada de coesão organizacional, cujas diretrizes e finalidades são próprias da instituição, garantindo a sua manutenção e delimitando as suas atribuições, objetivos, atuação e funcionamento tanto na Defensoria Pública da União, quanto nas Defensorias Públicas dos Estados e do Distrito Federal.
Outrossim, a atuação defensorial no âmbito de cada ente federado, ensejando um certo desmembramento da instituição, não corresponde a uma violação de tal princípio, posto que existe apenas uma única Defensoria Pública em todo o território nacional com núcleos que se dividem para proporcionar a máxima expansão dos seus serviços e atingir um maior contingente populacional que demanda por sua assistência jurídica, inexistindo entre eles qualquer vinculação de ordem administrativo-financeira ou hierárquica.
Nesse contexto, Lima (2015, p. 88) leciona que “a unidade somente existe em cada ramo da Defensoria Pública (União, Estados, e Distrito Federal), o que, noutros termos, implica dizer que cada especialização da Defensoria Pública possui sua própria unidade”, enquanto Esteves e Silva (2018, p. 352), ao abordarem o tema, complementam asseverando que:
Importante observar que, sob o prisma orgânico, a unidade somente existe no âmbito de cada Defensoria Pública, já que compõem estruturas organizacionais distintas e encontram--se sob chefia institucional diversa. Não é correto, portanto, falar em unidade orgânica entre Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, nem entre a Defensoria Pública de um Estado e a de outro. Essa consequência jurídica decorre do próprio sistema federativo, cuja forma de estruturação inspira a divisão de atribuições e a existência de autonomia entre as Defensorias Públicas. [...] Não há qualquer vinculação hierárquica, administrativa ou financeira entre as Defensorias Públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, possuindo cada uma delas organização autônoma e distinta. No entanto, sob o prisma funcional, é possível identificar a unidade entre todas as Defensorias Públicas do país, haja vista desempenharem as mesmas funções institucionais e com a mesma finalidade ideológica. Na verdade, funcionalmente os diversos ramos da Defensoria Pública se encontram separados unicamente em virtude da distribuição constitucional de atribuições, criada para que a Instituição possa melhor proteger aos interesses dos necessitados.
No entanto, apesar das Defensorias Públicas de cada ente da federação terem a sua própria unidade, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu, como desdobramento deste princípio, a possibilidade das Defensorias Públicas Estaduais patrocinarem causa na Justiça Federal nos casos em que não houver Defensoria Pública da União instalada na localidade onde tramita o processo, a evidenciar o caráter de garantia institucional dos direitos fundamentais de seus assistidos, conforme se verifica a seguir:
RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES PREVISTOS NO ART. 29, § 1.°, INCISO III, § 4.°, INCISOS I E VI, E § 5.°, TODOS DA LEI N.° 9.605/1998, C.C. O ART. 288 DO CODIGO PENAL. ALEGACAO DE VIOLACAO AOS PRINCIPIOS DO DEFENSOR PUBLICO NATURAL E DA AMPLA DEFESA. SUPOSTO CONFLITO DE ATRIBUICOES ENTRE A DEFENSORIA PUBLICA FEDERAL E ESTADUAL. CERCEAMENTO DE DEFESA NAO CONFIGURADO. PLEITO DE NULIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS. AUSENCIA DE DEMONSTRACAO DE PREJUIZO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Não se
verifica nulidade no oferecimento de defesa previa por parte da Defensoria Pública estadual perante a Justiça Federal, notadamente porque, como ressaltado pelo Magistrado processante, os próprios Recorrentes buscaram o auxílio de mencionado órgão, e não havia representação da Defensoria Pública da União no Município dos Réus. 2. Ademais, nos termos do art. 3.o da Lei Complementar n.o80/94 - que organiza a Defensoria Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e Territórios -, são princípios norteadores da atuação da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, de forma que a atuação da Defensoria estadual, no caso, mobilizando-se para promover defesa dos Acusados, em nada feriu os direitos dos Recorrentes, mas conferiu concretude a ampla defesa e ao contraditório, que e um dos propósitos do Órgão de forma geral. 3. A teor do art. 563, do Código de Processo Penal, que positivou o dogma fundamental da disciplina das nulidades - pas de nullite sans grief -, tanto o reconhecimento de nulidade absoluta quanto o de nulidade relativa exigem demonstração de concreto prejuizo.4. Recurso desprovido. (RHC 45.727/RR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 10/06/2014, DJe 24/06/2014) (BRASIL,2014, online).
Por fim, Paiva (2016, p. 27-29) defende que o princípio da unidade se ramifica em três planos, quais sejam a unidade hierárquico-administrativa, a unidade funcional e a unidade normativa que, juntas, formam o todo orgânico da Defensoria Pública:
No que diz respeito à unidade hierárquico-administrativa [...] coexistem as Defensorias Públicas da União, do Distrito Federal e de cada Estado de forma harmônica, sem qualquer vinculação hierárquico-administrativa, tratando-se de ramificações de um todo orgânico maior, mas com chefias independentes e autônomas. [...] A faceta funcional do princípio da unidade indica que as Defensorias Públicas devem se empenhar para que os objetivos institucionais (art. 3º-A da LC 80), comuns a todas elas, façam parte de uma atuação nacional conjunta e programada, o que contribui para o fortalecimento do acesso à justiça no Brasil e também para a afirmação de uma ‘pauta defensorial’. [...] A unidade normativa da Defensoria Pública decorre, a meu ver, do art. 134, § 1º, da CF, que estabelece que ‘Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados (...)’, sendo que extraio desse dispositivo a conclusão de que tanto a organização da DPU e da Defensoria Pública do Distrito Federal quanto as normas gerais prescritas para as Defensorias dos Estados devem observar uma singularidade normativa (grifo do autor).
Quanto ao princípio da indivisibilidade, entende-se ser uma decorrência lógica do princípio da unidade, existindo uma correlação necessária entre ambos, ao prever a impossibilidade de se fragmentar ou dissociar a Defensoria Pública, pois, conforme bem destaca Rocha (2013, p. 113), “em algo uno não se pode admitir fracionamentos e a indivisibilidade tem a mesma motivação de viabilizar a integralidade da instituição”. No entanto, não há que se confundir tais princípios, pois enquanto a unidade se vincula à organização e funcionamento da Defensoria em si e sua relação com questões externas, a indivisibilidade está atrelada a um fator interno que é a atuação dos defensores públicos, como destacado:
Assim, não obstante ‘irmãos’, o princípio da unidade não se confunde com o da invisibilidade. O primeiro diz respeito à estrutura hierárquica, administrativa e institucional, porquanto o segundo, à atuação institucional; enquanto o princípio da unidade garante o mesmo núcleo gestor, o da indivisibilidade, que cada membro é a instituição; enquanto o primeiro tem uma maior aplicabilidade político-administrativa, o segundo tem uma maior perspectiva técnica-funcional (ROCHA, 2013, p. 114).
Tal princípio aponta, portanto, que aqueles que compõem o seu órgão de execução não atuam em nome próprio, senão como um longa manus da instituição, havendo uma fungibilidade entre tais membros, podendo ser substituídos uns pelos outros no exercício da função, quando necessário for, sem que tal fato promova qualquer implicação na prestação da assistência jurídica defensorial e sem que haja qualquer vinculação de ideias e opiniões acerca das teses adotadas por cada um, uma vez que a eles é concedida liberdade para adotarem a melhor forma de conduzir o processo em que atuam de acordo com suas próprias convicções e estratégias jurídicas, correlacionando-se, consequentemente, com o princípio da independência funcional (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 355).
Assim, se durante o curso de um determinado processo o defensor público que nele atuava não puder mais acompanhar o seu andamento, seja por motivo de promoção, remoção, férias, aposentadoria, ou qualquer outra razão que impeça sua atuação de forma temporária ou definitiva, então será nomeado um outro membro, igualmente habilitado para exercer tal função, haja vista que todos eles atuam em nome do todo indivisível que é a Defensoria Pública (LIMA, 2015, p. 89).
No que se refere ao princípio da independência funcional, está vinculado diretamente à execução das funções do defensor público que, a partir de suas convicções pessoais e linhas de pensamento técnico-jurídicas, conduzem a sua atuação e o seu trabalho a fim de proporcionar a máxima e efetiva assistência jurídica àqueles que buscam o atendimento da Defensoria Pública, afinal, conforme asseveram Esteves e Silva (2018, p. 357) “em virtude de sua independência funcional, os defensores públicos podem atuar livremente no exercício de suas funções institucionais, rendendo obediência apenas à lei e à sua própria consciência”.
Desse modo, o que se denota é que o órgão de execução defensorial não está submetido a qualquer vinculação, controle ou hierarquia ideológica, não se admitindo que as manifestações de seus membros sejam tolhidas caso se dissociem do entendimento exarado por outras entidades ou até mesmo por outros membros da própria instituição, estando livres, por conseguinte, de qualquer ingerência externa, bem como de recomendações advindas de patamares superiores dentro do escalão da Defensoria Pública, salvo aquelas que se tratarem de questões administrativas de âmbito interno (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 357).
Outrossim, importante mencionar que não há que se confundir autonomia funcional com independência funcional, pois enquanto esta se refere a um princípio de aplicação interna corporis, direcionado ao exercício da função dos defensores públicos individualmente, aquela representa uma garantia institucional da Defensoria Pública, voltada para o reconhecimento da instituição como um órgão que não possui qualquer dependência ou interferência de ordem administrativa, organizacional ou financeira com outro órgão ou poder estatal, consoante lição de Fensterseifer (2017, p. 137):
[...] Diferentemente da autonomia funcional que se destina à instituição (Defensoria Pública), a independência funcional volta-se ao titular do cargo de Defensor Público. Aqui também opera o mesmo raciocínio destacado na caracterização dos princípios da unidade e da indivisibilidade, ou seja, de que a autonomia funcional se volta ao plano externo, nas relações travadas pela instituição frente a outros órgãos e poderes do Estado (ou mesmo instituições privadas), ao passo que a independência funcional está situada no plano interno, podendo ser vindicada inclusive contra a chefia institucional em situações de violação a tal prerrogativa e garantia dos Defensores Públicos no desempenho das suas atribuições legais (grifo do autor).
Isto posto, fato é que esses princípios se entrelaçam e se complementam, não sendo possível estabelecer uma abordagem individualizada acerca de um deles sem correlacionar com os demais, posto que formam um conjunto coerente e interdependente entre si a fim de integrar o sistema normativo da Defensoria Pública e garantir a sua consolidação dentro do sistema jurídico nacional.
2.1.3 – Garantias de seus Membros
A busca por uma efetiva prestação de assistência jurídica integral e gratuita pela Defensoria Pública requer a existência de mecanismos que possibilitem a seus membros exercer suas funções de modo a atingir satisfatoriamente os objetivos institucionais. Diante disso, as garantias institucionais expressamente dispostas na LC nº 80/94 surgem nesse contexto, sendo elencadas como tais a independência funcional, a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a estabilidade.
Em atenção ao princípio da unidade, tais garantias se destinam aos membros das Defensorias Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal de forma equânime, voltadas para assegurar uma atuação livre e independente, isentos de quaisquer interferências externas capazes de macular o pleno exercício das suas atividades institucionais, ou seja, se vinculam ao cargo de defensor público, não havendo que se falar em uma prerrogativa ou uma regalia pessoal destes, conforme pontua Lima (2015, p. 392):
[...] As garantias protegem o Defensor Público, mas o protegem com o objetivo de que se alcance o interesse público. Não é um garantir sem uma finalidade específica. Sob este prisma, pode-se dizer que as garantias se traduzem em um meio de proteção ao Defensor Público, de modo que ele possa realizar com segurança e plenitude as suas funções institucionais.
Segundo Rocha (2013, p. 220) as garantias podem ser divididas em garantia de exercício e garantia de carreira, as quais, apesar de apresentarem certa correspondência entre si, possuem enfoques distintos quando analisadas sob o viés institucional, conforme se denota a seguir:
As garantias de exercício são a inamovibilidade e a independência funcional, posto que elas estão intrinsecamente ligadas à labuta cotidiana na instituição, viabilizando a concreta realização das funções institucionais. As garantias da carreira são justamente aquelas que possibilitam uma segurança na carreira, que são a irredutibilidade de vencimentos e a estabilidade.
A independência funcional está vinculada à liberdade de atuação do defensor público ao exercer suas funções institucionais de forma livre e autônoma, sem qualquer interferência na sua atuação, aplicando os seus conhecimentos técnicos a fim de efetivar a prestação da assistência jurídica integral e gratuita que lhe incumbe, conforme bem ressaltam Esteves e Silva (2018, p. 630) “em virtude dessa garantia, o membro da Defensoria Pública se encontra blindado contra toda e qualquer ingerência externa, podendo atuar com altivez na defesa dos interesses dos juridicamente necessitados”. Tal entendimento é igualmente compartilhado por Corgosinho (2014, p. 200) ao afirmar que:
[...] No plano interno, afastando a possibilidade de qualquer hierarquia do ponto de vista funcional entre os membros da carreira, órgãos de execução, de atuação e, até mesmo, em face dos órgãos da administração superior da Defensoria Pública. Por outro lado, atua também no plano externo, em reforço à autonomia da Instituição, impedindo, desse modo, que qualquer outra autoridade ou organismo público possa exercer ingerência ou interferência externa sobre o Defensor Público, no que diz respeito ao exercício de suas atribuições e competências legais.
Por outro lado, apesar de estar o defensor público isento de qualquer interferência interna acerca de sua atuação jurídica, seja ela fruto de um sistema hierárquico ou de outros órgãos estatais, essa garantia não é aplicada de forma absoluta, haja vista que não se estende ao âmbito administrativo da instituição, ocasião em que poderá ser objeto de controle por parte de seus superiores, devendo cumprir com o dever de prestar informações acerca de sua atuação quando lhe for requisitado, a exemplo de situações em que entender ser a ação judicial manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses do assistido, devendo informar esse fato ao Defensor Público Geral com a respectiva justificativa (LIMA, 2015, p. 393).
Quanto à inamovibilidade, pode ser entendida como a proteção conferida ao exercício da atividade de defensor público, uma vez que tem como premissa impedir que motivações políticas ensejem remoções arbitrárias daqueles membros que exercem suas funções com titularidade em determinado órgão, combatendo condutas que descumprem os procedimentos legalmente previstos para tanto e que violam direitos e prerrogativas institucionais básicas.
Segundo Esteves e Silva (2018, p. 632), tal garantia, também prevista no texto constitucional, visa coibir deslocamentos forçados, tanto no âmbito territorial quanto funcional dos membros da Defensoria, porventura praticados como forma de represália ou obstrução dos serviços prestados pelo seu órgão de execução, obstando que seus membros sejam realocados para outra comarca, secretaria, área ou órgão funcional sem a sua devida comunicação e consentimento. Corroborando esse entendimento, segue o comentário de Paiva (2016, p. 39):
Sobre a proteção da inamovibilidade, importante ressaltar que o princípio do defensor natural impede não apenas remoções territoriais arbitrárias, isto é, a retirada do defensor público da comarca X para a comarca Y, mas também remoções funcionais descabidas, que ocorreriam com a retirada do defensor público do seu ofício ou núcleo, p. ex., de execução penal, para lotá- lo num ofício ou núcleo de atuação na área de família. Veja-se, portanto, que a inamovibilidade não se dá apenas na localidade, estendendo-se também para o órgão funcional ocupado pelo defensor público (grifo do autor).
Por outro lado, a compreensão da inamovibilidade deve ser ampla, não se limitando apenas a uma perspectiva geográfica ou funcional, estando também associada às atribuições destinadas aos defensores públicos, afinal para que ocorra a diminuição ou o aumento das tarefas regularmente praticadas por tais membros, bem como a possibilidade de promoção na carreira, faz-se necessário o seu devido consentimento, sob pena de macular tal garantia. Nesse sentido é a lição de Esteves e Silva (2018, p. 633):
A inamovibilidade [...] pretende preservar as características intrínsecas do órgão de atuação, evitando que o conjunto de atribuições a serem desempenhadas pelo membro da Defensoria Pública seja suprimido ou esvaziado. Por essa razão, para que ocorra qualquer espécie de exclusão de atribuições de determinado órgão de atuação, deve haver a prévia anuência do membro da Defensoria Pública. Além disso, o acréscimo de atribuições não pode ser utilizado como instrumento para sufocar o trabalho do Defensor Público, prejudicando sua atuação em determinadas áreas sensíveis ou forçando-o a requerer a remoção voluntária. Dentro da mesma lógica funcional, não pode o Defensor Público ser involuntariamente retirado das atribuições de determinado órgão de atuação em virtude de eventual promoção na carreira. Se essa hipótese fosse admitida, estaria aberta a possibilidade de violação maquiada da garantia da inamovibilidade, pois o membro da Defensoria Pública poderia ser involuntariamente afastado de suas atribuições por força da elevação à categoria superior na carreira; seria uma espécie de punição disfarçada de prêmio.
No que se refere à irredutibilidade de vencimentos, tal garantia possui previsão constitucional, destinando-se a todos aqueles que ocupam cargos e empregos públicos, e legal, constando expressamente na LC nº 80/94 que trata especificamente acerca da Defensoria Pública e tem como premissa que o defensor público não pode sofrer qualquer redução no seu subsídio remuneratório, à exceção de descontos tributários ou previdenciários e daqueles decorrentes de decisões judiciais.
O que essa garantia busca resguardar é que o defensor público receba o montante a que faz jus, correspondente ao serviço por ele prestado, com base unicamente nos preceitos constitucional e legalmente existentes, impedindo que haja qualquer cerceamento na sua liberdade profissional praticado por meio de intimidações que envolvam qualquer tipo de restrição financeira, conforme se denota a seguir:
O postulado constitucional da irredutibilidade de vencimentos traduz modalidade qualificada e específica da garantia constitucional do direito adquirido, assegurando ao membro da Defensoria Pública a preservação do montante global remuneratório até então percebido [...] Essa especial proteção de caráter financeiro busca preservar a plena liberdade de atuação do Defensor Público na defesa dos interesses dos necessitados, prevenindo a ocorrência de coações econômicas e de retaliações pecuniárias, por conta do natural afrontamento aos interesses dos detentores dos cargos políticos e dos grandes empresários que financiaram suas campanhas eleitorais (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 651).
A estabilidade também é garantia institucional dos defensores públicos, assim como de todos os servidores que ingressam nos seus respectivos cargos através de concurso público, reconhecida em âmbito constitucional e na LC nº 80/94, com exceção dos membros da magistratura, do Ministério Público e dos Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas, aos quais é destinada a garantia da vitaliciedade.
Conforme previsto no artigo 41, “caput”, da Constituição Federal (BRASIL, 1988, online), “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”, marcando assim uma exigência temporal para que tais membros possam adquirir a referida garantia. Ademais, para que seja reconhecida a estabilidade, é necessária a realização de uma avaliação especial por comissão que analisará o desempenho daqueles que ingressaram no serviço público.
Uma vez atingida a estabilidade, o defensor público somente poderá perder seu cargo em três situações excepcionais, decorrentes de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo disciplinar ou realização de avaliação periódica de desempenho, sendo-lhe assegurada a ampla defesa durante todo o trâmite dos respectivos procedimentos e, em ocorrendo eventual demissão indevida, deverá o mesmo ser reintegrado ao cargo de origem.
