Sumário: 1.1). Noções Preliminares ; 1.2) A jurisprudência criminal sobre o assunto. Conclusão. Bibliografia.
Resumo: A boa-fé contratual é o pilar que rege as relações contratuais e cotidianas. Quando maculada faz transmudar os institutos civilisticos de mero inadimplemento contratual para ilícito criminal. Assim ocorre quando celebrado um contrato de alienação fiduciária e vendido o bem, sem ciência do credor fiduciante e do terceiro adquirente do bem que aja atuado de boa-fé.
Palavras-chave: propriedade resolúvel/ posse/ terceiro de boa-fé.
1.1) Noções preliminares.
O contrato de alienação fiduciária é o contrato em que se opera a transferência de titularidade da posse sobre um determinado bem, que continua intacto por si só. O contrato de alienação fiduciária de bem imóvel, em grosso modo, é feito a cara e a coroa de uma moeda.
O dono do bem (devedor fiduciário) perde o título de dono do mesmo. O domínio/ propriedade muda de mãos e aquele que outrora era o dono ganha o lugar de possuidor.
Logo: O bem se desloca para a titularidade do seu credor, que ganha o título de proprietário resolúvel ou credor fiduciante. Tudo se inverte com o adimplemento contratual. Cara versus coroa. A satisfação da dívida tem o condão de trazer de volta a propriedade a quem dela dispôs. Devolve a qualidade de dono ao possuidor (após a liquidação e quitação da dívida), que passará a deter todos os atributos inerentes ao domínio, dentre outros, a faculdade de alienar o bem como seu legítimo proprietário.
Nas preciosas palavras de Namem Melhim: “Ao ser contratada a alienação fiduciária, o devedor-fiduciante transmite a propriedade ao credor-fiduciário e, por esse meio, demite-se do seu direito de propriedade; em decorrência dessa contratação, constitui-se em favor do credor-fiduciário uma propriedade resolúvel; por força dessa estruturação, o devedor-fiduciante é investido na qualidade de proprietário sob condição suspensiva, e pode tornar-se novamente titular da propriedade plena ao implementar a condição de pagamento da dívida que constitui objeto do contrato principal.”(CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar, 2000, 2ª ed. Pág.222).
1.2) A jurisprudência criminal sobre o assunto.
É possível a venda de um bem alienado fiduciariamente?
A resposta é: Depende. Ë possível apenas pelo credor fiduciante, jamais pelo possuidor fiduciário.
O possuidor fiduciário, por contrato de cessão, pode transmitir a sua posse a terceiros, desde que assim consinta o seu credor.
O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que se o credor não tiver ciência de que o possuidor celebrou contrato de cessão de posse com terceiro esse ato é considerado como ato de clandestinidade. Isso porque o credor precisa dar a anuência sobre qualquer movimentação inerente ao imóvel de sua propriedade, afinal ele é o dono do bem e decide o seu destino.
A título de exemplo: se João celebrou com a caixa econômica federal um contrato de alienação fiduciária de bem imóvel e deseja ceder a sua posse a Maria, a Caixa Econômica Federal deverá ser consultada se aceita ou não tal cessão de posse. Se a cessão de posse for dada à revelia da caixa econômica federal, o Superior tribunal de justiça vem entendendo ser esse um ato clandestino. Situação diversa ocorre se João omite de um terceiro de boa-fé o gravame da alienação fiduciária e resolve vender celebrando um contrato de promessa de compra e venda do bem não dando ciência a sua credora caixa econômica federal.
Nesse caso, como João não é dono do bem e vende bem de terceiro como próprio sem o consentimento do dono e levando a erro terceiro de boa fé configura-se o crime de estelionato. Ora se venda não há o que há é uma simulação com o intento de enganar a vítima, leva-la a erro por ardil ou outro meio fraudulento. Penaliza-se o silencio, mesmo que haja o registro público, pois aqui não vigora a presunção.
Assim temos situações diversas. Logo, a venda não é possível pelo possuidor, apenas a cessão e condicionada a anuência do seu credor. Visualize o leitor o entendimento da Corte Superior sobre o assunto:
Processo:
APR 641862420048070001 DF 0064186-24.2004.807.0001
Relator (a):
SONÍRIA ROCHA CAMPOS D' ASSUNÇÃO
Julgamento:
11/12/2008
Órgão Julgador:
2ª Turma Criminal
Publicação:
01/04/2009, DJ-e Pág. 137
Ementa
ESTELIONATO. VENDA DE BEM GRAVADO COM ÔNUS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. FATO NÃO REVELADO AO ADQUIRENTE. POSTERIOR LIBERAÇÃO DO BEM. TIPICIDADE DA CONDUTA.
1- DEVIDAMENTE COMPROVADO QUE, AO TEMPO DA VENDA DO AUTOMÓVEL, O VEÍCULO JÁ ESTAVA GRAVADO COM ÔNUS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, FATO DESCONHECIDO DO COMPRADOR, QUE FOI INDUZIDO A ERRO, RESTA DEMONSTRADO O PREJUÍZO DO MESMO.
2 - A DEVOLUÇÃO DA COISA OU A REPARAÇÃO DO DANO NÃO DESCARACTERIZA O DELITO, MAS APENAS MINORA A PENA, NÃO AFASTANDO A TIPICIDADE DA CONDUTA.
A Quarta Turma, no julgamento do REsp 881.270, apreciou uma questão em que uma pessoa que detinha a posse de um automóvel sem a ciência da financeira, pretendia ver reconhecido o usucapião sobre o bem. A Turma pacificou o entendimento de que a transferência à terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), é ato de clandestinidade incapaz de motivar a posse (artigo 1.208 do Código Civil de 2002), sendo por isso impossível a aquisição do bem por usucapião.
Em caso idêntico, a Terceira Turma já havia decidido que a posse de bem por contrato de alienação fiduciária em garantia não pode levar a usucapião pelo adquirente ou pelo cessionário deste, pois a posse pertence ao fiduciante que, no ato do financiamento, adquire a propriedade do bem até que o financiamento seja pago.
Conclusão.
Já diz o velho ditado: o que é combinado não é caro. Sendo a boa-fé a mãe reitora dos princípios da ética contratual rasga-se o contrato quando maculada essa. Sem contrato e sem direito e, pior, devedor do direito alheio. De mero figurante, o possuidor recebe o status de espectador da cena do crime. Assim, o que era ilícito civil ( inadimplemento contratual em contrato de alienação fiduciária em garantia) ganha contornos criminais, pois o caráter precário da posse nas mãos do possuidor retira dele a qualidade de proprietário. Logo, negociar bem alheio como próprio o Código Penal típica a conduta de estelionato, com as penas e rigores do Direito Criminal em sua faceta punitiva.
Bibliografia:
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v.7.
FIUZA, Ricardo. Coord. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v.3.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v.4.
PARIZATTO, João Roberto. Manual de Prática dos Contratos. SP, Leme: 2006.
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