Com o advento da Constituição de 1988, o Estado assumiu um importante papel de garantidor de políticas públicas sociais, visando o estabelecimento de uma sociedade justa e digna.
No entanto, apesar das disposições da Carta Magna, concernente à obrigação do Estado de atuar diretamente na ordem social, nem sempre ele consegue assumir este papel diretamente, ou pela ineficiência da máquina administrativa, ou pela crescente demanda destas atividades.
Nesse contexto surge então um importante aliado: o particular, aqui conceituado como o conjunto de entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que realizam atividades sociais, de interesse público, constituindo o “terceiro setor”.
A priori, cabe-nos esclarecer que o a legislação brasileira não utiliza a expressão “terceiro setor”, mas a doutrina se utiliza amplamente desta denominação, mesmo que ainda não se tenha uma definição clara do que venha a ser o terceiro setor.
Analisaremos o conceito da referida expressão, de forma breve, já que não é escopo do presente trabalho aprofundar na definição do tema.
Lucas Rocha Furtado[1] define como Terceiro Setor o “conjunto de entidades privadas sem fins lucrativos ou econômicos que exploram atividades de interesse coletivo”.
Nas palavras de Tomáz de Aquino Resende[2] para integrar o terceiro setor “há que ser pessoa jurídica (registro em cartório) de direito privado (não pública), não pode distribuir lucros ou dividendos de qualquer espécie (fins não econômicos, e deve atender a demandas coletivas (interesse não individual”.
Ainda, Marcela Roza Leonardo Zen[3] acrescenta que “integram o Terceiro Setor aquelas entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam atividades complementares à atividades públicas, visando a satisfação do bem comum”
Em nossa concepção, o terceiro setor pode ser definido, genericamente, como um conjunto de entidades legalmente constituídas pelo setor privado, sem fins lucrativos, com o escopo de realizar atividades de interesse público em prol de toda a coletividade. Lembramos que o primeiro setor é constituído pelo Estado e o segundo pela livre iniciativa, com intuito de lucro, ou seja mercado.
Dentre estas entidades, que compõe o terceiro setor, entendemos que se incluem as associações e fundações, qualificadas ou não como Organizações Sociais (OS) ou Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Conforme já aludido, não há um consenso ou um estudo aprofundado na doutrina sobre o tema terceiro setor, mas é cediço que a colaboração das entidades que o compõe é imprescindível na busca da satisfação do interesse público.
Salientamos que neste trabalho não discorreremos sobre terceirizações ilícitas, ou sobre permissão ou concessão de serviços públicos, nem das imunidades tributárias de algumas destas entidades, mas tão somente do repasse voluntário de recursos, como uma das formas de fomento do terceiro setor.
A atividade de fomento, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[4] pode ser defina como:
(...) pode-se conceituar o fomento público como a função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam,direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de outras entidades, públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por seu turno, atividades que a lei haja considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.
Entende Sílvio Luís Ferreira da Rocha[5], em relação ao conceito de fomento, que o mesmo pode ser definido como “a ação da Administração com vistas proteger ou promover as atividades, estabelecimentos ou riquezas dos particulares que satisfaçam necessidades públicas ou consideradas de utilidade coletiva”.
Maria Silvia Zanela Di Pietro[6] registra que, “no fomento, o Estado deixa a atividade na iniciativa privada e apenas incentiva o particular que queira desempenhá-la, por se tratar de atividade que trás algum benefício para a coletividade”
Ainda, a mesma doutrinadora, assevera que
“o incentivo é dado sob a forma de auxílios financeiros ou subvenções por conta do orçamento público, financiamentos, favores fiscais, desapropriações de interesse social”, sendo que os benefícios podem se dar “em favor de entidades privadas sem fins lucrativos, que realizem atividades úteis à coletividade, como os clubes desportivos, as instituições beneficentes, as escolas particulares, os hospitais particulares, etc”.
Como visto, o Estado realiza o fomento de diversos modos, dentre eles, o aporte de recursos financeiros, voluntariamente, para a iniciativa privada e em regra, esta cooperação se dá por meio de convênios, termos de parceria ou contratos de repasse.