Por fim, Esteves e Silva (2018, p. 657) tratam sobre a legitimidade tanto da Defensoria Pública quanto dos seus membros para promover a defesa judicial em caso de violações das garantias institucionais ao afirmarem que:
Sem dúvida alguma, o Defensor Público, em nome próprio, se encontra autorizado a buscar a tutela jurisdicional no caso de violação das garantias que lhe são inerentes. Além disso, a própria Defensoria Pública, institucionalmente considerada, poderá pleitear a defesa judicial das garantias, seja quando a violação atingir globalmente a entidade, ou quando focalizar indivíduo determinado. Afinal, sendo a Defensoria Pública una e indivisível, o injusto praticado contra um de seus membros representa ameaça contra todos os demais, emergindo o interesse institucional em assegurar o respeito incondicional e irrestrito às garantias.
Desse modo, as garantias institucionais compõem o alicerce jurídico protetivo direcionado aos defensores públicos que necessitam de tais mecanismos para exercer de forma plena e independente as funções que lhe são incumbidas a fim de promover a máxima e efetiva assistência jurídica integral e gratuita àqueles que apresentam situação de hipossuficiência, necessitando da tutela estatal para a manutenção dos seus direitos e a cessação de eventuais ofensas sofridas.
2.2 – Atribuições da Defensoria da Defensoria Pública e sua Dimensão de Garantia Institucional
O surgimento da Defensoria Pública, decorrente da nova ordem constitucional, marca o início do processo de garantia isonômica do direito de acesso à justiça de forma integral e gratuita a todos os indivíduos que necessitem do auxílio estatal para solucionar litígios afetos a questões individuais ou coletivas que se manifestem diante das relações em sociedade, configurando verdadeiro direito fundamental social ou direito de segunda dimensão.
Sabendo que o acesso à justiça salvaguarda a própria dignidade da pessoa humana, Mauro Cappelletti e Bryan Garth desenvolveram emblemático estudo acerca do tema, estabelecendo três ondas renovatórias de acesso à justiça, sendo elas, respectivamente, a assistência judiciária para os pobres, a representação dos direitos difusos e a representação em juízo a uma concepção mais ampla de acesso à justiça voltada para os métodos alternativos de solução de conflitos.
Nas lições constantes em sua obra “Acesso à Justiça”, Cappelletti e Garth (2002, p. 5) afirmam que “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. Assim, dentro do cenário jurídico nacional, a efetivação desse direito decorre da atuação delegada à Defensoria Pública que, ao atuar em todas as ondas renovatórias, exerce papel fundamental na sua concretização, conforme se denota a seguir:
Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais concentraram-se, muito adequadamente em proporcionar serviços jurídicos para os pobres. Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessários para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais (CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 12).
No Brasil, a garantia do acesso à justiça consta do texto originário da Constituição Federal ao prescrever que a atuação da Defensoria Pública se destina àqueles indivíduos dotados de carência econômica, cuja situação de insuficiência financeira inviabiliza o acionamento do Poder Judiciário para tutelar direitos e garantias violados ou ameaçados de sofrer qualquer tipo de interferência. Entretanto, ao longo dos anos, a busca pela efetivação da igualdade material desse direito social ensejou uma significativa ampliação das funções inerentes à atividade defensorial com o intuito de amparar aqueles que, a despeito de possuírem boa situação financeira, são expostos a outras situações de vulnerabilidade.
Diante disso, a depender da situação de vulnerabilidade em que se encontra aquele sujeito que pleiteia a assistência jurídica perante a instituição, é possível dizer que a atuação da Defensoria Pública é analisada sob duas perspectivas, uma tradicional, que se vincula à análise da condição econômica do indivíduo, enquadrando-se estritamente ao texto constitucional, e uma moderna, proveniente de contextos que se distanciam da questão meramente econômico-financeira e se aproximam de questões sociais, organizacionais ou culturais, conforme será explanado nos tópicos que seguem.
2.2.1 – Tradicional Compreensão das Atribuições
Inicialmente, faz-se necessário pontuar que, em que pese a doutrina, em regra, estabeleça uma divisão entre atribuições típicas e atípicas da Defensoria Pública, essa classificação não se mostra de todo adequada, haja vista reproduzir uma ideia limitada e, em certa medida, conservadora acerca da atuação defensorial, haja vista dar ensejo a uma secundarização das funções que não estão diretamente associadas à questão da hipossuficiência econômica dos seus assistidos, enquanto, na verdade, todas as frentes em que a Defensoria Pública trabalha possuem a mesma relevância, razão pela qual a divisão entre atribuições tradicionais e modernas da instituição está mais alinhada com a sua atividade.
A Defensoria Pública tem como função tradicional a prestação de assistência jurídica integral e gratuita àqueles que carecem de recursos econômicos. Tal atribuição decorre de uma interpretação literal da Constituição Federal que reconhece como necessitados aqueles que comprovadamente não possuem condições de arcar com as despesas processuais, garantindo-lhes isonomia e amplo acesso à justiça na busca da defesa de seus direitos.
Nessa senda, Lima (2015, p. 174) assevera que para conceituar essa função destinada à Defensoria Pública é necessário analisar tão somente a questão financeira do indivíduo que pleiteia o suporte jurídico da instituição, independentemente de qualquer outra análise pessoal, social ou circunstancial, destacando que:
Desimportante a espécie de assistência a ser prestada, se judicial ou extrajudicial, tampouco se ela se restringe à consultoria jurídica ou à intervenção nas instâncias administrativas. Desde que haja carência de recursos materiais, a Defensoria Pública está apta a intervir.
Desse modo, a Defensoria Pública exercerá essa atribuição quando estiver tutelando direitos titularizados por indivíduos a cuja hipossuficiência se restringe à situação econômico-financeira, sendo irrelevante analisar se ela será desempenhada na seara jurídica ou administrativa ou ainda se ocorrerá no âmbito endoprocessual ou extraprocessual (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 389).
Para a concessão da assistência jurídica gratuita é necessário averiguar o estado de carência dos pretensos assistidos, a ser realizado pessoalmente pelo defensor público em atendimento inicial na própria Defensoria Pública. Tal procedimento ocorre em âmbito administrativo, pelo órgão de execução da Defensoria Pública a partir de análise documental que comprove a condição financeira do indivíduo que pleiteia os seus serviços para, enfim, concluir pelo deferimento ou indeferimento da prestação de assistência jurídica, visando legitimar a finalidade precípua da instituição, conforme se denota a seguir:
Por constituir instituto administrativo, o reconhecimento do direito à assistência jurídica estatal gratuita deverá ser realizado de maneira exclusiva pelo Defensor Público com atribuição para efetuar o atendimento da parte necessitada. De acordo com o art. 4º, § 8º, da LC nº 80/1994, sempre que o Defensor Público entender não haver hipótese de atuação institucional, deverá oficiar o Defensor Público Geral para que seja exercido o controle de legalidade sobre sua decisão funcional de abstenção, podendo o chefe da Instituição, se for o caso, indicar outro Defensor para atuar na defesa dos interesses do hipossuficiente e, ainda, instaurar procedimento disciplinar contra aquele que se recusou a prestar o atendimento devido, quando evidenciada possível desídia (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 167).
Oportuno mencionar também que, no âmbito de algumas leis orgânicas ou em normas institucionais internas das Defensorias Públicas, são estabelecidas presunções objetivas para identificar aqueles que se encontram em estado de insuficiência econômica, exemplo de limites máximos de renda pessoal ou familiar, como é o caso da Resolução nº 134/16[6] da Defensoria Pública da União e da Resolução nº 140/15[7] da Defensoria Pública do Distrito Federal.
Por outro lado, no que se refere a tais limitações acima mencionadas, Esteves e Silva (2018, p. 302) advertem que elas não devem ser encaradas de forma absoluta, pois, a depender do caso em concreto, mesmo que a situação do indivíduo não seja de carência econômica, pode ser identificado algum cenário de vulnerabilidade diversa que justifique a assistência por meio da Defensoria Pública:
[...] Os parâmetros traçados pelas legislações estaduais e pelas normas institucionais internas não designam limites econômicos para o reconhecimento do direito à assistência jurídica gratuita. Na verdade, esses parâmetros objetivos indicam presunções objetivas de elegibilidade, sendo automaticamente considerado titular do direito à assistência jurídica gratuita todo aquele que se enquadrar no patamar econômico estabelecido pela norma. Para aqueles que estiverem fora do parâmetro objetivo, entretanto, apenas será reconhecido o direito à assistência jurídica gratuita quando o membro da Defensoria Pública identificar, pela análise do caso concreto, que a parte não possui condições de arcar com o pagamento de honorários advocatícios sem prejudicar o acesso às necessidades vitais básicas inerentes à dignidade humana.
Ademais, necessário destacar que, ainda que seja deferida a assistência jurídica gratuita, cabe ao defensor público acompanhar permanentemente a situação financeira dos seus assistidos, tendo em vista que uma vez constatada uma ascensão econômica que retire a sua condição de hipossuficiência, já não fará mais jus aos serviços da instituição, caso contrário revelaria enriquecimento ilícito, além de prejudicar aqueles que, de fato, não dispõem de viabilidade financeira, conforme leciona Lima (2015, p. 185):
Como a condição financeira é aspecto fundamental para que se usufrua da assistência jurídica integral e gratuita, é natural que a mudança posterior do estado financeiro faça decair a fruição de tal direito. A possibilidade de obtenção da assistência gratuita visa primordialmente a concretizar o princípio da isonomia, igualando juridicamente aqueles que não detêm aptidão financeira para contratar advogado. Desta forma, a partir do momento em que o assistido hipossuficiente passa a apresentar renda que o capacita a constituir um profissional liberal, o auxílio do Estado deve cessar, pois perde o seu fundamento, a sua razão de ser.
Por outro lado, parte da doutrina defende que a EC nº 80/14 trouxe uma visão moderna acerca das funções tipicamente institucionais, legitimando a sua atuação na defesa não só de direitos individuais daqueles que carecem de aporte econômico, mas também dos direitos humanos e transindividuais e da garantia da ordem democrática. Destarte, pontuam Esteves e Silva (2018, p. 390):
[...] A interpretação do texto constitucional pós EC nº 80/2014 conduz à conclusão de que as funções típicas não mais se resumem unicamente à assistência jurídica integral e gratuita prestada aos economicamente necessitados. Tendo a Constituição Federal passado a prever outras funções institucionais no caput do art. 134, devem elas ser também consideradas funções modernamente típicas. Com isso, a promoção de direitos humanos, a tutela coletiva e a garantia do regime democrático passam a integrar o rol de funções modernamente típicas, por derivarem diretamente do art. 134, caput, da CRFB.
Assim, não obstante no campo doutrinário as atribuições da Defensoria Pública sejam reconhecidas de forma mais ampla, o entendimento mais limitado defende que a atuação defensorial não prescinde de carência econômica para viabilizar a assistência jurídica integral e gratuita, partindo do conceito de necessitado em sentido estrito que, decorrendo da interpretação tradicionalmente restrita, segue apenas o mínimo constitucional.
2.2.2– Moderna Compreensão das Atribuições
A partir da análise literal do texto constitucional é possível adotar uma percepção de atuação da Defensoria Pública voltada para amparar aqueles que se enquadram na definição de hipossuficientes financeiros. No entanto, o contexto social contemporâneo demonstra que as necessidades humanas nem sempre têm relação com a incapacidade financeira, podendo estar associadas a múltiplas vulnerabilidades que, vitimando o indivíduo, o colocam em situações de hipossuficiência que não a econômica.
Com efeito, a ideia de pessoas necessitadas trazida pela Constituição Federal e reiterada pela LC nº 80/94 deve compreender a vulnerabilidade em seu sentido mais abrangente, razão pela qual a atuação institucional da Defensoria Pública não pode ser motivada unicamente pela insuficiência de recursos financeiros, devendo ser valorizada também a tutela de direitos em razão da vulnerabilidade coletiva, organizacional, social, cultural, processual e, até mesmo, ambiental, entendimento endossado pelo STF no bojo da ADI 4636:
A bem da verdade, examinando o projeto constitucional de resguardo dos direitos humanos, podemos dizer que a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman, que deve zelar pela concretização do estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo como o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes (grifo do autor) (BRASIL, 2020, online).
Partindo de uma interpretação extensiva e teleológica acerca das atribuições da Defensoria Pública, pode-se dizer que o artigo 5º, LXXIV, da CF/88 ao afirmar que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (BRASIL, 1988, online), indica que a insuficiência de recursos deve ser lida sob um referencial amplo, englobando as múltiplas carências de subsídios para a defesa das demandas dos seus assistidos, afastando, portanto, qualquer interpretação que se limite à análise apenas das limitações advindas do fator econômico.
Sob esse parâmetro das atribuições da Defensoria Pública a partir de uma perspectiva lato sensu de tutela de vulnerabilidades do indivíduo, Esteves e Silva (2018,
p. 389) afirmam que “o termo ‘necessitados’ (art. 134 da CRFB) deve ser compreendido como verdadeira chave hermenêutica, capaz de englobar toda a amplitude do fenômeno da carência, em suas diversas concepções”.
Corroborando esse entendimento, no âmbito do direito internacional, as 100 Regras de Brasília, que tratam sobre o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, trazem a definição de pessoa vulnerável (regra nº 3), bem como elencam algumas situações que podem retratar causas de vulnerabilidade (regra nº 4), conforme se detona a seguir:
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, género, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o género e a privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e económico (BRASIL, 2008, online).
Nesse contexto, o rol de funções institucionais da Defensoria Pública elencado na LC nº 80/94 recebeu significativa ampliação com o advento da lei complementar nº 132/09 (LC nº 132/09) , passando a legitimar de forma expressa a atuação da instituição para a defesa de questões sensíveis e urgentes dentro do cenário político-social brasileiro que necessitam permanentemente de mecanismos para sua proteção, delimitando novas atribuições a serem exercidas pela instituição, podendo citar como exemplo o seu artigo 4º, incisos VII, X, XI e XVI:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: [...]
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;
[...]
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;
[...]
XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei (BRASIL, 1994,online).
Se denota do dispositivo supramencionado que as atribuições destinadas à Defensoria Pública confirmam sua essencialidade dentro da ordem jurídica nacional, na medida em que lhe destina competências fundamentais para a proteção e manutenção da ordem social, resguardando direitos e combatendo eventuais violações sofridas por indivíduos ou pela coletividade que se encontrem em situação de vulnerabilidade, conforme asseveram Esteves e Silva (2018, p. 389):
[...] O sistema jurídico e a realidade social contemporânea demonstram que a necessidade nem sempre se encontra relacionada à incapacidade econômica. Muitas vezes, a necessidade pode ser ocasionada por vulnerabilidades diversas (organizacional, etária, processual, episódica etc.). Esse caráter multifacetário da carência pode ser identificado, por exemplo, no caso da defesa do réu sem advogado na área criminal, na atuação da curadoria especial na área cível e na tutela dos interesses coletivos lato sensu (grifo do autor).
Assim, diante das múltiplas vulnerabilidades que se apresentam no contexto da sociedade brasileira, algumas ganham destaque dentro da seara de atuação da Defensoria Pública, entre elas as vulnerabilidades processual e organizacional que, somadas à insuficiência econômica, representam pautas cada vez mais relevantes para o debate acerca da proteção dos indivíduos.
A vulnerabilidade processual decorre da ausência de orientação e representação de determinada parte no curso do processo judicial, por meio de um profissional capacitado para tanto, revelando situação de desamparo jurídico e, muitas vezes, de obstacularização do exercício da ampla defesa e do contraditório. Diante desse cenário, tal vulnerabilidade constitui, segundo Esteves e Silva (2018, p. 308) “critério legitimador de tratamento diferenciado entre as partes, de modo a reequilibrar a disparidade de armas e restabelecer a isonomia processual”. Nesse mesmo sentido é a lição de Tartuce (2016, online):
A vulnerabilidade processual é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária; a impossibilidade de atuar pode decorrer de fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório.
Desse modo, Lima (2015, p. 202-207) assevera que no curso do processo podem surgir diversos entraves que limitem ou impeçam o pleno uso dos mecanismos jurídico- processuais garantidores da máxima efetividade na defesa dos interesses das partes litigantes e, visando combater tais adversidades, atribui-se à Defensoria Pública as funções de curadora especial e da sua atuação obrigatória na defesa técnica no âmbito criminal, conforme previsão do Código de Processo Penal. Nesse âmbito, o mesmo autor também destaca que:
A necessidade de comprovação prévia da insuficiência financeira é, evidentemente, pressuposto fundamental para deflagrar a atuação da Defensoria Pública em favor do cidadão economicamente hipossuficiente. É, à evidência, um componente do universo jurídico das tutelas individuais. Mas não é só isso. A especificidade deste requisito se restringe às funções típicas da Defensoria Pública. A comprovação da necessidade econômica não é reclamada para o exercício das denominadas atribuições atípicas, a exemplo das sempre lembradas curadoria especial e defesa técnica no processo penal. Nestes casos, o que legitima a Defensoria Pública é a necessidade jurídica - e não a econômica (LIMA, 2015, p. 245).
No que se refere à vulnerabilidade organizacional, Grinover (1996, p. 116) define que “são carentes organizacionais as pessoas que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea”, assim como a doutrina de Tartuce (2016, online) a define do seguinte modo:
Por fim, pode ser constatada a vulnerabilidade organizacional: tal suscetibilidade acomete a pessoa que não consegue mobilizar seus recursos e estruturas para sua própria organização pessoal, encontrando restrições logísticas para sua atuação. Como exemplos, considere o comprometimento da atuação dos indivíduos que não têm casa e/ou foram dela despejados e as limitações tecnológicas decorrentes da exclusão digital.
Portanto, essa vulnerabilidade está relacionada a diversas situações às quais os indivíduos são submetidos dentro das relações sociais hodiernas, inserindo-os em um quadro de insegurança jurídica relacionada, por exemplo, a questões envolvendo direitos dos consumidores e de usuários de serviços públicos ou ainda daqueles que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, à educação, ao meio ambiente, refletindo tanto a necessidade de se tutelar direitos individuais quanto coletivos.
Nessa senda, destaca-se a atividade da Defensoria Pública como curadora especial em prol daqueles que estão em situação de vulnerabilidade representa uma função exclusiva, de significativa relevância dentro do cenário de atribuições destinadas à instituição para a proteção de direitos de incapazes que não tiverem representante legal ou que com este apresentarem conflito de interesses, bem como de réu preso revel ou réu revel citado por edital ou com hora certa, principalmente após o advento do CPC/15, corroborando a previsão já existente na LC nº 80/94.
A curadoria especial voltada aos incapazes ocorre independentemente do tipo de incapacidade apresentada e de qual polo ocupa o assistido dentro da relação processual, tendo em vista que os requisitos legalmente exigidos são a inexistência de representante legal ou, a despeito de sua presença, os interesses entre eles sejam colidentes.
Já em relação aos réus presos e ao réu revel citado por edital ou por hora certa, a curatela especial tem por objetivo garantir o contraditório e à ampla defesa por meio da prestação da assistência jurídica e do exercício de representação perante o Poder Judiciário àqueles que estão com sua liberdade de locomoção cerceada ou que, em razão das citações fictas, não se sabe se efetivamente tomaram ciência do processo para apresentarem defesa.
Por outro lado, encerra-se a curadoria especial quando não mais existir o fato gerador que ensejou a sua atuação, ou seja, no caso do incapaz, a curatela será extinta a partir do momento em que o assistido se tornar plenamente capaz, passar a ter representante legal ou sanar as divergências de interesses com o seu representante, enquanto no caso do preso revel, cessará apenas quando ele adquirir a liberdade, haja vista que o curador especial atuará a fim de preservar os direitos do indivíduo, mesmo após a constituição de advogado, por meio da fiscalização das atividades do seu patrono e, quanto ao réu revel citado por edital ou por hora certa, cessará a curatela quando efetivamente for constituído advogado nos autos do processo judicial.
