Está para se iniciar, nesta quarta-feira (14/04/2010), no Supremo Tribunal Federal, o julgamento da ADPF n.º 153, pela qual o Conselho Federal da OAB pretende que a Lei de Anistia seja interpretada de forma a não abranger, como crimes políticos, os crimes de tortura, desaparecimento forçado e, enfim, crimes comuns cometidos contra os opositores do regime cometidos pela Ditadura Militar contra os cidadãos brasileiros durante este regime de exceção vivenciado pelo Brasil entre os anos de 1964 e 1985.
Vejamos o teor dos dispositivos legais em questão:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
É questionada a interpretação do §1º, mas o §2º assume relevância, como adiante se demonstra.
Analisemos agora o teor das manifestações constantes do processo, desde a petição inicial:
1. Síntese da Inicial.
Depois de demonstrar o cabimento da ADPF por ela impugnar ato normativo (art. 1º da Lei n.º 6.683/1979) e por inexistir outro meio apto a impugnar, em sede de controle abstrato, o referido dispositivo legal, alegou o Conselho Federal da OAB, em síntese:
a) Que o §1º do art. 1º da Lei de Anistia foi elaborado de forma deliberadamente obscura para abranger, na anistia, os crimes comuns cometidos pelos agentes públicos da Ditadura contra os opositores do regime;
b) Que a redação deste dispositivo é inepta, por ser notório que crimes conexos são aqueles cometidos com identidade ou comunhão de propósitos ou objetivos (art. 29 do CP), sendo que o art. 76, inc. I, do CPP, ao declarar que se consideram conexos os crimes quando os agentes criminosos atuaram uns contra os outros, constitui mera regra de competência para julgamento, de modo a evitar julgados contraditórios, e não norma de Direito Material Penal, pois os opositores do regime não agiram contra os que os torturaram e mataram, mas apenas contra a ordem política extremamente repressora então vigente no país;
c) Que não há qualquer conexão material entre os crimes políticos cometidos pelos opositores do regime militar com os crimes comuns cometidos por este contra aqueles, donde a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, crimes comuns ligados àqueles por comunhão de objetivos, sendo fora de dúvida que os crimes cometidos pelos agentes políticos e policiais da ditadura contra o povo não foram crimes políticos, mas crimes comuns (de homicídio, tortura, violência/lesão corporal e estupro/atentado violento ao pudor), pois não houve comunhão de propósitos entre estes crimes comuns e aqueles crimes políticos;
d) Que, portanto, o art. 1º, §1º, da Lei de Anistia abrange apenas os crimes políticos e os crimes comuns cometidos pelos mesmos autores dos crimes políticos [no caso da conexão mencionada, de identidade de propósitos ou objetivos], não abrangendo os agentes públicos que praticaram, durante o regime militar, crimes comuns contra seus opositores políticos, presos ou não. Mesmo porque, ao extinguir a punibilidade e descriminalizar a conduta criminosa, a anistia é um instituto jurídico que não se volta a pessoas, mas a crimes objetivamente definidos por lei vigente no período da anistia. Mas, ao prever sua extensão a crimes relacionados, a Lei de Anistia não definiu o que seriam estes crimes relacionados, donde incumbe ao Poder Judiciário esclarecer esta questão, donde a lei afrontou o preceito fundamental segundo o qual “não há crime sem LEI anterior que o defina” (pois não definiu os tais crimes relacionados);
e) Que o §2º do art. 1º da Lei de Anistia não estende a anistia àqueles “que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”, donde a prática sistemática e organizada de violência generalizada pelos agentes do Estado configura terrorismo estatal, portanto excetuado da anistia legal por sua própria literalidade;
f) Que, subsidiariamente, admitindo-se a interpretação de que os crimes comuns cometidos pelos agentes do Estado contra os opositores do regime político de então estariam abarcados por dito dispositivo legal, então dito dispositivo não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988 por afronta a seus preceitos fundamentais, a saber:
e.1) Isonomia e matéria de Segurança, pois:
e.1.1) a admitir-se a interpretação questionada, a Lei de Anistia estaria afirmando que nem todos são iguais perante a lei em matéria de anistia criminal, pois há os que praticaram crimes políticos (definidos em lei) e foram condenados pelo Judiciário, ao passo que há os que cometeram os tais delitos relacionados, não definidos pelo Legislador (que deixou tal questão à discricionariedade do Judiciário, por ser este o incumbido pelo Código Penal a avaliar a motivação do agente, embora só na fase de dosimetria da pena), que não foram processados nem punidos, donde a interpretação questionada perpetua indefinidamente esta imunidade;
