Resumo
Este trabalho tem por finalidade identificar uma correlação, após vinte e nove anos, da música o meu guri - de Chico Buarque de Holanda - com a problemática das crianças e adolescentes de periferias que buscam no submundo do crime organizado a solução para seus problemas sociais.
Imperativo ressaltar que, apesar desse material ser intitulado como O meu guri: de Chico Buarque às favelas cariocas, a problemática do envolvimento de menores com o narcotráfico não é exclusiva do Rio de janeiro; infelizmente, trata-se de um problema nacional.
Palavras-chave
O meu guri, favela, desigualdade, tráfico de drogas, pobreza, marginalidade.
Introdução
Iniciaremos as reflexões, sobre algumas questões sociais que levam nossas crianças e/ou adolescentes a ingressarem no crime organizado, fragmentando esta lindíssima obra de Chico Buarque de Holanda - gravada em 1981 - O meu guri. Música que retrada, brilhantemente, um pouco da realidade desses jovens que vivem em periferias; seus sofrimentos, privações, angústias e como as atividades criminosas servem de ponte para que esses indivíduos, que por ventura não tiveram as mesmas oportunidades de boa parte da população, superem esta imensa cratera social ocasionada por uma sociedade extremamente egoísta e desigual. Faz-se imperativo ressaltar, após quase 29 anos do lançamento da música, que o assunto, infelizmente, ainda é manchete na mídia nacional.
O Meu Guri
Composição: Chico Buarque
“Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
Dele rebentar
Já foi nascendo
Com cara de fome
E eu não tinha nem nome
Prá lhe dar...
A partir da leitura da primeira estrofe percebe-se, claramente, como a música que foi lançada em 1981 - há quase vinte e nove anos, ainda ilustra, com nitidez, a realidade das muitas mães que, atualmente, vivem em periferias; pois a canção faz referência a uma mãe pobre, cujo filho crescerá sem as mínimas condições de subsistência; a qual, com certeza, dependerá do nosso, “agonizante”, Sistema Único de Saúde (SUS), afinal de contas, o bebê já nasceu prematuro. Uma mãe que criará seu rebento sozinha, isto é, sem a figura paterna e desamparada pelo Estado. Será que ela ao menos sabe quem é o pai da criança? Mãe aparentemente humilde e de pouca instrução que, infelizmente, só consegue enxergar uma coisa para o futuro de seu filho, a incerteza. Incerteza que, em muitos casos, permite que os jovens favelados, não somente os do Rio de janeiro, mas os do Brasil e de muitos outros países, sejam adotados pelo tráfico de drogas.
“...Como fui levando
Não sei lhe explicar
Fui assim levando
Ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse
Que chegava lá...
Inconformados com o padrão de vida de seus antepassados e, buscando uma ascensão social que talvez o Estado nunca lhes ofertasse, esses jovens encontram no tráfico de drogas uma solução rápida para resolver seus anseios consumistas. A delinquência está muito próxima. Isto é, na própria comunidade. No crime há “emprego” com fartura, não há necessidade de “boa aparência”, nem se exige nível de escolaridade. Idiomas? Apenas o português e, mesmo assim, adaptado a um dialeto próprio utilizado na favela. Todavia, a “firma” [1] não fornece nenhuma garantia aos seus “funcionários”; não há 13º, nem muito menos férias; aposentadoria? Geralmente ocorre antes dos jovens completarem dezoito anos - com a morte.
“...É o meu guri e ele chega!
Chega suado
E veloz do batente
Traz sempre um presente
Prá me encabular
Tanta corrente de ouro
Seu moço!
Que haja pescoço
Prá enfiar...
De acordo com a antropóloga Alba Zaluar, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pioneira nos estudos sobre violência e criminalidade: "Você não pode culpar esses meninos, que são iludidos por algo que é glamourizado todos os dias: ter dinheiro no bolso para gastar em coisas de marca. E isso é retroalimentado diariamente pela publicidade".
Imaginemos o seguinte exemplo: como um jovem pobre de uma favela conseguiria comprar um tênis de alguma marca conceituada? Os modelos chegam a custar R$ 700,00. Trabalhando como menor aprendiz? Estudando para conseguir “vencer na vida”? Mas quanto tempo isso levaria? Quantos anos esses jovens deveriam esperar? O que eles querem é para já e o atalho está na própria comunidade - no submundo do narcotráfico.