Ressalte-se que incumbe aos membros da Defensoria Pública analisar o caso concreto a fim de verificar se reflete uma situação que reclame a curatela especial, cabendo ao magistrado, quando se deparar com esse contexto, tão somente determinar a abertura de vista à instituição, pois não se admite que ele profira decisão nomeando diretamente o órgão para exercer esse múnus, pois tal investidura decorre de lei expressa. Caso o defensor público entenda não configurar hipótese de curadoria especial, deverá dar imediata ciência ao Defensor Público-Geral que decidirá a controvérsia indicando, se necessário, um defensor diverso para atuar no feito, conforme dispõe a LC nº 80/94.
Por fim, não obstante o entendimento majoritário seja pelo reconhecimento da curadoria especial como uma atividade atípica da Defensoria Pública, em razão da sua finalidade não estar diretamente vinculada ao aspecto financeiro, há parcela da doutrina que critica tal posicionamento por compreender que essa é uma atividade típica da instituição, a ela inerente para fins de proteção dos direitos dos necessitados, sendo, inclusive, atribuída a ela o exercício de tal função em caráter exclusivo, conforme previsão expressa do CPC/15. Nesse sentido é a lição de Rocha (2013, p. 135):
Além disso, considerar algo atípico é o mesmo que dizer que é contrário a sua natureza, que não lhe pertence, que lhe é alheio porquanto não exista qualquer função institucional da Defensoria que lhe seja estranha, todas têm um significado sistêmico e facilmente compreendido quando se compreende a natureza da instituição, mesmo as que têm sido consideradas ‘atípicas’, como a de atuar como curador especial.
Válido destacar ainda que a assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública não se restringe apenas à tutela de direitos individuais, posto que, em decorrência de previsão constitucional, é sua também a atribuição de proteger todas as espécies de direitos fundamentais e de direitos humanos, estando incluídos os direitos transindividuais e, assim sendo, notadamente após a EC nº 80/14 que alterou o caput do artigo 134, da CF/88, para prever que cabe à instituição “a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (BRASIL, 1988, online).
Portanto, sendo da Defensoria Pública a atribuição para tutelar e promover todos os direitos de seus assistidos, sejam eles individuais, difusos ou coletivos, a fim de concretizá-los com a máxima efetividade, é reconhecida à instituição a atribuição para ajuizar Ação Civil Pública (ACP) a fim de atuar na defesa de direitos coletivos, em prol daqueles que estão em situação de hipossuficiência organizacional.
Tal legitimidade decorre diretamente da LC nº 80/94, após as alterações promovidas pela LC nº 132/09, bem como da lei nº 7.347/85 (lei de Ação Civil Pública), que traz expressamente a legitimidade da Defensoria Pública para sua propositura, e foi corroborada no bojo da ADI 3943, na qual, destaque-se:
[...] No exercício de sua atribuição constitucional, seria necessário averiguar a compatibilidade dos interesses e direitos que a instituição protege com os possíveis beneficiários de quaisquer das ações ajuizadas, mesmo em ação civil pública. Condicionar a atuação da Defensoria Pública à comprovação prévia da pobreza do público-alvo diante de situação justificadora do ajuizamento de ação civil pública — conforme determina a Lei 7.347/1985 — não seria condizente com princípios e regras norteadores dessa instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, menos ainda com a norma do art. 3º da CF. Se não fosse suficiente a ausência de vedação constitucional da atuação da Defensoria Pública na tutela coletiva de direitos, inexistiria também, na Constituição, norma a assegurar exclusividade, em favor do Ministério Público, para o ajuizamento de ação civil pública. Por fim, a ausência de demonstração de conflitos de ordem objetiva decorrente da atuação dessas duas instituições igualmente essenciais à justiça — Defensoria Pública e Ministério Público — demonstraria inexistir prejuízo institucional para a segunda, menos ainda para os integrantes da Associação autora. ADI 3943/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 6 e 7.5.2015. (ADI-3943) (BRASIL, 2015, online).
Desse modo, conclui-se que a relevância da atuação da Defensoria Pública no Estado democrático de direito brasileiro, reconhecida tanto pela sociedade quanto pelo ordenamento jurídico pátrio, extrapola a órbita da mera assistência jurídica aos hipossuficientes econômicos, sendo também sua a atribuição de garantir suporte profissional àqueles indivíduos que, embora apresentem condições financeiras estáveis, encontrem-se em situação de vulnerabilidade jurídica ou organizacional frente a particulares ou ao Estado, necessitando do suporte institucional para a defesa, promoção e efetivação dos seus direitos tanto na seara judicial quanto extrajudicial.
2.3 A Autonomia da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e da União
Sendo a Defensoria Pública uma instituição que se insere no conjunto normativo básico de conformação do Estado democrático de direito brasileiro, a sua estruturação como órgão essencial à justiça demanda o reconhecimento de certas prerrogativas para que a sua atividade precípua possa ser exercida de forma plena, preservando-se a idoneidade de uma atuação livre e resguardando-a contra ingerências externas, sejam elas políticas, administrativas ou financeiras.
Notadamente, para que o efetivo desempenho institucional seja garantido, a Defensoria Pública demanda a autonomia das suas funções, a fim de garantir que o seu objetivo fundamental de proteção dos necessitados não seja maculado por motivações ou interesses paralelos. Diante disso, faz-se necessário aprofundar o estudo acerca das Emendas Constitucionais que alteraram o texto originário da Constituição Federal conferindo a autonomia funcional, administrativa e financeira à instituição em todos os níveis da Federação.
2.3.1 – A Autonomia das Defensorias Públicas a partir das Emendas Constitucionais nº 45/04, 69/12 e 74/13
No ano de 2004, o Congresso Nacional aprovou e promulgou a Emenda Constitucional nº 45/04 promovendo significativas alterações na Lei Maior a fim de reformar a estrutura e a organização do Poder Judiciário. Mencionada Emenda também produziu relevante impacto no âmbito da Defensoria Pública ao atribuir expressamente às Defensorias Públicas dos Estados autonomia funcional e administrativa, bem como a iniciativa de sua proposta orçamentária, reafirmando sua característica de instituição extra poder, conforme segue:
Art. 134. [...]
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º (BRASIL, 1988, online).
Pela literalidade do dispositivo acima denota-se que, inicialmente, o reconhecimento da autonomia destinou-se apenas às instituições de âmbito estadual, não se incluindo as Defensorias Públicas do Distrito Federal e da União, revelando um vício constitucional marcado pela mácula ao princípio da unidade, que veio a ser sanado em momento posterior por meio da elaboração de duas novas Emendas Constitucionais. A EC nº 45/04 deu início, portanto, ao processo de constitucionalização da autonomia administrativa, funcional e financeira da Defensoria Pública, o qual, sequencialmente, foi estendido à DPDF e por último à DPU.
Tendo em vista a omissão do poder constituinte originário em atribuir à Defensoria Pública a sua autonomia, estabelecendo uma disparidade em relação aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, essa sempre foi uma pauta bastante discutida e contestada por aqueles que integram o órgão defensorial. Essa ausência de previsão normativo-constitucional expressa, por outro lado, não impediu que alguns Estados da federação, ao elaborarem leis complementares dispondo acerca da organização das suas respectivas Defensorias Públicas atribuíssem autonomia ao órgão.
A promulgação de tais legislações infraconstitucionais ensejou o ajuizamento de Ações Direitas de Inconstitucionalidade (ADI) postulando a declaração de sua inconstitucionalidade por encontrarem-se em desconformidade com o texto da Lei Maior haja vista a sua omissão sobre a questão. Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou o tema nas ADI’s 494/MT e 575/PI, propostas antes mesmo da promulgação da EC nº 45/04, tendo sido a primeira extinta sem julgamento de mérito, por perda do objeto, em decorrência da revogação da norma em questão, enquanto a segunda declarou materialmente inconstitucional a lei estadual por violar o pacto federativo, conforme magistra Lima (2015, p. 103):
A primeira (ADI 494/MT) contava com dois votos favoráveis à constitucionalidade da concessão de autonomia funcional e administrativa quando a Lei Complementar 7/1990 do Estado do Mato Grosso foi revogada. A ADI foi julgada prejudicada por perda do objeto. [...] Na segunda (ADI 575/PI) o STF pronunciou-se conclusivamente no sentido de acolher a tese de inconstitucionalidade da legislação estadual, uma vez que desobedecera o modelo federal instituído para a Defensoria Pública (grifo do autor).
Obsta pontuar, no entanto, que no bojo da ADI 494/MT os dois votos proferidos que se manifestaram pela constitucionalidade da norma apontaram como argumento o fato de que o mero silêncio dos constituintes originários sobre a autonomia da Defensoria Pública não poderia servir como base para invalidar a norma infraconstitucional, nos termos que segue:
O Tribunal retomou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra a Lei Complementar 7/90, do Estado do Mato Grosso, que organiza a Defensoria Pública do mesmo Estado - v. Informativo 97. O Min. Nelson Jobim, presidente, em voto-vista, acompanhou o voto do relator, que, analisando a argüição de inconstitucionalidade quanto ao art. 5º da lei impugnada (‘A Defensoria Pública é instituição com autonomia funcional e administrativa.’), julgou improcedente o pedido formulado por entender que o silêncio da CF sobre a autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública não acarreta a inconstitucionalidade da lei que a estabelecer. O julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Gilmar Mendes. ADI 494/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 29.3.2006. (ADI-494) (BRASIL, 2006, online).
Outrossim, a disparidade no tratamento entre as esferas da mesma instituição, iniciada após a EC nº 45/04, deu ensejo a severas críticas e fez surgir grande movimentação no cenário jurídico pela defesa da equiparação da autonomia às Defensorias Públicas de todos os entes federativos, apontando como fundamento a proteção ao princípio da isonomia e ao princípio institucional da unidade, conforme lição de Menezes (2019, p. 7):
Além do fundamento infraconstitucional (art. 3° da Lei Complementar n° 80/94), o princípio institucional da unidade tem sede constitucional no próprio caput do artigo 134 da Constituição Federal, uma vez que tal norma, emanada do poder constituinte originário, reza, no singular: ‘A Defensoria Pública é instituição...’. Daí decorre que o parágrafo inserido no art. 134 pela Emenda Constitucional n° 45/2004, no sentido de conferir autonomia financeira e orçamentária apenas às Defensorias Públicas Estaduais e não à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, em expressa contrariedade ao caput do art. 134 da CRFB/88, deve ser considerado inconstitucional em sua interpretação literal, devendo ser feita interpretação conforme, ampliando o alcance do dispositivo, para conferir tal autonomia à Instituição como um todo (grifo do autor).
Por essa razão, a Associação Nacional dos Defensores Públicos da União (ANDPU) ajuizou a ADI 4.282/DF - que ainda se encontra pendente de julgamento - requerendo a interpretação conforme do artigo 134, §2º, da Constituição Federal a fim de ampliar o reconhecimento da autonomia das Defensoria Estaduais trazido pela EC nº 45/04 à DPDF e à DPU.
Diante desse contexto, o reconhecimento da autonomia da Defensoria Pública do Distrito Federal se deu por meio da promulgação da Emenda Constitucional nº 69/12 (EC nº 69/12) (BRASIL, 2012, online) que determinou a aplicação dos princípios e regras destinados às instituições estaduais ao órgão distrital, ao dispor que “sem prejuízo dos preceitos estabelecidos na Lei Orgânica do Distrito Federal, aplicam-se à Defensoria Pública do Distrito Federal os mesmos princípios e regras que, nos termos da Constituição Federal, regem as Defensorias Públicas dos Estados” ensejando a ampliação da incidência subjetiva do artigo 134, § 2º, da Lex Mater e equiparando ambas as instituições quanto à aplicação de seu sistema normativo.
Oportuno salientar que, até 2012, a DPDF era vinculada à União, conforme previsão expressa do artigo 52, da LC nº 80/94 (BRASIL, 1994, online) nos seguintes termos “a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios é organizada e mantida pela União” e funcionava como “Centro de Assistência Judiciária – CEAJUR”. Entretanto, a partir da EC nº 69/12, houve a transferência da União para o Distrito Federal das atribuições para organizar e manter a DPDF, dando ensejo, de fato, à estruturação e consolidação da instituição nos moldes legalmente previstos.
Já no âmbito federal, a Defensoria Pública da União teve assegurada a sua autonomia funcional, administrativa e financeira com o advento da Emenda Constitucional nº 74/13 (EC nº 74/13) que incluiu o §3º ao artigo 134 da Carta Magna, o qual determina que “aplica-se o disposto no § 2º às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal”. Tal reconhecimento constitucional ocorreu após um período de grande mobilização por parte dos membros integrantes da instituição reivindicando tal direito e, ao lograrem êxito, deram ensejo, enfim, ao alcance da isonomia entre todas as Defensorias Públicas da federação.
Conforme lição de Esteves e Silva (2018, p. 72), após a promulgação da EC nº 74/13, a Presidência da República propôs a ADI 5296/DF postulando pela declaração da sua inconstitucionalidade sob o argumento de que a mencionada emenda estava eivada de vício formal haja vista ter sido decorrente de proposta emanada do Poder Legislativo, o qual não detém legitimidade para dispor sobre servidores públicos da União e Territórios, por ser essa uma atribuição privativa do chefe do executivo federal, bem como tal conduta teria violado a cláusula pétrea da separação dos poderes.
No entanto, no bojo desta ADI, o STF, em sede de decisão cautelar, ratificou a constitucionalidade não somente da EC nº 74/13, mas também da EC nº 80/14, confirmando a legitimidade da autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública da União. No caso, o STF entendeu que, no plano federal, a sujeição do Poder Constituinte Derivado Reformador à cláusula de reserva de iniciativa de leis pelo Chefe do Executivo, prevista no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal, não se aplica ao processo de emenda à Constituição Federal, sendo plenamente admissível que o Poder Legislativo também apresente propostas de emenda à Constituição de forma complementar e ordinária.
Assim, tendo em vista os inúmeros julgados enfrentados pela Corte Suprema brasileira, tem-se que o entendimento que prevalece é no sentido de corroborar o pleito da instituição, a fim de reconhecer a concessão de um tratamento isonômico no âmbito da autonomia das Defensorias Públicas em todos os entes da federação, tornando oportuno adentrar na seara das diversas autonomias a que fazem jus, abordando suas especificidades.
A autonomia funcional está relacionada com a capacidade da Defensoria Pública de atuar com plena liberdade, sem sofrer ingerências praticadas por órgãos alheios à instituição, haja vista que sua vinculação se restringe tão somente aos comandos do ordenamento jurídico, notadamente da Constituição Federal e da LC nº 80/94. A autonomia administrativa, por seu turno, refere-se à auto-organização, à prática dos atos de gestão de seus recursos e controle das atividades dos seus membros, a fim de cumprir seus objetivos institucionais de forma independente, consoante asseveram Esteves e Silva (2018, p. 76):
A autonomia administrativa permite à Defensoria Pública praticar, de maneira independente e livre da influência dos demais Poderes Estatais, atos próprios de gestão, tais como: adquirir bens e contratar serviços; estabelecer a lotação e a distribuição dos membros da carreira e dos servidores; compor os seus órgãos de administração superior e de atuação; elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes demonstrativos; organizar os serviços auxiliares; praticar atos e decidir sobre situação funcional e administrativa do pessoal; elaborar seus regimentos internos; praticar atos gerais de gestão administrativa, financeira e de pessoal; etc.
Ressalte-se que, atinente à autonomia administrativa das Defensorias Públicas Estaduais, o Supremo Tribunal Federal, no bojo das ADI’s 3.569/PE e 3.965/MG, declarou inconstitucionais as leis elaboradas por tais Estados, os quais tinham suas Defensorias vinculadas, respectivamente, à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e à Secretaria de Estado de Defesa Social, inserindo-as na estrutura do Poder Executivo em nítida ofensa ao texto constitucional.
Quanto à autonomia financeira, está associada à iniciativa de proposta orçamentária, cuja elaboração é de competência exclusiva da própria Defensoria Pública, nos limites estabelecidos pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e tem como fundamento obstar que a instituição sofra pressões econômicas exercidas pelos demais Poderes, podendo gerir suas receitas a fim de atender suas despesas e direcioná-las para a sua efetiva estruturação, organização e manutenção, visando a plena prestação do seu serviço perante a sociedade. Infere-se do texto constitucional o reconhecimento dessa autonomia ao dispor, em seu artigo 168, o que segue:
Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (BRASIL, 1988, online).
Em que pese a iniciativa para propor leis orçamentárias seja uma atribuição privativa e indelegável do Poder Executivo, a autonomia financeira garantida à Defensoria Pública representa uma exceção à regra. Após a elaboração de sua proposta orçamentária, o órgão defensorial deve encaminhá-la ao Poder Executivo, que será responsável por consolidá-la, reunindo em um único projeto de Lei Orçamentária, as propostas do Executivo, Judiciário, do MP e da Defensoria, podendo nelas efetuar os ajustes necessários caso estejam em desacordo com os limites estipulados na LDO - mas não pode reduzir de plano as que foram apresentadas - e, ao final, irá enviá-las ao Poder Legislativo a quem cabe deliberar sobre o acolhimento ou não do orçamento proposto.
Nessa senda, oportuno mencionar que o STF julgou a ADI 5.287/PB, proposta em razão de ato do governador do Estado da Paraíba que, por meio da lei 10.437/15, reduziu unilateralmente valores previstos na LOA destinados à Defensoria Pública, em relação ao que a instituição havia proposto inicialmente quando da consolidação da proposta orçamentária enviada ao Poder Legislativo, tendo sido julgada procedente declarando a inconstitucionalidade da lei, sem pronúncia de nulidade apenas quanto à parte em que fixada dotação orçamentária à DPE, em razão da prévia redução unilateral.
Com efeito, em decorrência das Emendas Constitucionais nº 45/04, 69/12 e 74/13 a consolidação do reconhecimento jurídico-constitucional da Defensoria Pública como órgão autônomo ampliou sobremaneira a liberdade no exercício das funções institucionais com vistas à máxima efetividade da defesa dos direitos dos seus assistidos, confirmando a imprescindibilidade de se resguardar uma atuação desvinculada de qualquer elemento que possa provocar entraves ao funcionamento da instituição e da sua atividade-fim de garantia do acesso à justiça para a defesa dos direitos fundamentais de todos os indivíduos em situação de hipossuficiência.
Isto posto, a concessão de autonomia funcional, administrativa e financeira em todas as esferas da Defensoria Pública é medida que fortalece a conformação do órgão na ordem jurídica nacional, proporcionando a valorização do seu papel social e representando uma importante conquista na trajetória de luta por espaço e reconhecimento, consolidando mais uma etapa fundamental no contínuo processo de evolução institucional dentro do Estado democrático de direito.
3.A DEFENSORIA PÚBLICA COMO GARANTIA INSTITUCIONAL
Este capítulo terá como núcleo o estudo das garantias inerentes à Defensoria Pública enquanto instituição com assento constitucional, sendo inicialmente apresentado um panorama geral acerca do estudo das garantias, com destaque para a teoria das garantias institucionais de Carl Schmitt que propõe a distinção entre garantias institucionais e garantias do instituto, e de que forma elas se relacionam com a proteção dos direitos fundamentais, para empós adentrar no estudo dos direitos e garantias fundamentais no cenário jurídico brasileiro, abordando a doutrina nacional acerca do tema e de que maneira estão previstas na Constituição Federal de 1988.
Em seguida se discorrerá a respeito das múltiplas vulnerabilidades que surgem no contexto social brasileiro, acometendo os indivíduos sob diferentes aspectos a depender das circunstâncias às quais são expostos, pois, sendo o Brasil um país diverso e plúrimo, as violações a direitos se manifestam de maneira vasta, desencadeando uma série de consequências danosas para as vítimas e, diante dessa realidade fática, de que modo a atuação estatal por meio da Defensoria Pública se reflete tão importante e essencial para o combate a tais vulnerabilidades e para a proteção humanizada daqueles que estão a elas sujeitos, resguardando seus direitos fundamentais.
