Resumo: A judicialização da saúde no Brasil tem gerado desafios significativos para a gestão pública do Sistema Único de Saúde (SUS), impactando tanto a administração das unidades de saúde quanto o planejamento das políticas públicas. Este fenômeno exige uma análise integrada entre os campos jurídico e de gestão pública, uma vez que as decisões judiciais, ao obrigar o fornecimento de medicamentos e tratamentos não cobertos pelo SUS, muitas vezes sobrecarregam os recursos financeiros do sistema e comprometem a equidade no acesso aos serviços de saúde. A judicialização, ao forçar respostas rápidas e sem um planejamento adequado, também coloca em risco a sustentabilidade do SUS. Diante disso, é crucial refletir sobre formas de melhorar a implementação das decisões judiciais, propondo soluções que garantam o cumprimento dos direitos sem prejudicar a universalidade e a eficiência do sistema público, como o fortalecimento de políticas públicas mais eficientes.
Palavras-chave: Direito à saúde. SUS. Judicialização da Saúde. Gestão em Saúde.
Abstract: The judicialization of health in Brazil has posed significant challenges for the public management of the Unified Health System (SUS), impacting both the administration of healthcare units and the planning of public policies. This phenomenon requires an integrated analysis of the legal and public management fields, as judicial decisions, by mandating the provision of medications and treatments not covered by SUS, often overload the system's financial resources and undermine equity in access to healthcare services. Judicialization, by demanding quick responses without adequate planning, also puts the sustainability of SUS at risk. In light of this, it is crucial to reflect on ways to improve the implementation of judicial decisions, proposing solutions that ensure the fulfillment of rights without compromising the universality and efficiency of the public system, such as strengthening more efficient public policies.
Keywords: Right to health. SUS. Judicialization of Health.. Health Management.
Sumário: Introdução. 1. Breves Reflexões sobre o Direito à Saúde no Brasil e a sua Judicialização. 2. Análises sobre a Gestão Pública de Saúde e a Judicialização do Acesso à Saúde. Considerações Finais. Referências.
Introdução
No âmbito internacional, a partir da II Grande Guerra, o termo judicialização foi, cada vez mais, associado à ampliação dos direitos humanos fundamentais, resultando em uma notável expansão da via judicial como mecanismo de controle dos demais poderes. A judicialização passou a ser compreendida como a decisão, pelo Poder Judiciário, de questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral (GOMES,2014).
Após a aprovação da Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF/88), tornou-se, cada vez mais frequente a interferência do poder judiciário em questões que, primariamente, são de competência dos poderes executivos ou legislativos, como as relacionadas à área da saúde.
No Brasil, o direito à saúde, elevado à classe dos direitos sociais fundamentais, por estar conectado ao direito à vida, representa um dos fundamentos da dignidade da pessoa humana, previsto na CF/88, precipuamente nos artigos 6º e 196, sendo indissociável do direito à vida, exigível através de uma prestação positiva do Estado.
No entanto, uma vez que as políticas públicas não conseguem suprir com sucesso a concretização do direito à saúde para toda a sociedade, especialmente em razão do subfinanciamento da saúde ao longo dos anos, e que se agravou após a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, em dezembro de 2016, congelando por 20 anos os gastos na área da saúde e educação, cada vez mais o Judiciário vem sendo chamado a solucionar questões relacionadas ao assunto, no fenômeno conhecido como judicialização da saúde, termo que se tem traduzido como garantia de acesso a bens e serviços.
Diante desse cenário, o número de processos judiciais relativos à saúde teve um crescimento exponencial de 130% nos últimos anos, conforme pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2019, acarretando impactos na Administração e na Gestão Pública, como, por exemplo, no orçamento, na organização e na logística institucional.
E a propositura de ações judiciais relacionadas ao direito à saúde, contra os poderes públicos, aponta que grande parte desta demanda se concentra nos processos judiciais reivindicando o fornecimento de medicamentos, especialmente os de alto custo (PEPE; MARQUES; FIGUEIREDO, 2010).
