No Brasil atual, é grande a corrente que acusa a estrutura federativa de ser um fator de ingovernabilidade. Os adeptos desta posição entendem que a divisão vertical do poder gera ineficiência e retardamento na atuação governamental. Em particular, ela dificulta o controle da economia e cria obstáculos à racionalização da ação governamental, por meio do planejamento.
Alguns dos críticos do federalismo, entretanto, apegam-se a aspectos conjunturais, vendo-o como fonte de despesas desnecessárias. A este propósito, sérios são os pecados da Constituição em vigor, que criou os estados de Tocantins, Roraima e Amapá, sem que para isso houvesse condições econômico-financeiras ou necessidade política.
O direito comparado mostra uma grande variedade na estruturação dos Estados federais. Com efeito, a importância das questões de segurança, principalmente externa, bem como de intervenção no domínio econômico, levam em toda parte ao predomínio da União sobre os Estados-membros, mesmo onde se procurou o contrário como nos Estados Unidos da América.
O núcleo irredutível do federalismo está em que, se existe um Estado total, representado pela União, detentor da soberania, com poderes de ação sobre toda a população e sobre todo o território, com recursos financeiros e competências próprias, este coexiste com os Estados-membros, autônomos, dotados de recursos financeiros independentes. Acrescentando-se uma característica jurídica: tanto a União, quanto os Estados-membros dependem de uma Constituição, responsável por organizar a primeira, dar as linhas mestras do segundo, assim como repartir competências e atribuir recursos financeiros.
O Estado federal brasileiro é um caso de federalismo por segregação. Foi um ato político do detentor revolucionário do poder (o governo provisório da República, instaurado em 15 de novembro de 1889) que deu ao país essa forma. E foi ela pela primeira vez regulada pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Nunca houve, portanto, salvo em linguagem figurada, mas imprópria e enganosa, um “pacto federativo” a exemplo dos Estados Unidos.
A Carta outorgada por Dom Pedro I adotou o Estado unitário, mas descentralizado, conservando como províncias as antigas capitanias, cujo presidente era nomeado pelo imperador, que o poderia livremente exonerar.
Devido aos vários movimentos ou insurreições locais, a Emenda Constitucional de 1834 levou a efeito uma relativa descentralização. Em 1840 todavia, a chamada Lei de Interpretação, restringiu esta interpretação.
No passado brasileiro a instauração do sistema federal foi apresentada como fator de maior eficiência na governabilidade, além de elemento de progresso político. Entretanto, os cem anos de federalismo que medeiam entre o Decreto nº 1 de 1889 e a Constituição de 1988 registram uma evolução considerável quanto à concepção do federalismo prevalecente.
A análise do federalismo na Constituição de 1988 permite examinar a contribuição da forma de Estado para a ingovernabilidade brasileira. Podemos considerar, primeiramente, a extensão da autonomia conferida aos Estados-membros. Relativamente à repartição de competências, não deixa ela muito, efetivamente, aos Estados.
É verdade que a Constituição em vigor retirou da União um pesado encargo. Não só ela não mais atribui a esta “planejar e promover o desenvolvimento...” mas igualmente a dispensou de intervir no domínio econômico, ou seja, ela afasta o Estado brasileiro das tarefas empresariais. Cabe à União, portanto, no que tange à atividade econômica apenas as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, com mera atuação indireta, ainda que admita a atuação direta “ quando necessária aos imperativos da segurança nacional, ou a relevante interesse coletivo”.
Em resumo, a estrutura federalista ditada pela atual Constituição é fator de ingovernabilidade, como o é a “repartição de rendas” que consagra, resultado de seu mau agenciamento na Lei Fundamental, sendo necessária a revisão de sua organização.
Crise Democrático-Representativa
As crises já analisadas combinam-se com uma outra, que não ocorre apenas no Brasil mas em todos os Estados que adotam o chamado modelo ocidental de democracia, o da democracia representativa.
O cerne da democracia representativa está por um lado na concepção de que em nome e em lugar do povo devem estar representantes seus e por outro lado, ao reconhecer ao povo uma capacidade natural para discernir o mérito para escolher os seus representantes. As revoluções liberais foram todas fiéis a este entendimento.
Entretanto, a insatisfação com o fato de a ação dos representantes freqüentemente não acompanhar a vontade popular se acentuou com o intervencionismo do Estado. Como este toma decisões que concernem de perto aos grupos primários, é natural que os membros destes não vejam bem defendidos os seus interesses por representantes eleitos em nível de grupo secundário, em razão de tomadas de posição de caráter ideológico: “como a opinião pública não pode ser formada senão sobre problemas que não são realmente os que se põem, é preciso que as decisões políticas sejam tomadas fora da opinião pública”.
A crítica ao caráter insuficientemente democrático da democracia representativa encontrou ouvidos atentos num dos maiores juristas deste século, Hans Kelsen, que propôs uma fórmula para corrigi-la, a da democracia pelos partidos.
