A utilização de animais vivos, com o objetivo de realização de experimentos científicos ou de desenvolvimento de aulas práticas, nos diferentes cursos da área da saúde, método este ainda muito utilizado no Brasil, representa, de há muito, crime definido pela legislação brasileira.
Os termos expressos da Lei nº 9.605/98, na disciplina ofertada pelo § 1º de seu artigo 32, são os seguintes: "Art. 32. Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir, mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. §1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos."
A Lei é clara, não restando dúvidas de que a submissão de animais a maus tratos, mesmo que para fins científicos ou didáticos, constitui CRIME no Brasil, assim como, na atualidade, na maior parte dos países democráticos, por agredir a noção de humanização, que deve nortear toda a produção do saber.
A tipicidade objetiva do dispositivo do artigo 32 e, em especial, do seu § 1º, da Lei nº 9.605/98, é peremptória ao estabelecer a criminalização da conduta quando o animal vivo é submetido à experiência, ainda que para fins didáticos ou científicos, não sendo o argumento motivacional suficiente para afastar a ocorrência delituosa, contrariamente, constituindo-a.
Não se desconhece a contribuição que a experimentação científica em animais produziu na história humana, mas o próprio desenvolvimento científico-tecnológico dotou o homem de condições suficientes para abdicar de experimentos dolorosos nos demais seres vivos. Na grande maioria das oportunidades tem-se insistido em tal expediente muito pela aparente facilidade que representa, além da diminuição de custos, com aumento da margem de lucro para laboratórios, hospitais e indústria farmacêutica.
A legislação internacional, na qual faz coro o Brasil, reconhece as conquistas surgidas pela utilização de animais vivos em experimentos científicos, mas hoje fixa que estes avanços não criam uma franquia absoluta para a prática de maus-tratos a animais e para o desenvolvimento da insensibilidade em estudiosos.
Há sim a necessidade de equilíbrio, em que o pesquisador esgote a possibilidade de todos os métodos alternativos, inclusive com a utilização de animais já mortos, para só, como derradeira hipótese, valer-se de animais vivos, que devem ser tratados com absoluto respeito e afetuosidade, em reconhecimento ao serviço brutal que com sua própria saúde, muitas vezes com a própria vida, submetendo-se não poucas vezes a sofrimentos elevados, estarão prestando para o desenvolvimento do conhecimento humano. Raciocínio inverso é imoral, inaceitável e constitui crime.
Trata-se de crime comum, ou seja, de infração penal que pode ser cometida por qualquer pessoa, médico, odontólogo, pesquisador, estudante, enfim, não exige nenhuma condição especial para o cometimento delitivo e, nesse sentido, em interpretação conjugada da regra em destaque com o disposto no artigo 22, do Código Penal brasileiro, que trata das causas de exculpação, o indivíduo, ao constatar a prática dos maus tratos indevidos a animais, ainda que por decorrência de ordem de superior hierárquico ou de quem disponha de ascendência, como o professor em relação ao aluno, pode-se recusar ao cumprimento da ordem, não sendo admissível a imposição de qualquer tipo de sanção por tal recusa.
É de observar que o fato de estar diante de experimentação científica em nada afasta o cometimento do delito que, ademais, tem como objeto material qualquer animal, silvestre, doméstico ou domesticado, não sendo, portanto, a qualidade do objeto material condição para a não incidência do tipo.
O tipo do artigo 32, § 1º, é integrado, por outro lado, pelo elemento normativo "quando existirem recursos alternativos", sendo assim afastável a tipificação quando a experimentação científica, dotada de relevância para a sociedade, somente puder ser realizada em animais vivos.
A propósito alguns alertas são fundamentais: a) o primeiro deles é de que a experiência a ser realizada deve ser dotada de relevância para os seres humanos, não podendo se constituir em mera condução por espírito de curiosidade ou sadismo. Esta importância investigativa deve estar justificada; b) também é indispensável a inexistência de recursos alternativos, nos quais se inserem a utilização de cadáveres. Não basta que a inexistência de recursos alternativos seja declarada, necessita ser documentada com elementos probatórios que tornem absolutamente claro que todos os demais métodos não serão aptos a atender as necessidades do procedimento; c) por fim, na hipótese derradeira de serem utilizados animais vivos, os mesmos devem receber tratamento respeitoso e terem atendidas todas as suas necessidades, inclusive afetivas, durante a realização do experimento, que inicia no momento em que o animal passa a estar a disposição do pesquisador, até o momento em que é entregue para doação, inclusive com acompanhamento de eventual pós-operatório.
Note-se, ainda, que o pesquisador responde pessoal e diretamente pela inobservância dos limites normativos estabelecidos e acima sistematizados. Igualmente, não é possível, após o experimento, a realização de eutanásia nos animais, que devem ser encaminhados para adoção, para satisfação de suas necessidades. Hipótese inversa enseja punição pessoal e direta do responsável pelo procedimento.
A fuga de tais diretrizes constitui fato típico penal, passível de apuração na esfera criminal, que pode resultar em aplicação de pena, mesmo que a utilização dos animais vivos tenha se dado para fim científico ou didático, pois o que desfaz a tipicidade é somente a inexorável relevância da pesquisa aliada à comprovada inexistência de método alternativo.
Bem vale recordar a todos que trabalham na evolução das ciências, antes de começar a investigar, a estudar, a produzir, lembre-se de guiar-se pelos valores que lhe conferem a condição especial de ser humano, ou seja, não se esqueça do princípio de tudo, como canta Marisa Monte, em seu poético Infinito Particular, de sua composição com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, "só não se perca ao entrar."
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