O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, abrangendo mais de 20% da superfície do país. Considerada a “savana mais rica do mundo”, e com somente 2,2% de áreas integralmente protegidas, supõe-se baixo este nível de proteção, face a sua alta biodiversidade e seu alto grau de endemismo. O Distrito Federal (DF) guarda a biodiversidade do Cerrado, exuberante em espécies endêmicas. São cerca de 2.000 espécies de plantas lenhosas nativas e um número bem maior de herbáceas, mais de 233 espécies de orquídeas e mais de 270 espécies de gramíneas no DF. Cerca de 10% a 15% dos vertebrados terrestres que vivem na região do cerrado são endêmicos. De acordo com a estimativa do Ministério do Meio Ambiente, o número de espécies dessa área deve ultrapassar 15.000. Há ainda 28 espécies de mamíferos de médio e grande porte tais como o veado-campeiro, o lobo-guará, a capivara, o tamanduá-bandeira, a anta, dentre outros. O DF apresenta-se como divisor de águas de três importantes bacias hidrográficas do país: do Paraná, do São Francisco e do Araguaia/Tocantins. Sua rede de drenagem é constituída por rios de cabeceira e, portanto, com baixas vazões ¹.
Neste cenário tão rico em termos de biodiversidade, e concomitantemente tão frágil, dá-se o fenômeno multifacetado do uso desordenado do solo. Está intimamente ligado a prática conhecida como “grilagem” que, conforme a definição de Roseane Cavalcante de Souza, “é o fenômeno ligado ao acesso à terra, não se restringindo à zona rural, pois pode ocorrer em terrenos urbanos e suburbanos, bem como atingir a propriedade pública ou privada[...]” ². Nas palavras do agrarista Raymundo Laranjeira, este é o “grande mal” que assola nossa sociedade ³.
O fenômeno, de forte apelo socioeconômico, também figura no território do Distrito Federal. A expressão grilo, empregada para definir as terras apropriadas e registradas ilegalmente, vem de um artifício utilizado para dar a documentos novos a aparência de velhos. Foi empregado no Brasil Colônia, estendendo até os dias atuais.
Em nosso ordenamento jurídico, já tivemos diversas normas federais disciplinando a expansão urbana. Em ordem cronológica, temos o Decreto-Lei nº 58/37, seguido do Decreto nº 3.079/38 e do Decreto-Lei nº 271/67. Finalmente, adveio a vigente lei nº 6.766/79. Esta cunha a expressão mais adequada: parcelamento de solo para fins urbanos. Anteriormente, o Decreto-lei nº 58/37 se ateve à expressão “loteamento e venda de terrenos”. A teleologia desta norma já era a proteção do indivíduo que adquire lote por meio de prestações pecuniárias, face aos inúmeros loteamentos que já emergiam sem as devidas formalidades exigidas pelo Poder Público, dentre elas o registro de imóveis. Já naquele ano de 1937 era premente proteger o comprador contra prejuízos advindos de fraudes ou compra de terrenos em loteamento não aprovados pelos órgãos públicos, além de regular o crescimento das cidades.
No Distrito Federal, o termo infame “grilagem” ganhou hodiernamente outro sentido e tornou-se sinônimo de apropriação, não só de terras públicas, como também daquelas de natureza privada. Seu conseqüente e eventual desdobramento é a criação de loteamentos irregulares, que emergem à revelia dos procedimentos administrativos exigidos pela legislação.
Para a situação peculiar do Distrito Federal, há que se aplicar a norma penal que previna não apenas a invasão de terras, mas principalmente o início de um parcelamento de terras não autorizado,coibido pelo artigo 50 da Lei 6.766/79.
De caráter preponderantemente administrativo, detém a Lei 6.766/79 tipificações penais, contidas em seus artigos 50, 51 e 52 , inclusas no rol dos crimes contra a Administração Pública. A inteligência do artigo 50 é voltada especificamente à conduta do parcelador de solo, seja de gleba rural ou urbana mas, precipuamente, para fins urbanos.
Em nosso breve estudo, examinemos o teor do art. 50 da Lei 6.766/79:
“Art. 50 Constitui crime contra a Administração Pública:
I – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios;
II – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença;
III – fazer, ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa de cinco a cinqüenta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Parágrafo único. O crime definido neste artigo é qualificado, se cometido:
I – por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente;
II – com inexistência de título legítimo de propriedade do imóvel loteado ou desmembrado, ressalvado o disposto no art. 18, §§ 4º e 5º, desta lei, ou com omissão fraudulenta de fato a ele relativo, se o fato não constituir crime mais grave.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de dez a cem vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Quanto ao seu objeto material, este é o zelo com a própria Administração Pública que exerce seu inerente poder de polícia, em favor do bom andamento dos procedimentos administrativos que visam regular o uso do solo, de acordo com as normas urbanísticas.