Fato é que, o aumento das ações e a impossibilidade de previsão orçamentária dos gastos por elas acarretados trazem inúmeros desafios para a gestão dos serviços de saúde no cenário brasileiro. Os gestores do sistema de saúde, nos âmbitos municipal, estadual e federal, tentam resolver, de diversas maneiras, os impasses criados, uma vez que os recursos são finitos e sua administração deve ser planejada e balizada pelas políticas de saúde.
Além disso, diante da crescente intervenção judicial na garantia do direito à saúde os seus impactos na gestão hospitalar e, em razão da judicialização do direito à saúde ser um assunto com várias faces, o assunto em si convida a uma abordagem multidisciplinar.
1.Breves Reflexões sobre o Direito à Saúde e a sua Judicialização
Os Direitos Fundamentais são aqueles direitos básicos e universais, pertencentes a todos os seres humanos, reconhecidos por um Estado em um determinado momento histórico. Esses direitos conferem aos seus titulares um conjunto de posições jurídicas, das quais se extrai uma série de deveres e obrigações por parte do Poder Público. Segundo Robert Alexy, os direitos fundamentais são direitos universais, internalizados em uma ordem jurídica, caracterizados por interesses essenciais que merecem proteção (ALEXY, 1999). No Brasil, o processo de reconhecimento e garantia desses direitos, em especial o direito à saúde, tem sido longo e complexo.
O direito à saúde no Brasil começou a ganhar contornos mais claros e concretos a partir das constituições brasileiras. A primeira Constituição, de 1824, e as subsequentes de 1891 e 1934, nas diferentes fases da história do país, não contemplaram a saúde como um direito social pleno. Foi somente com a Constituição de 1946, após o período do Estado Novo, que se iniciou uma trajetória mais democrática, que acabou sendo interrompida pela Constituição de 1967, do Regime Militar. A década de 1980 trouxe uma nova perspectiva, com a Constituição de 1988, conhecida como a "Constituição Cidadã" (BRASIL, 2005), que finalmente assegurou de forma abrangente o direito à saúde, reconhecendo-o como um direito fundamental.
Com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil consolidou um marco jurídico que garante a proteção à saúde como um direito social, incluído entre os direitos fundamentais. No texto constitucional, a saúde foi estabelecida como um direito de todos, com a responsabilidade do Estado de garantir acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, conforme os artigos 6º e 196. No artigo 6º, o direito à saúde é tratado como parte do rol de direitos sociais essenciais, como educação, alimentação e moradia, enquanto o artigo 196 consagra o direito à saúde como um dever do Estado, que deve ser promovido por meio de políticas sociais e econômicas (BRASIL, 1988).
Robert Alexy, ao analisar os direitos fundamentais, afirma que o direito à saúde pode ser considerado um direito prima facie, pois é uma necessidade essencial para que o indivíduo possa usufruir de outros direitos sociais, como a educação e o trabalho (ALEXY, 2011). O direito à saúde, portanto, é indissociável da dignidade da pessoa humana, e, por isso, é considerado um direito que integra o mínimo existencial. Marcelo Novelino complementa essa visão, destacando que, ao estar intimamente relacionado ao direito à vida e à dignidade humana, o direito à saúde não só é um direito fundamental social, mas também uma condição para a existência digna (NOVELINO, 2021).
Em relação à organização do direito à saúde no Brasil, o artigo 23, inciso II, da Constituição de 1988, estabelece a competência compartilhada entre a União, os Estados e os Municípios para a gestão da saúde pública, prevendo ainda a cooperação entre as esferas de governo para garantir a eficácia das políticas de saúde. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 793, em 2019, reforçou a responsabilidade solidária dos entes federados nas ações relacionadas ao fornecimento de serviços de saúde. Assim, o direito à saúde, por ser um direito social, requer uma ação positiva do Estado para assegurar a igualdade no acesso aos serviços de saúde, o que é expresso pelos artigos 197 e 198 da Constituição, que tratam da relevância pública das ações de saúde e da organização do Sistema Único de Saúde (SUS) com base em princípios como descentralização e participação da comunidade.
O Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988, representa um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública no mundo, sendo financiado pelas três esferas de governo e com a missão de garantir o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde para toda a população brasileira. A regulamentação do SUS, por meio de leis como a Lei nº 8.080/90, busca estabelecer a organização e o funcionamento do sistema, promovendo um modelo de saúde voltado para a equidade. No entanto, apesar dos avanços significativos alcançados com sua criação, o sistema enfrenta desafios estruturais que comprometem sua eficácia. O subfinanciamento, a falta de profissionais de saúde, a sobrecarga do sistema e a gestão inadequada dos recursos são alguns dos obstáculos que impedem o SUS de cumprir sua missão de forma plena. Nadia Marques (2012) aponta que um dos principais problemas do SUS reside nas desigualdades regionais e locais no acesso à saúde, o que exige não apenas uma revisão do papel do Estado, mas também uma maior articulação entre as esferas de governo, além de um fortalecimento da gestão pública em todos os níveis.
Nesse cenário, a judicialização da saúde se tornou um fenômeno crescente, com cidadãos recorrendo ao Judiciário para garantir o acesso a serviços e medicamentos essenciais, muitas vezes diante da omissão ou incapacidade do Executivo ou do Legislativo em cumprir suas obrigações. A judicialização, como processo, ocorre quando a efetivação de um direito que deveria ser garantido pelas esferas políticas é transferida para o Poder Judiciário. Barroso (2003) explica que a judicialização não deve ser vista como uma escolha política, mas como uma consequência natural do modelo constitucional brasileiro, que permite que determinadas questões sejam resolvidas diretamente pelo Judiciário, especialmente quando há omissão dos outros poderes. O autor argumenta que a judicialização representa a crescente tendência de que questões de grande relevância social e política, como o direito à saúde, sejam decididas pelo Judiciário, em vez de serem tratadas pelas instâncias tradicionais do processo político, como o Congresso Nacional ou o Executivo.
No contexto do direito à saúde, a judicialização ocorre quando cidadãos buscam no Judiciário a garantia de acesso a tratamentos médicos ou medicamentos que deveriam ser fornecidos pelo SUS. Desde a promulgação da Constituição de 1988, tais reivindicações se fundamentam no direito constitucional à saúde, que estabelece o dever do Estado em garantir a assistência à saúde de forma integral e universal (VENTURA et al., 2010). O fenômeno da judicialização no Brasil começou na década de 1990, principalmente com a introdução de novos tratamentos para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA), quando magistrados tiveram que decidir sobre o acesso de pacientes ao tratamento, especialmente para os portadores do HIV (RIBEIRO et al., 2019). A partir desse momento, o número de ações judiciais voltadas à obtenção de medicamentos para doenças crônicas, como câncer, diabetes e doenças cardiovasculares, passou a crescer de maneira significativa (MESSENDER, OZORIO DE CASTRO; LUIZA, 2005, p.5).
A judicialização da saúde, contudo, reflete uma série de problemas estruturais enfrentados pelo SUS, como a escassez de recursos financeiros, infraestrutura inadequada e a falta de medicamentos essenciais (SIMÕES; GOMES, 2014; CARLINI, 2020). A crescente demanda judicial por tratamentos, especialmente os de alto custo, tem sido exacerbada por fatores como o desenvolvimento de novos medicamentos e a forte divulgação da indústria farmacêutica, o que leva pacientes e profissionais da saúde a buscar alternativas no Judiciário quando esses medicamentos não são disponibilizados pelo SUS (CHIEFFI; BARATA, 2010; PEPE, 2010). Um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021) revela que as demandas judiciais relacionadas à saúde têm se intensificado, com a maioria das ações tratando da solicitação de medicamentos não disponíveis na rede pública de saúde. Entre 2008 e 2017, por exemplo, o número de processos judiciais cresceu 130%, refletindo a crescente busca da população pelo acesso à saúde por meio do Judiciário (PAULA; SILVA; BITTAR, 2019).
