Em relação aos terceiros de boa-fé, a ilegalidade do ato administrativo não implica automaticamente a ineficácia geral e absoluta dos efeitos deste mesmo ato.
Exemplos correntios são os efeitos em face de terceiros de boa-fé quanto aos atos jurídicos praticados por notário ou registrador, a quem incumbe a interveniência na realização de ato jurídicos privados, ou quanto aos casamentos celebrados por quem se apresentou como Juiz de Paz e cuja investidura na função tenha sido posteriormente anulada:
1 – substituto de serventia, alegando direito á efetivação pelo art. 208 da Constituição revogada, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 22/82, obtém provimento judicial cautelar que lhe concede a provisória investidura na titularidade de serventia, recebendo, a final, decisão improcedente ou extintiva do mérito;[1]
2 – a investidura de serventuário é anulada pela própria Administração, ou por ato jurisdicional, com fundamento na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal;
3 – o serventuário obtém liminar para continuar o exercício das funções em ação contra o Estado em que pretende a declaração de ineficácia de ato de aposentação por implemento da idade, resultando, depois, vencido na respectiva demanda; e
4 – aquele que exerceu durante mais de uma década a nobre função de Juiz de Paz, celebrando centenas de casamentos, na verdade nunca fora regularmente investido e estava em conluio com o oficial do registro civil que também se beneficiara com a situação irregular.
A partir daí, muitos interessados pretendem a automática invalidade ou ineficácia dos atos praticados ao tempo do período, alegando que a ilegalidade do exercício da função contamina, de forma absoluta, o ato praticado naquele período.
O exame de tal pretensão exige cognição profunda dos fatos em exame, pois são diversos os campos de atuação dos efeitos jurídicos.
Inicialmente, devem ser distinguidas duas relações jurídicas:
a) a relação jurídica entre o servidor e o Poder Público, que está subordinado às regras de direito público e, assim, vinculativa e indisponível; e
b) a relação jurídica entre as partes interessadas no ato jurídico privado objeto da atividade, como o testamento, o registro imobiliário, o protesto, a celebração do casamento e tantos outros que podem ocorrer e em que se exige a atividade pública como essencial para a sua realização.
Justamente por representarem manifestações de vontade de pessoas públicas, os atos estatais, inclusive os praticados por notários e por registradores no exercício da delegação administrativa a que se refere o art. 236 da Constituição, produzem, por si só, efeitos erga omnes, pois a executoriedade que deles emana é suficiente para serem presumidos como válidos e eficazes.
Aliás, a presunção de veracidade ou legitimidade dos atos estatais é, em nosso País, norma formal constitucional, como se vê no art. 19, II, da vigente Lei Maior, princípio denominado por Raul Machado Horta de princípio constitucional estabelecido ou, na terminologia da doutrina americana, vedação constitucional.
Por tal presunção, que admite prova em contrário (juris tantum, e não iure et de juris), é que a decisão, administrativa ou judicial, que invalida o ato administrativo produz efeitos ex nunc (a partir do ato) e não efeitos ex tunc, ao menos na parte dos efeitos que alcançam terceiros.
Em se tratando de provimento judicial cautelar, o art. 808 do Código de Processo Civil prevê as diversas hipóteses em que cessa a eficácia da medida cautelar, anotando-se, ainda, na mesma linha, a Súmula nº 405 do Supremo Tribunal Federal: Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária.[2]
A orientação decorrente do mencionado dispositivo legal e da súmula da jurisprudência dominante opera com extremo vigor não só no campo judicial como também no processo administrativo de todos os Poderes da República e de todas as esferas governamentais, pois o processo decisório previsto na Constituição é uno e aplicável a todos os procedimentos por força da cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, e seguintes).
Pode, também, a Administração Pública (no caso, a Administração Judiciária Superior, através de seus órgãos de atuação como a Presidência do Tribunal de Justiça, a Corregedoria Geral da Justiça, o Conselho da Magistratura e o Tribunal Pleno ou órgão especial) invalidar a investidura do serventuário aplicando as mencionadas Súmulas 346 e 473, por ato dotado de autoexecutoriedade, no exercício da denominada “tutela administrativa”:
Em regra, nas relações entre particulares, ninguém pode, sem o seu consentimento, ver a sua situação jurídica modificada por simples vontade de outrem... Em direito administrativo, pelo contrário, a Administração pode modificar as situações jurídicas por sua única vontade, sem o consentimento dos interessados. Essa é uma prerrogativa característica do poder público. A decisão executória é o ato no qual a Administração emprega esse poder de modificação unilateral das situações jurídicas. É o processo típico da ação administrativa, o mais corrente na prática, o mais característico do ponto de vista doutrinal.[3]
Muitas vezes, o ato da administração é mandado fazer por decisão judicial, como, por exemplo, a desinvestidura de determinado servidor para que outro seja posto em seu lugar.[4]
O desfazimento do ato administrativo de investidura somente pode ser feito por anulação, em caso de ilegalidade, e nunca por revogação (fundada na oportunidade ou conveniência, o que os tratadistas denominam de “mérito administrativo”), justamente porque a ordem jurídica, para casos tais, somente prevê casos estritamente vinculados, como, por exemplo, a aposentação e a demissão, assim nenhum alvedrio concedendo ao administrador.