Não se pode analisar o bem jurídico tutelado pela lei de parcelamento do solo, sem observar o conteúdo do art. 225 da Constituição Federal, que proclama direito dos cidadãos brasileiros o ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao Poder Público o dever de defendê-lo. Dá o art. 225, portanto, suporte ao bem jurídico tutelado pela lei nº 6.766/79, haja vista a estreita ligação entre a degradação ambiental e os loteamentos urbanos irregulares. Acrescente-se ser atribuição do Poder Público exigir legalmente estudo prévio de impacto ambiental e publicizá-lo, em caso de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, por força do art. 225, § 1º, IV da Carta Magna. Assim, em interpretação sistemática da Lei nº 6.766/79, temos como bem jurídico tutelado, ainda que não manifesto, o meio ambiente, com intensa expressão, por exemplo, em seu art. 3º, parágrafo único, inciso V, preceituando que “não será permitido o parcelamento de solo em área de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis [...]”.
Percebeu o legislador, ao elencá-lo como crime contra a Administração Pública, que atentar contra a ordem urbanística dando início a loteamento urbano sem a competente licença urbanística é desrespeitar o poder de polícia do Estado, pelo que este é tido como sujeito passivo constante. Acrescentamos que, eventualmente, também sujeito passivo do crime o particular. Este se vê lesado financeiramente pela ação do empreendedor que age sem “a autorização do órgão competente”. É possível, então, a existência de dois sujeitos passivos, o formal e o eventual, sendo o primeiro o Estado, e o segundo o particular, na qualidade de adquirente, proprietário de terras parceladas ou qualquer outro indivíduo prejudicado.
Seguindo-se a análise do crime de parcelamento irregular de solo em seu tipo-base, tem-se um crime impróprio, posto que não é exigido do sujeito ativo qualquer qualidade especial.
Observe-se que o termo “dar início, de qualquer modo” remete a uma das peculiaridades da conduta: a de ser levada a cabo pela realização de atos múltiplos, como o de contratação de peões para realizar cercamento, contratação de operadores e suas máquinas para abrir ruas, a contratação de topógrafo, a própria divisão da terra, dentre outros atos inerentes ao parcelamento do solo. A realização de qualquer uma destas tarefas demonstradas aqui - e que não exaurem o rol de ações pelas quais o parcelamento pode se iniciar - já constitui a prática do delito. Portanto, consideramos feliz o legislador ao empregar os termos “dar início” e “de qualquer modo”, pois inúmeras são as formas de se iniciar o parcelamento de uma gleba, seguindo ou não as etapas aqui mencionadas como singela exemplificação.
É importante enumerar os elementos normativos do tipo penal.
Saliente-se, a priori, que o tipo penal coíbe a criação de “loteamentos e desmembramentos”, sendo o primeiro empreendimento iniciado em uma gleba de terras onde são formadas novas vias e quadras, enquanto o segundo, mera modalidade do próprio parcelamento, que traduz pela demarcação de lotes, contudo, fazendo uso de vias pré-existentes para circulação, como bem demonstra o art. 2º, § 2º da Lei 6.766/79.
Já o caráter normativo contido na expressão “para fins urbanos” merece destaque. Os critérios para verificar se o parcelamento se destina a esta finalidade estão contidos no Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), a partir da avaliação do módulo mínimo de fracionamento admitido em cada zona urbana ou de expansão urbana. Trata-se de importante balizador para constatar a presença deste elemento normativo o texto do PDOT, para concluir se o fracionamento possui ou não fins de urbanização, ainda que precária. Todavia, não cabe desprezar outros elementos e circunstâncias que dão supedâneo ao conjunto probatório. Frise-se ser crucial a reunião de outros indícios para a constatação de adequação ao tipo penal. Cabe, sempre, disciplinar e avaliar o (mau) uso do solo por meio da legislação urbanística.
No que tange ao elemento normativo, quanto a ausência de autorização do órgão público competente, ou discrepância com as normas distritais, estaduais e municipais, cumpre fazer dois breves comentários.
Reza o texto da lei que a conduta típica se dá “sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios”. Frise-se que, no caso vertente, melhor redação teria o artigo se mencionasse a ausência de licença. Isto porque esta é ato administrativo de caráter vinculado, de manifestação unilateral da Administração e, principalmente, de natureza definitiva, só podendo ser anulada, cassada ou revogada se constatada ilegalidade, seja na sua emissão, ou irregularidades no exercício da atividade ou obra. Tratando-se de implementação de empreendimento imobiliário, obviamente é inadequada a concessão de autorização.