“...Me trouxe uma bolsa
Já com tudo dentro
Chave, caderneta
Terço e patuá
Um lenço e uma penca
De documentos
Prá finalmente
Eu me identificar...
Segundo contagem de dados do Departamento da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos, há mais de 12 mil meninos atuando para o tráfico de entorpecentes hoje só no Rio. Se 88 deles gastavam 227 salários mínimos por mês em roupas e acessórios, o gasto de 12 mil deve ser de centenas de milhares de reais.
"Esses garotos têm, como todo adolescente, orgulho de poder fazer compras. O perigoso é que, ao chegar a uma loja com dinheiro, eles são totalmente valorizados. Mas não é o ser humano que é valorizado, e sim, o dinheiro", explica Marcelo Rasga Moreira, 31, um dos autores da pesquisa. "A mesma sociedade e o mesmo mercado que fecharam as portas na cara desses meninos - e que exigem a sua punição - mudam de atitude quando eles estão com dinheiro."
Interessante ressaltar, como o dinheiro “sujo” dos “Guris” do narcotráfico, entra na nossa ciranda de consumo e se purifica na forma de lucros, empregos e impostos.
“...Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!...
“Para traçar um panorama do número de crianças e de adolescentes utilizados pelo tráfico, o jornal (O Globo) analisou dados da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). O resultado é que, a cada duas horas, um adolescente é detido no Rio por roubo, tráfico de drogas e porte de armas. Os casos geralmente estão relacionados com o uso de drogas.
O emprego de mão-de-obra infantil pelo tráfico começou nos anos 80. Um dos primeiros casos foi do menor conhecido como Brasileirinho, de 14 anos. Ele entrou para a criminalidade com a morte do pai, em 1988. No início, eram casos esporádicos, mas com o passar do tempo, a adoção de menores pelo tráfico aumentou...” (Fonte: O Globo)
“...Chega no morro
Com carregamento
Pulseira, cimento
Relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar
Cá no alto
Essa onda de assaltos
Tá um horror...
Isso sem falar no glamour (usam jóias, roupas de grife e armas automáticas), característico dessa atividade e na busca da “adrenalina” – serem temidos pelos homens e amados pelas mulheres, que também são fatores de suma importância para o envolvimento dessas crianças na criminalidade.
Geralmente, iniciam suas atividades criminosas com cerca de oito anos de idade, a maior parte delas são usuárias de drogas e têm baixíssimo nível de escolaridade.
“...Eu consolo ele
Ele me consola
Boto ele no colo
Prá ele me ninar
De repente acordo
Olho pro lado
E o danado já foi trabalhar(...)
Atualmente, no Rio de Janeiro, existem cerca de 968 favelas (Fonte: Informativo Rio 2008). A falta de saneamento básico e de perspectivas no futuro, a marginalidade, insegurança e pobreza são problemas comuns aos moradores dessas áreas.
Por muito tempo, o Poder Público ignorou os habitantes dessas comunidades, visto que, por longos anos, o único braço do governo que adentrava, e ainda adentra, em uma favela, de forma truculenta e arbitrária, é a polícia.
Arbitrariedades e injustiças eram constantes na vida desses moradores. Devido ao despreparo dos agentes policiais, os habitantes dessas comunidades carentes eram constantemente confundidos com marginais e submetidos a diversas humilhações ou até mesmo a execuções sumárias, haja vista o grande número de inocentes, sem antecedentes criminais, assassinados pela polícia.
Nessas comunidades, é muito comum o perigoso vínculo entre pobreza e marginalidade. Traficantes tiram proveito da falta de preparo de alguns agentes policiais, da antipatia causada por uma parcela da polícia e tentam agradar aos moradores. É comum a doação de remédios, roupas e alimentos por parte dos criminosos, numa dinâmica assistencialista, atuando onde o Poder Público é ausente.
Mas, essa está longe de ser uma atitude completamente desinteressada, constantemente, jovens são recrutados para atuarem como soldados no narcotráfico. Os menores circulam, hoje em dia, nas comunidades, com pistolas, fuzis e granadas.