Diante disto, levando-se em conta que estas entidades se utilizam de recursos públicos para a execução dos projetos firmados com a Administração Pública, surgem questionamentos acerca da obrigatoriedade da realização de procedimento licitatório nas contratações realizadas com terceiros.
Vejamos: A licitação é um processo administrativo, bem como um princípio constitucional, consagrado no artigo 37, XXI da Constituição Federal, que assim dispõe:
“Art. 37 (...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
Imperioso destacar que a competência para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação é privativa da União, consoante o disposto no artigo 22 da Constituição, in verbis:
Art. 22 Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (grifo nosso)
Conforme se desprende da leitura do referido artigo, a regra aplica-se tão somente para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e para as empresas públicas e sociedades de economia mista. Não há menção na Carta Magna quanto a aplicação à iniciativa privada, quando esta se utiliza de recursos públicos.
A Lei 8.666/93, que regulamentou o referido artigo, dispõe em seu art. 1º, parágrafo único qual o alcance da referida Lei, do qual não se incluem as entidades privadas, vejamos:
Art. 1o Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Não obstante estas disposições, a Instrução Normativa 001/97 da Secretaria do Tesouro Nacional que durante uma década regulamentou, de forma simplificada, os convênios no âmbito federal, impôs esta obrigação aos particulares, sujeitando-lhes às disposições da Lei 8.666/93.
“Art. 27. O convenente, ainda que entidade privada, sujeita-se, quando da execução de despesas com os recursos transferidos, às disposições da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, especialmente em relação a licitação e contrato, admitida a modalidade de licitação prevista na Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, nos casos em que especifica”
Ainda no âmbito federal, foi instituído o Decreto n.º 5.504/05, que impõe a exigência de que os acordos que envolvam repasse voluntário de recursos da União deverão conter cláusula que determine que as contratações a serem realizadas pelas OS’s e OSCIP’s sejam realizadas mediante processo de licitação pública, nos termos da Lei n.º 8.666/93, e para as contratações de bens e serviços comuns a utilização do pregão, preferencialmente eletrônico, nos termos da Lei n.º 10.520/02, excetuadas, obviamente, as situações de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
O Tribunal de Contas da União, em decisão proferida no Acórdão 601/2007, no mesmo sentido assim dispõe:
RECURSO DE RECONSIDERAÇÃO. ORGANIZAÇÃO SOCIAL. SUJEIÇÃO A NORMAS GERAIS DE LICITAÇÃO E DE ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA DO PODER PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE DE UTILIZAÇÃO DE PREGÃO. NÃO PROVIMENTO.
1- As organizações sociais estão sujeitas às normas gerais de licitação e de administração financeira do poder público.
2 - As organizações sociais estão obrigadas a utilizar o pregão, preferencialmente na forma eletrônica, para aquisição de bens e serviços comuns realizadas com recursos federais transferidos voluntariamente. (Acórdão 601/2007 - Primeira Câmara, Ministro Relator AROLDO CEDRAZ).
Em sentido oposto, o Decreto 6.170/2007, que “dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, e dá outras providências”, estabelece que as entidades privadas, quando da contratação com terceiros utilizando recursos públicos, deverão seguir os princípios de Direito Público, bem como realizar simplesmente cotação de preços de mercado, vejamos:
“Art. 11. Para efeito do disposto no art. 116 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União transferidos a entidades privadas sem fins lucrativos deverão observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessária, no mínimo, a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato.”
Ainda, a Lei 9.637/98, que dispõe sobre a qualificação das OS’s, estabelece em seu artigo 17 a obrigação de edição de regulamento próprio para as contratações:
“Art. 17 A organização social fará publicar, no prazo máximo de noventa dias contado da assinatura do contrato de gestão, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público” (grifo nosso).