Este fenômeno gerou sérios impactos financeiros nos cofres públicos, com o Ministério da Saúde destinando bilhões de reais para atender às demandas judiciais relacionadas à saúde. Em 2017, os gastos totais com a judicialização da saúde no Brasil, envolvendo União, Estados e Municípios, foram estimados em R$ 7 bilhões (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019). As ações judiciais que buscam medicamentos de alto custo, especialmente aqueles não contemplados nas políticas do SUS, são as que mais contribuem para esse aumento. De acordo com dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), grande parte dessas demandas envolve medicamentos raros ou de importação, que geram altos custos ao sistema de saúde público (SCHULZE, 2019). Além disso, a aquisição de medicamentos por meio judicial pode ser até 300% mais cara do que a fornecida pelo sistema público, o que agrava ainda mais a situação financeira do SUS (ASSOCIAÇÃO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA DE PESQUISA, 2019).
A judicialização da saúde coloca em evidência o debate sobre a viabilidade e os limites do Estado para atender às demandas de saúde de sua população. A partir dessa perspectiva, a discussão sobre os princípios da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial se torna central. O princípio da Reserva do Possível defende que, devido à limitação de recursos, o Estado não pode atender todas as demandas de forma integral e imediata, e deve fazer escolhas sobre as políticas e serviços a serem priorizados. Por outro lado, o Mínimo Existencial assegura que o Estado deve garantir um conjunto básico de direitos essenciais que são indispensáveis para a dignidade humana (SARLET; FIGUEIREDO; FILCHTINER, 2014). No caso dos medicamentos de alto custo, a judicialização enfrenta o dilema entre garantir o acesso à saúde, como direito fundamental, e a impossibilidade financeira do Estado em fornecer tais medicamentos a todos os cidadãos que deles necessitam.
Esse conflito entre o direito à saúde e a limitação de recursos do Estado tem sido um tema recorrente nas decisões judiciais. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem estabelecido parâmetros para a concessão de medicamentos de alto custo por meio da judicialização, como no caso do Recurso Extraordinário nº 566.471/2016, que tratou do dever do Estado em fornecer medicamentos não previstos na lista do SUS, mas que são essenciais para o tratamento de doenças graves. A decisão do STF, que exige que se comprovem a necessidade extrema do medicamento e a incapacidade financeira do paciente, tem gerado orientações claras para os tribunais inferiores sobre como lidar com essas demandas, mas também levanta questões sobre a sustentabilidade financeira do sistema de saúde pública e as implicações orçamentárias de tais decisões (ANDRADE, 2012).
Em síntese, a judicialização da saúde no Brasil é um fenômeno complexo, que reflete tanto a busca por acesso a direitos fundamentais quanto as limitações estruturais e financeiras do SUS. As decisões do STF e as políticas públicas precisam encontrar um equilíbrio entre o direito à saúde e os limites financeiros do Estado, considerando sempre a dignidade da pessoa humana e a efetividade das políticas públicas no contexto da escassez de recursos. A análise dos princípios constitucionais e a aplicação dos parâmetros definidos pelos tribunais, especialmente em relação ao fornecimento de medicamentos de alto custo, devem ser constantemente ajustadas para garantir o acesso universal e igualitário à saúde, sem comprometer a sustentabilidade do sistema público.
A articulação entre as decisões judiciais e a gestão pública da saúde é, portanto, um ponto crítico. A solidariedade entre os entes da federação, definida pelo STF, exige que o Judiciário, ao modular suas decisões, leve em consideração a competência de cada esfera governamental na execução das políticas de saúde. Isso implica uma análise detalhada de qual ente é responsável pelo fornecimento de determinado medicamento ou procedimento, considerando as normas do SUS, a normativa de financiamento da saúde e a viabilidade de implementação das decisões judiciais. Assim, a judicialização da saúde não só desafia a atuação dos gestores em saúde, mas também exige uma reflexão mais ampla sobre a sustentabilidade e a eficácia do sistema de saúde brasileiro, buscando formas de harmonizar os direitos individuais à saúde com as capacidades e limitações do sistema público.
2.Análises sobre a Gestão Pública de Saúde e a Judicialização do Acesso à Saúde
A gestão é um campo das ciências humanas que se originou da necessidade de resolver problemas administrativos, por meio de diversos métodos, com o objetivo de organizar e gerenciar os negócios da época. Esse conceito abarca o processo de administrar recursos humanos, financeiros, físicos, tecnológicos, logísticos e informacionais dentro de uma organização (OLIVEIRA; VENDRAMETTO; NOGUEIRA, 2010).
