I – Considerações sobre as quebradeiras de coco
As quebradeiras de coco babaçu constituem um conjunto de mulheres identificadas por uma forma de trabalho comum (coleta e quebra de coco babaçu e atividades correlatas de beneficiamento do fruto) e cuja identidade é objetivada em movimento social, sendo integrantes de famílias de trabalhadores rurais nativos do Maranhão ou migrantes do Nordeste que vivenciaram um processo histórico de ocupação da zona ecológica do babaçu (vasta região que abrange diversos Estados-membros do Brasil: Piauí, Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Pará).
No dizer de Jair do Amaral Filho (1990), desdobram-se em três categorias de pequenos produtores: 1) pequenos produtores com propriedade de terra, ou pequenos produtores-proprietários; 2) pequenos produtores “autônomos”, ou posseiros, ocupantes de terras devolutas; e 3) pequenos produtores inseridos em grandes propriedades, ou pequenos arrendatários e foreiros.
As quebradeiras de coco babaçu encontram-se entre aquelas populações cujas lutas e mobilizações têm contribuído para a construção contemporânea da noção de “populações tradicionais”, ao se definirem enquanto uma “comunidade tradicional”, ajustando-se aos termos da Convenção da Diversidade Biológica, assinada na Conferência Rio-92, que obtiveram clara expressão na conceituação do artigo 7°, III, da MP n. 2.186-16/01: “comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas”.
Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006) explica ainda que o movimento das quebradeiras de coco encontre-se entre aqueles que apresentam uma consciência ambiental aguçada, posicionando-se contra a devastação e o desmatamento e realizando assim um processo de politização da natureza. Além desta sensibilidade especial para as questões ambientais, estes movimentos, com os quais o das quebradeiras se identifica, apresentam por característica o estabelecimento de intensas lutas por processos de territorialização pautados em representações e práticas de uso comum da terra que, segundo Almeida (2006c, pp. 23-4):
A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes como “nômades” e “itinerantes”.
As ações políticas destas populações tradicionais, nas palavras de Edna Castro e Rosa Acevedo (1998), centram-se em reivindicações de permanência na terra, visto que o território é-lhes condição de existência, de sobrevivência física, e fator imprescindível, somado a outros (por exemplo, etnicidade e gênero), para a construção de sua identidade: remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, indígenas, etc.
A concepção de territorialidade destas populações, porém, “só pode ser percebida no interior das relações que estruturam a organização dessas comunidades” por não estar “subordinada, portanto à lógica da propriedade privada que preside o direito brasileiro, por ser de natureza distinta”, mantendo, “na concepção e na prática, terras comuns, pois institucionalizam um sistema de regras que alimentam o seu modo de produção” (CASTRO & ACEVEDO, 1998, p. 158).
No âmbito de tais lutas pela afirmação de práticas e representações de uso comum da terra, o movimento das quebradeiras de coco apresenta um elemento muito peculiar, que é a estratégia de enfrentamento da noção jurídica de propriedade privada por intermédio da sustentação de uma concepção, inscrita nos usos e representações sociais das quebradeiras e reconhecida pelos habitantes locais da circunvizinhança (inclusive por alguns fazendeiros afetados, que estão entre seus principais adversários políticos, acompanhados pelas empresas de produção de ferro-gusa e de celulose, assim como dos chamados catadores de coco e carvoeiros), de acesso livre às terras públicas e privadas – no mais das vezes, fazendas voltadas para a produção de monoculturas agrícolas ou para a pecuária – onde há incidência de babaçuais e utilização comum dos frutos das palmeiras.
II – Considerações doutrinárias sobre a Lei do coco liberto
Apesar dos grupos indígenas poderem ser categorizados em um mesmo conceito de populações tradicionais, que abrange ainda outros grupos sociais como o das quebradeiras de coco babaçu, indubitavelmente a percepção das práticas e representações sociais destas últimas, enquanto formas jurídicas potencialmente protetoras de suas tradições há de ser diferenciada.
A “lei” das trabalhadoras rurais pesquisadas não possui elementos típicos dos direitos dos povos como, por exemplo, a presença de autoridades e/ou conselhos tradicionais de deliberação – com legitimidade para a tomada de decisões coletivas, incluindo as impositivas de sanções –, direito de autodeterminação, soberania das decisões comunitárias desde que relativas a ocorrências no interior do território ancestral, etc.