Finalmente, analisar-se-á o status de garantia institucional da Defensoria Pública, apresentando os efeitos dessa concepção a ela inerente, a relevância da sua existência dentro do sistema jurídico nacional e como a sua atuação pautada no princípio da máxima efetividade revela-se um meio de promoção, otimização e efetivação dos direitos fundamentais, bem como um mecanismo de vedação do retrocesso social ao mesmo tempo em que busca promover a redução das desigualdades sociais e a garantia do amplo acesso à justiça, consolidando-se como órgão de notável magnitude na conformação do Estado Democrático de Direito.
3.1– Garantias Institucionais versus Garantias do Instituto
O início da caracterização das garantias institucionais se deu na Alemanha e acompanhou o surgimento do Estado Social no país a partir da Constituição de Weimar, em 1919, período no qual iniciaram-se estudos que visavam reestruturar a proteção dos direitos fundamentais no texto constitucional e assim preservar as instituições primordiais à estabilidade social, partindo da premissa de que direitos fundamentais e garantias institucionais são categorias que não se confundem por possuírem peculiaridades, natureza jurídica e funções específicas dentro do ordenamento jurídico.
Miranda (2000, p. 73-74) destaca que as garantias institucionais ganharam relevância no contexto do século XX, momento marcado por uma nova visão do indivíduo dentro da sociedade e do papel do Estado na sua conformação, intervindo nas relações econômicas, sociais e culturais, fazendo surgir a necessidade de consolidação dos direitos fundamentais por meio de instituições e de normas, sobretudo do texto constitucional enquanto lei material máxima de regulamentação da estrutura e organização estatal e da sociedade.
A diferenciação entre direitos fundamentais e garantias institucionais estão associadas aos estudos e à produção doutrinária do jusfilósofo alemão Carl Schmitt que em sua obra “Teoria da Constituição” desenvolveu a Teoria das Garantias Institucionais, na qual afirma que a finalidade de tais garantias na ordem jurídica é promover a tutela especial das instituições essenciais à estabilidade social e à proteção dos membros da sociedade:
[...] Con terminología inexacta se suele hablar aquí de derechos fundamentales, si bien la estructura de tales garantías es por completo distinta, lógica y jurídicamente, de un derecho de libertad. Ni aun siquiera cuando se aseguran con la garantía institucional derechos subjetivos de indivíduos o de corporaciones -lo que no es obligado-, hay ahí derechos fundamentales ningunos. La garantía institucional es, por su esencia, limitada. Existe sólo dentro del Estado, y se basa, no en la idea de una esfera de libertad ilimitada en principio, sino que afecta a uma institución jurídicamente reconocida, que, como tal, es siempre una cosa circunscrita y delimitada, al servicio de ciertas tareas y ciertos fines, aun cuando las tareas no estén especializadas en particular, y sea admisible una cierta «universalidad del círculo de actuación» [8](SCHMITT, 1996, p. 175).
Bonavides (2004, p. 540), ao apontar Carl Schmitt como o maior sistematizador e teórico da teoria constitucional das garantias institucionais, atribui ao filósofo a criação da terminologia “garantia institucional” e o estabelecimento da diferenciação e separação entre esta e os direitos fundamentais “deixando bem claro que o sentido dela era o de ministrar uma proteção especial (‘besonderen Schutz’) a determinadas instituições (‘bestiinmten Einrichtungen’)” e completa afirmando que:
A garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido (BONAVIDES, 2004, p. 542).
Sob o mesmo enfoque, Miranda (2000, p. 74) assimila ser comum nas Constituições materiais que direitos e garantias sejam tratados de forma conjunta, o que não raras vezes torna difícil identificar se determinada norma está voltada para direitos fundamentais ou garantias institucionais, pelo que se faz necessário diferenciá-los partindo-se da premissa de que ela será atinente à direito fundamental “se coloca na respectiva esfera jurídica uma situação activa que uma pessoa ou um grupo possa exercer por si e invocar directamente perante outras entidades”, bem como tratará de garantia institucional quando “se confina a um sentido organizatório objectivo, independentemente de uma atribuição ou de uma actividade pessoal”.
Há que se destacar que, em seus estudos, Schmitt dividiu as garantias presentes no texto constitucional alemão em duas subespécies, quais sejam garantias institucionais e garantias do instituto, estando estas relacionadas às instituições de direito privado, individual, enquanto aquelas estariam associadas ao direito público e voltadas para a preservação das instituições estatais. Seguindo tais enunciados, Canotilho (2003, p. 395) manifesta a pertinência em diferenciar direitos fundamentais de garantias institucionais asseverando que:
As chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien) compreendiam as garantias jurídico-públicas (institutionnelle Garantien) e as garantias jurídico-privadas (Institutsgarantie). Embora muitas vezes estejam consagradas e protegidas pelas leis constitucionais, elas não seriam verdadeiros direitos atribuídos directamente a uma pessoa; as instituições, como tais, têm um sujeito e um objecto diferente dos direitos dos cidadãos. Assim, a maternidade, a família, a administração autónoma, a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia acadêmica, são instituições protegidas directamente como realidades sociais objectivas e só, indirectamente, se expandem para a protecção dos direitos individuais (grifo do autor).
Portanto, esta distinção doutrinária estabelecida pelo constitucionalista weimariano tinha por escopo limitar a atuação do Estado, sobretudo do Poder Legislativo, a fim de obstar sua interferência arbitrária no núcleo essencial das instituições voltadas para concretizar interesses sociais, bem como proteger a Constituição, conforme bem explana Sarlet (2012, p. 203) ao dizer que “as garantias institucionais objetivam outorgar uma especial proteção a determinadas instituições, no sentido de evitar sua supressão por intermédio do legislador infraconstitucional”.
Na mesma toada, Mendes e Branco (2014, p. 199-200) destinam tópico específico para lecionar acerca das garantias institucionais, no qual igualmente ressaltam que “as garantias institucionais desempenham função de proteção de bens jurídicos indispensáveis à preservação de certos valores tidos como essenciais” e, nesse contexto, também explanam sobre a sua aplicabilidade no cenário jurídico, ao asseverarem que:
As garantias institucionais resultam da percepção de que determinadas instituições (direito público) ou institutos (direito privado) desempenham papel de tão elevada importância na ordem jurídica que devem ter o seu núcleo essencial (as suas características elementares) preservado da ação erosiva do legislador. O seu objeto é constituído de um complexo de normas jurídicas, de ordem pública e privada. A garantia da família (art. 226) e a da autonomia da universidade (art. 207) exemplificam essa categoria de normas entre nós. [...] Em geral, por si, as garantias institucionais não outorgam direito subjetivo aos indivíduos, diferenciando-se, nisso, das garantias fundamentais. Por vezes, entretanto, um mesmo preceito apresenta aspectos de garantia institucional e de direito subjetivo. Essas garantias existem, afinal, para que se possam preservar direitos subjetivos que lhes dão sentido. Têm por escopo preponderante reforçar o aspecto de defesa dos direitos fundamentais.
Ainda sob o mesmo espectro, baseando-se nos estudos de Schmitt e considerando que a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, ampliou o rol das garantias institucionais no ordenamento jurídico do país enquanto Estado Social, Pieroth e Schlink (2012, p. 54) partem para a análise dos direitos fundamentais nela contidos, fazendo um paralelo com as garantias institucionais e das instituições:
Alguns direitos fundamentais garantem não só direitos subjetivos, mas também, objetivamente, instituições. Enquanto garantias de instituto (Institutsgarantien), na terminologia, geralmente aceita, de C. Schmitt, garantem instituições de direito privado e, enquanto garantias institucionais (institutionelle Garantien), garantem instituições de direito público, retirando- as assim do poder dispositivo do legislador. [...] Exemplos: O legislador não pode extinguir o casamento e a família (art. 6º, n. 1), a escola privada (art. 7º,n. 4), a propriedade e o direito sucessório (art. 14º, n. 1), nem o funcionalismo público de carreira (art. 33º, n. 5). No entanto, os referidos artigos também garantem, simultaneamente, os direitos subjetivos de celebração do casamento e de constituição de família, de propriedade e sucessão hereditária, de criação de escolas privadas etc.
No mesmo sentido, Canotilho (2003, p. 1154-1155), em seus estudos acerca da Constituição portuguesa destaca as garantias institucionais nela inseridas e o fato de estarem estreitamente ligadas aos direitos fundamentais, apesar de reconhecer a diferenciação entre ambos, ao afirmar que:
As normas que se destinam a proteger instituições (públicas ou privadas) são designadas, pela doutrina, por normas de garantias institucionais. Andam, muitas vezes, associadas às normas de direitos fundamentais, visando proteger formas de vida e de organização social indispensáveis à própria protecção de direitos dos cidadãos. Assim, por ex., a CRP, ao mesmo tempo que reconhece como direito fundamental o direito de constituir família e de contrair casamento (art. 36.°/1), assegura a protecção da família como instituição (art. 67.°). O mesmo se diga da paternidade, da maternidade (art. 68.°) e do ensino (art. 74.°). Tradicionalmente, os autores incluem nas chamadas garantias institucionais jurídico-públicas (institutionelle Garantien na doutrina alemã, que as distingue das garantias jurídico-privadas, ou seja, das Ínstitutsgewiilarleistungen) a garantia da autonomia local (art. 6.°/1), a garantia do funcionalismo público (art. 269.°) e a garantia da autonomia universitária (art. 76.°/2) (grifo do autor).
Desse modo, Schmitt defendia que as garantias institucionais estabelecidas pelo direito interno de um determinado Estado destinavam-se a tutelar as instituições que, por previsão constitucional, eram dotadas de essencialidade e detinham relevância jurídica dentro daquele contexto social, repercutindo sobre toda a sociedade, e asseverava, ademais, que tais garantias não podiam ser confundidas com os direitos fundamentais, pois estes eram voltados para a proteção dos indivíduos e dos seus direitos de liberdade individual, igualdade e participação política (BONAVIDES, 2004, p. 544).
No cenário brasileiro, a formação do ordenamento jurídico nacional enquanto Estado democrático tem como cerne os direitos e as garantias fundamentais ao lado da delimitação do poder estatal. A ordem constitucional de 1988 delineou uma perspectiva inaugural acerca da proteção do indivíduo que pode ser identificada a partir da preocupação dos constituintes originários em destacar e dar visibilidade a tais preceitos fundamentais já no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) do seu texto, dispondo ao longo de seus capítulos, acerca, entre outros, dos direitos civis, políticos e sociais e as respectivas garantias, pelo que se denota que direitos e garantias estão inter- relacionados e se complementam, mas não se confundem dentro da ordem jurídica, como destaca Bonavides (2004, p. 526):
A garantia - meio de defesa - se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir. Ora, esse erro de confundir direitos e garantias, de fazer um sinônimo da outra, tem sido reprovado pela boa doutrina, que separa com nitidez os dois institutos [...] se aceitássemos a confusão, nunca lograríamos tampouco um conceito preciso e útil do que seja uma garantia constitucional. Esse caminho conduziria sem dúvida ao obscurecimento de uma das noções mais valiosas para o entendimento da progressão valorativa do Estado liberal em sua passagem para o Estado Social.
Ao estabelecer uma abordagem acerca da disposição deste conteúdo na Carta Constitucional, Silva (2005, p. 186), ao passo em que reconhece a relevante importância da consolidação dos direitos fundamentais, aponta também que para que eles possam ter plena efetividade e aplicabilidade faz-se necessário estabelecer garantias à sua execução, refletindo a relevância jurídico-constitucional de ambos em caráter igualitário. Nesse sentido, destaca o autor:
Não são nítidas, porém as linhas divisórias entre direitos e garantias [...] A Constituição, de fato, não consigna regra que aparte as duas categorias, nem sequer adota terminologia precisa a respeito das garantias. Assim é que a rubrica do Título II enuncia: ‘Dos direitos e garantias fundamentais’, mas deixa à doutrina pesquisar onde estão os direitos e onde se acham as garantias. O Capítulo I desse Título traz a rubrica: ‘Dos direitos e deveres individuais e coletivos’, não menciona as garantias, mas boa parte dele constitui-se de garantias. Ela se vale de verbos para declarar direitos que são mais apropriados para enunciar garantias. Ou talvez melhor diríamos, ela reconhece alguns direitos garantindo-os (grifo do autor).
Dentro desse contexto, merecem destaque os estudos inaugurais de Rui Barbosa que, ainda no século XIX, alinhado com os ideais do liberalismo, desenvolveu e introduziu o conceito de garantias constitucionais, em razão dos seus posicionamentos em prol da defesa das liberdades individuais e contra as arbitrariedades e violências perpetradas pelo Estado. Bonavides (2004, p. 529-530), ao mencionar a produção doutrinária deste constitucionalista afirma que:
Em sua lição acerca das garantias constitucionais, Rui primeiro demonstrou que ‘uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que essas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança política ou judicial’. E a seguir definiu strictu sensu as garantias constitucionais como sendo ‘as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder’. [...] O entendimento de Rui sobre garantias constitucionais estava na linha mais afinada e congruente do constitucionalismo liberal do século XIX, tanto que, ao interpretar ‘na acepção racional’ o art. 80 da primeira Constituição republicana do Brasil - a de 1891 - declarou ele que as garantias eram ‘condições de proteção à liberdade individual’, sem as quais, em seus próprios termos, ‘a execução da lei’ ficaria tolhida, ludibriada e anulada (grifo do autor).
Tamanha é a relevância da doutrina de Rui Barbosa, que seus trabalhos exerceram forte influência durante a elaboração da Constituição Federal de 1988 ao positivar normas acerca dos direitos e garantias fundamentais prevendo que os direitos fundamentais são disposições que declaram bens e vantagens destinados aos indivíduos, enquanto as garantias constitucionais são os mecanismos jurídicos que efetivam e legitimam a sua defesa, bem como os protegem em face dos excessos do poder público e que Ferreira Filho (2016, p. 48) nomeia de garantias-sistema, dotadas de sentido amplíssimo, as quais são instrumentos que “se destinam a manter os poderes no jogo harmônico das suas funções, no exercício contrabalançado das suas prerrogativas”.
Ferreira Filho (2016, p. 48-49) ainda atribui outros sentidos às garantias, cada um dotado de peculiares e funções diversas dentro do sistema jurídico, quais sejam sentido amplo (garantia institucional), sentido restrito (garantia-defesa) e sentido restritíssimo (garantia instrumental), conforme segue:
Num sentido amplo, garantias são a estrutura institucional organizada que se volta para a defesa de direitos. [...] Como essa garantia é confiada a instituições determinadas, pode-se designá-la de garantia institucional. Em sentido restrito, são garantias as defesas especiais relativamente a determinados direitos. Constituem proibições que visam a prevenir a violação a direito. É o caso da proibição da censura, para proteger a liberdade de expressão do pensamento e de comunicação [...] Pode-se dizê-las garantias-defesa, ou, também, garantias-limite, porque são limites à ação do poder. Em sentido restritíssimo, garantias são os instrumentos (daí a expressão comumente usada para designá-las — garantias instrumentais) ou meios de defender direitos específicos, provocando a atuação das instituições previstas para a sua proteção (a estrutura de garantia institucional). Servem, assim, para invocar a garantia institucional, em prol das garantias-limite, constituindo instrumento para a proteção dos direitos fundamentais (grifo do autor).
Dando ênfase ao panorama jurídico brasileiro dos direitos e garantias dentro do cenário latino-americano, Bonavides (2004, p. 537) estabelece um paralelo entre as garantias constitucionais e as garantias institucionais ao preconizar que aquelas possuem um universo conceitual amplo que abrange estas, estando ambas conectadas na medida em que “a garantia constitucional é uma garantia que disciplina e tutela o exercício dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado”.
Assim, denota-se que durante o Estado Liberal se buscou proteger as liberdades públicas direcionadas aos indivíduos, enquanto as garantias de tais liberdades eram vinculadas à atuação estatal através do estabelecimento de balizas para a não intervenção na esfera pessoal de suas vidas, a exemplo das questões envolvendo a propriedade privada. Posteriormente, com o advento do Estado Social notou-se a necessidade de tutelar outros direitos, não se restringindo apenas aos direitos de liberdade, o que resultou, consequentemente, na ampliação do alcance das garantias constitucionais para proteger e resguardar todo o complexo de direitos fundamentais que hoje estão presentes na Constituição Federal, cabendo ao Estado promover a sua máxima efetividade e, nesse sentido:
[...] Quando as garantias institucionais amadurecem na obra de Schmitt, já o Estado liberal principiava a ficar para trás com o advento do Estado social. Isto aconteceu a partir da República de Weimar. Daqui por diante, a análise conceitual da segurança das instituições e dos direitos fundamentais já não pode prescindir do conceito de garantias institucionais. Doravante ele se converte numa das colunas do Estado social, forma que rege a organização dos poderes públicos debaixo de uma nova inspiração política e filosófica, a qual deslocou o eixo do poder na vida do Estado, trazendo para as instituições a hegemonia da sociedade em substituição da antiga supremacia do indivíduo; a primeira, caracterizando o Estado social, a segunda, o Estado liberal hoje em grande parte decadente ou já extinto (BONAVIDES, 2004, p. 535).
Ademais, os direitos de liberdade e igualdade invocados, respectivamente, pelos modelos liberais e sociais de Estado não conflitam nem tampouco se contrapõem no constitucionalismo contemporâneo, cabendo às garantias constitucionais efetivar a sua máxima tutela a fim de manter o equilíbrio e a ordem jurídico-constitucional, conforme leciona Schwabe (2005, p. 320):
Liberdade e igualdade foram as grandes bandeiras do movimento constitucionalista, que passaram a integrar o corpo de todas as constituições do tipo ocidental democrático. Normalmente elas aparecem nas constituições lado a lado. [...] As garantias constitucionais da liberdade e igualdade não transportam este conflito social ao plano constitucional: enquanto normas constitucionais, elas se apresentam harmoniosas e sem hierarquização entre si, uma ao lado da outra. É o legislador ordinário quem deve disciplinar o conflito social entre estes dois anseios. Ele o fará, na medida em que determinará quanta margem de ação deixará ao mais forte e quanta proteção dará ao mais fraco. Tanto as garantias constitucionais de igualdade, quanto as garantias de liberdade servirão para impor ao legislador certos limites que ele não poderá ultrapassar: em suma, a restrição ou diminuição da liberdade, de um lado, e o tratamento desigual, do outro, não poderão ocorrer sem um motivo racional.
Por fim, Dimoulis e Martins (2012, online) comentam acerca da teoria de Schmitt aplicando-a à realidade brasileira, ressaltando que, em que pese seja papel do poder público concretizar as diretrizes e objetivos estabelecidos pela Constituição Federal a fim de promover a isonomia e a justiça social, o contexto fático reflete um distanciamento do cumprimento efetivo de tais premissas, consoante se denota a seguir:
Segundo Schmitt há duas espécies de garantias de organização: (a) Garantias de instituições privadas (Institutsgarantien), tais como a família e o casamento, a propriedade e a possibilidade de organizar associações. Além da liberdade de agir, o indivíduo pode exigir do Estado uma regulamentação jurídica e a tomada de medidas práticas que possibilitem o exercício efetivo do respectivo direito; (b) Garantias de instituições públicas (institutionelle Garantien), isto é, de organismos estatais cuja presença é imprescindível para que os titulares de direitos fundamentais possam exercê-los (Administração Pública, tribunais, estrutura eleitoral). Se o Estado não tivesse, por exemplo, a obrigação de manter uma estrutura judiciária densa, seria risível dizer que o morador do Amazonas tem o direito ao habeas corpus porque pode impetrá-lo ante a um tribunal de Brasília. Saliente-se que não se trata de um caso de pura retórica. A experiência cotidiana, assim como uma série de estudos, indica que em regiões e bairros pobres a presença das autoridades do Estado e da infraestrutura de serviços deixa muito a desejar. Nesse sentido, o Estado brasileiro, até hoje, não cumpriu sua obrigação de oferecer estruturas públicas capazes de atender às necessidades da população, necessidades que devem ser entendidas e satisfeitas não como obra de caridade de políticos paternalistas, mas enquanto cumprimento de uma obrigação do Estado definida pela própria Constituição Federal e que corresponde à efetivação dos direitos fundamentais sociais.