Veja-se a expressiva dicção do enunciado sumular:
A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (Súmula 473).
Note-se: dos atos nulos não se originam direitos, devendo-se, no entanto, ressalvar os efeitos em face do terceiro de boa-fé.
O tema da distinção entre revogação e anulação do ato administrativo é tormentoso em nossa doutrina, o que decorre da instabilidade decorrente da inexistência de uma teoria geral de validade dos atos administrativos aceita por todos, inclusive no direito comparado.
A instabilidade também tem fonte na diversidade normativa que a Constituição da República permite aos diversos entes federativos, assim lhes assegurando a necessária autonomia, desde que preservados os princípios e valores estabelecidos na Carta Federativa, e alcança a própria terminologia, como noticia mestre Miguel Seabra Fagundes:
Não são encontradas, na prática administrativa brasileira, as palavras "revogação" e "anulamento", significando o desfazimento de atos do poder executivo. Os atos revocatórios ou anulatórios usam freqüentemente das expressões cassar, cancelar ou tornar sem efeito. Assim, diz-se comumente que um ato é tornado sem efeito, uma licença é cassada ou um débito é cancelado.[5]
É usual que os atos administrativos de invalidação usem a expressão “tornar sem efeito”, o que, no entanto, não deixa dúvidas de que se trata de anulação, que se funda em ilegalidade, e não de revogação, decorrente da conveniência ou oportunidade.
Diz a Súmula 473 que os atos ilegais não geram efeitos.
Contudo, o ato administrativo, em face do pré-falado princípio de veracidade, por si só produz efeitos e situações que não podem ser desconsideradas. Não se estranhe que o Direito dê a atos nulos determinados efeitos como até mesmo faz no casamento anulável, pois, como norma de adaptação da conduta do indivíduo à sociedade, a norma jurídica oferta necessariamente um suporte fático para deflagrar a incidência dos efeitos jurídicos pretendidos e não mera previsão de conseqüência.
Nos exemplos em foco não se admite que a anulação do provimento de investidura na serventia alcance a nulidade de todos os atos praticados pelo servidor em razão de sua competência – protege-se o administrado, o terceiro de boa-fé, aquele que não integrava a relação administrativa viciosa.
O ato administrativo é ato jurídico e por si só, caso existente e ainda que inválido, produz alteração no mundo jurídico e fático.
Sob o título O negócio jurídico como regulamentação de conseqüências jurídicas e como "situação de fato", ensinou Karl Larenz:
Os negócios jurídicos, como já se acentuou anteriormente, não são situações de fato “neutrais” a respeito de suas conseqüências jurídicas, mas situações de fato a que é inerente o sentido de visarem produzir essas conseqüências jurídicas. Não alcançam significado jurídico só através da circunstância de poderem ser subsumidos à previsão duma norma jurídica, mas possuem uma significação jurídica, em virtude do sentido do ato que incorporam, independentemente de como devam ser apreciados com fundamento numa norma jurídica.[6]
José Cretella Junior também anotou que administrado de boa-fé que não tenha concorrido para o ato ilegal, como qualquer outro atingido por efeitos do ato, investe-se no direito subjetivo público de manutenção do ato, porque o dever da Administração é zelar para que os atos administrativos penetrem no mundo jurídico integralmente perfeitos.[7]
A anulação ou ineficácia do ato administrativo, assim, somente alcança a relação de direito público entre o servidor e a Administração Pública, deixa intangíveis os efeitos dos atos praticados no exercício da função com relação aos terceiros de boa-fé, porque estes são estranhos àquela relação publicística e, nos exemplos, integram a relação de direito privado submetida ao crivo do notário ou do registrador e do oficiante do casamento:
Reconhecida e declarada a nulidade do ato, pela Administração ou pelo Judiciário, o pronunciamento de invalidade opera ex tunc, desfazendo todos os vínculos entre as partes e obrigando-as à reposição das coisas ao status quo ante, como conseqüência natural e lógica da decisão anulatória. Essa regra, porém, é de ser atenuada e excepcionada para com os terceiros de boa-fé alcançados pelos efeitos incidentes do ato anulado, uma vez que estão amparados pela presunção de legitimidade que acompanha toda atividade da Administração Pública. Mas, ainda aqui é necessário que se tomem os conceitos de parte de terceiro no sentido próprio e específico do Direito Administrativo, isto é, de beneficiário direto ou partícipe do ato (parte) e de estranho ao seu objeto e à sua formação, mas sujeito aos seus efeitos reflexos (terceiro). Assim, por exemplo, quando anulada uma nomeação de funcionário, deverá ele repor os vencimentos percebidos ilegalmente, mas permanecem válidos os atos por ele praticados no desempenho de suas atribuições funcionais, porque os destinatários de tais atos são terceiros em relação ao ato nulo.[8]
Neste sentido, na preservação do interesse de boa-fé em decorrência de ato da Administração Pública, colhem-se os seguintes precedentes:
Acórdão: RESP 417478/PR; RESP 2002/0023690-1
Fonte: DJ DATA:23/09/2002 PG:00255
Relator: Min. LUIZ FUX (1122)
Ementa: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. VEÍCULO USADO IMPORTADO. APREENSÃO DE MERCADORIA ADQUIRIDA NO MERCADO INTERNO. PENA DE PERDIMENTO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. PRECEDENTES DESTA CORTE.