Outra tentativa de aprimorar a democracia representativa é a de incorporar ao sistema meios de decisão popular direta, é o modelo dito impropriamente da democracia semidireta, cujo principal instrumento é o plebiscito.
As objeções quanto ao valor do plebiscito potencializaram outra proposta, a chamada democracia participativa.
A Constituição de 1988 manteve o modelo de democracia representativa que recebeu do passado, com pequenas modificações. Vale notar que manteve-se o presidencialismo com o sistema de governo, embora o projeto adotasse o parlamentarismo. Disto decorrem dois problemas: o caráter plebiscitário e demagógico da eleição presidencial e o caráter traumático desta eleição, que sendo decisiva para o país cria expectativas e resistências em demasiado.
A Crise de Legitimidade
As três crises apontadas, agravadas por fatores peculiares ao quadro brasileiro, podem levar a uma quarta crise, a de legitimidade. Na verdade, indícios há de que esta já se anuncia.
Conforme aponta Weber justifica-se a legitimidade do poder segundo um de três princípios. O primeiro é o da racionalidade. O poder deriva das regras e processos racionalmente estabelecidos e se exerce segundo procedimentos também racionalmente definidos, isto por meio da lei. É o poder “legal”. O segundo, o da tradicionalidade. O poder aí deriva do respeito a tradições persistentes, especialmente sobre a devolução do poder a uma estirpe familiar, poder tradicional. O último é o carismático. É a atribuição do poder ao detentor de um dom especial, liderança, heroísmo, santidade, poder carismático.
Na segunda metade do século XX desenvolve-se uma forma de legitimação que Weber não examinou, trata-se da legitimação pelo êxito. De fato, nas sociedades contemporâneas a realização de metas de desenvolvimento, que se traduzem na melhoria da condição de vida da comunidade, tende a legitimar o poder.
A crise de legitimidade que aponta no horizonte brasileiro decorre basicamente de dois pontos. Um é a insatisfação generalizada com a conduta do Estado, e outro com a dos governantes.
A primeira resulta do imenso descompasso entre as promessas da Constituição e sua concretização. Desse primeiro ponto a passagem para o segundo é uma inferência lógica: a culpa é dos homens que governam, dos políticos, são estes que prometem mas não cumprem.
Obviamente a crise de legitimidade não aproveita à democracia. Ela abre caminho para os golpes de força que instauram ditaduras tradicionais; ou para a deliqüescência do sistema, que favorece as revoluções socialistas. Em ambos os casos, ao sacrifício da liberdade, no segundo, sem a contrapartida de um progresso continuado e sustentado. Vejam-se os exemplos de Cuba e da falecida União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
A Cultura Política Brasileira
As três crises analisadas são universais, de que não foge o Brasil em virtude de sua Constituição, mas aqui sofrem elas a influência de alguns fatores peculiares ao quadro nacional.
Entre os fatores físicos, cabe lembrar que as largas desigualdades entre os segmentos sociais, a concentração dessas desigualdades, a brusca urbanização, os desequilíbrios regionais, o estágio de desenvolvimento econômico não contribuem para a estabilidade e o êxito da democracia representativa.
O ponto essencial, todavia, a examinar concerne à cultura política brasileira, isto é, o conjunto de valores, atitudes, orientações, mitos e crenças que o povo tem acerca da política e do governo e particularmente a respeito da legitimidade do governo e de sua própria relação com o governo.
No Brasil facilmente se combina o paternalismo autoritário das relações governantes/governados, conseqüência direta da colonização. Temos também uma tradição de descrença nas eleições, e esta se agrava pelo fato de inexistir uma tradição partidária, além da tolerância para com a oposição. Ressalta-se também a influência política dos militares e da influência da Igreja Católica ainda que em franca decadência.
Sofremos também a influência de “intelectuais” que não se caracterizam pelo saber e sim por dominar os meios de comunicação de massa. Talvez como conseqüência do baixo nível de instrução e de cultura do brasileiro, este, e mormente, a classe média e a classe alta, dão ouvidos atentos e respeitosos a estes “intelectuais”.
Estes últimos assumem uma postura moralista, entretanto, não hesitam em aceitar cargos públicos, assumir funções de relações públicas, ou de assessoria em empresas, embora queiram fazer crer no seu descomprometimento. Essa hipocrisia às vezes se institucionaliza... Seguramente, a cultura política brasileira não favorece a democracia.
A Corrupção
Não passa um dia no Brasil contemporâneo, sem que seja formulada uma acusação de corrupção. É preciso notar que a corrupção não macula apenas o indivíduo; ela tem um reflexo social e político, que os grandes pensadores não desconheceram.
Num sentido amplo a corrupção se aplica a um tipo não de homem mas de conduta ou comportamento, mais precisamente de conduta de autoridade pública: “o comportamento de autoridades públicas que se desviam de normas aceitas a fim de servir a interesses particulares”, conforme Huntington.
Em sentido estrito o termo se refere a conduta de autoridade que exerce o poder de modo indevido, em benefício de interesse privado, em troca de uma retribuição de ordem material.
