Os princípios, em razão de sua natureza transcendental, bem como pela sua vagueza e amplitude, eram constantemente caracterizados como normas de ordem moral, e não eminentemente jurídica. Isso fazia com que os princípios perdessem sua juridicidade e normatividade.
Nada obstante, com os avanços do neoconstitucionalismo, passou-se a reconhecer o caráter normativo das normas constitucionais, inclusive dos princípios. Assim, na medida em que se passou a vislumbrar uma essência material nos princípios, passou-se também a exigir comportamentos ativos em busca da otimização e proteção dos preceitos constitucionais.
Para Luís Roberto Barroso (1991, p. 27), os princípios alicerçam as decisões políticas fundamentais exaradas pelo constituinte, além de expressarem valores supremos que inspiram a criação ou reorganização de um Estado. Sem prejuízo, os preceitos constitucionais têm a tarefa de conferir unidade ao sistema normativo, de modo a balancear, no caso concreto, valores aparentemente contrapostos.
Neste sentido, a respeito da função dos princípios constitucionais, confira-se a interessante lição de Clèmerson Merlin Clève (1995, p. 35):
Eles cimentam a unidade da Constituição, indicam o conteúdo do direito de dado tempo e lugar e, por isso, fixam standards de justiça, prestando-se como mecanismos auxiliares no processo de interpretação e integração da Constituição e do direito infraconstitucional. Mais do que isso, experimentam uma eficácia mínima, ou seja, se não podem sofrer aplicação direta e imediata, exigindo no mais das vezes (não é o caso dos princípios-garantia) integração normativa decorrente da atuação do Legislador, pelo menos cumprem eficácia derrogatória da legislação anterior e impeditiva da legislação posterior, desde que incompatíveis com seus postulados.
Conforme se vislumbra, os princípios constitucionais devem nortear todo o ordenamento jurídico. Seja na criação, na aplicação ou na interpretação das regras infraconstitucionais, os princípios de índole constitucional consubstanciam-se em diretrizes político-jurídicas a serem seguidas.
Não é por outra razão que Walter Claudius Rothenburg (1999, p. 82-83) chega à conclusão de que os princípios constitucionais servem de “parâmetro excelente à constitucionalidade das normas”. Segundo o jurista, os princípios constitucionalizados indicam, portanto, “os valores em que se assenta e para onde se orienta uma comunidade, sempre ao encontro de uma nova redenção”;
É neste contexto principiológico que se insere a ampla defesa e o contraditório, verdadeiros alicerces[1] de um sistema processual penal garantista, e que constantemente se vêem influenciados pelas reformas processuais penais, conforme se passa a demonstrar.
A Ampla Defesa
Logo em seu art. 5º, dentre o rol dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal é contundente ao dizer que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (inciso LV).
Em sede processual penal, a ampla defesa não pode ser abstraída do binômio autodefesa - defesa técnica. É cediço que o acusado tem direito de ser ouvido perante o juiz da causa, inclusive por disposição internacional ratificada pelo Brasil. Em seu art. 8º, 1, o Pacto de São José da Costa Rica abarca disposição semelhante.
Segundo Aury Lopes Jr. (2005, p. 232), “a chamada defesa pessoal ou autodefesa manifesta-se de várias formas, mas encontra no interrogatório policial e judicial seu momento de maior relevância”. E não é por menos. É justamente no interrogatório que o acusado tem a possibilidade de expressar os motivos, justificativas ou negativas da atuação delitiva que lhe é imputada.
Com relação ao valor probatório do interrogatório, propugnamos por um modelo garantista, em que o interrogatório seja orientado pela presunção de inocência, visto assim como o principal meio de exercício da autodefesa e que tem, por isso, a função de dar materialmente vida ao contraditório, permitindo ao sujeito passivo refutar a imputação ou aduzir argumentos para justificar sua conduta (LOPES JR., 2005, p. 233-234).
No que se refere à defesa técnica, esta vem a ser a exigência de participação de um defensor regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para patrocinar os interesses do acusado. Basta atentarmos ao disposto no art. 261 do Código de Processo Penal.
A defesa técnica tem em vista a hipossuficiência do sujeito passivo no processo penal. Via de regra, o acusado não tem conhecimentos técnicos suficientes para resistir à pretensão estatal acusatória.
Em comentário a respeito da imperiosidade da defesa técnica, Aury Lopes Jr. (2005, p. 228) lembra que “essa hipossuficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmo juiz. Pode existir uma dificuldade em compreender o resultado da atividade desenvolvida”, o que gera intranqüilidade e descontrole no sistema jurídico.
O direito de defesa deve ser visto, dessa forma, não só na esfera de interesse do acusado, mas também na esfera de interesse da coletividade. Interessa à coletividade a dialeticidade do procedimento penal, com verificações negativas em caso de não constituir o delito uma fonte de responsabilidade.
