A Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, introduziu um novo marco no sistema tributário nacional, especialmente no que tange à tributação sobre combustíveis. Em linha com a Emenda Constitucional nº 132/2023, a referida norma disciplina, com riqueza de detalhes, o regime específico aplicável ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e à Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), estabelecendo um modelo de incidência única, uniformização nacional das alíquotas e mecanismos de fixação que visam preservar a carga tributária histórica do setor. A partir de uma análise rigorosa dos dispositivos legais, é possível compreender os impactos normativos e práticos da nova sistemática sobre a cadeia econômica dos combustíveis.
O ponto de partida está no artigo 172 da LCP nº 214/2025, que define, de forma taxativa, os combustíveis sujeitos à tributação monofásica do IBS e da CBS, ainda que as operações tenham início no exterior. Entre os produtos alcançados, estão a gasolina, etanol anidro (EAC) e hidratado (EHC), óleo diesel, biodiesel (B100), gás liquefeito de petróleo (GLP e GLGN), querosene de aviação, óleo combustível, gás natural, biometano, gás natural veicular (GNV) e outros combustíveis especificados e autorizados pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), mediante ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e do Poder Executivo federal. Esta enumeração confere segurança jurídica ao setor e delimita com precisão o escopo material da incidência.
Quanto à base de cálculo, o artigo 173 estabelece que o imposto e a contribuição incidirão sobre a quantidade de combustível objeto da operação, medida conforme a unidade própria de cada produto. O valor a ser recolhido resulta da multiplicação dessa quantidade pela alíquota específica aplicável, conferindo objetividade e previsibilidade à apuração tributária.
No que se refere às alíquotas, o artigo 174 impõe que sejam uniformes em todo o território nacional, específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto. A competência para sua divulgação é atribuída, no caso do IBS, ao seu Comitê Gestor, e, no caso da CBS, ao chefe do Poder Executivo da União. Um dos pontos mais relevantes reside na forma de fixação dessas alíquotas, que deverá respeitar os limites impostos pela carga tributária incidente antes da reforma. Para a CBS, a limitação se aplica a partir de 2027, e para o IBS, de forma gradual, entre 2029 e 2033, quando alcançará sua plenitude.
A metodologia para cálculo dessa carga tributária baseia-se em dois componentes: a carga direta — que considera os tributos federais extintos (PIS, Cofins) — e a carga indireta — resultante dos tributos incidentes sobre insumos e bens de capital não creditados. Ambos os componentes são ajustados monetariamente pelo IPCA e pela meta de inflação vigente, garantindo uma atualização realista dos valores.
Os combustíveis biológicos, por sua vez, merecem tratamento diferenciado. O artigo 175 assegura que biocombustíveis e o hidrogênio de baixa emissão de carbono sejam tributados a uma alíquota inferior à incidente sobre combustíveis fósseis, conforme preceitua o artigo 225, § 1º, VIII, da Constituição Federal. Tal diferencial não poderá ser inferior a 40% nem superior a 90% das alíquotas aplicáveis aos combustíveis fósseis, sendo sua fixação pautada pela equivalência energética, preços de mercado e potencial de redução de impacto ambiental. Especificamente para o etanol hidratado, o diferencial mínimo será aquele verificado entre a carga tributária incidente sobre esse produto e a gasolina C, no período de 1º de julho de 2023 a 30 de junho de 2024, assegurando a manutenção do estímulo fiscal já existente.
No tocante à sujeição passiva, o artigo 176 identifica os contribuintes do regime específico: produtores de biocombustíveis, refinarias, CPQs, unidades de processamento de gás natural (UPGN), formuladores de combustíveis, importadores e outros agentes autorizados. O distribuidor de combustíveis figura como contribuinte apenas quando atuar como importador. Interessante notar que cooperativas de produtores de etanol são equiparadas aos produtores, desde que autorizadas pelo órgão competente.
A legislação também institui, no artigo 177, a responsabilidade solidária do adquirente em relação ao pagamento do IBS e da CBS, nas operações realizadas com os contribuintes citados. Essa responsabilidade não se aplica quando o recolhimento se dá via split payment, mecanismo previsto nos artigos 31 a 35 da mesma Lei Complementar. Ademais, a solidariedade é limitada ao valor não extinto do tributo e pode atingir outros agentes da cadeia que concorrerem para a inadimplência tributária.
As operações com etanol anidro combustível (EAC) recebem tratamento especial. Conforme o artigo 178, a responsabilidade pelo recolhimento do tributo recai sobre refinarias, CPQs, formuladores e importadores, no que diz respeito ao volume de EAC misturado à gasolina A. Já o artigo 179 prevê a obrigatoriedade de recolhimento pelo adquirente que destinar o EAC para fins diversos da mistura obrigatória, bem como o direito à restituição ou dever de recolhimento adicional, conforme o volume de mistura esteja abaixo ou acima do percentual obrigatório.
A questão dos créditos tributários também foi objeto de regulação específica. O artigo 180 veda a apropriação de créditos relativos à aquisição de combustíveis submetidos ao regime monofásico, quando destinados à distribuição, comercialização ou revenda. No entanto, permite a apropriação de créditos pelo contribuinte em regime regular, nas hipóteses não alcançadas pela vedação. Além disso, garante ao exportador o direito ao crédito relativo às aquisições, fomentando a competitividade internacional do setor.
A Lei Complementar nº 214/2025, portanto, estrutura um regime de tributação monofásica que harmoniza simplicidade e segurança jurídica, sem perder de vista a neutralidade fiscal e o estímulo à sustentabilidade energética. Ao vincular a fixação das alíquotas a metodologias objetivas, auditáveis e limitadas à carga tributária histórica, busca-se assegurar a previsibilidade necessária ao planejamento empresarial, ao passo que se evita o aumento da carga tributária global. Trata-se de um novo paradigma tributário que alia eficiência arrecadatória com respeito à livre iniciativa e ao desenvolvimento sustentável.
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