É cediço que a perspectiva fragmentária do direito internacional pode se referir, em sentido mais abrangente, à independência dos sistemas jurídicos temáticos que de maneira autônoma surgiram e se consolidaram no contexto global, tais como o direito internacional do trabalho, direito internacional penal, direito internacional do ambiente dentre outros, enquanto, por outro lado, pode designar as repartições sistêmicas internas que se apresentam no plano específico de um desses regimes. Essa segunda hipótese se configuraria, por exemplo, quando ordens legais regionais e multilaterais regulamentam a mesma esfera em planos distintos, autônomos e complementares, tal qual se observaria, no âmbito do direito do comércio internacional, na relação existente entre a normativa do sistema GATT/OMC e os acordos regionais de cooperação e integração econômica. Esta ultima acepção é que interessa para o deslinde deste trabalho.
A fragmentação, como já mencionado, se dá em seu conteúdo material e procedimental, mas também no critério territorial ou regional, na medida em que alguns temas, como o caso do comércio, ou meio ambiente, além de ter regime jurídico geral próprio estabelecido pelo critério material, ainda contempla subregulações de caráter regional, como os regimes da União Europeia, Nafta e Mercosul.
A existência de uma multiplicidade de subsistemas ou regimes autônomos tornaria o Direito Internacional aparentemente contraditório e incoerente. Isso ocorreria na medida em que um determinado fato no âmbito internacional poderia ser submetido a dois regimes regulatórios diversos neste plano, com conteúdos normativos divergentes.
Tim Stephens[1] descreve a heterogênia coleção de procedimentos existentes hoje para resolver disputas ambientais como uma colcha de retalho jurisdicional (jurisdictional patchwork), em razão da ausência de qualquer organização sistemática. Como não há sistematização, surgem também sobreposições (overlaps), que dão ensejo a vários desafios acerca de conflitos de competência, tais como forum shopping, litigância múltipla em sistemas diversos e procedimentos sucessivos.
A multiplicidade de tribunais pode levar a procedimentos em duplicidade, rejulgamentos, bem como ao forum shopping, que é a prática pela qual uma parte tenta ter sua ação julgada numa corte ou jurisdição específica onde sente que receberá o julgamento ou veredicto mais favorável. Escolhe-se a corte que oferece o melhor procedimento e vantagens de direito substantivo. O forum shopping é uma desvantagem inevitável da expansão do leque de jurisdições aplicáveis às disputas ambientais.
Os procedimentos simultâneos são os casos de litispendência. Nesta hipótese, o caso é simultaneamente analisado em duas ou mais cortes ao mesmo tempo. E não há critério jurídico para estabelecer qual o foro competente.
Uma alternativa já utilizada são as cláusulas de escolha de foro ou cláusulas de exclusividade, as quais ordenam que se dê preferência a um sistema de solução específico de controvérsias e que, uma vez desencadeado o processo sob um determinado tratado, o outro sistema de resolução de conflitos não poderá ser acionado. Este tipo de cláusula está prevista no NAFTA e no Mercosul. Mas, na ausência destas, pode-se utilizar das regras referentes à coisa julgada e ao lis alibis pendens.
O princípio da res judicata (coisa julgada) é apontado como uma solução válida no caso de procedimentos sucessivos. Entre as mesmas partes, sobre o mesmo assunto e a mesma medida, um caso não pode ser julgado duas vezes. Seus requisitos no âmbito de aplicabilidade da OMC, segundo Luis Fernando Amaral Bednarski[2], já foram considerados por um painel e seriam que as duas partes devem ser as mesmas nas duas disputas, e que já deve ter-se chegado a uma decisão final no que diz respeito ao caso anterior, e os dois casos devem dizer respeito à mesma matéria. O requisito de mesma matéria se subdivide em mesmas medidas e mesma base legal para as alegações.
O princípio lis alibi pendens também é utilizado para evitar potenciais julgamentos contraditórios. Procedimentos já em análise por uma corte em razão de certos fatos não podem ser objeto de análise por outra. Lis alibi pendens permite que uma corte se recuse a exercer jurisdição quando já há uma demanda idêntica paralela em outro tribunal.
A preocupação com este tema é tão grande hoje em dia que a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas estabeleceu em 2000 um grupo de trabalho intitulado “os Riscos Resultantes da Fragmentação do Direito Internacional”.
No âmbito do direito ambiental internacional, insta registrar a inexistência de uma instância jurisditional internacional com jurisdição exclusiva em matéria ambiental, apesar das tentativas nesse sentido nos anos 1990, e de criação junto ao TIJ, em 1993, de uma seção de contencioso ambiental, com competência para emitir decisões condenatórias em prestações de facere e non facere, acompanhadas de sanções compulsórias em caso de incumprimento.