Com perspicácia, Eugênio Pacelli de Oliveira (2008, p. 30) lembra que a ampla defesa, sem embargo da autodefesa e da defesa técnica, pode realizar-se “por meio de qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado”. É com base nisso que deve ser interpretado o postulado da ampla defesa.
Em comentário a respeito do princípio da ampla defesa, Pacelli de Oliveira (2008, p. 30-31) evidencia a recente súmula 705 da Suprema Corte. Para o autor:
A Súmula nº 705 privilegia o conhecimento técnico do defensor, já que o acesso ao duplo grau de jurisdição permite a revisão do julgado por um órgão colegiado, o que é evidentemente salutar. Esperamos que a nova orientação seja estendido inclusive ao juízo de cautelaridade que se emite na decretação da prisão antes do trânsito em julgado, para que, presente uma hipótese concreta de o réu poder beneficiar-se desde logo do regime penitenciário aplicado na sentença recorrida – mais favorável que as condições da prisão provisória -, seja permitido o recurso em liberdade como alternativa mais adequada que a execução provisória. Dessa maneira, seria possível conciliar a posição da autodefesa (do réu) com a posição da defesa técnica (do defensor).
De mais a mais, importa dizer que o princípio da ampla defesa é afetado de maneira mais contundente nos dois extremos do processo penal: inquérito policial e execução da pena.
Para fins garantísticos, na fase pré-processual, em que se desenvolve a investigação preliminar, o indiciamento deve ser tido como uma acusação em geral, de modo a abarcar a incidência da ampla defesa. Não deve subsistir dúvidas de que o termo “acusados em geral”, utilizado pelo constituinte originário, engloba o procedimento administrativo apuratório da infração penal.
Igualmente, após transitada uma sentença penal condenatória, constata-se veementes abusos no processo penal. É que, sendo a execução parte do processo, deve subsistir o dever de qualidade na atuação jurisdicional.
Para Aury Lopes Jr. (2005, p. 252), inclusive, mesmo após recolhido ao estabelecimento prisional, o preso continua sendo protegido pela presunção de inocência, obviamente no que diz respeito aos fatos posteriores ao gerador do título executivo penal.
Vislumbra-se grave problema na questão dos laudos criminológicos. É que, ainda hoje, juizes adotam, como fundamento decisório, argumentos utilizados por psiquiatras e psicólogos das equipes de Observação Criminológica. A despeito da nova redação do art. 112 da Lei de Execuções Penais, as avaliações psíquicas continuam sendo determinadas pelos magistrados sem embasamentos sólidos. Trata-se, certamente, de forte instrumento aniquilador do direito de defesa.
Por tudo isso, mostra-se necessária uma verdadeira filtragem constitucional da execução penal. Não apenas as normas contempladoras de regras de investigação devem se amoldar à Constituição, mas também as regras que disciplinam a execução da pena do indivíduo. A execução penal reclama, igualmente, por um Processo Penal Constitucional.
Em conclusão, percebe-se que:
O princípio da ampla defesa consubstancia-se no direito das partes de oferecer argumentos em seu favor e de demonstrá-los, nos limites em que isso seja possível. Conecta-se, portanto, aos princípios da igualdade e do contraditório. Não supõe o princípio da ampla defesa uma infinitude de produção defensiva a qualquer tempo, mas, ao contrário, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado por lei (BONFIM, 2009, p. 43).
Na verdade, a ampla defesa deve ser amoldada também pelo novo paradigma neoconstitucional, de valorização dos direitos fundamentais e de irradiação da força normativa constitucional. A Ordem Constitucional inaugurada em 1988 reclama pela supremacia da dignidade da pessoa humana. Com isso, abrem-se as portas para o modelo garantista de processo penal, de modo a frear os abusos e arbitrariedades do antigo modelo inquisitório de processo penal.
O Contraditório
O contraditório sempre foi visto como um princípio norteado por dois elementos básicos: a informação sobre os atos praticados no processo e a possibilidade de confrontá-los.
Assim é que, em sede processual penal, Antônio Scarance Fernandes (2002, p. 58) bem acentuou:
No processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, estarem as parte munidas de forças similares.
Não se nega que o contraditório seja inerente a ambas as partes do processo penal, e não somente à defesa, como já se pensou. Isso porque tal postulado reflete uma verdadeira garantia de participação no processo.
A noção de contraditório deve, assim, ser incrementada. Não basta o direito à ciência e possibilidade de reação pela parte. É necessário que tal reação se dê na mesma extensão e intensidade da parte adversa. Isto representaria, por assim dizer, garantia de isonomia entre as partes.
Confira-se, a respeito a ponderação de Eugênio Pacelli de Oliveira (2008, p. 27-28):
Da elaboração tradicional que colocava o princípio do contraditório como a garantia de participação no processo como meio de permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e, assim, para o provimento final almejado, a doutrina moderna caminha a passos largos no sentido de uma nova formulação do instituto, para nele incluir, também, o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma efetiva igualdade processual.