À vista disso, os estudos em torno do sistema de direitos e garantias desencadearam uma significativa reformulação na seara constitucional, dando destaque para as garantias institucionais precípuas à coletividade, resguardando, sob o viés jurídico, direitos fundamentais a ela inerentes sendo tamanha a sua relevância que, ainda hoje, produzem reflexos no constitucionalismo contemporâneo que exige do Estado planejamento, metas e ações voltadas para a consecução, no direito interno, da promoção do bem-estar social e da tutela da dignidade da pessoa humana.
3.2 – Um Recorte sobre os Campos de Atuação da Defensoria Pública no Resguardo aos Direitos Fundamentais de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
A Defensoria Pública enquanto órgão essencial à função jurisdicional do Estado, pensada e criada para prestar a assistência jurídica integral e gratuita aos indivíduos em situação de vulnerabilidade, atua como mecanismo garantidor do acesso à justiça e viabiliza a comunicação entre estes e o Poder Judiciário, bem como a todas as alternativas extrajudiciais para a solução de litígios daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, evidenciando, assim, o seu relevante papel social.
Desde a sua criação, o processo de estruturação e fortalecimento da Defensoria Pública, tem como objetivo primordial assegurar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais proclamados pelos constituintes originários, mormente aqueles intrínsecos à defesa da cidadania plena, à primazia dos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana. Dentro desse contexto, ao tratar sobre a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, Sarmento (2004, p. 154-155) bem destaca que:
Uma das mais importantes consequências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante. Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante, neste sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.
Assim, funções destinadas à instituição para a defesa destes direitos fundamentais das pessoas em situação de vulnerabilidade através do acesso à justiça dialogam com os valores que emergem do Estado democrático de direito, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, a igualdade material, a prevalência dos direitos humanos, a proteção de grupos sociais hipossuficientes e daqueles privados de representação jurídica, a atuação em prol das minorias, a solução extrajudicial de conflitos e a promoção da paz social, pressupostos estes que devem ser observados e respeitados pelo Defensor Público no exercício das suas funções e corroborando tal afirmação, como consta na regra nº 29 das 100 Regras de Brasília:
(29) Destaca-se a conveniência de promover a política pública destinada a garantir a assistência técnico-jurídica da pessoa vulnerável para a defesa dos seus direitos em todas as ordens jurisdicionais: quer seja através da ampliação
de funções do Defensor Público, não somente na ordem penal mas também noutras ordens jurisdicionais; quer seja através da criação de mecanismos de assistência letrada: consultorias jurídicas com a participação das universidades, casas de justiça, intervenção de colégios ou barras de advogados. Tudo isso sem prejuízo da revisão dos procedimentos e dos requisitos processuais como forma de facilitar o acesso à justiça (BRASIL, 2008, online).
Como parte da tendência de implementação de ações afirmativas e de defesa dos grupos vulneráveis, a Defensoria Pública se revela como instrumento de superação da intolerância, da discriminação, da violência e da exclusão social, refletindo a preocupação constitucional em assegurar a especial tutela dos indivíduos naturalmente frágeis, inseridos em grupos socialmente vulneráveis e, sob essa ótica, o artigo 4º, XI, da LC nº 80/94 preceitua que:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: [...]
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (BRASIL, 1994, online).
Madaleno (2019, p. 54) define a vulnerabilidade e a diferencia dos conceitos de minoria e de hipossuficiência, delimitando suas peculiaridades e a partir disso quais indivíduos e quais situações se enquadram nesse contexto que permeia a vida em sociedade, conforme se denota a seguir:
Na definição do vocábulo ‘vulnerável’ entenda-se aquele que pode ser ferido física ou moralmente e bem assim no seu âmbito econômico. Os grupos vulneráveis não se confundem com as minorias, porque os primeiros podem se constituir em um grande contingente numérico, como as mulheres, as crianças e os idosos, embora todos se identifiquem como vítimas da intolerância e da discriminação. A vulnerabilidade é um traço universal de alguns grupos de pessoas existentes na sociedade e destinatários de especial proteção, justificando--se o tratamento diferenciado em razão das suas condições políticas, sociais e culturais. A vulnerabilidade, no entanto, não se confunde com a hipossuficiência, pois esta está vinculada à pobreza e só legitima alguns tratamentos diferenciados, porque nem toda pessoa vulnerável tem dificuldades econômicas e sociais, que pudesse ser classificada como pobre. A vulnerabilidade é inerente à existência da pessoa, seja ela hiper ou hipossuficiente, tendo em conta que a existência ou ausência de lastro econômico e financeiro não impede que, em dado momento, qualquer indivíduo possa estar vulnerável e assim ser ferido ou ofendido em sua integridade física ou psicológica.
Portanto, pode-se dizer que o conceito de vulnerabilidade está ligado à existência de uma situação fática que, repercutindo no âmbito jurídico, faz surgir um direito subjetivo, passando a exigir do Estado uma atuação ativa voltada para proteger os interesses do indivíduo afetado e, nesse âmbito, a Defensoria Pública é o instrumento estatal que detém a função de efetivar a proteção desse direito violado por meio do acesso à justiça, buscando sanar as fragilidades decorrentes de um cenário circunstancial ao mesmo tempo em que tenta alcançar uma igualdade material.
Faz-se oportuno mencionar, ademais, os sujeitos e os grupos sociais hipervulneráveis, categoria esta que vem ganhando espaço na doutrina pátria e na jurisprudência e que, conforme ensinamento de Fensterseifer (2017, p. 51), podem ser entendidos como aqueles que:
[...] Por sua peculiar condição existencial, apresentam não apenas um fator de vulnerabilidade (por exemplo, ser criança, pobre ou idoso), mas sim um somatório de dois ou mais fatores agravadores da sua vulnerabilidade (ex.: criança pobre com grave problema de saúde ou pessoa idosa com deficiência), ensejando um regime jurídico ainda mais reforçado na sua proteção. Essa vulnerabilidade ‘agravada’, por assim dizer, é relevante para o Direito, cabendo ao ordenamento jurídico e ao próprio Sistema de Justiça ampliar os mecanismos voltados à proteção de tais pessoas.
Assim, certo é que as vulnerabilidades podem se dar de inúmeras formas, bem como podem ser visualizadas em contextos sociais diversos, a depender da situação em que se encontra o indivíduo que foi vítima de violação de seus direitos. Desse modo, em que pese não seja possível elencar de modo taxativo as vulnerabilidades existentes nos diversos contextos sociais, uma vez que vão surgindo de acordo com a dinâmica das relações interpessoais, algumas se destacam no âmbito brasileiro, a exemplo das que estão relacionadas à pauta indigenista, à questão etária, à população em situação de rua, às pessoas com deficiência, às peculiaridades envolvendo o Direito Penal e Penitenciário e o Direito do Consumidor, as quais serão abordadas de forma detalhada a seguir.
A. Na seara indigenista
A Constituição Federal de 1988 detém capítulo exclusivo para tratar sobre os índios do território brasileiro, no qual reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, as quais, em que pese serem bens da União, são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
Com o fito de garantir o acesso à justiça aos povos indígenas, o texto constitucional também prevê que os índios, suas comunidades e organizações possuem legitimidade para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, cuja competência para julgar tais causas envolvendo disputas sobre direitos indígenas, de suas terras e comunidades cabem à Justiça Federal, enquanto questões envolvendo direitos individuais e particulares dos índios, sejam elas cíveis ou criminais, são destinadas à Justiça Estadual, a exemplo da súmula 140 do STJ (BRASIL, 1995): “compete a Justiça Comum estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima".
A Carta Constitucional de 1988, ao lado da legislação infraconstitucional e internacional, com destaque para a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, segundo a qual o reconhecimento de tais povo se dá nos seguintes termos:
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
3. A utilização do termo ‘povos’ na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional (BRASIL, 2004, online).
Tais normativas estabeleceram novos marcos para a relação entre Estado, povos indígenas e sociedade a partir da concepção interculturalista – diferentes culturas convivendo entre si -, rompendo com as disposições das Constituições anteriores e do Estatuto do Índio que defendiam a ideia de assimilação cultural, entendendo os índios como categoria social transitória, cuja existência estaria fadada a desaparecer, e uma política integracionista - e nesse sentido bem destacam Mello e Guimarães (2018, p. 2) “até a promulgação da CF/88, pode-se afirmar que a política estatal para os povos indígenas era de aculturação, a partir da assimilação cultural e, posteriormente, pela integração à comunhão nacional, nos moldes ocidentais”.
Outrossim, mormente os significativos avanços legais para a proteção dos direitos indígenas, ainda hoje essas comunidades estão submetidas a graves situações de vulnerabilidade, sofrendo com a omissão estatal em demarcar suas terras tradicionais, com a destruição das áreas ambientais em que estão inseridos, sendo vitimados com constantes invasões de seus territórios para exploração de recursos naturais, com a dizimação de suas comunidades por disputa de territórios, ameaças de grileiros e contaminações provenientes do garimpo, os quais, não raro, ocorrem de maneira ilegal e violenta.
A dificuldade de acesso aos mecanismos da Justiça competentes para prestar-lhes assistência jurídica, seja em razão do idioma, da locomoção e das grandes distâncias, da ausência de informação ou até mesmo do desconhecimento dos direitos a que fazem jus, também são fatores que potencializam a vulnerabilidade dos povos indígenas e, cientes dessa realidade e visando combatê-la, as 100 regras de Brasília preocuparam-se em destinar disposições específicas acerca das comunidades indígenas, dentre as quais:
(9) As pessoas integrantes das comunidades indígenas podem encontrar-se em condição de vulnerabilidade quando exercitam os seus direitos perante o sistema de justiça estatal. Promover-se-ão as condições destinadas a possibilitar que as pessoas e os povos indígenas possam exercitar com plenitude tais direitos perante o dito sistema de justiça, sem discriminação alguma que possa ser fundada na sua origem ou identidade indígenas. Os poderes judiciais assegurarão que o tratamento que recebem por parte dos órgãos da administração de justiça estatal seja respeitoso com a sua dignidade, língua e tradições culturais. Tudo isso sem prejuízo do disposto na Regra 48 sobre as formas de resolução de conflitos próprios dos povos indígenas, propiciando a sua harmonização com o sistema de administração de justiça estatal. [...]
(48) Com fundamento nos instrumentos internacionais na matéria, é conveniente estimular as formas próprias de justiça na resolução de conflitos surgidos no âmbito da comunidade indígena, assim como propiciar a harmonização dos sistemas de administração de justiça estatal e indígena baseada no princípio de respeito mútuo e de conformidade com as normas internacionais de direitos humanos.
(49) Além disso serão de aplicação as restantes medidas previstas nestas Regras nos casos de resolução de conflitos fora da comunidade indígena por parte do sistema de administração de justiça estatal, onde é conveniente abordar os temas relativos à peritagem cultural e ao direito a expressar-se no próprio idioma (BRASIL, 2008, online).
Nesse cenário, a importância da Defensoria Pública dentro da estrutura do Estado representa um forte mecanismo de auxílio na defesa das questões indigenistas, tendo sido objeto de discussão no seminário “A Reforma da Justiça no Brasil: uma década de desafios e conquistas em uma perspectiva latino-americana”, o qual ao tratar especificamente sobre povos indígenas e comunidades tradicionais destacou o papel da instituição e de seus membros dentro do sistema de justiça, dispondo, especificamente:
3.2. Recomendações para a atuação de diferentes órgãos do Sistema de Justiça e seus profissionais no atendimento e resolução de conflitos envolvendo direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais
3.2.1. Implementar, no âmbito das Defensorias Públicas, atendimentos que operem não somente pela atuação judicial e pelo acompanhamento de políticas públicas, mas também pela promoção de uma política de educação em direitos, com a participação de indígenas e quilombolas no planejamento dessa ação;
3.2.2. Promover atendimento externo e específico das Defensorias Públicas no local onde habitam os povos tradicionais; 3.2.3. Que as Administrações das Defensorias Públicas estimulem o desenvolvimento de práticas voltadas à difusão dos Direitos Humanos e à prestação de assessoria jurídica aos grupos indígenas e comunidades tradicionais; 3.2.4. Recomendar à Defensoria Pública da União - DPU que lote os defensores públicos onde os povos indígenas se fazem presentes (grifo do autor) (SEMINÁRIO, 2015, online).
Desse modo, diante da importante e necessária atuação de todos os Poderes para a proteção das comunidades indígenas, a Defensoria Pública, assim como o Ministério Público e todo o aparato estatal cujo direcionamento é voltado para esses povos, a exemplo da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), se revela uma instituição essencial na efetivação da tutela dos direitos e garantias fundamentais desse povos, buscando facilitar o seu acesso à justiça, por meio de ações individuais e coletivas, e aos demais mecanismos de preservação da sua dignidade, autodeterminação e organização, a fim de combater e até mesmo sanar tais vulnerabilidades.
B. Na seara etária
Os indivíduos, ao longo de toda a sua existência, desde a sua concepção, são destinatários de direitos e garantias fundamentais que resguardam a dignidade da pessoa humana. No entanto, durante essa trajetória de vida, aqueles que estão no seu início e no seu fim costumam estar mais suscetíveis a situações de vulnerabilidades dentro da sociedade, seja em razão da sua condição de pessoa em desenvolvimento ou da senilidade e das fragilidades inerentes à longevidade.
Como bem ressaltam Esteves e Silva (2018, p. 303) “durante os dois extremos da vida humana, o indivíduo enfrenta notória dificuldade para acessar o sistema de justiça”, sendo esta uma realidade enfrentada por crianças, adolescentes e idosos no contexto brasileiro e é sob essa mesma ótica que Pereira (2019, p. 72) ressalta em sua obra a lição de que:
Tanto para a criança e o adolescente quanto para o idoso, a prioridade absoluta exerce a importante função de garantir, na prática e nas diversas esferas, os direitos previstos pela lei, atentando para as vulnerabilidades e necessidades desta parcela da população e norteando a elaboração de ações e políticas públicas.
No que se refere às crianças e aos adolescentes, a doutrina da proteção integral adotada pelo texto constitucional, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com a normativa internacional – com destaque para a Convenção sobre Direitos da Criança –, reconhecendo a sua condição peculiar de vulnerabilidade, estabelecem diretrizes voltadas para a máxima tutela dos direitos fundamentais a eles inerentes e do melhor interesse enquanto sujeitos de direito, bem como deveres e obrigações da família, da sociedade e do Estado, punições aos crimes contra eles perpetrados, a quem são destinados os mecanismos asseguradores de condições existenciais sadias e harmoniosas para o seu pleno desenvolvimento, privilegiando a sua dignidade.
Assim, a vulnerabilidade desses indivíduos demanda sobremaneira que sejam tratados com absoluta prioridade, afinal, conforme lição de Madaleno (2019, p. 57):
Inquestionável que a falta de maturidade física e intelectual da criança a coloca em situação especial de integral proteção na defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana ainda em fase de desenvolvimento e, estando a criança e o adolescente nesta condição especial de maior vulnerabilidade é natural que seja destinatária de um regime especial de salvaguardas, cujas garantias são necessárias para a construção de sua integral potencialidade como pessoa. Dotados de direitos especiais, têm as crianças e adolescentes, por sua exposição e fragilidade, prioridade em sua proteção, como fato natural dessa etapa de suas vidas, quer fiquem expostas por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por abuso dos pais ou responsáveis. Crianças e adolescentes são destinatários do princípio dos melhores interesses, conceito jurídico induvidosamente indeterminado, mas que sempre haverá de prevalecer em favor do infante quando em confronto com outros valores, pois sempre será necessário assegurar o pleno e integral desenvolvimento físico e mental desse adulto do futuro, sujeito de direitos (grifo do autor).
No que atine aos idosos, Madaleno (2019, p. 58) trata sobre as vulnerabilidades às quais estão expostos asseverando que, diferentemente das crianças e dos adolescentes, após a promulgação da Constituição Federal o legislador brasileiro não se deteve em priorizar a elaboração de mecanismos legais que assegurassem os direitos fundamentais desses indivíduos, resumindo-se a tratar sobre questões previdenciárias e restrições ao regime matrimonial de bens ao maiores de 70 (setenta) anos, situação que veio apresentar novos contornos apenas em 2003 com a promulgação do Estatuto do Idoso (lei nº 10.741/03), destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos e, nesse sentido:
Os idosos constituem, inquestionavelmente, um grupo social em franco crescimento quantitativo, que estava à mercê de um reconhecimento especial para a vulnerabilidade de seus fundamentais direitos, ligados aos seus cuidados como pessoa, com vistas aos cuidados para com sua saúde, seu transporte, sua moradia, para com o seu regime matrimonial, que, ao contrário das restrições impostas pelo Código Civil, deveria ser de livre-escolha, ou ao menos assegurado o regime automático e legal da comunhão parcial e a divisão de eventuais bens aquestos; cuidados para com seus alimentos e a regulamentação destinada a atender sua casual custódia ou curatela, sem prejuízo de outras prioridades de ordem subjetiva, além da preferência processual para suas demandas judiciais, inclusive na seara penal, buscando a criação de uma rede de proteção contra maus-tratos físicos, psicológicos ou espoliações materiais (MADALENO, 2019, p. 58).
O envelhecimento, portanto, traz consigo uma série de limitações que dificultam o pleno exercício dos atos da vida civil de forma independente e autônoma, ensejando a necessidade de auxílio e suporte do seio familiar e também dos mecanismos estatais para que seja assegurado o seu espaço dentro do convívio social, a sua saúde física e mental, a preservação dos seus direitos e o combate às violações sofridas, visando sempre a efetivação e o resguardo da sua dignidade plena de forma prioritária.
No âmbito da atuação da Defensoria Pública em prol dos direitos e garantias desses indivíduos, a LC nº 80/94 reconhece-os como grupo social vulnerável e estabelece como função institucional o exercício da defesa dos interesses individuais e coletivos da criança, do adolescente e do idoso, a quem se destina a proteção especial do Estado. Outrossim, a importância da atividade da Defensoria Pública é reforçada pelas 100 regras de Brasília que, reconhecendo a vulnerabilidade desses indivíduos, destaca a necessidade da atuação estatal para tutelar seus direitos, dispõe que:
(5) Considera-se criança e adolescente todas as pessoas menor de dezoito anos de idade, salvo se tiver alcançado antes a maioria de idade em virtude da legislação nacional aplicável. Toda a criança e adolescente deve ser objecto de uma especial tutela por parte dos órgãos do sistema de justiça em consideração ao seu desenvolvimento evolutivo.
(6) O envelhecimento também pode constituir uma causa de vulnerabilidade quando a pessoa adulta maior encontrar especiais dificuldades, atendendo às suas capacidades funcionais, em exercitar os seus direitos perante o sistema de justiça (BRASIL, 2008, online).
De mais a mais, a vulnerabilidade natural que decorre do fator etário também enseja uma outra função institucional ao órgão defensorial que é o exercício da curadoria especial dos incapazes que não tiverem representante legal ou cujos interesses colidirem com os daquele, enquanto durar a incapacidade, conforme previsão do CPC/15, ou quanto ao idoso, nos casos em que comprovadamente estiverem incapacitados de gerir seus bens, nos termos da lei nº 8.842/94.
