A polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), mesmo diante do entendimento firmado pela Primeira Turma do STF no sentido de que se trata de um “crime” punido com penas alternativas, sendo o usuário, portanto, um “tóxico-delinqüente” (RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07), certamente ainda não chegou ao seu final.
Resumindo as principais correntes de pensamento em relação a esse assunto temos o seguinte:
(a) o art. 28 faz parte do Direito penal e é “crime” (STF, RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07); houve mera despenalização, não se podendo falar em abolitio criminis;
(b) o art. 28 pertence ao Direito penal mas não constitui “crime”, sim, uma infração penal sui generis (Luiz Flávio Gomes); houve descriminalização formal e ao mesmo tempo despenalização, mas não abolitio criminis;
(c) o art. 28 não pertence ao Direito penal, sim, é uma infração do Direito judicial sancionador (Alice Bianchini), seja quando a sanção alternativa é fixada em transação penal, seja quando imposta em sentença final (no procedimento sumaríssimo da lei dos juizados), tendo ocorrido descriminalização substancial (ou seja: abolitio criminis).
O Min. Sepúlveda Pertence, no seu longo e sempre respeitável voto, já (bem) sintetizou nossa posição sobre o assunto. Para nós a conduta do usuário continua sendo penalmente punível. Tem implicações penais e não revogou o art. 16 da antiga lei de tóxicos. Mas tratar o usuário, depois do novo contexto legislativo advindo com a Lei 11.343/2006, como “criminoso”, como “tóxico-delinqüente”, não nos parece o melhor caminho. A pecha de “criminoso” ao usuário de drogas significa um grave retrocesso, enorme distanciamento da política européia de redução de danos e não coopera, em absolutamente nada, para seu processo de recuperação ou de reinserção social.
Se o fato punido com reclusão ou detenção é “crime” e se esse mesmo fato quando punido com prisão simples ou multa é uma “contravenção penal”, como admitir que o menos, ou seja, como admitir que o fato punido com sanções mais brandas do que prisão simples (esse é o caso do art. 28) seja “crime”. O fato punido com pena menor que a da contravenção é reputado como crime. Isso nos parece muito paradoxal!
De outro lado, cabe considerar o seguinte: a diferenciação entre o crime e a contravenção pela pena cominada não é uma questão puramente formal. O conteúdo da sanção (prisão), por força do princípio da proporcionalidade, nos conduz obrigatoriamente a sustentar mais exigências para a configuração de um crime. Hoje isso se resolve pela tipicidade material que, como novo requisito do fato típico, requer: juízo de reprovação da conduta (Roxin-Frisch), resultado jurídico desvalioso (Zaffaroni, L. F. Gomes etc.) e imputação objetiva do resultado (Roxin). Quando o fato conta com punição mais branda que jamais conduz o agente para a prisão não há dúvida que podem ser flexibilizadas as exigências materiais da tipicidade. Como se vê, o nível, a natureza e a intensidade da pena tem tudo a ver com a própria natureza e grau de exigências da infração penal. Em outras palavras: a graduabilidade do injusto penal (Paliero) tem total correspondência com a graduabilidade da sanção penal.
No atual sistema penal brasileiro, de outro lado, se o agente pratica contravenção antes e crime depois não é considerado reincidente. Ora, seguindo-se o pensamento da Primeira Turma do STF, se o sujeito praticar o art. 28 antes e um crime depois, será reincidente (desde que haja sentença final condenatória em relação ao art. 28). Quem pratica o mais (contravenção + crime) não é reincidente; quem pratica o menos (art. 28 + crime) seria reincidente. Nisso vemos outro paradoxo!
De nada adianta, de outra parte, conceber o usuário como “criminoso” ou “tóxico-delinqüente” se todos sabemos que as conseqüências que lhe podem alcançar (por força na nova lei) destoam completamente disso. O juiz sabe que nada pode fazer contra ele em termos coativos (imperativos). A dureza nominal (“criminoso”) não se corresponde com a realidade. Denominar o art. 28 de “crime”, portanto, pode significar a banalização deste conceito no Direito penal. Passamos a ter um “crime” com conseqüências pífias (inexpressivas) caso o infrator não cumpra as sanções impostas pelo juiz. A nova lei banalizou a função do juiz (deveria ter adotado em relação ao usuário a desjudicialização); o STF, com a devida vênia, acaba de banalizar o conceito de “crime”.
Por fim, o que mais impressionou o Min. Pertence, para refutar nossa tese da infração penal sui generis, foi o ECA, que em seu art. 103 considera como ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Se o fato (posse de droga para uso próprio do menor) fosse considerado sui generis, não haveria possibilidade de se lhe impor nenhuma sanção (porque nem é crime, nem contravenção).
O argumento pode ser superado com certa facilidade. Há dois caminhos para isso:
(a) o primeiro reside nos artigos 98, III e 101 do ECA (que me foram recordados por Rogério Sanches): cabe tanto contra a criança quanto em relação ao adolescente medidas de proteção “em razão da sua conduta”. No artigo 101 há um rol enorme de medidas que seriam totalmente pertinentes para essa criança ou adolescente;
(b) o segundo consiste em admitir em relação ao art. 103 uma interpretação extensiva (e, ao mesmo tempo, progressiva), que é possível em Direito penal, mesmo contra o réu, quando a intenção do legislador resulta inequívoca (bastaria ler no art. 103 crime, contravenção ou infração penal sui generis).
Diante de tudo quanto foi exposto, desta feita não dá para concordar com nosso Emérito Mestre Pertence.
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