A “legalidade” das quebradeiras de coco, porém, repousam em práticas e representações tradicionais referentes, mormente ao acesso livre a terra e usufruto comum dos frutos das palmeiras de babaçu, ou seja, o que tem sido denominado de “lei” do babaçu livre ou do coco liberto. Esta pretensão de “legalidade” assemelha-se a outras práticas e representações de populações nativas, como as dos quilombolas e seringueiros, pautadas em normas relativas ao uso comum da terra e dos recursos naturais.
Consistindo em usos sociais pautados em representações coletivas referentes à existência de normas, inscritas em práticas regulares e necessárias à subsistência das unidades familiares locais, capazes de garantir ou manter as expectativas das quebradeiras quanto ao acesso livre aos babaçuais e ao uso comum dos frutos das palmeiras, normas estas que, utilizando as palavras de Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 104), sustentar-se-iam no seguinte princípio: “um direito de uso sobre um determinado recurso significa que nenhum membro do povoado ou da ‘comunidade’ pode ser excluído de usar este recurso, embora para fazê-lo tenha que observar regras de uso comunitariamente definidas”.
Lembra Shiraishi Neto (2006) que para a observância de referida “legalidade” pouco importa a localização dos cocais, se em propriedades privadas ou áreas de domínio público, esta expectativa sendo respeitada inclusive em se tratando de áreas de propriedade das próprias trabalhadoras rurais e nas Reservas Extrativistas de Babaçu. Isto não significa, acrescenta o autor, que o uso comum suplante o domínio, nem que, por isso, a propriedade da terra deixe de ser uma necessidade das quebradeiras para a garantia e melhoria de suas condições de sobrevivência – aliás, a luta pela posse e propriedade de terras tem freqüentado, desde há muito, as pautas das quebradeiras que, antes de tudo, são integrantes da categoria dos trabalhadores rurais, entre os quais se encontram muitos sem acesso a terra e que digladiam cotidianamente, ainda hoje, para conquistá-la.
Apesar disso, no tocante à questão da propriedade, diz Shiraishi Neto (2006), o movimento das quebradeiras, com fulcro na “lei” do coco livre, vem questionando a dogmática convencional do direito privado de que as árvores são “bens secundários”, meros acessórios do solo, pois, para as trabalhadoras, as palmeiras de babaçu são convertidas em “bens principais”, dada a importância para a economia familiar de subsistência.
A partir deste questionamento, as quebradeiras justificam seu entendimento de que o proprietário tem direito de livremente usar, dispor, reaver e usufruir a terra (expressões que resumem o que é o direito de propriedade sobre a terra), o mesmo não ocorrendo com os palmeirais, que são de uso comum das famílias agroextrativistas que vivem sob o regime de economia familiar e comunitária. Neste sentido, a efetividade do “direito” de acesso livre aos babaçuais implica necessariamente a preservação de certa quantidade de palmeiras por hectare, que então não possam ser derrubadas, sendo autorizado tão-somente o desbaste ou raleamento. Em outras palavras:
A compreensão de que a palmeira de babaçu é tão ou mais importante que a terra em sim mesma, coaduna-se com uma “prática social” relativa ao uso do recurso que se realiza de forma comum a todas as famílias. Não há um proprietário dessa ou daquela árvore; as palmeiras são utilizadas indistintamente de forma comum. Aliás, o seu uso está relacionado à capacidade de trabalho e à necessidade de cada família frente ao recurso. No caso, o direito é derivado das “práticas sociais” e por isso a regra mais importante é aquela que diz respeito à garantia do recurso para a reprodução física e social das quebradeiras de coco e de suas famílias (SHIRAISHI NETO, 2006, p. 18).
Segundo as quebradeiras, as práticas de acesso livre e uso comum dos cocais são preexistentes ao processo de apropriação e cercamento das áreas de incidência de palmeiras de babaçu, quando o agroextrativismo era realizado sem qualquer restrição, dada a inexistência de propriedade privada (SHIRAISHI NETO, 2006). Isto é, o período em que a extração do babaçu e as roças davam-se nas terras devolutas (terras públicas que antecederam o processo de privatização destas no Brasil).
Além da preexistência em relação aos cercamentos e da precisão (expressão local que indica necessidade), as quebradeiras justificam a “lei” do babaçu livre, segundo afirma Shiraishi Neto (2006, p. 27), nas disposições da Constituição Federal de 1988, especialmente no princípio da dignidade, que é chamado pelas trabalhadoras rurais justamente por “ser desprovido de conteúdo”, obrigando o intérprete da Constituição a compreendê-lo “em consonância com as situações vivenciadas”, e, para “as quebradeiras, esse princípio estaria vinculado ao exercício da garantia da atividade extrativa do babaçu” ou, em outros termos, garantia de “um mínimo necessário para que essas mulheres possam ter assegurada a sua reprodução”.