e.1.2) a incluir os supra nominados atos de terrorismo estatal na anistia, então estar-se-á perpetrando uma flagrante desigualdade [arbitrária] perante a lei em matéria de segurança, pois de um lado temos os delitos de opinião e, de outro, os crimes violentos contra a vida, a liberdade e a integridade pessoal, o que ocasiona um tratamento igual a situações desiguais e, assim, afronta à isonomia;
e.2) Direito à Informação, que afirma que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral” (art. 5º, XXXIII) e, assim, estipula o direito à verdade, pois sendo os governantes meros servidores do povo e não detentores do poder, não podem ocultar a verdade perante seu soberano (o povo), que lhes delegou o poder de governo, mesmo porque o objetivo maior da organização estatal é propiciar o bem comum do povo acima de qualquer interesse pessoal ou grupal, donde é inadmissível que órgãos estatais sejam autorizados a ocultar do povo a identidade dos agentes públicos que cometeram crimes contra os governados, sendo um escárnio argumentar que os responsáveis por atos de repressão criminosa contra os opositores políticos do Estado teriam agido para preservar a segurança da sociedade e do Estado, além do que os governantes militares ocultaram tais dados da população, que continuam ocultos até hoje, na medida em que a interpretação aqui tida como não-recepcionada impede que as vítimas (ou seus familiares) de torturas perpetradas nas masmorras policiais ou militares de então pudessem identificar os respectivos algozes, os quais, em regra, operavam com codinomes quando da prática de tais crimes comuns;
e.3) Princípio Democrático, pois quando ao a Lei de Anistia foi voltada na época em que o Congresso Nacional tinha seus membros eleitos sob o placet dos comandantes militares, o que acentua a ilegitimidade democrática de tais escolhas, em especial a dos chamados senadores biônicos, ou seja, aqueles eleitos por eleição indireta e não pelo povo (que não aprovou a pseudo-Constituição de 1967-69), lei esta sancionada por um Chefe de Estado que não foi eleito pelo povo, mas por seus pares [ditadores] militares;
e.4) Princípio Republicano, pois nele os governantes não têm poder para anistiar criminalmente os agentes que cometeram crimes comuns sob o cumprimento de suas ordens (dos governantes), pois isto não é um ato voltado ao bem comum do povo, mas ao bem pessoal de tais governantes e agentes estatais, lembrando-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou nula (sem nenhum efeito) esta auto-anistia criminal decretada por governantes[1];
e.5) Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos, afrontados por tais crimes comuns perpetrados pela Ditadura Militar contra os opositores do regime; e
e.6) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois a pessoa humana não pode ser usada como meio para a consecução de qualquer finalidade, pois a dignidade não tem preço (Kant), donde é inaceitável a troca da dignidade das pessoas humanas e dos povos por acordos políticos, como o da redemocratização, além do que, como a maioria dos opositores do regime estavam mortos em 1979, este suposto “acordo” de anistia (que não abrangeu vítimas, familiares nem mandato popular daqueles que o elaboraram) usou os delitos de opinião (grande maioria das vítimas ainda vivas) para encobrir a concessão da impunidade aos criminosos oficiais do Estado, sendo ridículo argumentar que, na época da promulgação da Lei de Anistia a tortura ainda não era definida como crime no Brasil, pois há uma incompatibilidade ético-jurídica radical entre a tortura e a dignidade da pessoa humana, fundamento de todo o sistema internacional de direitos humanos e da Constituição Federal de 1988, o que existe desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, donde o enquadramento de atos de tortura na abrangência da Lei de Anistia implica na sua não-recepção pela Constituição Federal de 1988, que veda expressamente a prática de atos de tortura.
e.6.1) Por outro lado, as vítimas da Ditadura foram vítimas, e não criminosos que precisassem ser anistiados, ao passo que, de qualquer forma, atos de violação da dignidade humana não se reparam com mera indenização pecuniária, pois a impunidade dos agentes estatais torturadores não pode ficar impune.