Ensina Tim Stephens[3] que tem havido um esforço para melhorar a capacidade das instituições existentes para responder às questões ambientais, como a adoção de procedimentos ambientais especializados pela Corte Permante de Arbitragem, ou a já mencionada Câmara Permanente para assuntos ambientais das Corte Internacional de Justiça. No entanto, em que pese esses importantes avanços, alguns dos foros mais influentes em solução de litígios que envolvam questões ambientais são de instituições sem especialização ambiental, como o sistema de solução de controvérsias da OMC.
De outro lado, a maioria dos MEAs ( acordos multilaterias ambientais) tem os seus próprios sistemas de solução de controvérsias, diferentemente dos outros tipos de acordo, o que sugere, ainda segundo Tim Stephens[4], que os Estados são bem favoráveis à julgamentos no contexto ambiental. Entretanto, esta existência de vários sisitemas de solução de controvérsias em material ambiental contribui sobremaneira para o surgimento de conflitos de jurisdição.
Por oportuno, vale aqui registrar a ponderação feita por Carla Amado Gomes[5] de que se a existência de várias jurisdições potencialmente competentes em um primeiro momento parece inviabilizar a resolução do conflito, acaba posteriormente contribuindo para o entendimento das partes às margens das instâncias jurisdicionais. É um fraco consolo, mas ajuda a aguardar pela criação de uma instância com jurisdição obrigatória, mesmo que supletiva, no contexto da proteção ambiental mundial.
Ainda no contexto da fragmentariedade, é interessante observar que, conforme ensina Fernando Henrique Castanheira[6], perdem força instituições vinculadas ao Direito Internacional geral e a seus princípios – notadamente a Corte Internacional de Justiça, tendo em vista que grande parte de seu poder e status foi transferido para regimes autônomos ou especiais e para órgãos judiciais e quase judiciais (como o Órgão de Solução de Controvérsias, da OMC, por exemplo) que se multiplicam vinculados a esses regimes.
No âmbito da OMC, insta registrar que são reconhecidos os Regional Trade Agreements - RTAs, que seriam os acordos de comércio regional, tais como o Mercosul e a União Europeia.
A necessidade de reconhecimento expresso e de uma definição dos tipos de RTAs no texto legal do GATT deriva de uma necessidade de cautela quando da formação, reconhecimento e consideração desses acordos dentro do âmbito institucional da OMC, pois os benefícios recíprocos que os pactuantes do RTA acordam, em teoria, ferem o princípio do tratamento da nação mais favorecida (most favoured nation treatment – MFN)[7], que é um princípio de direito internacional comercial público expressamente adotado no âmbito da OMC, assim como o é o princípio do tratamento nacional[8].
[1] STHEPHENS, Thimothy. International courts and environmental protection. Cambridge University press. 2009, p. 271.
[2] AMARAL BEDNARSKI, Luis Fernando e DUQUE DOS SANTOS, Amanda. Conflitos de Jurisdição e Solução de Controvérsias: A Problemática Co-Existência entre a OMC e os Tratados Regionais de Comércio. Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume5/arquivos_pdf/sumario/luis_amanda.pdf . fl. 252.
[3] STHEPHENS, Thimothy. International courts and environmental protection. Cambridge University press. 2009, p.10.
[4]STHEPHENS, Thimothy. International courts and environmental protection. Cambridge University press. 2009, p.23.
[5] AMADO GOMES, Carla. Elementos de Apoio a Disciplina de Direito Internacional do Ambiente. AAFDL. Lisboa, 2008. P. 397.
[6] CASTANHEIRA, Fernando Henrique. Fragmentação do DIreIto InternacIonal e law makIng no campo jurídico internacIonal contemporâneo. Disponível em http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/2/167 . P. 73.
[7] Por tal princípio, previsto no art. I do GATT, qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma parte em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produtor similar, originário do território de cada uma das outras Partes ou ao mesmo destinado. Em outras palavras, os produtos importados de um pais-membro do GATT têm direito a um tratamento pelo menos tão favorável como aquele que é concedido a produtos de outros países.
[8] Princípio previsto no art. III do GATT. A obrigação de tratamento nacional impede que um pais do GATT faça discriminaçãoo contra produtos estrangeiros em benefício de produtos nacionais depois depois de os produtos estrangeiros terem entrado no país.
Procuradora Federal. Graduada pela Universidade de Brasília - UNB. Mestranda pela Universidade de Lisboa;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES, Camila Dias. Fragmentariedade do direito internacional do ambiente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2014, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/38081/fragmentariedade-do-direito-internacional-do-ambiente. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
Precisa estar logado para fazer comentários.