O mesmo autor indica ainda que, no caso das quebradeiras, o princípio da dignidade toma a forma de “reconhecimento das diferenças sociais, econômicas e culturais, isto é, de que as quebradeiras de coco são portadoras de uma identidade que lhes confere diferença dos demais indivíduos e grupos sociais no interior do Estado brasileiro” (SHIRAISHI NETO, 2006, pp. 27-8).
Já Almeida (2006c) encontra justificação constitucional para o direito das quebradeiras através de uma interpretação extensiva do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, textualmente reconhecidas aos povos indígenas e aos remanescentes de quilombo da seguinte forma, nos artigos 231,§1º da CF: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” e no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Almeida pretende dilatar o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, bem expresso nestes dois dispositivos constitucionais, de sorte a incluir nele outras formas de uso comum da terra e dos recursos naturais, que de fato assemelham-se principalmente com o caso dos quilombolas, entrando neste quadro de inclusão as práticas e representações tradicionais de seringueiros, quebradeiras de coco, castanheiros, pescadores, ribeirinhos, entre outros grupos sociais. Conforme as palavras do autor:
As terras indígenas são definidas como bens da União e destinam-se à posse permanente dos índios, evidenciando uma situação de tutela e distinguindo-se, portanto, das terras das comunidades remanescentes de quilombos, que são reconhecidas na Constituição de 1988 como de propriedade definitiva dos quilombolas. Não obstante esta distinção relativa à dominialidade pode-se afirmar que ambas são consideradas juridicamente como “terras tradicionalmente ocupadas” seja no texto constitucional ou nos dispositivos infraconstitucionais e enfrentam na sua efetivação e reconhecimento obstáculos similares. De igual modo são consideradas “terras tradicionalmente ocupadas”, e enfrentam obstáculos à sua efetivação, aquelas de uso comum voltadas para o extrativismo, a pesca, a pequena agricultura e o pastoreio, focalizadas por diferentes instrumentos jurídicos, que buscam reconhecer suas especificidades [...] (ALMEIDA, 2006c, p. 28).
A Constituição do Estado do Maranhão, em seu artigo 196, garantiu expressamente o direito das famílias agroextrativistas, que vivem da coleta e quebra do babaçu e da roça, ao acesso e uso das terras que tradicionalmente ocupam, ao dispor, inicialmente, que: “Os babaçuais serão utilizados na forma da lei dentro de condições que assegurem a sua preservação natural e do meio ambiente, e como fonte de renda do trabalhador rural”; e em seguida: “Nas terras públicas e devolutas assegurar-se-á a exploração dos babaçuais em regime de economia familiar e comunitária”.
Com fulcro nos dispositivos mencionados acima das Constituições Federal e do Maranhão, assim como nos princípios da dignidade e do respeito às diferentes sociais, econômicas e culturais, e nas respectivas interpretações deles, as quebradeiras de coco babaçu, após várias tentativas frustradas de legalização de suas práticas e representações de acesso livre e uso comum dos babaçuais nos âmbitos estadual e federal, adotaram a estratégia de lutar pela aprovação de “Leis do Babaçu Livre” municipais.
III – Conclusão
No que diz respeito a tudo que foi exposto anteriormente, é inegável o direito dessas comunidades que vivem da extração do coco babaçu, de o fazerem, já que sobrevivem dessa modalidade de extrativismo por inúmeras gerações.
Conforme mencionado pelos autores citados, Almeida e Shiraishi consistem em usos sociais pautados em representações coletivas referentes à existência de normas, inscritas em práticas regulares e necessárias à subsistência das unidades familiares locais, capazes de garantir ou manter as expectativas das quebradeiras quanto ao acesso livre aos babaçuais e ao uso comum dos frutos das palmeiras.
É preciso que se reconheça haverem “quebradeiras sem terra”, ou seja, sem acesso direto à terra para moradia, cultivo e extração, na beira das rodovias com atividades acessórias de remuneração eventual (empregadas domésticas e de prestação de serviços de lavadeira, doceiras, confeiteiras). Há também trabalhadoras extrativistas com acesso garantido. Localizam-se em terras desapropriadas, adquiridas e decretadas (Reserva extrativista) por órgãos governamentais ou com posses consolidadas. Há ainda quebradeiras em terras de herança tituladas ou não, com ou sem [documentação] formal de partilha; bem como as que se localizam em terras de terceiros, pagando aforamento ou ocupando-as centenariamente com ou sem consentimento de terceiros (Caso “terras dos índios” de Viana).