Ante o exposto, requer o Conselho Federal da OAB que seja aplicada interpretação conforme a Constituição para que o STF declare que a Lei de Anistia não abrange os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão estatal contra seus opositores políticos no período da Ditadura Militar (1964/1985).
2. Síntese das Informações da Advocacia-Geral da União, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Após enfrentar matérias preliminares que aqui não interessam (pois o artigo se volta à análise do mérito da ADPF n.º 153), alega a AGU, em síntese:
a) Que anistia significa esquecimento, causa de extinção da punibilidade, que pode ser concedida em termos gerais ou restritos, nada impedindo que abrange, além de crimes políticos, também os crimes comuns, por ser melhor o esquecimento do que a punição, para apaziguar ódios e ressentimentos;
b) Que a Lei de Anistia foi o resultado de negociação entre a sociedade civil e o regime militar que visou a transição para o regime democrático, de sorte à anistia beneficiar ambos os lados, evitando quaisquer revanchismos por parte do novo governo, sendo que tal mens legislatoris não passou desapercebida pela sociedade brasileira, algo reconhecido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros em 30/05/1979, segundo o qual a anistia configurou uma reconciliação da nação consigo mesma, de tal modo que deveria mesmo ser irrestrita, o que foi referendado na mesma época pela OAB, que afirmou que nem a repulsa à tortura obscurece a necessidade de reconhecer total amplitude emprestada a tal esquecimento penal, donde não ocorreu qualquer discriminação na referida lei, conforme reconhecido pelo Superior Tribunal Militar, sendo desta forma que deve ser interpretado o art. 1º, §1º, da Lei de Anistia;
c) Que a anistia abrange todos os crimes comuns e políticos, desde que praticados por razões políticas, sendo contraditório uma enumeração taxativa pois isto tornaria restrita a anistia que visou ser ampla, geral e irrestrita, consoante a pretensão do legislador da época;
d) Que a mudança da interpretação da Lei de Anistia afrontaria situações jurídicas já consolidadas, porque quando da promulgação da CF/88 já teria produzido seus (irrevogáveis) efeitos, além de acarretar leitura mais gravosa da norma, o que afrontaria os princípios da segurança jurídica e da não-retroatividade da lei penal, caracterizado da retroatividade máxima da lei penal;
e) Que o art. 5º, inc. XLIII, da CF/88, ao vedar a anistia a determinados crimes, o faz da data da promulgação da CF/88 em diante, e não retroativamente, pois dito dispositivo constitucional é uma norma penal mais grave do que a anterior, que a da ordem constitucional anterior, que não trazia tal vedação, donde já teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva dos crimes abrangidos pela Lei de Anistia, por ultrapassado o prazo máximo de 20 anos do Código Penal para tanto;
f) Que é irrelevante que a Lei de Anistia tenha sido aprovada por parlamentares escolhidos sob o placet dos comandantes militares, por tal ato ter sido recepcionado pela CF/88, pois a forma da lei é regida pelo tempo do ato (tempus regit actum), sob pena da invalidade de todos os atos normativos da época;
g) Que seria insubsistente a alegação de que a Lei de Anistia inviabilizaria o direito à verdade do povo brasileiro a informações sigilosas da época da Ditadura, pois isso seria matéria estranha à Lei de Anistia;
h) Que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos teriam força de mera lei ordinária e, de qualquer forma, estariam sujeitos à Constituição de 1988 (princípio da anterioridade da lei penal), donde não seria válido o argumento neles pautado.