Destaque-se que há a criação de núcleos de assistência jurídica da infância e da juventude e de defesa do idoso no âmbito das Defensorias Públicas Estaduais e do Distrito Federal voltados para a prestação de atendimento especializado e prioritário a fim de promover e defender seus direitos, abarcando uma atuação em todas as esferas – cível, criminal e administrativa – voltada para as necessidades desses grupos, com legitimidade para propor medidas judiciais ou extrajudiciais para a tutela de seus interesses coletivos ou individuais, podendo ainda representar junto aos sistemas internacionais de proteção, bem como para garantir o pleno exercício de seus direitos e garantias fundamentais.
Isto posto, o órgão defensorial enquanto ator do sistema de garantia dos direitos de crianças, adolescentes e idosos, exerce sua atividade buscando proporcionar-lhes uma defesa coerente com os princípios constitucionais e legais, além daqueles consagrados em normas internacionais ratificadas pelo Brasil, priorizando o uso efetivo dos instrumentos normativos a fim de tutelar, de forma ampla e com absoluta prioridade, os seus direitos, cumprindo, portanto, com as premissas inerentes à doutrina da proteção integral.
C. Na seara das pessoas em situação de rua
A população em situação de rua enfrenta especiais dificuldades para exercer, de forma plena, os seus direitos dentro do convívio social, bem como perante o sistema de justiça. Diante desse contexto e da necessidade de legislação nacional específica tratando sobre tema de tamanha relevância dentro da realidade brasileira, no ano de 2009 foi instituída a Política Nacional para a população em situação de rua por meio do decreto nº 7.053/09 que traz em seu artigo 1º, parágrafo único, a definição desse grupo de pessoas e quais os parâmetros para a sua identificação, conforme se denota a seguir:
Art. 1o Fica instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua, a ser implementada de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos neste Decreto.
Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009, online).
Conforme destacam Franco e Magno (2015, p. 81-82), a parcela populacional que vive sob essas circunstâncias não foi expressamente reconhecida como vulnerável pelas
100 Regras de Brasília, no entanto estão inseridas em outros contextos de vulnerabilidades presentes no mencionado documento e, conforme asseveram, isso se dá “especialmente porque a população em situação de rua é centro de convergência de causas de vulnerabilidades superpostas, a começar pela pobreza, definida naquelas Regras nos dispositivos n. 15 e n. 16” as quais trazem como pressupostos, respectivamente, que:
(15) A pobreza constitui uma causa de exclusão social, tanto no plano económico como nos planos social e cultural, e pressupõe um sério obstáculo para o acesso à justiça especialmente daquelas pessoas nas quais também concorre alguma outra causa de vulnerabilidade.
(16) Promover-se-á a cultura ou alfabetização jurídica das pessoas em situação de pobreza, assim como as condições para melhorar o seu efectivo acesso ao sistema de justiça (BRASIL, 2008, online).
Nessa perspectiva, Esteves e Silva (2018, p. 307) manifestam raciocínio equiparado acerca das condições a que estão expostos os indivíduos que vivem sob tais circunstâncias, destacando que a situação de rua não pode ser vista como sinônimo de fragilidade econômica e isto porque esse contexto revela uma realidade muito mais ampla e complexa, fazendo surgir uma vulnerabilidade única que envolve não só a pobreza, mas também uma série de elementos pessoais e sociais que vitimam esse grupo de pessoas ensejando a sua marginalização e exclusão dentro do ciclo discriminatório socialmente estruturado, conforme se denota a seguir:
Embora a vivência em situação de rua possua como predicado comum a exposição do indivíduo à situação de pobreza extrema, essa espécie de vulnerabilidade não deve ser confundida ou equiparada à vulnerabilidade econômica. Na verdade, a realidade de exclusão e de invisibilidade social vivenciada pela população em situação de rua acaba gerando uma espécie própria de vulnerabilidade heterogênea e multidimensional, composta por diversos fatores (jurídicos, sociais, psicológicos e econômicos) e indutora de variadas consequências (miserabilidade, marginalização social, discriminação, inacessibilidade à documentação pessoal básica e aos direitos sociais fundamentais etc.).
A atuação da Defensoria Pública em defesa dos indivíduos vitimados por tal vulnerabilidade que, além de ensejadora de graves violações aos direitos humanos e fundamentais e à dignidade da pessoa humana, confirma, reproduz e potencializa a desigualdade abissal e violenta que está presente no Brasil desde os seus primórdios, deve estar munida de mecanismos que permitam uma aproximação desses indivíduos com a instituição a fim de que haja, de fato, acesso aos serviços oferecidos e aos quais fazem jus, pois o que se nota é uma tendência a que as pessoas em situação de rua evitem ou afastem-se dos instrumentos estatais existentes para tutelar e garantir os seus direitos:
É fundamental que a Defensoria Pública tenha uma visão diferenciada em relação à assistência jurídica para a população em situação de rua, já que o estigma e a discriminação vivenciada geram, nesse público específico, demasiada desconfiança em relação aos públicos. [...] A Defensoria Pública deve atuar de forma mais proativa, já que o serviço tradicional de assistência jurídica – em que o Defensor Público aguarda o comparecimento do assistido à Defensoria Pública – não é bem-sucedido e eficaz quando se trata de população em situação de rua, cuja hipervulnerabilidade faz com que, dificilmente, procure, de forma voluntária, uma unidade da Defensoria Pública (OLIVEIRA, 2017, p. 85-86 e 97, apud ESTEVES; SILVA, 2018, p. 307).
Há, portanto, uma ampla rede de mobilização articulada para incentivar e proporcionar melhores condições de vida para esses indivíduos, sendo a Defensoria Pública um elemento primordial nesse processo de cooperação. Assim, as políticas de enfrentamento e combate à vulnerabilidade de pessoas em situação de rua devem ser estruturadas de modo a alcançá-las de maneira efetiva e garantir-lhes a oportunidade real de acesso às instituições organizadas que visam promover e resguardar, com efeito, seus direitos enquanto seres humanos para que possam sair da situação de vulnerabilidade em que vivem, contribuindo, assim, para a construção de uma sociedade materialmente igualitária.
D. Na seara das pessoas com deficiência
A reformulação das premissas atinentes às pessoas com deficiência adveio com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova Iorque) e seu Protocolo Facultativo, promulgados no ordenamento jurídico pátrio pelo decreto nº 6.949/09 e que ensejou a adequação das normas nacionais aos novos contornos por ela trazidos, a exemplo do Código Civil e do CPC/15, e instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei nº 13.146/15), que se destina a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e a sua cidadania.
Com efeito, o Estatuto da Pessoa com Deficiência inovou na órbita jurídica ao delimitar o conceito de pessoa com deficiência, passando a considerar como tais aqueles indivíduos “com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015, online).
Quanto às 100 Regras de Brasília, em que pese enquadre as pessoas com deficiência como incapazes, destoando da normativa atual que rompeu a correlação direta entre a incapacidade jurídica e a deficiência, também atesta a sua condição de vulnerabilidade ao prever que:
(7) Entende-se por incapacidade a deficiência física, mental ou sensorial, quer seja de natureza permanente ou temporal, que limite a capacidade de exercer uma ou mais actividades essenciais da vida diária, que possa ser causada ou agravada pelo ambiente económico e social.
(8) Procurar-se-á estabelecer as condições necessárias para garantir a acessibilidade ao sistema de justiça das pessoas com incapacidade, incluindo aquelas medidas conducentes a utilizar todos os serviços judiciais exigidos e dispor de todos os recursos que garantam a sua segurança, mobilidade, comodidade, compreensão, privacidade e comunicação (BRASIL, 2008, online).
Diante disso é importante não confundir vulnerabilidade com incapacidade, tendo em vista que a vulnerabilidade diz respeito a uma condição especial que reclama para si um tratamento singular, mas não de modo a impedir o sujeito de praticar os atos da vida civil. Afinal, conforme prevê a lei nº 13.146/15, a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, não havendo que se falar em incapacidade absoluta ou relativa, mas reconhece expressamente tais indivíduos como vulneráveis, nos seguintes termos:
Art. 10. Compete ao poder público garantir a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida.
Parágrafo único. Em situações de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança (BRASIL, 2015, online).
Assim, enquanto órgão do poder público, a Defensoria Pública também é instrumento de defesa dos direitos desse grupo vulnerável e as inúmeras alterações propostas pelo Estatuto repercutiram diretamente na sua atuação, com destaque para a manifestação da sua ampla legitimidade extraordinária para tutelar os direitos fundamentais e defender os interesses individuais e coletivos das pessoas com deficiência em nome próprio - a exemplo de ações relativas à acessibilidade de prédios públicos e privados e à gratuidade nos transportes públicos - conforme prevê a LC nº 80/94, corroborada pelo Estatuto, que dispõe:
Art. 79. O poder público deve assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva.
§ 1º A fim de garantir a atuação da pessoa com deficiência em todo o processo judicial, o poder público deve capacitar os membros e os servidores que atuam no Poder Judiciário, no Ministério Público, na Defensoria Pública, nos órgãos de segurança pública e no sistema penitenciário quanto aos direitos da pessoa com deficiência.
[...]
§ 3º A Defensoria Pública e o Ministério Público tomarão as medidas necessárias à garantia dos direitos previstos nesta Lei (BRASIL, 2015, online).
Pontue-se que a atividade defensorial no âmbito da curadoria especial desses indivíduos nos casos em que se constatar a incapacidade jurídica da pessoa com deficiência decorrente da impossibilidade real e duradoura de manifestar a sua vontade – nunca em razão da deficiência em si – nos termos do artigo 4º, III, do Código Civil. Nesse contexto, havendo necessidade de assistência em juízo por não possuírem curador ou tutor ou entre eles houver conflito de interesses, verifica-se hipótese de atuação da Defensoria Pública como curadora especial e, portanto, a curadoria especial exercida pela instituição não ocorrerá como representante, mas apenas como assistente, pois deverá ser respeitado o exercício da capacidade e a autonomia desse grupo.
Isto posto, a instituição enquanto órgão público detém grande parcela de importância na execução dos meios necessários para a defesa e tutela dos direitos desse grupo social que, contando com o auxílio de equipe técnica multidisciplinar, atua na articulação e no fortalecimento da rede de serviços de proteção e permitem a produção de conhecimento e de mecanismos garantidores do acesso à justiça das pessoas com deficiência.
E. Na seara do Direito Penal e Penitenciário
A realidade penal e penitenciária vivenciada no Estado brasileiro evidencia de forma latente as vulnerabilidades que acometem a parcela populacional inserida no sistema carcerário nacional, bem como os danosos impactos que dele decorrem, a exemplo da superlotação dos presídios, das condições desumanas de higiene, saúde e alimentação a que são submetidos os presos e do excesso de execução da pena, ensejando graves violações aos direitos humanos e fundamentais e submetendo-os a sérios traumas e danos de ordem física, moral e psicológica.
Sendo assim, o contexto das vulnerabilidades envolvendo tais questões também é reconhecido pelas 100 Regras de Brasília tanto sob a perspectiva da vitimização criminológica, ou seja, da vítima que sofreu danos de ordem física, moral, psicológica, econômica e social decorrentes de infrações penais contra ela perpetradas, quanto daqueles que estão privados de liberdade, nos seguintes termos:
(10) Para efeitos das presentes Regras, considera-se vítima toda a pessoa física que tenha sofrido um dano ocasionado por uma infracção penal, incluída tanto a lesão física ou psíquica, como o sofrimento moral e o prejuízo económico. O termo vítima também poderá incluir, se for o caso, a família imediata ou as pessoas que estão a cargo da vítima directa.
(11) Considera-se em condição de vulnerabilidade aquela vítima do delito que tenha uma relevante limitação para evitar ou mitigar os danos e prejuízos derivados da infracção penal ou do seu contacto com o sistema de justiça, ou para enfrentar os riscos de sofrer uma nova vitimização. A vulnerabilidade pode proceder das suas próprias características pessoais ou das circunstâncias da infracção penal. Destacam para estes efeitos, entre outras vítimas, as pessoas menores de idade, as vítimas de violência doméstica ou intra familiar, as vítimas de delitos sexuais, os adultos maiores, assim como os familiares de vítimas de morte violenta.
(22) A privação da liberdade, ordenada por autoridade pública competente, pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade, especialmente quando concorre com alguma causa de vulnerabilidade enumerada nos parágrafos anteriores (BRASIL, 2008, online).
Sob essa ótica, é possível constatar a existência das inúmeras formas de vitimização dos indivíduos que se deparam com situações de violação dos seus direitos no âmbito penal, inclusive para além da seara individual daqueles que foram diretamente atingidos, na medida em que se reconhece igualmente como vítimas as suas famílias e aqueles que estão no seu convívio.
Ademais, tais ofensas podem ser potencializadas nos casos de violência sexual, tortura, agressões ocorridas no ambiente doméstico ou familiar, bem como envolvendo crianças, adolescentes e idosos, contextos de vulnerabilidade estes que dificultam o acesso à justiça, sendo fundamental a atividade da Defensoria Pública também nesse âmbito. Alinhada com tais premissas protetivas, a LC nº 80/94, em seu artigo 4º, XVII e XVIII, elenca como funções institucionais da Defensoria Pública:
Art. 4º. [...]
XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais;
XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas (BRASIL, 1994, online).
Nesse diapasão, Fensterseifer (2017, p. 46), partindo de uma análise em sentido amplo acerca dos necessitados, destaca que, no contexto do direito penal, a condição de vulnerabilidade dessas pessoas sob o ponto de vista organizacional demanda a atuação defensorial a fim de nivelar a relação processual entre acusado/réu versus Estado, a exemplo da curadoria especial de réu preso revel e de réu preso citado por edital ou com hora certa, destacando que:
Explorando um pouco mais o tema, cabe ainda uma reflexão sobre a concepção de necessitado em sentido amplo sob a ótica individual, ou seja, situações em que a Defensoria Pública atua em favor de um único indivíduo independentemente da sua condição econômica. Para começar, vale destacar a exigência legal de defesa efetiva no processo penal, o que é desvinculado da condição econômica do réu sempre que o mesmo não constituir advogado particular. A referida previsão legal reconhece, em linhas gerais, a relação desigual de forças entre o indivíduo e o Estado-Acusador, bem como a decorrente situação de vulnerabilidade do primeiro, tornando imperativa a atuação da Defensoria Pública, de modo a atender ao devido processo legal e equilibrar a relação jurídica processual-penal à luz de um Sistema Processual- Penal Acusatório (tal como previsto na CF/88).
Do mesmo modo, tendo como enfoque as mulheres, no que se refere àquelas vítimas de violência doméstica e familiar, há que se mencionar a lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) que, ao criar mecanismos para coibir e prevenir tais violências, menciona a Defensoria Pública como órgão integrado ao conjunto de articulação das políticas públicas de assistência às mulheres, bem como dispõe em seu artigo 28 que “é garantido à toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado” (BRASIL, 2006, online). Sobre o mesmo tema, prossegue Fensterseifer (2017, p. 47):
Outra previsão legislativa bastante peculiar é o art. 28 da Lei ‘Maria da Penha’ de Proteção à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Lei 11.340/2006) [...] Não, há, conforme se pode verificar na redação de tal dispositivo – muito embora a adoção equivocada pelo legislador da expressão ‘assistência judiciária’ –, qualquer limitação subjetiva de ordem econômica para reconhecimento do direito à assistência jurídica às mulheres vítimas de violência doméstica, de modo similar ao que se constata nas hipóteses do réu criminal sem defesa e do réu cível revel citado por edital ou por hora certa. Importa, por esse prisma, registrar que a condição de necessitado em sentido amplo, pela ótica organizacional e dos grupos sociais vulneráveis, tem reflexos tanto na atuação individual quanto coletiva da Defensoria Pública, muito embora a contribuição mais relevante de tal entendimento esteja atrelada, sem dúvida, à atuação institucional na seara coletiva.
Outrossim, um caso emblemático, que teve como impetrante a DPU, foi a ordem de Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP concedida em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, ostentando a condição de gestantes, puérperas ou mães de crianças com até doze anos de idade sob sua responsabilidade, e em nome das próprias crianças, buscando combater a cultura do encarceramento, marcada pela decretação de prisões preventivas de mulheres pobres e vulneráveis, vítimas do sistema seletivo que lhes aplica uma interpretação legal mais rigorosa da lei penal e processual penal, conduzindo-as a presídios mesmo quando a decretação de medidas cautelares diversas configura-se mais adequada.
O writ teve como base argumentativa o tratamento desumano, cruel e degradante ao qual essas mulheres são expostas durante a sua vivência no cárcere, privadas de cuidados médicos, pré-natal e pós-parto, de falta de estrutura para o desenvolvimento salutar de seus filhos, como berçários e creches, sofrendo diárias violações dos seus direitos fundamentais de individualização da pena, de vedação de penas cruéis e de respeito à integridade física e moral, revelando o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Por fim, o pleito defensorial de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar desse grupo de mulheres foi concedido pelo Ministro Relator Ricardo Lewandowski, nos seguintes termos:
Ordem concedida para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes (BRASIL, 2018, online).
Desse modo, o trabalho da Defensoria Pública volta-se para o exercício da defesa plena perante o sistema de justiça e o enfrentamento das dificuldades e das violações de direitos sofridas por todos aqueles que integram contextos envolvendo Direito Penal e Penitenciário, seja o agente infrator ou a vítima da agressão por ele perpetrada, ambos expostos às vulnerabilidades proporcionadas pela realidade criminal brasileira, que vão desde o ato de violência em si, perpassando pelos procedimentos de averiguação do ilícito, até a inserção no sistema prisional, marcado por graves ofensas aos direitos humanos e fundamentais do ser humano.
F. Na seara do Direito do Consumidor
Com a promulgação da CF/88 a defesa do consumidor foi alçada à condição de direito fundamental e de princípio da ordem econômica, nos termos, respectivamente, dos artigos 5º, XXXII, e 170, V, reforçada em momento posterior, com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que, reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo, estabeleceu normas para sua proteção e defesa e, também ajustada a tais premissas consumeristas, a LC nº 80/94 em seu artigo 4º, VIII, elenca como função institucional da Defensoria Pública a defesa dos direitos do consumidor.
Certo é que as diversas vulnerabilidades que acometem o consumidor advêm da própria relação de consumo travada com o fornecedor, no seio da qual aquele se encontra em posição de desvantagem, pelo que se justifica a intervenção estatal na produção de normas cogentes que buscam reestabelecer o equilíbrio contratual. Ademais, haja vista a desigualdade de paridade de armas nessa relação, reconhece-se a presunção absoluta da vulnerabilidade do consumidor, conforme asseveram Tartuce e Neves (2018, p. 34):
Com a mitigação do modelo liberal da autonomia da vontade e a massificação dos contratos, percebe-se uma discrepância na discussão e aplicação das regras comerciais, o que justifica a presunção de vulnerabilidade, reconhecida como uma condição jurídica, pelo tratamento legal de proteção. Tal presunção é absoluta ou iure et de iure, não aceitando declinação ou prova em contrário, em hipótese alguma. [...] Assim, pode-se dizer que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo e não um elemento pressuposto, em regra. O elemento pressuposto é a condição de consumidor (grifo do autor).
