O §3°, do art. 109, da Constituição Federal ostenta a seguinte redação:
“Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual”.
Conforme preceitua o art. 109, §3°, da Constituição Federal, última parte, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual, de modo a permitir, até que ocorra uma efetiva capilarização da justiça federal, que demandas que originariamente teriam seu julgamento submetido à competência da justiça federal, venham a ser apreciadas pela justiça estadual.
Assim, a teleologia do dispositivo não é outra que não a de, buscando uma maior efetividade da tutela jurisdicional, permitir a prestação imediata e temporária da parcela da jurisdição que, embrionariamente, é da justiça federal.
De mais a mais, a norma constitucional que contém o permissivo de a legislação atribuir à justiça estadual o processamento e julgamento de outras causas de competência originária da justiça federal está inserida em preceito que delega a competência, também à justiça estadual, para processar e julgar demandas em que sejam partes segurado e instituição de previdência social, a denotar, destarte, manifesto interesse em tutelar o hipossuficiente.
A partir de tal interpretação, não se pode extrair, de uma norma cuja intenção é a tutela do hipossuficente, ilação que conduza a permissivo ilimitado de delegação das competências da justiça federal à estadual.
Não bastasse isso, não se pode furtar ao destaque que a locução “se verificada essa condição”, para a além de se referir apenas ao fato de a comarca não ser sede de vara da justiça federal, numa pobre interpretação meramente gramatical, demanda uma análise sistemática de todo o texto do dispositivo para extrair conclusão de que faz, também, alusão ao hipossuficiente, retratado no artigo nas figuras do segurado e beneficiário.
Outrossim, a possibilidade de se delegar competência da justiça federal à estadual encontra óbice na existência cumulativa dos seguintes requisitos: a) não ser a comarca sede de vara da justiça federal; b) visar a norma delegante proteger, com a delegação de parcela da jurisdição, o hipossuficiente.
Referido raciocínio encontra supedâneo primordialmente no princípio do efeito integrador, segundo o qual a interpretação da Constituição deve beneficiar a convergência entre os setores da sociedade e a unidade política, bem assim no método interpretativo científico-espiritual, que toma a Carta Maior como instrumento de unificação dos valores que caracterizam o espírito da constituição, na espécie, a delegação de parcela da jurisdição federal, como instrumento de proteção do hipossuficiente.
Seguindo a linha de raciocínio acima evidenciada, insta submeter à análise de tal digressão hermenêutica a norma constante do art. 15, I, da Lei n° 5.010/66, que tem a seguinte redação:
“Art. 15. Nas Comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal (artigo 12), os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar: I - os executivos fiscais da União e de suas autarquias, ajuizados contra devedores domiciliados nas respectivas Comarcas; (...)”
Ora, de se salientar que a edição de tal regra ocorreu quando da criação da justiça federal, momento histórico em que sequer se concebia a existência de uma justiça “especializada” para o processo e julgamento de causas que envolvessem interesses da União, suas autarquias e empresas públicas.
Referido dispositivo infraconstitucional, talvez por ter sido editado em momento muito anterior à égide da Constituição Cidadã, deflagra norma absolutamente desvinculada dos propósitos almejados pelo constituinte de 88, quais sejam, a proteção do hipossuficiente e a momentânea ausência da justiça federal no coração do País, posto cingir-se apenas quase que exclusivamente às capitais dos Estados.
Aliás, dispositivos legais que tais, por certo, são os grandes responsáveis pela lentidão e desinteresse dos governantes e do próprio Poder Judiciário Federal em envidar esforços concretos no sentido de levar a presença da justiça federal - por certo aquela que é destinatária dos maiores recursos se em comparação com as justiças dos Estados – aos recônditos do Brasil.
Assim, a intenção do legislador de 1966, ao editar o dispositivo sub examine, outro não foi que não o de possibilitar o processamento dos executivos fiscais, apenas pelo tempo suficiente à instalação de varas da justiça federal nos foros onde funcionam as comarcas das justiças dos Estados o que, somente, não é idôneo a fazer subsumir tal norma ao texto do §3° do art. 109 da constituição Federal.
A partir de então, transformou-se a justiça estadual em instrumento rápido e gratuito para a União receber seus créditos junto, essencialmente, a devedores pessoas jurídicas de direito privado situadas no interior do País, o que, ontologicamente, de modo algum se coaduna com o espírito da Constituição Federal e do §3° do art. 109 desta.
Extrai-se, assim, dos argumentos vertidos, a divergência teleológica entre o que dispõe o §3° do art. 109 da Constituição Federal e aquilo que consta do inciso II do art. 15 da Lei n° 5.010/66, pois, claramente, visa aquele tutelar um interesse de toda a sociedade (interesse público primário), vinculando-se intimamente com o objetivo fundamental de erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art.3°, II, da CF), enquanto este último dispositivo legal busca apenas a proteção dos créditos da União e suas autarquias (interesse público secundário)
Com efeito, a situação retratada induz raciocínio conducente à não recepção da norma, instituto bem conceituado pela doutrina nos seguintes termos:
“O fenômeno da recepção consiste em um processo automático de verificação da compatibilidade entre a legislação infraconstitucional anterior e a nova Constituição, a fim de atestar quais atos normativos continuam em vigor, sob a égide do novo ordenamento jurídico inaugurado pela novel Carta Magna.
Nesse sentido e nos termos da jurisprudência consolidada do STF, as normas infraconstitucionais anteriores a uma nova Constituição, cujo conteúdo se mostre incompatível com o texto da nova Carta, serão consideradas revogadas, ocorrendo o fenômeno da não recepção dessas normas”.
Desse modo, entendemos por não recepcionada pela Constituição Federal a norma constante do art. 15, I, da Lei n° 5.010/66, haja vista o seu intento manifesto de se utilizar da justiça dos Estados apenas para galgar a percepção dos seus créditos sem maiores expensas a denotar incompatibilidade material entre seu texto e o do §3°, do art. 109, da Carta da República.
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