A Câmara dos Deputados se limitou a informar que a Lei de Anistia foi promulgada segundo o processo legislativo da época, sem adentrar na discussão do tema de fundo.
Já o Senado Federal enfrentou a matéria, sendo que, após apresentar preliminares, alegou quando ao mérito que não merece prosperar a ADPF, em síntese, porque:
a) A Lei de Anistia exauriu seus efeitos logo após sua promulgação, donde não faz sentido que o STF analise se ela foi ou não recepcionada pela CF/88, pois na data da promulgação da atual Constituição a Lei de Anistia já não mais incidia, donde sequer seria parâmetro de controle de ADPF, donde haveria inépcia por impossibilidade lógica e impossibilidade jurídica do pedido;
b) A Emenda Constitucional n.º 26, de 1985, não teria sido atacada pela ADPF (!), donde expurgada a Lei de Anistia do mundo jurídico, ainda haveria referida legislação sobre o tema (!);
c) Não se poderia deixar de abranger crimes políticos, conexos ou praticados por motivação política da Lei de Anistia sem que se mudasse o conceito de anistia, pois dita lei apagou todos os atos terroristas, seqüestros, atentados a bomba etc praticados durante aquela época;
d) A Lei de Anistia consubstanciou posição política decorrente de acordo da sociedade civil com o regime militar visando a redemocratização brasileira, donde se não tivesse havido tal acordo, talvez até hoje não tivéssemos retornado ao regime democrático;
e) É descabida a colocação da OAB de que o Congresso Nacional não detinha procuração das vítimas ou de suas famílias para aprovar a Lei de Anistia, pois o Congresso não age pelos interesses pessoais de ninguém, decidindo legitimamente sobre matérias de ordem pública; e porque
f) A anistia faz cessar todos os efeitos penais do crime, o que ocorreu em 1979, sendo assim incabível invocar a Constituição Federal de 1988 para questionar tal lei.
3. Manifestação do Conselho Federal da OAB sobre o Parecer do Procurador-Geral da República.
Focando-se o Parecer do Procurador-Geral da República na proclamada intenção do legislador, de estender a anistia da forma mais ampla, geral e irrestrita, a manifestação do Conselho Federal da OAB refutou tal postura, em síntese:
a) Pela desvalia deste critério da mens legislatoris na hermenêutica contemporânea, pois as leis valem objetivamente por si mesmas e não subjetivamente pelo que o legislador (constituinte ou ordinário) quis dizer;
b) Porque sequer havia Estado de Direito na época da Ditadura Militar, pois não era o legislador de 1979 autônomo, mas atuava dentro dos estreitos limites fixados pela Ditadura Militar, tanto que o Projeto da Lei de Anistia foi elaborado pelo próprio Chefe do Executivo (militar) da época, sendo que isto deixa óbvio que as Forças Armadas agiram, neste episódio, predominantemente em seu interesse e benefício próprios, pois só consentiram em deixar o poder mediante a impunidade de seus agentes, donde não se pode chamar isto de “compromisso histórico de reconciliação e pacificação nacional”, como feito pelo PGR, sendo na verdade forma de auto-anistia repudiada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, consoante demonstrado na petição inicial da ADPF;
c) Não há nenhuma razão de interesse nacional para manter o Brasil como o único país sul-americano que se recusa a apagar esta nódoa histórica através da punição dos crimes cometidos pelo regime militar durante a Ditadura;
d) Os bens jurídicos violados por crimes políticos e a eles conexos são completamente distintos dos crimes comuns praticados pelo regime militar, pois de um lado temos crimes políticos e, de outro, temos a vida, a integridade física e a dignidade moral das pessoas;
e) O que se quer com a ADPF n.º 153 não é a revisão da Lei da Anistia, mas a sua correta interpretação, de acordo com os padrões de técnica jurídica consagrados e a exigência fundamental de respeito à dignidade humana;
f) Não há qualquer anacronismo desta ADPF, pois ela se compatibiliza com a vedação constitucional (da CF/88) à prática de tortura, assim como com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos internalizados pelo Brasil, proibitivos da prática e da prescrição de quaisquer crimes contra a humanidade, como os perpetrados pelo regime militar;
g) Que o fato da doutrina jurídica universal reconhecer que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos constituem limites ao exercício do Poder Constituinte Originário não impede a procedência da ADPF, pois tais limites decorrem da consciência ética universal de respeito aos direitos humanos, donde com muito mais razão a legislação ordinária nacional também não teria legitimidade para anistiar crimes que o Direito Internacional há mais de trinta anos considerava lesivos a toda a humanidade.