Entre os fatores que desestimulam a corrupção cumpre citar, em primeiro lugar, a crença religiosa. Entretanto, fatores há que estimula a corrupção. Uma é a idéia, segundo a qual é sempre lícito procurar e obter vantagens para si independentemente dos meios.
Outra, é uma versão vulgar do materialismo que pretende que o interesse material seja a mola da vida e do homem, não passando de hipocrisia e de aparência o idealismo, o civismo, a moralidade etc.
Pode-se dizer que a democracia contemporânea herdou, com o sistema representativo, a corrupção da vida política inglesa do século XVII. Nos estudos sobre os países em desenvolvimento, é freqüente a abordagem da questão da corrupção, tanto como suborno, quanto como favorecimento.
Salienta-se as observações de Huntington, cujas principais teses são primeiramente a correlação entre corrupção e modernização. Em segundo lugar, a modernização traz consigo novas fontes de riqueza e poder. Por fim, Huntington ousa levantar a tese de que a corrupção pode estimular o desenvolvimento econômico.
Especificamente no Brasil, a corrupção tem antigas e profundas raízes, que vêm desde o colonialismo luso. Todavia, ao analisar o caso brasileiro, cumpre distinguir dois Brasis.
No Brasil menos desenvolvido, a corrupção procede principalmente de uma confusão entre o público e o privado, típica de sociedades pouco ou não desenvolvidas. No mais desenvolvido, uma fator importante é o desejo de “fazer a América”. O que vemos no entanto, que talvez o fator que mais favoreça a corrupção no Brasil seja a tolerância da sociedade para com ela.
Sob outro aspecto, surge a dúvida sobre o fato de existirem ou não leis suficientes que previnam ou punam a corrupção. Conclui-se que o problema não está no nível do estabelecimento das leis (conquanto uma ou outra mereça ser aprimorada), mas no nível da efetividade dessas leis. Parece faltar à sociedade brasileira o senso de respeito à legalidade.
E a falta desse senso ameaça a própria democracia, de que é ele um dos princípios fundamentais.
A Instauração da Governabilidade
A ingovernabilidade do Brasil contemporâneo não é problema insolúvel, como não o foi no estrangeiro quando houve a coragem de enfrentá-lo com objetividade.
Quanto à crise de sobrecarga, sua solução reclama uma definição a propósito da finalidade do Estado, de que decorre o seu papel enquanto governo, latu sensu, da sociedade.
Deve ser adotado o princípio da subsidiariedade, que consiste em deixar ao homem aquilo que ele pode fazer por si; em nível mais alto, às comunidades o que podem estas realizar; aos grupos, inclusive empresas, no plano da economia, da saúde, da assistência, o que lhes está ao alcance; à sociedade o que somente esta pode atender; ao Estado o que não for bem feito pelos círculos menores.
É certo que o Estado não poderá abandonar algumas funções que só ele pode desempenhar. Uma é a proteção contra o estrangeiro; outra, a manutenção da ordem interna; com a primeira vinculam as relações exteriores; com a segunda, a disciplina das principais relações sociais.
O Estado deve trabalhar no sentido da redução das desigualdades regionais e individuais. Mas a política para tanto é mais eficiente quando confere estímulos ou incentivos do que quando parte para o assistencialismo.
Quanto à crise do agenciamento, o ponto de partida de uma proposta há de ser o reconhecimento de que duas idéias centrais da separação dos poderes – a de divisão do exercício do poder e a de fazê-la, levando em conta as funções0 atribuídas ao Estado – continuam válidas.
A governabilidade exige uma íntima coordenação entre a atuação do Legislativo e a do Executivo, além do reconhecimento de leadership deste último.
As observações de Karl Loewenstein sugerem um novo tripartismo, com distinção de funções: as de policy determination, policy execution e policy control.
Isto significa que ele propõe um governo, por delegação de um povo; uma administração e um controle.
Quanto à estrutura descentralizadora, torna-se necessária sua reorganização, considerando como unidades federativas somente os entes que tenham condições mínimas de auto-sustentação.
Quanto ao sistema representativo, é indispensável a reestruturação do sistema eleitoral tendo em conta as condições do país.
No contexto de uma profunda reformulação política, não se pode esquecer do regime a estabelecer para os meios de comunicação de massa.
Para o reforço da legitimidade, espera-se que a correção das três crises assinaladas já produza de per si uma eliminação da crise de legitimidade.
Pelo exposto, vimos que a superação da crise de ingovernabilidade reclama uma nova Constituição, deixando-se de lado a teoria do poder constituinte, utópica e metafísica, que aponta apenas uma paradigma.
É preciso que desta vez, os mais sábio sejam os incumbidos de estabelecer a nova Constituição do Brasil.
Adminstradora de empresas com habilitação em Comércio Exterior e estudante do 5º ano de Direito, ambos os cursos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIRES, Adriana C.. A Crise Governamental: Problemas da Estrutura Federalista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2008, 09:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/15461/a-crise-governamental-problemas-da-estrutura-federalista. Acesso em: 25 nov 2024.
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