Quando se fala em gestão da saúde, ela envolve a administração de instituições de saúde, tanto públicas quanto privadas, com a responsabilidade de avaliar as necessidades das organizações e criar e implementar políticas públicas que atendam às demandas da população (Junqueira LA, 1992). No Brasil, a gestão pública em saúde começou a se estruturar de forma mais consistente no século XX, com a proposta de reorganização da assistência à saúde. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) foi um marco fundamental nesse processo, ao vincular a reforma sanitária ao projeto de saúde pública, estabelecendo a saúde como um direito de todos e dando início à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), visando garantir o atendimento à população sem qualquer distinção (ABBADE, 2022).
A gestão pública em saúde possui a missão de assegurar a excelência no fornecimento de serviços e atuar na proteção e prevenção dos riscos à saúde da sociedade. Buscar a qualidade e a eficiência na gestão da saúde pública é uma obrigação que deve estar presente no cotidiano das instituições de saúde em todos os níveis de governo – municipal, estadual e federal (MEDEIROS et al., 2011). Nesse contexto, os gestores públicos da saúde são responsáveis pela administração de todos os serviços do SUS em suas respectivas unidades de saúde. A implementação efetiva do SUS e a garantia do acesso universal à saúde dependem diretamente das ações desses gestores nas esferas federal, estadual e municipal (ABBADE, 2022). O Sistema Único de Saúde, com sua rede integrada, enfrenta desafios consideráveis, como o subfinanciamento e a escassez de profissionais, que são obstáculos para a gestão pública eficiente e a promoção da saúde para todos os cidadãos.
Entretanto, apesar das diretrizes constitucionais e legais, a judicialização da saúde tem se intensificado nos últimos anos, trazendo reflexões e debates sobre seus impactos na gestão pública. Esse fenômeno ocorre quando a efetivação de um direito relacionado à saúde, que deveria ser garantido pelas esferas executiva ou legislativa, é decidido pelo Poder Judiciário, devido à omissão ou incapacidade dos outros poderes em cumprir suas responsabilidades. A judicialização tem repercussões diretas na gestão pública, especialmente em relação aos aspectos administrativos e orçamentários, afetando os recursos destinados ao financiamento da saúde e comprometendo a manutenção dos serviços públicos. A crescente demanda judicial por medicamentos e tratamentos coloca uma pressão adicional nos orçamentos da saúde municipais, estaduais e federais, agravando a situação já delicada de escassez de recursos no SUS, especialmente após a Emenda Constitucional nº 95/2016, que estabeleceu um teto de gastos públicos.
Quando o Judiciário determina, por exemplo, o fornecimento de um medicamento ou tratamento específico, o Estado, que já enfrenta dificuldades financeiras, é obrigado a realocar recursos, o que pode prejudicar outras áreas do sistema de saúde. A doutrina jurídica, incluindo autores como Gustavo Amaral, argumenta que as decisões judiciais não devem impor gastos que excedam as capacidades econômicas do Estado. A busca incessante pelo cumprimento de pedidos judiciais, sem a devida compatibilidade com a realidade financeira, pode gerar desequilíbrios entre as necessidades de saúde da população e as limitações orçamentárias do Estado (AMARAL, 2001). O conceito de "reserva do possível" é relevante nesse contexto, pois implica que o fornecimento de tratamentos determinados judicialmente pode implicar em uma redistribuição de recursos que, originalmente, seriam utilizados para atender a outros cidadãos que também necessitam de cuidados de saúde. O ministro Luís Roberto Barroso, ao analisar esse dilema, destaca que o confronto entre os direitos individuais à saúde e os princípios orçamentários não é simples, pois envolve um balanço entre os direitos de diferentes indivíduos, que podem ser prejudicados pela sobrecarga do sistema (BARROSO, 2007).
Além disso, a judicialização da saúde pode levar à violação do princípio da isonomia, pois ao atender um indivíduo por ordem judicial, o Estado pode estar dando prioridade a uma pessoa em detrimento de outra, gerando disparidades no atendimento e enfraquecendo o princípio de igualdade que orienta o SUS. Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo apontam que a judicialização resulta em um sistema com duas portas de entrada para o SUS: uma formal, através dos processos administrativos, e outra por meio da intervenção judicial, o que cria uma disparidade no acesso aos serviços de saúde, favorecendo aqueles que conseguem recorrer ao Judiciário (SARLET; FIGUEIREDO, 2012).