Assim, reiterou as razões da petição inicial e requereu a procedência da ADPF.
4. Posição Pessoal.
4.1. Não-abrangência dos crimes perpetrados pela Ditadura Militar no âmbito de proteção do art. 1º, §1º, da Lei de Anistia. Subsidiariamente: não-recepção.
Cabe concordar com a posição da OAB no sentido de que crimes de assassinato, tortura, desaparecimento e lesões corporais praticados pelos agentes da Ditadura Militar não estão abrangidos pelo âmbito de proteção do art. 1º, §1º, da Lei de Anistia.
Com efeito, como bem destacado pela Inicial, não podem ser considerados “conexos” com crimes políticos os crimes praticados pelos agentes estatais com o intuito de calar e mesmo assassinar os opositores do regime. Posição nesse sentido é completamente descabida, pois a conexão de crimes supõe identidade de propósitos e objetivos entre seus agentes, sendo óbvio que não há identidade de propósitos e objetivos entre aqueles que cometiam crimes políticos por se oporem ao regime militar de então com os crimes comuns praticados pelo regime com o único intuito de silenciar os opositores do regime.
Portanto, quem pretende mudar o conceito de anistia são os opositores da procedência da ADPF n.º 153, pois a anistia legalmente consagrada não abrange os crimes comuns perpetrados pelos agentes estatais da Ditadura Militar brasileira.
Cabe lembrar que a Ditadura Militar foi estabelecida com o intuito de se evitar o “risco” de que o socialismo real/comunismo real fosse instituído no Brasil por seus simpatizantes (o mundo vivia o auge da Guerra Fria entre EUA e URSS). Sem adentrar propriamente neste tema, o que se quer dizer é que, ainda que se pudesse considerar a Ditadura Militar como um “mal necessário” (sic), como alguns inacreditavelmente afirmam, este “mal necessário” poderia ter sido perpetrado sem se tolher a liberdade de expressão do pensamento e a liberdade de protestos pacíficos, em suma, sem se tolher o direito de crítica inerente a qualquer soberania popular e, principalmente, sem que se assassinasse, torturasse ou se desaparecesse com tais opositores políticos.
Não há que se falar que a revisão da interpretação da Lei de Anistia alteraria situações jurídicas consolidadas, pois a não-recepção de um diploma legal obviamente expurga todos os efeitos jurídicos praticados por dito diploma legal. Ora, se a lei é tida como incompatível com a nova Constituição e esta lei atribuiu anistia não-reconhecida pelo atual diploma constitucional, parece evidente que os efeitos jurídicos produzidos por esta lei restam totalmente nulificados, tornando-se possível a pretensão punitiva do Estado sobre o tema.
Tal mudança de interpretação da Lei de Anistia não afronta o princípio da segurança jurídica, na medida em que é absurdo pretender que a segurança jurídica permita a proteção de atos criminosos flagrantemente contrários à nova ordem constitucional através de uma auto-anistia repudiada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como bem destacado pela OAB em sua petição inicial (argumentos constantes no tópico respectivo). Logo, o argumento improcede.
Realmente, a ADPF n.º 153 não visa alterar a Lei de Anistia (como não pode qualquer ação constitucional), mas apenas lhe atribuir uma interpretação conforme a Constituição que afaste do âmbito de proteção do art. 1º, §1º, da Lei de Anistia aqueles crimes cometidos pelo regime militar contra a vida, a integridade físico-moral e a dignidade dos cidadãos brasileiros.
