Por força do princípio da justiça universal as leis penais (internas) de praticamente todos os países podem ter incidência em relação a um crime ocorrido em outro país. A isso se dá o nome de extraterritorialidade da lei penal, que se refere à possibilidade de um determinado país punir um delito cometido fora do seu território. São situações excepcionais (no Brasil o assunto está regido pelo art. 7º do CP) que jamais alcançam as meras contravenções penais ocorridas no estrangeiro (cf. art. 2.o da LCP).
Princípio da justiça universal no Brasil: de todas as hipóteses de extraterritorialidade incondicionada (CP, art. 7.o, I) uma só delas relaciona-se com o princípio da justiça universal, que é a descrita na alínea “d”: “genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil”. Uma outra hipótese de incidência do princípio citado, na nossa legislação, está contida no CP, art. 7º, II: crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir.
Diferença entre as duas situações: na primeira, a extraterritorialidade é incondicionada (não depende de nenhuma condição); na segunda ela é condicionada, ou seja, depende do concurso de uma série de condições, previstas no art. 7.º, § 2.º, do CP: a) entrar o agente no território brasileiro – não importa que depois tenha saído; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena (leia-se: se o agente foi só processado no estrangeiro, não está impedido o processo no Brasil. De outro lado, se o agente foi condenado no estrangeiro e ainda não cumpriu a pena, também pode ser processado no Brasil); e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.
Qual país vem ganhando destaque absoluto nessa área? Espanha. A Justiça espanhola já abriu processos para apurar crimes ocorridos no Tibet, na Guatemala, em El Salvador, Chile, Israel, Ruanda etc. Neste ano de 2009 instaurou seu décimo terceiro processo, para investigar os crimes ocorridos na prisão de Guantánamo. O órgão jurisdicional competente para esses processos, na Espanha, é a Audiência Nacional (que conta com jurisdição universal). Um marco histórico dessa espécie de justiça universal foi a prisão do ex-presidente chileno, Augusto Pinochet, na Inglaterra, prisão essa decretada pelo juiz espanhol (da Audiência Nacional) Baltazar Garzón. Ele chegou a ser levado ao tribunal chileno, mas a punibilidade acabou sendo extinta em razão da sua morte (em 2006).
Fundamento ético: o fundamento ético dessa jurisdição universal reside na imperiosa necessidade de apuração e condenação, em qualquer lugar do planeta, dos bárbaros delitos cometidos com violação dos direitos humanos. Inclusive os que detêm o poder não podem ficar impunes, porque essa impunidade afeta profundamente o regime democrático de Estado.
É justamente o exercício (legítimo) dessa jurisdição universal que vem destacando a justiça espanhola, visto que ela pode (por lei) julgar inúmeros delitos (genocídio, terrorismo, pirataria e apoderamento de aeronaves, falsificação de moeda etc.), independentemente do local da infração e das qualidades da vítima ou do agente (ou seja: não é preciso que o agente ou a vítima seja espanhol, não é preciso que o delito afete interesses diretos da Espanha etc.).
A Corte Constitucional da Espanha, neste ano de 2009, contrariando decisão do Tribunal Supremo, confirmou a constitucionalidade da lei que prevê a jurisdição universal da Audiência Nacional. O fundamento jurídico dessa chamada “justiça universal”, portanto, reside, tanto na lei como nos tratados firmados pelo país ibérico.
Por que, na Europa, o destaque é da Espanha e por que o princípio da justiça universal vem sendo aplicado intensamente neste país? Por várias razões:
(a) porque o princípio da justiça universal, lá, tem incidência irrestrita e incondicionada (é puro e absoluto, como disse a Corte Constitucional). Países como França, Alemanha, Bélgica, Itália etc., para a aplicação do princípio da justiça universal, fazem uma série de exigências (tal como acontece no Brasil);
(b) porque na Espanha é possível o exercício da chamada “ação penal popular”, ou seja, qualquer pessoa está legitimada para ingressar com ação penal, em qualquer delito (independentemente da anuência do Ministério Público que, neste caso, funciona só como custos legis);
(c) porque são poucos (muito poucos) os delitos que podem ser julgados pelo TPI (crimes de lesa humanidade, de guerra, genocídio).
A abertura de mais um processo pela Audiência Nacional, desta vez contra os Estados Unidos, para apurar os delitos cometidos na prisão de Guantánamo acabou tendo repercussão enorme neste último país. As associações de direitos humanos comemoraram a iniciativa da justiça espanhola, posto que algo semelhante dificilmente ocorrerá dentro dos EUA.
Em um mundo que assume com naturalidade a globalização da economia (sobretudo das suas crises) e das enfermidades (gripe suína – Influenza A - H1N10- v.g.), “resulta inquietante a tentativa de se frear ou reduzir a crescente aplicação da jurisdição universal, favorável à globalização dos direitos humanos” (Bonifácio de la Cuadra, em El País de 10.05.09, p. 28), que conta com muitas peculiaridades, visto que, normalmente, por detrás dos maiores delitos jushumanitários, acham-se poderosos que se julgam intocáveis. A proteção da dignidade das vítimas (ou de seus familiares) requer a intervenção dos órgãos jurisdicionais internacionais assim como a incidência (a mais ampla possível) do princípio da justiça universal (que permite, a cada país, punir os delitos previstos em tratados ou convenções internacionais).
Mas claro que nem tudo é um mar de rosas: é muito difícil a colheita de provas, o custo desses processos é bastante elevado, a complexidade dessas causas é enorme e ainda existem as delicadíssimas questões diplomáticas (China e Israel, por exemplo, já ameaçaram romper relações com Espanha caso prossigam os processos instaurados contra integrantes dos respectivos governos). O Poder Legislativo espanhol já deu início ao processo de revisão da lei para restringir o alcance da sua jurisdição internacional. Razões diplomáticas estão falando mais alto que as razões de justiça. É um retrocesso (em matéria de proteção dos direitos humanos). A dor e o sofrimento gerados pela barbárie humana, apesar de já termos ingressado no século XXI, continuam maculando a evolução da humanidade.
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