“...Chega estampado
Manchete, retrato
Com venda nos olhos
Legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente
Seu moço!
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato
Acho que tá rindo
Acho que tá lindo
De papo pro ar
Desde o começo eu não disse
Seu moço!
Ele disse que chegava lá...
O número de crianças e jovens que foram vítimas de armas de fogo no Brasil aumentou - cerca de 130% - de 1991 a 2000. (Fonte: IBGE: 2004).
No Rio de janeiro, entre dezembro de 1987 e novembro de 2001, houve mais crianças e jovens vítimas de armas de fogo (Rio: 3.937 vítimas) do que no confronto entre Israel e Palestina (467 vítimas). (Fonte: Centro Israelense de Informação sobre Direitos Humanos nos Territórios Ocupados e Instituto Superior dos Estudos da Religião – Iser.).
Segundo pesquisa realizada no Brasil pela UNESCO, no período entre 1979 e 2003 e intitulada, Mortes matadas por armas de fogo no Brasil, neste período, morreram no país mais 550 mil pessoas vítimas de arma de fogo. Deste total, 205.722 tinham entre 15 e 24 anos. Já em 1979, 2.208 jovens foram mortos com armas de fogo. Agora, em 2003, esse número subiu para 16.345.
Dos 57 países analisados pela pesquisa, o Brasil é o 3° país onde morrem mais jovens por armas de fogo, atrás apenas da Venezuela e Porto Rico.
“Segundo Pedro Américo Furtado de Oliveira, coordenador do Programa para Eliminação do Trabalho Infantil da OIT, entre as sugestões que poderiam ser apontadas para eliminar o trabalho infantil no narcotráfico estão à criação de redes de proteção social (auxílio familiar, renda mínima e geração de emprego) e o desenvolvimento de atividades que possam atrair as crianças e jovens, como esportes, cultura e lazer”. (Folha de São Paulo – 1º de março de 2002).
Considerações finais
Minha finalidade com a elaboração desse material foi esclarecer, de uma vez por todas, a toda sociedade, que de nada adiantará blindarmos nossos carros, construirmos muros mais altos, contratarmos seguranças particulares ou colocarmos a culpa no governo. Parte de nossos “Guris” estão no crime e esse problema é de todos nós. Somos vítimas de nossa própria incompetência. Precisamos entender que a sociedade constrói seus delitos ao longo do tempo e a cultura reforça determinadas predisposições individuais. Os menores infratores são parte e fruto do meio em que vivem. É hora de encaramos o problema de frente e buscarmos alternativas para que esses jovens que, atualmente vivem em altíssimo risco social, não façam parte das estatísticas do sistema carcerário ou das pesquisas referentes a óbitos ocasionados por armas de fogo. Portanto, somente unindo forças obteremos algum êxito. Poder público, empresariado e toda sociedade juntos para reverter esse quadro; afinal de contas, somos todos responsáveis e também sofremos as consequências por mantermos uma juventude à margem, esquecida. Além disso, quando discutimos propostas para a criança e o adolescente, estamos tratando, igualmente, do futuro Brasil.
Referências
COSTA; Antônio José Faria da e MATTOS; Janaína Valéria de - Programa social da Mangueira em 19/05/2006
SILVA; Jailson de Sousa e URANI; André - Crianças no Narcotráfico. Um diagnóstico rápido - Ministério do trabalho e do emprego
VELHO; Gilberto - Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica
BILL; MV e ATHAYDE; Celso – Falcão – Meninos do tráfico – Objetiva e CUFA
IWEALA; Uzodinma – Feras de lugar nenhum – Ed. Nova Fronteira
http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=omeuguri_81.htm – acesso em 15.12.2009
Especialista em Direito Constitucional e Direito do Consumidor pela Faculdade Damásio; Especializando em Direito Público pela Faculdade Damásio; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo - Espírito Santo; Advogado; Colaborador e <br>Colunista em diversas revistas especializadas.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REIS, André Prado Marques dos. O meu guri: de Chico Buarque às favelas cariocas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2012, 11:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/27971/o-meu-guri-de-chico-buarque-as-favelas-cariocas. Acesso em: 28 nov 2024.
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