Tendo em vista que a vulnerabilidade do consumidor pode se dar de diversas formas - fática, técnica, jurídica ou informacional – dentro das relações sociais, a atuação da Defensoria Pública ganha destaque principalmente na propositura de ações coletivas para tutelar os interesses e direitos difusos e, conforme destaca Grinover (2008, online), antes mesmo da previsão legal expressa que reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de demandas coletivas por meio de Ação Civil Pública - a qual se deu apenas com a lei nº 11.448/07 -, a fundamentação para o seu ajuizamento já advinha do artigo 82, III, do CDC combinado com o artigo 21 da lei da ACP. Nesse contexto, segue jurisprudência acerca do tema:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. 1. A Defensoria Pública tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da Lei 8.078/90 (Cód. de Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva visando à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores necessitados. A disposição legal não exige que o órgão da Administração Pública tenha atribuição exclusiva para promover a defesa do consumidor, mas específica, e o art. 4.°, XI, da LC 80/94, bem como o art. 3.°, parágrafo único, da LC 11.795/02-RS, estabelecem como dever institucional da Defensoria Pública a defesa dos consumidores. 2. APELAÇÃO PROVIDA (BRASIL, 2006, online).
Ademais, a instituição também tem atuação na seara individual tutelando direitos dos consumidores judicial e extrajudicialmente, tanto a nível preventivo, quanto proativo ou indenizatório a fim de educá-los sobre os direitos aos quais fazem jus, instruí-los a fim de recorrerem aos mecanismos de defesa quando for necessário, divulgar o arcabouço jurídico-normativo voltado para a proteção da coletividade e das relações de consumo, bem com atender as demandas consumeristas promovendo mediações, conciliações ou outro método extrajudicial cabível e ajuizando ações judiciais, como aquelas atinentes a revisionais de contratos, operadoras de planos de saúde, questões imobiliárias, litígios com instituições de ensino, entre outras (SCHWARTZ, 2016, online).
Nestes termos, diante da relevância e da alta demanda dos serviços prestados pela instituição no âmbito do direito consumerista, em regra, as Defensorias Públicas são estruturadas internamente, criando núcleos especializados de defesa do consumidor, que visam proporcionar um amplo e completo atendimento aos seus assistidos, a exemplo da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul que ao tratar das questões individuais e coletivas nessa seara, dispõe que:
As questões individuais podem ser orientadas no atendimento especializado do consumidor, realizado por Defensores Públicos em unidades da Defensoria em todas as regiões do Estado. Os direitos coletivos, que atingem toda a coletividade ou um grupo de pessoas, são tutelados também pelos Defensores Públicos, atuando o Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas (NUDECONTU) em casos de repercussão estadual (DEFENSORIA..., 2018, online).
Isto posto, tendo em vista a sua condição de socialmente vulnerável, o indivíduo que assume o polo mais frágil dentro da relação de consumo necessita de maior suporte estatal que lhe confira auxílio jurídico no saneamento de eventuais violações, arbitrariedades ou abusos praticados contra ele pelo fornecedor e que lhe tenham causado danos ou prejuízos, sejam eles físicos, materiais, morais ou psicológicos. Diante desse cenário, sempre que à Defensoria Pública for apresentada demanda referindo-se a direitos específicos ou gerais do consumidor individual ou de uma coletividade de consumidores, sua missão primordial é prestar orientação, suporte e auxilio jurídico, em caráter permanente, visando a máxima tutela de seus direitos e garantias.
3.3 – A Defensoria Pública como Garantia Institucional: caracterização e efeitos
A importância conferida à Defensoria Pública pela Constituição Federal ao reconhecer o seu status de garantia fundamental decorre da essencialidade que lhe é atribuída enquanto função jurisdicional do Estado, bem como do que dispõe o seu artigo 5º, XXXV[9] que traz o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e reflete o comprometimento do Estado brasileiro na realização da justiça social ao criar aparelhos institucionais que viabilizem a consecução dessa máxima.
Sendo a Defensoria Pública o instrumento direto e expressamente vinculado à promoção da justiça social, é também o meio pelo qual se estabelece a mediação jurídica entre o poder público e os indivíduos necessitados em busca da proteção de seus direitos e consequente integração e inclusão social deste grupo, pelo que se denota que:
Consoante as conexões existentes entre o Princípio da Justiça Social e a Defensoria Pública, tem-se que o primeiro situa-se como fundamento da segunda. Por fundamento entende-se nesse caso como a base principiológica que serve à compreensão da institucionalização da Defensoria Pública no sistema jurídico, incluindo-se o papel, a abrangência, a estruturação e os fins a ela destinados. Faz-se referência à base principiológica em razão de que os princípios são enunciados normativos que apresentam várias características e funções. Entre elas está, justamente, a de condensar as idéias centrais do sistema jurídico, dando-lhe sentido lógico, racional, harmonioso, e propiciando a compreensão da sua maneira de organizar-se (JUNKES, 2004, p. 544).
Igualmente, sendo a Defensoria Pública um instrumento essencial de acesso à justiça, confirma-se a sua posição jusfundamental, assumindo, enquanto órgão que tem como cerne realizar atividades assecuratórias dos direitos desse grupo de pessoas, a natureza de garantia constitucional proposta por Rui Barbosa.
Ademais, levando-se em conta a definição de garantia institucional decorrente dos estudos de Schmitt, há o reconhecimento do órgão defensorial enquanto garantia fundamental institucional, sendo possível concluir que:
A garantia institucional tem sido mais descrita, analisada e particularizada como um instituto de direito público, materialmente variável segundo a natureza da instituição protegida, vinculada sobretudo a uma determinada Constituição ou a um determinado regime político de organização do Estado do que em rigor definida ou vazada na solidez de um conceito, posto já fora de toda a controvérsia doutrinária. [...] A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza (BONAVIDES, 2004 p. 537).
Os postulados hermenêutico-constitucionais de busca pela máxima efetividade dos direitos fundamentais, de consolidação dos objetivos fundamentais da República, bem como de resguardo dos princípios que norteiam a vida em sociedade, são axiomas que guiam a atividade da instituição e reforçam a sua missão por meio da prestação de um serviço público eficiente em prol da primazia da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Sarlet (2012, p. 447) destaca a importância do diálogo e da cooperação entre os órgãos estatais, aqueles que compõem o sistema de justiça e a sociedade a fim de promover a efetivação do princípio da máxima efetividade e assim potencializar a ampla garantia dos direitos fundamentais:
As observações precedentes, assim como a já apontada necessidade de interação entre o Poder Judiciário, outros órgãos estatais e a sociedade civil, apontam para a oportunidade das concepções que propõe a instauração de uma espécie de diálogo institucional, que, embora não possa, no nosso sentir, justificar uma exclusão do controle judicial, à feição de uma nova doutrina da separação dos Poderes, apresenta a faceta positiva, desde que bem manejado, de, mediante o aproveitamento máximo das capacidades institucionais de cada ator envolvido, auxiliar na promoção da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Cumpre registrar, todavia, de que se cuida, de certo modo, de dar cumprimento ao dever de cooperação entre os órgãos estatais.
Sob o prisma do acesso à justiça, há que se destacar que a garantia do direito à assistência jurídica aos grupos vulneráveis, não se limita apenas a promover o acesso ao sistema de justiça em si, mas também se preocupa em alcançar uma igualdade jurisdicional na qual os indivíduos possam dispor de todos os meios à sua disposição para proteger, em todos os níveis, os seus direitos de forma justa e igualitária, contribuindo, dessa forma, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Nesse aspecto, é oportuno mencionar a relevante contribuição da Defensoria Pública para a alteração da conformação habitual do direito substantivo das pessoas em situação de vulnerabilidade, a fim de proporcionar maior visibilidade a contextos fáticos atinentes a esse grupo social, dando voz às suas demandas e regulamentando questões que são cotidiana e diretamente afetas a ele, a exemplo da participação da instituição no processo decisório em âmbito legislativo que ensejou o reconhecimento legal do direito de laje o qual, embora seja uma realidade que acompanha a formação dos centros urbanos do país há anos, somente foi regulamentado e inserido no Código Civil no ano de 2017, por meio da lei 13.465.
Além disso, cumpre frisar que Watanabe (2009, p. 128), ao abordar o tema, dispõe que “a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa” (grifo do autor), bem como se vê oportuno mencionar a lição de Giudicelli (online):
Verifica-se, pois, a impossibilidade de se adotar qualquer exegese reducionista quanto ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, que necessariamente deve buscar fazer frente a todos os obstáculos existentes à sua efetiva realização, sob pena de se fazer tábua rasa dos princípios e objetivos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988. Reitere-se aqui a necessidade de uma interpretação teleológica-sistemática dos supramencionados dispositivos constitucionais que propicie a ‘consecução das metas e dos objetivos fundamentais da República’, considerando as normas constitucionais e infraconstitucionais pertinentes, bem como atendendo-se ao postulado hermenêutico da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Levando-se em conta os comandos constitucionais que dispõem sobre tal direito e confirmando os pensamentos doutrinários supramencionados, para Ramos (2019, p. 766) o acesso à justiça “é tido como de natureza assecuratória, uma vez que possibilita a garantia de todos os demais direitos, sendo oponível inclusive ao legislador e ao Poder Constituinte Derivado, pois é cláusula pétrea de nossa ordem constitucional” (grifo do autor).
Desse modo, sendo a Defensoria Pública uma instituição prestadora de assistência jurídica integral e gratuita, o seu status de garantia fundamental institucional dentro do sistema jurídico se coaduna com o direito à tutela jurisdicional que, juntamente com o princípio da proteção judiciária, busca garantir os direitos de ação e de defesa plena aos seus assistidos, em que pese sua atuação abranja contextos que vão além da seara judicial e do acesso formal ao Judiciário, englobando também questões extrajudiciais, orientações jurídicas e contenciosos administrativos, e, nessa senda, Silva (2005, p. 430) ensina que:
O princípio da proteção judiciária, também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade, a principal garantia dos direitos subjetivos. Mas ele, por seu turno, fundamenta-se no princípio da separação de poderes, reconhecido pela doutrina como garantia das garantias constitucionais. Aí se junta uma constelação de garantias: as da independência e imparcialidade do juiz, a do juiz natural ou constitucional, a do direito de ação e de defesa. Tudo ínsito nas regras do art. 5º, XXXV, LIV e LV.
Logo, o sistema judicial deve configurar-se como um instrumento para a defesa efetiva dos direitos das pessoas em condição de vulnerabilidade e hipossuficiência, em todos os seus espectros, devendo o poder estatal oferecer vias reais e efetivas para acessá- lo, permitindo que se possa sair do mero reconhecimento formal de tutela dos direitos e partir para a concretização de mecanismos que viabilizem materialmente a busca pela obtenção e resguardo do dito direito que se pleiteia.
Sendo assim, reconhecer que compete à Defensoria Pública a atribuição precípua de prestar assistência jurídica integral e gratuita enquanto instituição essencial à atividade jurisdicional do Estado revela-se verdadeira cláusula pétrea do ordenamento pátrio e isto porque a atuação defensorial garante exatamente o direito de acesso à justiça compondo, assim, a estrutura basilar do princípio da dignidade da pessoa humana, impossível de ser abolido do texto constitucional, conforme se depreende a seguir:
[...] O direito de acesso à Justiça faz parte do assim chamado mínimo existencial, núcleo essencial do princípio da dignidade humana, não podendo de forma alguma ser suprimido mediante reforma constitucional. Destarte, e embora se saiba que a proteção das cláusulas pétreas não abrange aspectos marginais do direito fundamental em questão, verifica-se que qualquer tentativa de se tirar da Defensoria Pública a incumbência de prestar assistência jurídica com exclusividade esbarra no núcleo essencial do direito de acesso à Justiça e, por consequência, no núcleo essencial do princípio da dignidade humana, vez que parte integrante deste (GIUDICELLI, online).
No mesmo enquadramento é o que preleciona Sarlet (2012, p. 565) que, ao sustentar que as cláusulas pétreas têm como função impedir a cessação dos princípios constitucionais, assevera que “as ‘cláusulas pétreas’ de uma Constituição não objetivam a proteção dos dispositivos constitucionais em si, mas, sim, dos princípios neles plasmados, não podendo estes ser esvaziados por uma reforma constitucional”.
Portanto, a Defensoria Pública enquanto garantia institucional está inserida no núcleo essencial imutável do Estado, somente admitindo alterações nos comandos constitucionais a ela atinentes caso tenham por finalidade ampliar sua atuação e seu alcance a fim de fortalecer o papel da instituição na promoção da cidadania e da redução das desigualdades socioeconômicas, merecendo destaque a lição que segue:
Desta forma, reafirma-se à exaustão: a Defensoria Pública e sua condição de cláusula pétrea determinada pelo constituinte originário exigem dos Poderes Constituídos obediência ao seu conteúdo normativo e ao seu significado constitucional, garantidor do acesso à Justiça por parte da população mais humilde, em estrita obediência não apenas aos dispositivos constitucionais já mencionados, mas, ainda, ao disposto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, que consagra entre nós o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, base deste Estado Democrático de Direito (CÓRDOVA, 2012, online).
Não se pode perder de vista que os Defensores Públicos são agentes de transformação da sociedade, dando voz àqueles indivíduos que são silenciados e que historicamente permaneceram excluídos e marginalizados, vítimas de uma construção social amplamente desigual e violadora de direitos, onde poucos controlam os mecanismos de poder, concentram as maiores rendas e detêm alto padrão de vida enquanto a maior parcela populacional encontra-se na base da pirâmide social e, diante dessa realidade, se busca a tutela do direito ao mínimo existencial, essencial para a garantia da dignidade de todos. Sob essa ótica destacam Esteves e Silva (2018, p. 379):
Por serem todas as pessoas iguais em dignidade, a atuação funcional da Defensoria Pública deve garantir o respeito recíproco de cada pessoa à dignidade alheia, além de assegurar o respeito e a proteção da dignidade humana pelo Poder Público e pela sociedade em geral. Nesse âmbito de proteção fundamental da pessoa humana se inclui a tutela do mínimo existencial, que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas necessárias à subsistência digna e indispensáveis ao desfrute dos direitos em geral.
Segundo Fensterseifer (2017, online) “o acesso à justiça ou mesmo o direito fundamental à assistência jurídica titularizado pelas pessoas necessitadas, por sua vez, configura-se como ‘elemento instrumental’ do direito ao mínimo existencial” (grifo do autor), e isso se dá exatamente porque de nada serve a elaboração de um rol de direitos básicos que compõem o mínimo existencial a ser garantido a todos de forma isonômica se não há mecanismos para sua real efetivação nem tampouco são oferecidos meios para que as ameaças e as violações a tais direitos possam ser levadas ao Poder Judiciário.
Diante disso, considerando que o direito fundamental à assistência jurídica está integrado ao direito ao mínimo existencial, depreende-se da lição de Bitencourt Neto (2010, p. 269) que:
O acesso à justiça é parte relevante do direito ao mínimo para uma existência digna. Tal direito de demandar judicialmente o Estado nascerá quando, por algum motivo — falta de alimento, moradia, ensino básico, algum problema de saúde, entre outros — a dignidade da existência esteja em risco de não merecer o respeito a ela devido.
Por outro lado, para Amaral (2001, p. 184-185) é necessário atentar-se que a noção de mínimo existencial não pode ser analisada como algo pré-determinado, que está posto de forma padronizada e uniforme em todos os lugares e realidades sociais do país, de modo que é preciso considerar as peculiaridades de cada contexto regional para que sejam priorizados direitos básicos garantidores de uma existência minimamente digna dentro da realidade fática de um determinado grupo, conforme se depreende a seguir:
Em primeiro lugar, diferenciar um núcleo nomeado como ‘mínimo existencial’ ou como status positivus das liberdades fundamentais, que seria sempre exigível, de outros direitos, que vigeriam sob a reserva do possível gera uma grande dificuldade lógica. A terminologia empregada para a exigibilidade dos direitos induz a uma aplicação binária, exigível x não exigível, ao passo que a noção de mínimo existencial inclui enorme gradação, não existindo divisões nítidas. Ora, se não há divisão nítida, como saber se a prestação e exigível incondicionalmente ou não? O mínimo existencial é o mesmo em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e interior de Alagoas e do Piauí? Se a resposta for positiva, então a escassez de recursos não estará sendo considerada. Se a resposta for negativa, então parecerá que foi incluída uma ‘condição’ que afasta a exigibilidade ‘incondicional’. A escassez de recursos, a escassez de meios para satisfazer direitos, mesmo fundamentais, não pode ser descartada. Surgindo esta, o Direito precisa estar aparelhado para dar respostas. Certamente na quase totalidade dos países não se conseguiu colocar a todos dentro do padrão aceitável de vida, o que comprova não ser a escassez, quanto ao mínimo existencial, uma excepcionalidade, uma hipótese limite e irreal que não deva ser considerada seriamente (grifo do autor).
Destarte, sendo função da Defensoria Pública a irrenunciável promoção dos direitos fundamentais sociais aos mais vulneráveis e menos favorecidos, Torres (2009, p. 283-284) a insere no rol dos instrumentos político-sociais que propiciam a concretização do mínimo existencial e a promoção da igualdade de oportunidades, ao lado, entre outros, de boas escolas e hospitais, eficiente administração financeira e monetária e políticas públicas destinadas à erradicação da miséria.
Nessa ótica, ao tratar sobre assistência jurídica, Torres (2009, p. 269) ressalta que “é garantia do mínimo existencial, sob a forma de imunidade tributária, e compõe o status negativus do cidadão, juntamente com outras proteções para o acesso à justiça. Quanto à proteção positiva, exerce-se principalmente por intermédio das Defensorias Públicas”, ou seja, a dimensão negativa vincula-se à isenção de custas e despesas processuais concedidas aos hipossuficientes enquanto a dimensão positiva está associada à atividade exercida pela Defensoria Pública enquanto instituição que presta assistência jurídica integral e gratuita a esse grupo social. Acerca de tais dimensões, Fensterseifer (2017, online) se manifesta no sentido de que:
[...] Do ponto de vista do titular do direito fundamental à assistência jurídica, tanto a dimensão negativa quanto a dimensão positiva (ou prestacional) assumem contornos normativos de um direito subjetivo acionável perante o Poder Judiciário frente a uma situação de omissão ou atuação insuficiente do Estado. No caso da dimensão positiva (ou prestacional) seria plenamente possível obrigar o Estado, tanto no plano federal quanto estadual, por intermédio do controle judicial a adotar as medidas necessárias à criação ou mesmo a estruturação adequada da Defensoria Pública.
O dever estatal de promover a implementação de medidas voltadas para a concretização do núcleo sólido do mínimo existencial, consistente no conjunto de bens e direitos indispensáveis à sobrevivência digna e humanizada do indivíduo deve ser pensado e estruturado também dentro da seara financeira e orçamentária, a fim de destinar corretamente recursos públicos que viabilizem a eficiência dos meios voltados para a sua efetiva proteção, afinal, caso contrário, se teria o esvaziamento de um projeto de promoção dos direitos fundamentais. Nesse contexto, acerca do controle da eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos, Barcellos (2008, p. 137) afirma que:
A doutrina especializada visualiza na eficiência um dever geral de a Administração otimizar o emprego dos meios disponíveis para, com eles, obter os melhores resultados possíveis relevantes para o interesse público. É certo que os meios disponíveis não se resumem a recursos financeiros: eles envolvem tempo, urgência, recursos humanos, dentre outros ativos relevantes. Nada obstante, a economicidade – isto é: a relação custo/benefício sob uma perspectiva financeira – será sempre um aspecto importantíssimo a ser examinado no contexto da eficiência. [...] A possibilidade de controle da eficiência mínima das políticas públicas, antes de outros desenvolvimentos maiores e mais aprofundados, envolverá sobretudo o aspecto da economicidade, de modo a verificar o emprego adequado dos recursos no contexto das políticas públicas direcionadas (ou supostamente direcionadas) à realização dos direitos fundamentais. Esse controle, é claro, tem por objetivo principal eliminar as zonas de certeza negativa na matéria. Isto é: impedir – ou, no mais das vezes apenas punir, já que impedir em caráter preventivo nem sempre será viável – condutas claramente ineficientes ou mesmo a malversação criminosa do dinheiro público.