Tem-se então, que a área destinada a essas comunidades deve possibilitar a manutenção do modo de vida do próprio grupo, seja esse modo cultural ou material, devendo ser delimitada à área de forma coletiva e considerando a noção de territorialidade da comunidade, uma vez que por determinação legal, para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos membros das comunidades, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental (§3º, do art. 2º do decreto 4.887/2003, por analogia).
Dessa forma, a área será do tamanho necessário visando o bem estar da comunidade para poder subsistir, física e culturalmente, não devendo ficar relegada a espaços mínimos ou “cedidos” por quem quer que seja, uma vez que o art. 68 do ADCT, por analogia, é expresso no sentido de que as comunidades são proprietárias das terras que ocupam.
Nessa questão do modo de vida, está incluído o sistema de produção das comunidades, que é um elemento preponderante utilizado nas áreas outrora ocupadas por elas. É necessário que se observe a forma própria dessas comunidades extrativistas de explorar seu território, como no caso em comento em que a comunidade sobrevive à custa da coleta e demais destinações do coco babaçu. Para essas pessoas, a prática do extrativismo é concebida como uma forma de delimitar a fronteira étnica entre eles e os demais setores do restante da população.
Assim, o poder público deve proceder a demarcação das terras em nome dessas comunidades, para que, além de garantir o direito dessas pessoas, deve-se assegurar também o uso mais adequado para aquela determinada área, no que diz respeito a utilização dos recursos naturais, sem que haja a destruição do meio ambiente.
Ainda sobre a questão da terra, também devemos trazer a baila os artigos 215 e 216 da Constituição Federal:
Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
[...]
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
[...]
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
[..]
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
[..]
§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
Também foram garantidas a essas comunidades, a manutenção da sua cultura pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Conforme já visto, o artigo 215 determina que o estado proteja as manifestações dos povos afro-brasileiros, enquanto que o artigo 216 faz com que os bens de natureza material e cultural desses povos, sejam transformados em patrimônio cultural que deve ser promovido e protegido pelo Estado Brasileiro.
Sendo assim, o direito das comunidades extratoras de coco babaçu, está intrinsecamente ligado à preservação da sua cultura e da sua organização social. Então quando o Poder Público passa a titular essas terras, deve fazer de forma com que sejam respeitadas as formas próprias que o grupo utiliza para ocupar aquele pedaço de chão. Para que os modos de vida dessas comunidades sejam preservados, protegidos e respeitados é preciso garantir a propriedade de um imóvel cujo tamanho e características permitam a sua reprodução física, cultural, etc.
Assim sendo, se o imóvel ocupado pela comunidade é uma propriedade particular, de acordo com o decreto 4.887/2003 que é aplicável a titulação das terras para comunidades quilombolas, não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação.
Portanto, para que possa ser efetivado o modo de produção dessas comunidades, bem como garantir-lhes o seu modo de vida, considerados aqui tantos meios matérias como imateriais, é necessário que se faça primeiramente a desapropriação do imóvel pelo Poder Público, para em seguida, fazer a titulação em favor da comunidade. O procedimento da desapropriação é necessário, pois no caso em comento, há um título legítimo de propriedade.
Por tudo que foi exposto, tem-se que a titulação das terras ocupadas pelas comunidades extratoras do coco babaçu, possuem o direito de propriedade das terras que ocupam, por analogia ao previsto no art. 68 do ADCT e regulamentado pelo Decreto Nº. 4.887/2003, onde se busca pelos meios legais, construirmos uma sociedade mais solidária e justa, o que constitui um dos objetivos do Brasil, presentes em nossa Constituição Federal no art. 3º, I.
IV – Da Inconstitucionalidade da Lei do Babaçu Livre, nos Estados que a adotarem.
Dessa forma, segundo exposto acima, o que deve ser feito é um procedimento de desapropriação do imóvel pelo Poder Público, para em seguida, fazer a titulação em favor da comunidade. O procedimento da desapropriação é necessário, pois no caso em comento, há um título legítimo de propriedade, uma vez que conforme demonstrado, vivem exclusivamente da atividade de extração do coco babaçu.
Sendo assim, resta inconstitucional o art. 2º da chamada Lei do Babaçu Livre, que rege o seguinte:
Art. 2º As matas nativas constituídas por palmeiras de coco babaçu, em terras públicas, devolutas ou privadas, são de livre acesso às populações agroextrativistas e de livre uso por elas, desde que as explorem em regime de economia familiar e comunitário, conforme os costumes de cada região.( grifo nosso).