Da mesma forma, a Lei 9.790/99, que dispõe sobre a qualificação das OCIP’s, assim dispõe:
“Art. 14. A organização parceira fará publicar, no prazo máximo de trinta dias, contado da assinatura do Termo de Parceria, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios estabelecidos no inciso I do art. 4o desta Lei.” (grifo nosso)
Como visto, nem a legislação é pacífica no tema. No entanto, conforme demonstrado, nossa Carta Magna, bem como as Leis 8.666/93 e 10.520/02, que disciplinam o tema “licitação” não sujeitam as entidades privadas à realização de procedimento licitatório.
Ora, partindo do princípio da segurança jurídica, presente em nosso ordenamento, é inaceitável que portarias, decisões administrativas, dentre outros venham a cada momento, de maneira diferente, disciplinar o tema.
Cumpre ainda salientar que a legislação e as decisões que impõe esta obrigatoriedade são aplicáveis tão somente à gestão de recursos provenientes da União, pelas OCIPS e pelas OS.
Ora, e os recursos públicos das outras esferas? E as demais entidades do Terceiro Setor? Poderiam agir de forma diferente?
É cediço que todas as entidades privadas, quando da utilização de recursos públicos, não poderão geri-los de maneira indiscriminada, sob pena de descaso com a coisa pública.
Há sim de ter fiscalização, bem como uma maneira adequada e transparente de utilização dos recursos públicos. No entanto, não se pode obrigar ao privado agir da mesma maneira que o poder público, simplesmente obrigando-as à utilizar a legislação existente para o Poder Público, mas sim de maneira análoga.
O terceiro setor incumbiu-se de colaborar com o poder público, atuar ao seu lado e não assumir integralmente suas funções e agir como se ele fosse.
Ainda, há de se ressaltar que, a imposição do regime jurídico de direito público, concernente à obrigatoriedade de realização de procedimento licitatório implicaria também na investida de prerrogativas exclusivas do poder público, como cláusulas exorbitantes, rescisão unilateral, aplicação de penalidades, dentre outros.
O particular, quando da utilização de recursos públicos deve sim obedecer aos princípios peculiares à sua utilização, como: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, mas inseridos em seu próprio contexto, com regulamentos próprios, sob fiscalização do poder público.
Também é mister advertir que sem uma fiscalização e regulamentação abrir-se-ia espaço para uma atuação irregular, tanto por parte do poder público, no sentido de burlar princípios constitucionais e transferir atividades que lhe são próprias, como do ente privado, utilizando recursos públicos de maneira indiscriminada.
Por fim, concluímos que o terceiro setor carece de uma regulamentação, de uma atenção especial do poder público, visando tão somente unificar os procedimentos a ele aplicáveis, tornando esta parceria tão somente uma maneira de satisfazer com eficiência o interesse público.
[1] FURTADO, Lucas Rocha. Entidades do Terceiro Setor e o dever de licitar. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6, n. 65, p.9-11,maio 2007.
[2] RESENDE, Tomáz de Aquino. Roteiro do Terceiro Setor. Associações e fundações: o que são, como instituir, administrar e prestar contas / Tomáz de Aquino Resende, com colaboração de Bianca Monteiro da Silva, Eduardo Marcondes Filinto da Silva (col.) – 3 ed. Ver., atual e ampli., Belo Horizonte: Pax, 2006.
[3] ZEN, Marcela Roza Leonardo. Licitação e Terceiro Setor: reflexões sobre o concurso de projetos de Lei das OSCIPS, in OLIVEIRA, Gustavo Justino de (Coord.). Direito do Terceiro Setor. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
[4] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14ª. edição, totalmente revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 524
[5] ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p.19.
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público- privada e outras formas. 5 ed. e reimpressão. São Paulo: Atlas, 2006, p.249
Advogada. Servidora Pública Municipal. Acadêmica do Curso de Administração Pública pela UFOP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Mariane de Oliveira. Da não obrigatoriedade de realização de licitação pelo Terceiro Setor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2009, 07:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/17990/da-nao-obrigatoriedade-de-realizacao-de-licitacao-pelo-terceiro-setor. Acesso em: 28 nov 2024.
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