Conforme leciona Sgarbossa (2010, p. 133) a reserva do possível reflete a relevância do fator econômico na efetivação dos direitos sociais na medida em que sua conceituação está fundada “em argumentos de ordem econômica, tais quais escassez e insuficiência de recursos, bem como na impossibilidade econômica de adimplemento das obrigações concernentes à realização dos direitos sociais” (grifo do autor). Frise-se também o que aponta Sarlet (2012, p. 446) ao tratar sobre a máxima efetividade dos direitos sociais através de políticas públicas:
Importante é que se tenha presente que a busca da máxima efetividade dos direitos fundamentais, em especial quando na esfera da ponderação e no caso do controle jurisdicional das políticas públicas e da efetivação dos direitos sociais (é preciso relembrar que direitos sociais na condição de direitos subjetivos não se confundem, como já tivemos oportunidade de enfatizar, com a figura das políticas públicas, embora as políticas públicas, em parte, objetivam a efetividade dos direitos sociais), por mais que deva levar em conta aspectos ligados ao princípio e dever de eficiência, não pode, em hipótese alguma, ser reduzida a uma análise de custo-benefício pautada por uma lógica utilitarista, refém de determinados modelos de análise econômica. Para além da preservação de uma sempre relativa, mas necessária autonomia da esfera jurídica, as limitações de tais modelos (a despeito de importantes contribuições para um melhor desempenho na realização dos fins estatais, em especial na esfera da proteção e promoção dos direitos fundamentais) não podem ser pura e simplesmente escamoteadas.
Em sua abordagem a respeito do mínimo existencial, Alexy defende que deve haver uma ponderação entre direitos fundamentais sociais versus questões político- financeiras e orçamentárias a fim de manter um equilíbrio entre a satisfatória concretização de tais direitos dentro de um Estado democrático e o controle dos gastos públicos para viabilizá-los, não sendo coerente falar em limitações à efetivação dos direitos sociais sob o puro argumento de restrições estatais decorrentes da reserva do possível, pois, como aponta:
Essas condições são necessariamente satisfeitas no caso dos direitos fundamentais sociais mínimos, ou seja, por exemplo, pelos direitos a um mínimo existencial, a uma moradia simples, à educação fundamental e média, à educação profissionalizante e a um patamar mínimo de assistência médica. [...] Mesmo os direitos fundamentais sociais mínimos têm, especialmente quando são muitos que deles necessitam, enormes efeitos financeiros. Mas isso, isoladamente considerado, não justifica uma conclusão contrária à sua existência. A força do princípio da competência orçamentária do legislador não é ilimitada. Ele não é um princípio absoluto. Direitos individuais podem ter peso maior que razões político-financeiras (ALEXY, 2008, p. 512-513).
No cenário de efetivação das políticas públicas, o Poder Judiciário e demais órgãos de atuação a ele ligados detêm legitimidade para atuar e intervir na proteção de tais políticas, haja vista que, em que pese devam ser priorizadas dentro do projeto de governo, cabendo à Administração Pública a sua concretização compulsória, não raro são medidas tidas como secundárias e discricionárias dentro da gestão governamental e, assim, a omissão estatal acaba por ensejar a judicialização de tais questões e, a partir dessa transferência de responsabilidade entre os Poderes, surgem comandos, decisões e fiscalizações da atividade administrativa provenientes do Judiciário, visando o reestabelecimento da ordem social e da garantia de direitos (ARRUDA, 2012, online).
Acerca da contribuição da Defensoria Pública e do Ministério Público para alcançar um resultado prático de consolidação das políticas públicas, Arruda (2012, online) também destaca que:
As Instituições principais para a concretização das políticas públicas quando da omissão e inércia do órgão responsável pela primeira atitude são a Defensoria Pública e o Ministério Público, caracterizadas como Instituições Permanentes e Autônomas, na inteligência de suas Leis Orgânicas Nacionais (LC n. 80/94, LC n. 75/93 e Lei n. 8.625/93) e Essenciais à Justiça, entendida esta não apenas como Poder Judiciário, mas sim como Ordem Jurídica Justa, na proteção do regime democrático, dos interesses sociais, individuais, disponíveis e indisponíveis, de grupos sociais vulneráveis, dos necessitados, a primazia da dignidade da pessoa humana, ou seja, na proteção dos usuários efetivos e potenciais das políticas públicas que devem ser efetivadas compulsoriamente pelos Poderes Públicos, sem margem de discricionariedade quanto ao fazer ou não. [...] Em sendo assim, não havendo cumprimento de determinações, de comandos constitucionais, deve a Defensoria Pública, enquanto Órgão de proteção de direitos humanos, do Estado Democrático de Direito, e na proteção coletiva da sociedade vulnerável, agir e intervir no controle das políticas públicas.
Assim, levando-se em consideração o fato de que, conforme bem destaca Cunha Júnior (2009, p. 600), “inexiste discricionariedade administrativa quando se está diante de um direito fundamental”, é preciso adotar como prioridade os comandos constitucionais acerca das gestões de governo voltadas para a proteção de tais direitos, afinal suas normas são de cumprimento obrigatório, eficácia plena e aplicabilidade imediata dentro da conformação jurídico-normativa nacional, sob pena de haver grave retrocesso social e, nessa toada:
[...] A assistência jurídica não pode estar atrelada a uma disponibilização pontual e casuística do acesso à Justiça através da advocacia pro bono ou mesmo dativa (também denominada ‘de ofício’). Em vez do assistencialismo jurídico, é imperioso que tenhamos o desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao fortalecimento de uma estrutura estatal jurídico-assistencial e também para sua atuação com eficiência (grifo do autor) (RESSUREIÇÃO, 2018, online).
Entrementes, atenta às funções e atribuições institucionais que lhes são destinadas, a Defensoria Pública enquanto expressão e mecanismo do regime democrático, exerce suas atividades em busca da efetivação de tais previsões constitucionais de proteção dos direitos fundamentais relacionados a políticas públicas de ampla repercussão na sociedade e, ao mesmo tempo, evitar a judicialização de tais questões, seja sob o viés social, político, econômico ou jurídico.
Nesse contexto, para que a Defensoria Pública possa exercer sua atividade institucional de modo plenamente efetivo, é primordial que haja o seu fortalecimento enquanto instituição pública, capaz de implementar planejamentos estratégicos que lhe permitam atingir os fins que lhes são incumbidos pela ordem constitucional. Para tanto faz-se necessário todo um plexo de ações e programas articulados pelo Estado que sejam direcionados ao fortalecimento do órgão defensorial e à realização de sua missão social através de uma atuação organizada, bem estruturada e eficiente, sendo as emendas constitucionais, as leis infraconstitucionais e todo o conjunto normativo que trata, ainda que por via reflexa, da instituição essenciais para tal fim, na medida em que formam um verdadeiro microssistema jurídico defensorial.
Sendo assim, cabe à Defensoria Pública priorizar o desenvolvimento de estratégias de atuação, debruçando-se para alcançar a plena qualidade do serviço prestado àqueles que integram o núcleo social vitimado pelas vulnerabilidades que marcam o cenário da população brasileira. Diante desse panorama institucional, Silva (2005, p. 220) reforça a relevância do órgão defensorial dentro do sistema jurídico e a valorização que lhe deve ser conferida no âmbito das estruturas de poder estatal, afirmando que:
Cabe aos Defensores Públicos abrir os tribunais aos pobres, é uma missão tão extraordinariamente grande que, por si, será uma revolução, mas, também, se não cumprida convenientemente, será um aguilhão na honra dos que a receberam e, porventura, não a sustentaram.
Por fim, devem ser atribuídos à Defensoria Pública todos os instrumentos e garantias institucionais necessários para a consecução de sua missão, afinal, sendo ela a instituição pública por excelência destinada a desempenhar atividades essenciais à função jurisdicional do Estado, tem uma atuação pautada no princípio da máxima efetividade, visando a garantia de todo o complexo de direitos fundamentais, bem como em ampliar a promoção do acesso à justiça e arrefecer as desigualdades sociais a fim de compelir o retrocesso social e endossar os objetivos da instituição com eficiência e comprometimento social.
Isto posto, enquanto instituição dotada do status de garantia constitucional institucional, a Defensoria Pública deve ocupar o papel de protagonista que lhe cabe dentro da ordem jurídica pátria enquanto cláusula pétrea da ordem constitucional e equipamento de consolidação das bases democráticas estatais, haja vista ser elemento norteador da formação da República Federativa brasileira e expressão da primazia da dignidade da pessoa humana.
O planejamento do poder público no sentido de direcionar e conduzir suas ações voltadas para o respeito e a tutela dos direitos fundamentais marcam uma estrutura de Estado cujos pilares estão consolidados na dignidade da pessoa humana e que visa estabelecer um conjunto de metas e diretrizes que resguardem amplamente os que se encontram dentro da sua esfera de proteção, sendo necessário para tanto a elaboração de normas jusfundamentais e a existência de instituições públicas que estimulem e promovam a aproximação entre o Estado e os indivíduos que o integram.
Tendo em vista ser a Defensoria Pública uma novel instituição integrante dessa estrutura estatal, sua implementação e conformação em todos os níveis federativos têm sido assinadas por uma trajetória lenta e de enfrentamento de grandes obstáculos no processo de sua consolidação, marcando seu status de resistência permanente dentro do sistema de justiça na busca pelo fortalecimento de suas legitimidades e pelo reconhecimento de equiparações institucionais.
Esse intenso processo de construção da Defensoria Pública reforça ainda mais a sua relevância social e jurídica, tornando nítida a forte correlação com as agendas do acesso à justiça - que integra o direito ao mínimo existencial - e da mobilização jurídica voltada à proteção e à defesa da população que enfrenta contextos de vulnerabilidade, o que requer a materialização de um aparelhamento robusto que viabilize a prestação de assistência jurídica plena.
Nessa perspectiva, os contornos contemporâneos do panorama jurídico brasileiro, marcados pela judicialização, revelam que o sistema de justiça tem sido acionado de forma cada vez mais intensa a fim de solucionar conflitos e garantir a proteção de direitos, revelando ser primordial uma Defensoria Pública bem equipada, capaz de atender seus assistidos e funcionando como mecanismo efetivo na proteção de suas demandas, buscando atingir o patamar ideal de isonomia em que o acesso à justiça esteja ao alcance de todos.
Outrossim, considerando que aqueles insertos em um mesmo contexto social são sujeitos de direitos, em realidade o que se constata é que os que integram os múltiplos grupos vulneráveis são frequentemente vítimas da violação dos seus direitos e do consequente enfrentamento de barreiras que dificultam a sua defesa e preservação, devendo, por isso mesmo, receber maior atenção e proteção do Estado e da sociedade a partir de políticas estruturadas em bases jurídico-assistenciais amplas e efetivas.
Dúvidas não há, portanto, de que o direito fundamental de acesso à justiça não pode se restringir ao acionamento das estruturas do Poder Judiciário, pois, sendo dotado de vasta amplitude, cuja natureza assecuratória se revela como cláusula pétrea, e servindo de base para a garantia dos demais direitos fundamentais, também confere guarida a estes por meios extrajudiciais, a exemplo de conciliações e mediações, demandas coletivas e prestação de consultorias, abrangendo o aconselhamento, a informação e a orientação em assuntos jurídicos, atividades estas legalmente conferidas à Defensoria Pública.
Desse modo, a atuação crescente da Defensoria Pública voltada para operar em defesa dos grupos vulneráveis, individual ou coletivamente, bem como na utilização de meios extrajudiciais na resolução de conflitos, ultrapassa os limites da representação judicial dos necessitados, confirmando a assistência jurídica integral e gratuita a ser exercida pelo órgão decorrente de seu status de garantia institucional.
Como reflexo desse status de garantia institucional, o cumprimento do comando constitucional de prestação de assistência jurídica lattu sensu e sem ônus aos necessitados engloba uma série de posições processuais dinâmicas que a Defensoria Pública é capaz de assumir, tanto em juízo quanto fora dele, afinal a sua atividade não pode ser atrelada a uma disponibilização pontual e casuística do acesso à justiça, sendo imperioso que se invista no desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao fortalecimento do modelo jurídico-assistencialista.
Oportuno pontuar que, partindo de uma interpretação teleológico-sistemática do texto constitucional que destina à Defensoria Pública o compromisso de desempenhar satisfatoriamente a proteção do direito fundamental de acesso à justiça, é possível identificar o seu caráter de garantia institucional, intermediando o contato dos grupos vulneráveis com o sistema de justiça, o qual, ressalte-se novamente, extrapola a órbita do simples acesso formal ao Poder Judiciário.
Essa atuação abrangente, portanto, está albergada na missão que rege a instituição defensorial de promoção da cidadania e de transformação social em todos os meios necessários para a sua execução, reconhecida tanto a nível constitucional quanto infraconstitucional, que acaba por confirmar a sua jusfundamentalidade, assegurando o exercício de direitos e liberdades relevantes para a defesa da ordem jurídica pátria, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Levando-se em conta a natureza assecuratória do acesso à justiça, com destaque para a promoção da justiça social, o que se busca alcançar é um relevante progresso ligado à desconstrução das perpetuações de desigualdades já vistas com normalidade e naturalidade dentro da sociedade e, nesse sentido, o aporte prático que a atuação defensorial traz, permite enxergar as especificidades dessas desigualdades para então romper com o status de invisibilidade que é destinado aos grupos vulneráveis.
De fato, proporcionar mudanças reais e concretas na tutela dos direitos fundamentais deste tecido social, desenvolvendo políticas de enfrentamento às opressões e marginalizações a que são submetidos, é retirar-lhes também uma parcela do peso de carregar o estigma de uma condição que não escolheram, mas que lhes foi imposta.
Sendo órgão primordial para a consolidação dos alicerces democráticos nacionais, a Defensoria Pública possui objetivos, funções e prerrogativas alinhados com os fundamentos, objetivos e princípios da República Federativa do Brasil constantes na Lei Maior, a fim de facilitar a harmonização do ordenamento jurídico e proporcionar a garantia da ampla e completa atuação dos membros da instituição no exercício das suas atividades, primordialmente a de promoção do acesso à justiça dos seus assistidos.
Nesse âmbito do cumprimento da missão institucional reservada à Defensoria Pública pela Constituição Federal, a assistência jurídica por ela prestada a partir do modelo salaried staff relaciona-se intrínseca e diretamente à ideia de cidadania e de igualdade material, no sentido de inserir todas as pessoas na estrutura do Estado e permitir que todas elas, como parte integrante e inseparável deste, possam acessar pelos mesmos meios os mecanismos disponíveis dentro do aparato estatal que visam proporcionar a prevenção, a efetivação e a tutela de seus direitos e garantias.
Assim sendo, a partir deste trabalho foi possível constatar que a Defensoria Pública representa um verdadeiro recurso à perspectiva do resguardo e da efetiva garantia de direitos fundamentais de pessoas em situação de vulnerabilidade, combatendo o retrocesso e as desigualdades sociais e contribuindo para o avanço da construção de uma sociedade pautada na dignidade da pessoa humana.
Ademais, o processo de abertura do acesso dos necessitados aos instrumentos de defesa e garantia dos seus direitos precípuos representa um marco civilizatório na construção de uma soberania popular no Brasil e, sem dúvidas, a Defensoria Pública, enquanto instituição, ao assumir esse papel de garante dentro do sistema jurídico, protagoniza e se manifesta como símbolo máximo de um movimento revolucionário e de significativas renovações nos moldes da organização política, jurídica e social, consubstanciando-se em verdadeira garantia institucional implícita e explícita, como parte do bloco de constitucionalidade brasileiro, a demandar sua máxima efetividade.
Assim, conclui-se que a Defensoria Pública é a instituição pro societate por excelência, na medida em que, enquanto instituição essencial à tutela do direito-garantia de acesso à justiça, consegue chegar às camadas sociais mais sub-humanizadas e negligenciadas e proporcionar à esse tecido social o que há de mais basilar na existência humana que é gozar dos direitos mínimos à uma vida digna, revelando a sua imprescindibilidade dentro das estruturas do poder público e a importância do seu fortalecimento na ordem jurídica nacional, ensejando reflexos positivos e necessários nos múltiplos contextos das relações em sociedade.
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[1] Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Especialista em Direito e
Processo Constitucionais, sob a orientação de conteúdo do Professor Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato.
[2] A unidade da Constituição, sem dúvidas, não reside em si mesma, senão na unidade política, cuja particular forma de existência se confirma mediante o ato constituinte.
[3] As leis constitucionais valem, pelo contrário, a base da Constituição e pressupõem uma Constituição. Toda lei, como regulação normativa, e também a lei constitucional, necessita para sua validade em último termo de uma decisão política prévia, adotada por um poder ou autoridade politicamente existente. Toda unidade política existente tem seu valor e sua «razão de existir», não na justiça ou conveniência de normas, mas sim em sua própria existência. O que existe como magnitude política, é juridicamente considerado, digno de existir. [...] É necessário falar da Constituição como de uma unidade, e conservar entretanto um sentido absoluto de Constituição. Ao mesmo tempo, é preciso não desconhecer a relatividade das distintas leis constitucionais. A distinção entre Constituição e lei constitucional só é possível, sem embargo, porque a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em uma norma. No fundo de toda norma reside uma decisão política do titular do poder constituinte, é dizer, do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica (grifo do autor).
[4] 3Artigo 6.º - Ficam atribuídos à Secretaria da Justiça o Negócios do Interior os serviços relativos: 26) à assistencia judiciaria.
[5] Art. 151 - Cabe ao Consultorio Jurídico de Serviço Social:
b)prestar assistencia Juridica a todos os que, na fórma desta lei, necessitem de protecção social, taes os menores, a família, os desvalidos, os egressos, assim de reformatorios e estabelecimentos penaes e correccionaes como de estabelecimentos hospitalares, exceptuados os trabalhadores, que continuam sob a assistencia do Departamento Estadual do Trabalho.
[6] Art. 1º. O valor de presunção de necessidade econômica para fim de assistência jurídica integral e gratuita, na forma do art. 2º da Resolução CSDPU 133/2016, será de R$ 2.000,00 (dois mil reais).
[7] Art. 1º. Considera-se hipossuficiente, nos termos da lei, a pessoa natural que não possua condições econômicas de contratação de advogado particular sem prejuízo de seu sustento ou de sua família.
§ 1º Presume-se a hipossuficiência de recursos de quem, cumulativamente: I – aufira renda familiar mensal não superior a 05 (cinco) salários mínimos;
II - não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 20 (vinte) salários mínimos;
III - não seja proprietário, titular de direito à aquisição, usufrutuário ou possuidor a qualquer título de mais de 01 (um) imóvel.
§ 2º Considera-se renda familiar a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pela totalidade dos membros civilmente capazes da entidade familiar, excluindo-se os valores pagos a título de contribuição previdenciária oficial e imposto de renda.
[8] [...] Com terminologia inexata, geralmente falamos sobre direitos fundamentais, embora a estrutura de tais garantias seja completamente distinta, lógica e juridicamente, de um direito de liberdade. Nem mesmo quando os direitos subjetivos de indivíduos ou empresas são assegurados com a garantia institucional - o que não é necessário - existem direitos fundamentais. A garantia institucional é, por essência, limitada. Existe só dentro do Estado e não se baseia na ideia de uma esfera de liberdade em princípio ilimitada, antes diz respeito a uma instituição juridicamente reconhecida que, como tal, é sempre uma coisa circunscrita e delimitada ao Serviço de certas tarefas e de certo fim, ainda quando as tarefas não estejam especializadas em particular e seja admissível alguma «universalidade do círculo de atuação».
[9] Art. 5º, XXXV, CF/88 - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.