Outrossim, o mesmo trecho do artigo em comento mostra ser norma penal em branco, e necessário concatená-la a outras normas, legislativas ou administrativas e, via de regra, extrapenais 4. Para tanto, mencionamos a seguir os dispositivos legais que se coadunam à última parte do inciso I do art. 50, bem como ao teor do art. 1º, também da lei 6.766/79, o qual prevê que Estados, Municípios e Distrito Federal poderão estabelecer normas complementares relativas ao parcelamento do solo municipal. O art. 24, I da Constituição Pátria estatui ser competência concorrente dos Estados, Municípios e Distrito Federal legislar sobre direito urbanístico. No que se refere ao aspecto ambiental, o art. 23, VI da Carta Magna atribui competência comum a Estados, Municípios e Distrito Federal para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Destarte, deve o empreendedor, ao iniciar o processo administrativo para a implantação de loteamento, ter extrema cautela e atenção, a fim atender a todas as normas oriundas das todas as esferas legislativas.
O crime de parcelamento de solo para fins urbanos, não admite tentativa em sua modalidade simples, exceto na hipótese havida no inciso terceiro do art. 50. Prevê hipótese de veiculação de afirmação falsa sobre a legalidade do empreendimento através de proposta, contrato, prospecto, ou comunicação ao público ou interessados, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo.
Outrossim, é assente em cortes superiores o entendimento de que o crime de parcelamento irregular de solo para fins urbanos é instantâneo e de efeitos permanentes 5 .
Em que pese as dificuldades práticas que a redação do artigo pode ensejar, o legislador manteve como forma qualificada do delito de parcelamento de solo destinado à urbanização, a promessa de venda ou reserva de lotes, ou qualquer outro expediente que exteriorize a intenção de vender lote irregular, sem anterior registro cartorial do loteamento. Desta forma, não há como considerar a venda dos lotes mero proveito do crime de parcelamento, vez que inserta no primeiro inciso do parágrafo único do art. 50 da Lei 6.766/79 .
Enquanto a consumação do crime instantâneo de parcelamento de solo para fins urbanos se dá por qualquer ação que dê início ao parcelamento, a sua modalidade qualificada, prevista no inc. I, parágrafo único, do art. 50, consuma-se no instante de sua primeira venda, sendo as alienações posteriores seu exaurimento. Temos, então, como significativa, para fins de contagem de prazo prescricional, em caso de crime qualificado, a conduta positiva de venda da primeira unidade imobiliária6.
Notas
¹. Cartilha do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.2009, disponível em http://www.mpdft.gov.br/joomla/index.php, acessado em 03.03.2009.
². SOUZA, Roseane Cavalcante de. Grilagem. Dissertação. (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997: p. 92-95.
³. LARANJEIRA, Raymundo. Direito Agrário: perspectivas críticas. São Paulo: LTR, 1984 - Propedêutica do Direito Agrário. 2. Ed. São Paulo: LTR, 1976.
4 . JESUS, Damásio E. de. Normas penais em branco, tipos abertos e elementos normativos . Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2009.
5 . Nesse sentido: STJ, RESP 665.449 – SC; STF, HC 71.259/TJSP.
6 . Nesse sentido: STJ HC 59.411/MG (2006/0108186-4).
REFERÊNCIAS
BORGES, Paulo Tormin. Institutos Básicos do Direito Agrário. São Paulo: Sa raiva, 1996.
Cartilha do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. 2009, disponível em http://www.mpdft.gov.br/joomla/index.php, acessado em 03.mar.2009.
CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos. São Paulo: EUD, 1988.
FEITOSA,Valeria. Grilagem em expansão. Correio Brasiliense. Cidades, p. 18, 24.nov.2002.
LARANJEIRA, Raymundo. Direito Agrário: perspectivas críticas. São Paulo: LTR, 1984 - Propedêutica do Direito Agrário. 2. Ed. São Paulo: LTR, 1976.
LIMA, Rafael Augusto de Mendonça. Direito Agrário. 2. Ed. São Paulo: Renovar, 1990.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, ano 2001.
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 4. Ed. Goiânia: AB, 2001.
MOURA, CARLOS ET al. Limpeza é fundamental. Sem saneamento não há possibilidade de saúde plena. Revista MÃE TERRA. São Paulo. Ed. Minuano, Ed. 2, p. 16- 21.
SOUZA, Roseane Cavalcante de. Grilagem. Dissertação. (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade F
Delegada de Polícia Civil do Distrito Federal. Especialista em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Erika Borges M. do. O crime de parcelamento de solo para fins urbanos e a degradação ambiental no cenário do Distrito Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2009, 10:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18364/o-crime-de-parcelamento-de-solo-para-fins-urbanos-e-a-degradacao-ambiental-no-cenario-do-distrito-federal. Acesso em: 28 nov 2024.
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