O modelo de Direito, de Estado e de Justiça estruturado exclusivamente na lei (na legalidade), no século XIX, morreu. Morreu mas (lamentavelmente) ainda não foi sepultado! Muitos juízes continuam apegados a esse clássico paradigma jurídico. Veja este exemplo: Antonin Scalia, Ministro da Suprema Corte norteamerica, no dia 15.05.09, no Rio de Janeiro, disse: “os juízes são só servidores da lei e não têm poder para fazê-las ou interpretá-las” (O Estado de S. Paulo de 16.05.09, p. A15). Dessa maneira evita-se a “aristocracia dos juízes”. Na democracia “o papel do juiz não é descobrir a melhor resposta, mas aplicar a lei. Se querem mudar a questão do aborto, se querem mudar a questão homoafetiva, pass a law, pass a law, pass a law, façam uma nova lei, pois não cabe ao juiz interpretar a Constituição. Se a lei for ruim, haverá sentença ruim também”.
Totalmente equivocada a visão do juiz americano que acaba de ser citado. Em pleno século XXI é estapafurdia a ideia de recuperação de um modelo de juiz do século XIX (os juízes só pronunciam as palavras da lei – les juges son la bouche de la loi). Críticas contra esse modelo de juiz já existiam no próprio século XIX: Montesquieu dizia que esse juiz era um ser inanimado (não tem alma e não tem alma porque não pode interpretar a lei). Rousseau, demarcando a insignificância desse modelo, afirmava: se você quer ocupar um cargo público relevante no Estado deve começar sendo juiz. No atual modelo constitucionalista e internacionalista, que possui cunho principiológico, é simplesmente ridículo ser juiz aplicando somente a lei (que foi destronada). Antonin Scalia é um juiz do paradigma do século XIX. Não vive (juridica e humanisticamente falando) na nossa era.
Sua opinião tem que ser refutada. O caro leitor tem que ver o outro lado da medalha. Ele disse: “se querem mudar a questão do aborto, que façam uma nova lei”. Cabe perguntar: enquanto essa lei não vem (vários seguimentos religiosos farão de tudo para que, no Brasil, nunca venha), devemos continuar obrigando as gestantes a suportar a atrocidade da gestação de um feto anencefálico?
A onda zero, em termos de configuração do Estado, do Direito e da Justiça, reside (desde que nos seja permitido fazer um discricionário corte histórico) no século XVII, que foi o século (tanto na Europa continental como no Brasil) do Estado absoluto (Estado sob o regime da força – Machtstaat). No século XVIII reinou (de forma pura, de forma bruta), em geral, o Estado de Polícia (Polizeistaat, ou seja: o regime do despotismo ilustrado).
Contra esses tirânicos modelos de Estado nasceu (no século XIX) o Estado de Direito legal ou legalista (que constitui a primeira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça). Reinou, de forma absoluta, durante cerca de cento e cinqüenta anos (na Europa continental), mas passou por várias mutações (Estado liberal de Direito, Estado social de Direito e Estado democrático de Direito).
Em meados do século XX (mais precisamente em 1945) surgiram a segunda e a terceira ondas evolutivas do Estado, ou seja, os chamados Estado de Direito constitucional e Estado de Direito internacional (tudo isso, claro, depois da Segunda Guerra Mundial). Os modelos anteriores (liberal, social e democrático) não se desvencilharam do legalismo. Mudaram a pintura, mas não a parede (a essência legalista não desapareceu). A partir da Segunda Guerra mundial (para que não se repita o terror nazista, o holocausto etc.) houve uma profunda mudança de paradigma: assim surgiram o constitucionalismo (ou neoconstitucionalismo) e o internacionalismo. Em outras palavras: o direito começou a ser (ao mesmo tempo) constitucionalizado (no nosso entorno cultural: Europa continental e América Latina) e internacionalizado.
Paralelamente à constitucionalização do direito, do Estado e da Justiça (que constitui a segunda onda evolutiva), foi se desenvolvendo (e se fortificando) a terceira onda, isto é, o Estado de Direito internacional, que gerou dois sistemas de proteção internacional dos direitos (humanos) fundamentais: o global e os regionais. Só no final do século XX e princípio do século XXI é que começaram a aparecer (no Brasil) os sinais mais contundentes dessa terceira onda.
A segunda onda (constitucionalização do direito) só ganhou corpo no Brasil depois da Constituição de 1988. Aliás, mais contundentemente, depois na nova configuração do STF (em razão da visão constitucionalista dos atuais Ministros que compõem a Corte Suprema). A terceira onda (internacionalização do direito) só ganhou sua certidão de nascimento oficial e inequívoca no dia 03.12.08. Essa é uma data histórica, visto que, nesse dia, o STF (pelo seu órgão Pleno) reconheceu o valor supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos (RE 466.343-SP e HC 87.585-TO).
Vivemos ainda (não é difícil notar) um momento de turbulenta transição (e mutação). O mais chocante: na quase totalidade dos meios acadêmicos ainda se ensina o antigo paradigma do Estado de Direito legalista (ou seja: o Direito da primeira onda, que é conhecida como a era ou a onda das codificações, sobretudo napoleônicas). Mas o Estado, o Direito e a Justiça (desde essa época) experimentaram profundas evoluções. Nem bem captamos a era da constitucionalização (segunda onda, também chamada de neoconstitucionalismo) e já estamos ingressando concomitantemente no Estado de Direito internacional (terceira onda).
De qualquer modo, a persistência desse pensamento legalista (em pleno século XXI) vem causando grandes males. Eis uma metáfora exemplificativa: são muitas e variadas as causas do calamitoso insucesso que os estudantes de direito estão protagonizando nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil (81%, em média, são reprovados). Gostaria de chamar atenção para a seguinte: durante a faculdade muitas vezes ensina-se a jogar basquete (sistema legalista), mas na hora da partida decisiva (na hora da prova, da prática efetiva etc.) o juiz (da partida, do exame, da prova) informa que o jogo é futebol (ou seja: exigem conhecimentos dos sistemas constitucionalista e internacionalista). Quem aprendeu usar as mãos não sabe jogar com os pés. Esse é um dos fatores (dos mais sérios) que fundamenta os resultados decepcionantes no exame de ordem, concursos, vida prática etc.
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