- A aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal, gera a presunção de boa-fé do adquirente, cabendo ao Fisco a prova em contrário.
- A pena de perdimento não pode desconsiderar a boa-fé do adquirente, máxime, quando o veículo fora adquirido, originariamente, em estabelecimento comercial sujeito à fiscalização, desobrigando-se o comprador a investigar o ingresso da mercadoria no País.
- Aplicar-se ao comprador a perda de perdimento da mercadoria, em razão de a vendedora não ter comprovado o pagamento dos tributos devidos pela importação, revela solução deveras drástica para quem não importou e nem é responsável tributário, quiçá inconstitucional, à luz da cláusula pétrea de que a sanção não deve passar à pessoa do infrator (CF, art. 5º, XLV).
- Precedentes da 1ª Seção.
- Recurso desprovido.
Data da Decisão: 13/08/2002
Órgão Julgador: T1 - PRIMEIRA TURMA
Decisão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Garcia Vieira, Humberto Gomes de Barros e Francisco Falcão votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro José Delgado.
Outro exemplo já corrente de eficácia de ato jurídico nulo é quando, em se tratando de norma inconstitucional (e a inconstitucionalidade é a suprema invalidade pela incompatibilidade da norma ou do ato em face da Lei Maior), é o poder que a Lei nº 8.968, de 10 de novembro de 1999, concedeu ao Supremo Tribunal Federal em seu art. 27:
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Observe-se que a mencionada disposição legal afirma que, mesmo havendo incompatibilidade do ato em exame com a Constituição, as razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (que devem ser verificadas em cada caso em julgamento) autorizam que sejam diferidos os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
Conclui-se que os interessados nos atos praticados pela Administração Pública somente poderão pretender a anulação ou ineficácia de tais atos com fundamento nos vícios que invalidam os atos jurídicos em geral desde que se vejam preservados os interesses dos terceiros de boa-fé.
E assim é pelo caráter ético que neste século XXI já se afirma não como instância diversa da aplicação do Direito, mas como fonte e fato da legitimidade de sua aplicação.
[1] Na linha da orientação dada pela Súmula 405 do Supremo Tribunal Federal, a extinção do processo sem julgamento do mérito ou a improcedência da demanda importa necessariamente na ineficácia dos efeitos da liminar ou cautelar concedida no curso da lide. Outro expressivo exemplo de antecipação de tutela, agora no campo legislativo, é a medida provisória que, nos termos do art. 62 da Constituição, exige a edição de ato pelo Congresso Nacional regulando os efeitos decorrentes da medida provisória rejeitada ou alterada.
[2] Note-se que, à época da edição da súmula, contra a decisão concessiva de mandado de segurança cabia recurso de agravo de petição, hoje substituído pela apelação. Evidentemente, a ineficácia da liminar somente alcança a relação jurídica entre o servidor e a Administração Pública, que são as partes da ação em que foi concedida a cautelar.
[3] RIVERO, Jean. Direito Administrativo (Droit Administratif). Coimbra: Almedina, 1981. p. 106.
[4] Constituição, art. 41, § 2º: invalidada por sentença judicial a demissão de servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito à indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.
[5] FAGUNDES, Miguel Seabra. Revogação e anulamento do ato administrativo. Revista Forense, n. 107, p. 218 e seguintes.
[6] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito (Methodenlehre der Rechtswidessenschaft). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 339.
[7] José Cretella Júnior, Direito Administrativo Brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1983, vol. I, p. 361.
[8] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979, p. 182/183.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Conferencista na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena a área de Direito Constitucional. Professor Titular da Universidade Salgado de Oliveira - Universo. Membro honorário do Instituto de Advogados Brasileiros. Livre-docente em Direito do Estado, pela Universidade Gama Filho. Especialista em Metodologia do Ensino Superior em nível de pós-graduação lato sensu. Membro Benemérito da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Autor de vários livros jurídicos. Home page: www.nagib.net.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Nagib Slaibi. Efeitos do ato administrativo inválido em face de terceiros de boa-fé Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr 2009, 08:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/17292/efeitos-do-ato-administrativo-invalido-em-face-de-terceiros-de-boa-fe. Acesso em: 27 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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