A judicialização também afeta a estrutura administrativa do SUS, sobrecarregando os entes federativos e desrespeitando as competências definidas pela Constituição. Quando o Judiciário determina que determinado ente forneça um medicamento ou serviço fora de sua responsabilidade, sobrecarrega-o com despesas imprevistas, o que pode desestabilizar a gestão orçamentária e afetar outras áreas da saúde pública. A atuação do Judiciário em questões que deveriam ser de responsabilidade do Executivo gera um desequilíbrio nas políticas públicas de saúde, já que o governo federal, estadual e municipal são os responsáveis pela elaboração e execução dessas políticas. Antônio José Avelãs Nunes destaca que a alocação de recursos financeiros é uma escolha política, que deve ser feita com base nas prioridades estabelecidas pelos representantes eleitos da população (NUNES, 2011).
Neste cenário, a EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares) também desempenha um papel crucial na implementação e gestão de unidades hospitalares federais. A atuação da EBSERH, ao integrar hospitais universitários ao SUS, deve se alinhar com as diretrizes estabelecidas pela Constituição e pelas políticas públicas de saúde, equilibrando as demandas judiciais com a necessidade de garantir a eficiência e a sustentabilidade do sistema hospitalar federal. A judicialização, ao impactar diretamente a gestão desses hospitais, exige uma abordagem que considere tanto os aspectos jurídicos quanto os administrativos, buscando soluções para a crise financeira e a sobrecarga do sistema público de saúde.
Além dos desafios administrativos, a judicialização da saúde no Brasil também expõe a fragilidade do planejamento de políticas públicas no setor. A complexidade da implementação do SUS, que envolve três esferas de governo, torna ainda mais difícil o cumprimento de demandas judiciais em saúde. Quando o Judiciário intervém em áreas de competência do Executivo, como a alocação de recursos e a organização dos serviços de saúde, isso muitas vezes resulta em uma sobrecarga de atividades e uma gestão desarticulada. A falta de um planejamento integrado entre as esferas de governo pode agravar ainda mais a crise orçamentária que o sistema de saúde enfrenta. A descentralização do SUS, prevista pela Constituição de 1988, implica em uma divisão de responsabilidades, mas, na prática, essa divisão pode ser diluída ou distorcida pela judicialização, levando a uma gestão fragmentada e ineficaz dos recursos públicos.
Outro ponto crucial é a questão da transparência na gestão pública. A judicialização coloca em xeque a capacidade do Estado de justificar suas escolhas orçamentárias e de execução de políticas públicas de saúde. A exigência de cumprimento de ordens judiciais, sem considerar as limitações orçamentárias e estruturais do sistema de saúde, pode resultar em uma gestão menos eficiente e com pouca capacidade de planejamento a longo prazo. Quando decisões judiciais são tomadas sem uma avaliação detalhada do impacto financeiro e estrutural, os gestores públicos ficam sujeitos a pressionar orçamentos já limitados, frequentemente redirecionando recursos de outras áreas essenciais. Isso compromete a sustentabilidade do SUS e a capacidade do Estado de planejar ações preventivas e estratégicas para a saúde pública. Portanto, a falta de um controle eficaz e de um planejamento que contemple as necessidades reais da população resulta em um ciclo de demandas não atendidas, judiciais ou não, e uma sobrecarga ainda maior para os serviços de saúde.
A judicialização da saúde pode gerar um efeito paradoxal, no qual, embora a intenção seja garantir o acesso à saúde, a realidade acaba sendo a de um sistema de saúde mais desigual. Quando cidadãos recorrem ao Judiciário para garantir tratamentos ou medicamentos específicos, eles muitas vezes recebem um atendimento diferenciado em relação aos que dependem dos canais formais do SUS. Esse processo pode criar uma disparidade no acesso, favorecendo aqueles que têm mais recursos ou que estão em posição de buscar judicialmente suas demandas, em detrimento daqueles que não têm o mesmo acesso ao sistema judiciário. Esse cenário vai contra os princípios do SUS, que busca assegurar saúde integral, universal e igualitária para todos os cidadãos, e acentua as desigualdades no acesso à saúde, um dos maiores desafios que o sistema público enfrenta. Por isso, é fundamental que o sistema de saúde seja estruturado de maneira a evitar que a judicialização se torne um mecanismo recorrente, comprometendo os direitos de saúde de uma parte significativa da população.