Quanto à mens legislatoris (vontade do legislador concreto), ela é irrelevante para a interpretação jurídica, seja porque não há uma única vontade do legislador, ante serem vários os parlamentares a votar o projeto de lei com as mais distintas e contraditórias vontades (Carlos Maximiliano, conforme infra explicitado), assim como por a lei se libertar de seus elaboradores quando de sua promulgação, quando assume relevo a teoria objetiva da interpretação, que significa que a interpretação da lei (constitucional ou infraconstitucional) independe da vontade de seus elaboradores (“a lei é mais sábia que o legislador”), podendo perfeitamente abranger outras situações não previstas pelo legislador quando seu valor, sua ratio (objetivamente aferível) isto permitir.
Cabe concordar aqui com a lição de Geraldo Ataliba, para quem “O jurista sabe que a eventual intenção do legislador nada vale (ou não vale nada) para a interpretação jurídica. A Constituição não é o que os constituintes quiseram fazer; é muito mais que isso: é isso o que eles fizeram. (...) Os juristas não perdem mais tempo em expor os argumentos tendentes a expressar o postulado hermenêutico elementar segundo o qual o desejo do legislador, sua vontade e seus processos subjetivos motivacionais não têm valor para a exegese jurídica”[2]. Perfeita é esta lição. Especialmente porque, conforme a lição de Carlos Maximiliano, é impossível descobrir a efetiva vontade do legislador pelo fato de o projeto de lei nunca ser fruto da vontade de apenas uma pessoa, mas de uma série de parlamentares com interesses e opiniões por vezes totalmente díspares com relação ao tema, donde não se pode deixar de concordar com o fato de que o texto normativo, uma vez aprovado, assume vida própria, independentemente da vontade daqueles que o aprovaram, sendo que é da interpretação do texto normativo que se extrairá a norma aplicável[3].
No caso da Lei de Anistia, pouco importa o que o legislador quis ou deixou de querer, ainda mais um legislador ilegítimo como o de então, por totalmente subordinado à Ditadura Militar – fato é que não se enquadra no conceito jurídico de crimes conexos a crimes políticos o enquadramento de crimes comuns perpetrados pelos agentes estatais da Ditadura em pura e simples repressão totalitária aos opositores do regime.
Com relação ao direito à verdade corretamente explicitado pelo Conselho Federal da OAB na Inicial, ele resta violado pela recusa dos órgãos estatais em fornecer as informações sobre a localização dos corpos das vítimas do regime militar às famílias respectivas. Ainda que (descabidamente) não haja punição aos agentes do regime militar, ao menos este direito à verdade deve ser respeitado, para que os militares informem aonde jogaram os corpos das vítimas de seu nefasto regime militar.
Aliás, é pura hipocrisia defender-se que a revisão da lei de anistia configuraria revanchismo. Ora, revanchismo supõe uma conduta de mera vingança por motivações ilegítimas, o que evidentemente não é o caso. Arbitrárias foram as motivações e condutas dos militares quando de sua nefasta Ditadura Militar. O que os militares querem ao invocarem palavras de ordem como revanchismo é pura e simplesmente não responder pelos atos arbitrários e desumanos que cometeram sob a égide de seu nefasto regime militar no Brasil. Atribuir responsabilidade penal àqueles que incorreram em ilícitos penais não pode jamais ser tido como revanchismo, ou seja, como vingança arbitrária. Desafia a inteligência posição em sentido contrário.
Ademais, é uma falácia (ou, quiçá, um sofisma) a alegação de que a Lei de Anistia produziu todos os seus efeitos logo após a sua promulgação, donde não caberia mais a análise de sua constitucionalidade/recepção pela Constituição Federal de 1988. Ora, tendo a CF/88 proibido a anistia a crimes como os perpetrados pelo regime militar, isso significa que a Lei de Anistia não foi recepcionada se lhe for atribuída uma interpretação que abranja tais crimes de tortura.