Ora, é manifesta a inconstitucionalidade deste artigo, ao prever que são de livre acesso às matas nativas constituídas por palmeiras de coco babaçu, em terras privadas, uma vez que o legislador legitima explicitamente a prática da turbação em nosso sistema, fazendo com que gere uma grande insegurança jurídica, uma vez que outras populações tradicionais se sintam no direito de poderem fazer a mesma coisa em outras propriedades particulares.
Manifesta, portanto, a contrariedade ao Código Civil de 2002, que em diversos artigos, regulamenta a posse. E assim sendo, uma vez o proprietário, que cumpre com a função social da mesma, sendo contrário ao entendimento fixado pela referida lei do babaçu, como ficará o caso do proprietário que fizer uso do desforço imediato? (art. 1210, §1º) Também como será a questão se o mesmo resolver interpor ação possessória ou reivindicatória? A partir dessa lei, estará se negando que os proprietários dessas regiões que possuem palmeiras de coco babaçu, possam exercer seus poderes inerentes a propriedade (art. 1.228 C.C) e até mesmo os atos de posse sobre a coisa.
Outro ponto que parece ter ficado claro, é que o legislador ao editar este artigo, previa uma “comodidade” para a administração pública, pois, ao permitir o ingresso dessas pessoas em propriedades particulares, deixa de titular as mesmas em favor dessas pessoas, bem como não procede à desapropriação das propriedades que cumpram sua função social, pois teriam de fazer o pagamento de indenizações altíssimas, o que geraria um grande ônus ao Poder Público.
Como dito anteriormente, é inegável o direito dessas comunidades à terra, vez que dependem da extração do coco para sobreviver, porém o Poder Público detém meio idôneos para fazer valer o direito dessas comunidades, mediante as devidas desapropriações, previstas tanto na Constituição Federal como em legislações infraconstitucionais(ex. art. 1228, §3º do Código Civil e art. 5º, XXIV da CF.), não devendo o legislador invadir direito de quais pessoas, sob o fundamento de que precisa fazer valer o direito das comunidades extrativistas.
Dessa forma, manifesta a inconstitucionalidade do art. 2º da lei do babaçu livre, devendo o poder público desapropriar tantas quanto forem necessárias as propriedades particulares para efetivar o acesso à terra e as matas de coco babaçu pelas referidas comunidades tradicionais.
Notas:
Conceito de Posse – 1196; Posse de boa/má-fé – 1201, 1208.
Intervenção na posse – detentor vira possuidor – 1203 – Para que alguém seja considerado possuidor, o mesmo precisa ter a disponibilidade do bem ou uma perspectiva de uso.
Fundamentos – Dignidade da pessoa humana – art. 1º, III, CF; direito a cidadania – inciso II; direito a moradia – art. 6º, CF.
Modo de aquisição da posse – 1204 e 1205.
Efeitos da posse – frutos – 95 – 1215
Ação possessória – 1210 Cc e 926 e 927 CPC.
Se o poder público for o agente/agressor, da posse, ele poderá sofrer ação possessória. Todavia, se ele tiver iniciado ou construído obra de interesse público, o juiz transformará a ação de reintegração de posse, em uma de indenização.
-Esbulho é a perda da posse, impossibilidade de se praticar atos de posse, a gerência de aspectos sociais e econômicos sobre a coisa – Ação de Reintegração de Posse.
-Turbação ocorre quando o possuidor não perde a posse sobre a coisa, mas fica intranqüilo sobre a posse da coisa, havendo uma diminuição da disponibilidade sobre a mesma.
Ação Reivindicatória – 1228
FS da Propriedade – art. 5º, XXII, CF/88 e art. 170, III – 1228, §1º.
FS da Propriedae Rural – art. 186; 225 e 243 CF; não cumprindo sua função social, pode ocorrer a desapropriação como sanção – perda compulsória do direito de propriedade, onde o particular mediante indenização perderá esse direito em favor do estado.
Desapropriação – art. 5º, XXIV; Decreto Lei 3365/41; art. 184, II c/c lei complementar 76/93 para propriedade rural. Exceção 185 CF.
Formado pelo Centro Universitário do Pará - Cesupa/2010. ós-Graduado (Especialista) em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Assessor de Juiz, Vinculado à 7a Vara de Família da Capital no Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Twitter: http://twitter.com/@Nando_Vianna09 . blog: http://veritas-descomplicandoavida.blogspot.com/ <br>e-mail: [email protected]<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Fernando José Vianna. As Quebradeiras de Coco babaçu e a Lei do Coco Livre Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2011, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/24798/as-quebradeiras-de-coco-babacu-e-a-lei-do-coco-livre. Acesso em: 27 nov 2024.
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