Considerações Finais
Em conclusão, a judicialização da saúde no Brasil se revela como um fenômeno complexo que impacta profundamente a gestão pública e a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS). Embora a intervenção do Judiciário tenha sido inicialmente vista como uma resposta à ineficiência do Estado em garantir o acesso a tratamentos e medicamentos essenciais, o aumento dessas demandas tem gerado uma série de efeitos negativos na administração pública. A sobrecarga financeira e a gestão fragmentada de recursos acabam prejudicando a capacidade do Estado de oferecer uma saúde de qualidade, de maneira equitativa e universal, como preconiza a Constituição de 1988.
Além disso, a judicialização da saúde desafiou a integridade do SUS, que, embora tenha sido concebido para garantir a universalidade e integralidade no atendimento, enfrenta dificuldades para operacionalizar essas diretrizes frente às decisões judiciais. Quando o Judiciário ordena o fornecimento de tratamentos ou medicamentos que não fazem parte das políticas públicas ou da distribuição orçamentária pré-estabelecida, ele interfere no planejamento do sistema, comprometendo a implementação de ações preventivas e o atendimento adequado para a maioria da população. Esse desequilíbrio entre as demandas judiciais e a realidade orçamentária agrava as desigualdades no acesso à saúde e prejudica a eficácia das políticas públicas.
Em um cenário como esse, é fundamental que se busque uma abordagem mais equilibrada e integrada, onde o Judiciário atue de forma mais harmoniosa com as outras esferas de poder. A cooperação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com foco em soluções colaborativas e mais sustentáveis, poderia mitigar os impactos negativos da judicialização, garantindo que as decisões judiciais não comprometam a integridade financeira e estrutural do SUS. A criação de mecanismos mais eficientes de mediação de conflitos e a implementação de políticas públicas mais robustas, que atendam as necessidades reais da população, são essenciais para evitar que o sistema de saúde se fragmente ainda mais.
Assim, é necessário que o debate sobre a judicialização da saúde caminhe em direção a uma maior reflexão sobre o papel do Judiciário, do Executivo e do Legislativo no equilíbrio das demandas sociais e na gestão pública da saúde. O fortalecimento da gestão pública, por meio de maior planejamento, controle e transparência, pode proporcionar soluções que, ao mesmo tempo, garantam o direito à saúde e a sustentabilidade do SUS. A saúde deve ser tratada como um direito universal, sem que a intervenção judicial se sobreponha ao esforço coletivo de um sistema que precisa ser robustecido para atender, de maneira justa e eficaz, a toda a população brasileira.
E para além da necessidade de uma gestão pública mais eficiente e colaborativa entre os Poderes, também é crucial que se promova uma reflexão mais profunda sobre os aspectos estruturais e financeiros que sustentam o SUS. A escassez de recursos, associada a um sistema de saúde com demandas crescentes e complexas, exige a implementação de políticas públicas que não apenas integrem as esferas de governo, mas que também considere as realidades regionais e locais. A criação de um ambiente mais equilibrado, onde os recursos sejam distribuídos de maneira equitativa, pode reduzir a pressão sobre os orçamentos públicos e minimizar a judicialização, além de melhorar a qualidade do atendimento oferecido à população.
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Advogada Pública com atuação em Direito Administrativo, Cível e Trabalhista, e na área da saúde. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Pós-graduada, com especialização em Direito Público (Direito Constitucional) e Privado (Direito Civil). MBA em Licitações e Contratos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Juliana Melissa Lucas Vilela e. Análises sobre a Gestão Pública de Saúde e a Judicialização do Acesso à Saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2024, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67137/anlises-sobre-a-gesto-pblica-de-sade-e-a-judicializao-do-acesso-sade. Acesso em: 04 dez 2024.
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