Outrossim, não houve acordo entre a sociedade civil e o regime militar, pois a Lei de Anistia foi decorrente da vontade de parlamentares totalmente submissos à Ditadura, donde foi somente esta quem elaborou a Lei de Anistia de acordo com seus exclusivos interesses. Não se pode chamar isso de “acordo” sob hipótese alguma. Logo, não teve o Congresso Nacional qualquer legitimidade democrática para aprovar tal lei, o que não se pode ter como “irrelevante”, pois se alguém invoca a existência de um “acordo”, então este deve ser um acordo material/substancial, no qual ambas as partes tenham participado totalmente e com total autonomia da vontade, o que evidentemente não ocorreu no presente caso.
Sobre os tratados internacionais de direitos humanos internalizados pelo Brasil, sem adentrar na polêmica sobre sua hierarquia normativa (embora a literalidade do §2º do art. 5º da CF/88 deixe claro que eles têm a mesma hierarquia dos direitos fundamentais, ou seja, hierarquia constitucional, assim como a atual posição do STF lhes atribui hierarquia supralegal, embora infraconstitucional), é de se notar que sua internalização desde sempre implicou em sua consideração como ato normativo. Ora, como ato normativo, considerando que a imprescritibilidade da tortura já era norma internacional internalizada pelo Brasil em 1979, a Lei de Anistia jamais poderia anistiar torturadores, mesmo porque isso afronta qualquer noção de direitos humanos como mínimo-ético universal entre as nações.
Acerca da Emenda Constitucional n.º 26/1985, o argumento é completamente descabido, pois a Constituição anterior foi revogada pela Constituição Federal de 1988, não se verificando em nosso ordenamento jurídico o fenômeno da desconstitucionalização (pelo qual uma norma constitucional pretérita assume a forma de lei ordinária na nova ordem constitucional), pois a nova Constituição revoga automaticamente a íntegra da Constituição anterior, salvo dispositivo constitucional expresso em sentido contrário.
Quanto aos preceitos fundamentais, concorda-se integralmente com as razões do Conselho Federal da OAB, supra explicitadas. Anote-se, apenas, que, quanto ao princípio da igualdade, quando se diz violada a isonomia não se faz isso por se entender ter sido perpetrada uma discriminação, mas por se terem tratado igualmente os desiguais, ou seja, por ter se atribuído a mesma anistia a crimes políticos e a crimes de lesa-humanidade contra os opositores do regime, sendo notório que tratar igualmente os desiguais constitui uma das maiores injustiças existentes.
Mas ainda que se considerasse a Lei de Anistia um verdadeiro “acordo” entre a Ditadura e a Sociedade Civil (o que não foi, consoante supra demonstrado), então são perfeitas as alegações do Conselho Federal da OAB acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, pois a dignidade do povo brasileiro não pode ser trocada por qualquer fim, mesmo o da redemocratização. A alegação de que sem este suposto “acordo” não teria havido a redemocratização do país é nada menos do que o uso da própria torpeza dos militares em prol deles próprios, pois é inaceitável que se use como argumento para não se interpretar corretamente a Lei de Anistia o fato de que, sem elas, os militares teriam continuado com seu despótico regime militar... Os militares não podem alegar a própria torpeza para fugirem da responsabilização penal, como é evidente.
Logo, o esquecimento penal constante do art. 1º, §1º, da Lei de Anistia não abrange os crimes comuns perpetrados pelos agentes do regime militar de então. Isso não significa afronta à vedação constitucional de leis penais retroativas porque se estará apenas interpretando corretamente a mesma lei, o que não se confunde com criação de uma nova lei de força retroativa. Se o Judiciário interpretou incorretamente a Lei de Anistia até agora, isso evidentemente não impede que haja uma mudança de interpretação e/ou uma mutação normativa sobre o conteúdo do dispositivo legal em questão.