O postulado do contraditório vem expressamente garantido pelo já citado inciso LV, do artigo 5º da Constituição Federal. Reflete, dessa maneira, uma norma de eficácia plena e abarcadora de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.
Não por outra razão que o contraditório é visto para além dos interesses particulares de cada parte. O contraditório tem sua razão de ser no próprio modelo de Estado Democrático de direito. Destarte, é sinônimo de transparência e de interesse público a dialeticidade e contraposições de afirmativas constantes de um processo penal garantista.
Não se olvide, assim, da oportuna observação feita por Pacelli de Oliveira (2008, p, 28):
(...) para além do interesse específico das partes e, de modo especial, do acusado, é bem de ver que o contraditório põe-se também como método de conhecimento do caso penal. Com efeito, uma estrutura dialética, de afirmações e negações, pode se revelar extremamente proveitosa na formação do convencimento judicial, permitindo uma análise mais ampla de toda a argumentação pertinente à matéria de fato e de direito. Decisão judicial que tem como suporte a participação efetiva dos interessados em todas as fases do processo tem maior probabilidade de aproximação dos fatos e do direito aplicável, na exata medida em que puder abranger a totalidade de argumentos favoráveis e desfavoráveis a uma ou outra pretensão.
Posto isso, evidencia-se o problema da existência ou não de contraditório na fase policial investigativa.
Scarance Fernandes (2002, p. 64) já chegou a afirmar que “só se exige a observância do contraditório, no processo penal, na fase processual, não na fase investigatória. É o que se extrai do art. 5º, LV, da Constituição Federal”. Por outro lado, Rogério Lauria Tucci (1993, p. 211) sustenta a necessidade de um contraditório efetivo em todo o desenrolar da persecução penal, visando uma maior garantia da liberdade e mais eficiente atuação defensiva.
Não se põe em dúvida que o processo penal garantista reclama pela observância do contraditório também em sede investigativa. O que não se pode confundir, todavia, é a possibilidade de medidas cautelares com contraditório diferido nesta fase da persecução penal, o que não enseja violação ao preceito constitucional do contraditório.
Ocorre que “a Constituição não exige, nem jamais exigiu, que o contraditório fosse prévio ou concomitante ao ato. Há atos privativos de cada uma das partes, como há atos privativos do juiz sem a participação das partes”. O que importa, e isso é pressuposto para observância do contraditório, é a oportunidade de se contrapor aos atos por meio de manifestações contrárias dotadas de eficiência prática (GRECO FILHO, 1989, p. 110-111).
Exemplificando, é perfeitamente válida, em sede investigativa, uma prova pericial que, pela sua urgência, é realizada sem a observância imediata do contraditório pelo acusado, mas que, em momento posterior, mostra-se passível de ser impugnada e até refeita, se for o caso.
Sem embargo das considerações feitas, o que se pode fazer é “distinguir atos próprios da investigação, para cuja efetivação não há como exigir prévia intimação do suspeito a fim de acompanhá-la, de atos outros, em relação aos quais é possível permitir a participação do indiciado” (FERNANDES, 2002, p. 66). Assim, não é possível intimar previamente o suspeito para acompanhar interceptações telefônicas, mas nada impede que se permita ao indiciado acompanhar a inquirição de uma testemunha.
Pois bem. No que se refere à plataforma garantista-defensiva do contraditório, fiquemos com a assertiva de Aury Lopes Jr. (2005, p. 226), para quem “o contraditório deve ser visto basicamente como o direito de participar, de manter uma contraposição em relação à acusação e de estar informado de todos os atos desenvolvidos no inter procedimental”.
Ademais, para real compreensão do contraditório, podemos ver o processo como um jogo, no qual o contraditório permite a outra parte tomar ciência de um ato para, então, formular estratégias de combate.
Eis a noção básica que se deve ter em mente para quaisquer interpretações que se queira fazer das alterações legislativas que afetem o contraditório. Nenhuma modificação pode suprimir dos participantes essa possibilidade de ser informado e poder reagir ao objeto da informação.
Referencias Bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Princípios constitucionais brasileiros. Revista Jurídica THEMIS, Curitiba, n. 7, p. 17-39, out. 1991.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995.
FERNADES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999.
GRECO FILHO, Vicente Manual de Processo Penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva , 2009.
GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989.
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris Ltda., 2008.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. Tese. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993.
[1] Conforme lembra Pacelli de Oliveira (2008, p. 28), “o contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo o processo e, particularmente, do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal”.
Estagiário do Ministério Público do Estado de São Paulo. Aluno do Curso de Direito da Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATALHA, Sergio Fedato. Principiologia Para um Devido Processo Penal Constitucional: A Ampla defesa e o contraditório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2010, 07:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/19108/principiologia-para-um-devido-processo-penal-constitucional-a-ampla-defesa-e-o-contraditorio. Acesso em: 27 nov 2024.
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