5. Conclusão
Ante o exposto, tem-se como não-abrangidos pelo âmbito de proteção do art. 1º, §1º, da Lei de Anistia os crimes comuns perpetrados pelos agentes estatais da Ditadura Militar contra os opositores do regime de então, por tais crimes não serem “conexos” com os crimes políticos da referida lei, donde deverá ser aplicada uma interpretação conforme a Constituição para isto reconhecer (como mecanismo que é de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos), devendo assim ser julgada totalmente procedente a ADPF n.º 153. Tem-se aqui, assim, integral concordância com a posição externada pelo Conselho Federal da OAB na petição inicial da referida ação e em sua manifestação contrária ao parecer do PGR sobre o tema.
[1] CIDH, caso Loayza Tamayo v. Peru, de 27/11/1998, caso Barrios Altos v. Peru, de 14/03/2001, caso Barrios Altos, interpretacion de La sentencia de Fondo, de 03/09/2001, caso de La Comunidad Moiwana, de 15/09/2005, e caso Almonacid Areliano y otros v. Chile, de 26/09/2006.
[2] ATALIBA apud BARROSO, Luís Roberto. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO, 6a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2006, pp. 132-133, em nota de rodapé (a citação original é a seguinte: ATALIBA, Geraldo. Limites à revisão constitucional. Separata da Revista Brasileira de Direito Público, 1:6, 1993).
[3] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. HERMENÊUTICA E APLICAÇÃO DO DIREITO, 19a Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pp. 15-27. No mesmo sentido, afirma Eduardo Fernando Appio, ao criticar a corrente que classifica a natureza jurídica da interpretação conforme como um método de interpretação equiparável às interpretações extensiva e restritiva, pois: “(...) agregada à corrente subjetivista, [essa corrente] desconsidera o fato de que, em qualquer interpretação, existe uma fusão de horizontes entre o texto interpretando e seu intérprete, sendo ultrapassada a premissa fundada na filosofia da consciência. Ou seja, o sujeito (intérprete) não se apropria de um conhecimento ontológico da coisa em si (texto de lei interpretado), mas sim, funde sua concepção de mundo e suas pré-compreensões com a norma que se pretende interpretar. / Neste quadrante, a vontade do legislador ingressa como um dos elementos através dos quais se chegará ao resultado do processo hermenêutico, mas não o único e nem o mais importante. Recorde-se, ainda, que o texto de um projeto-de-lei é fruto de várias vontades, passando por diversas comissões temáticas, durante o processo legislativo, inclusive com a possibilidade de sua emenda, até que seja votada na Casa Legislativa. Deste modo, nem mesmo com o atento acompanhamento do processo legislativo ou leitura da justificativa do projeto seria possível inferir a vontade de um grupo de legisladores. / Em verdade, após a edição da lei, esta assume tal autonomia que o seu alcance e sentido serão, efetivamente, definidos pela comunidade jurídica, incluindo as pessoas leigas de uma determinada sociedade. Um mesmo texto de lei, após reiterada interpretação, vai ‘amadurecendo’ seu sentido e alcance, seja no debate que se estabelece nos meios de comunicação social, seja na leitura que se faz nos Tribunais. Assim, somente com a edição de uma lei interpretativa posterior, teríamos uma possível, mas ainda contestável, definição da ‘vontade do legislador’, mesmo assim com ressalvas dada a alteração no contingente das Casas Legislativas”. (APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1ª Edição (ano 2002), 3ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, pp. 29-30 – sem grifos no original)
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (2010); Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008); Bacharel em Direito pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie/SP (2005); Autor do Livro "Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos"
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Lei de Anistia e sua Interpretação. Inexistência de abrangência para crimes cometidos por agentes estatais. Subsidiariamente, não-recepção de tal interpretação. O caso da ADPF n.º 153 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2010, 08:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/19614/lei-de-anistia-e-sua-interpretacao-inexistencia-de-abrangencia-para-crimes-cometidos-por-agentes-estatais-subsidiariamente-nao-recepcao-de-tal-interpretacao-o-caso-da-adpf-n-o-153. Acesso em: 23 nov 2024.
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