1 -INTRODUÇÃO
É preocupante a frequente ampliação de benefícios previdenciários e assistenciais pelo Poder Judiciário, que lança, para tanto, mão de recursos como a analogia e invocações sociais. Contudo, a concessão de prestações alheias às previsões legais, levando em conta outras regras da hermenêutica, onera a sistemática atuarial, comprometendo, por conseguinte, a saúde financeira da Previdência, que não tem a fonte de recursos respectiva para essas coberturas, digamos, judiciais. A postura do Poder Judiciário, ainda que com pretensões de distribuição de justiça social, vem ofendendo basilares princípios constitucionais e comprometendo o fundamento do Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, o Benefício de Prestação Continuada vem sendo, ao menos do âmbito do Direito Previdenciário, um dos mais atingido pela atuação proativa do Poder Judiciário. Tal prestação de assistência social está prevista no inciso V, do art.203 da Constituição Federal dirigido à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso que comprovar não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.
Para fazer jus ao benefício hão de ser comprovadas pelo interessado, para a concessão de tal benefício assistencial, as seguintes condições (art. 6º do Decreto nº 1.744, de 08.12.95): a) é portador de deficiência física ou mental que a incapacite para a vida independente e para o trabalho, OU idade avançada E b) a renda familiar mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo.
O benefício assistencial, dessa sorte, constitui importante instrumento de distribuição de renda e justiça social em nosso país, servindo para garantir, ainda que rasteiramente, a dignidade da pessoa humana, consoante a vontade da Constituição Federal.
De outro lado, a concessão indiscriminada desse amparo, assim como outros benefícios, ou seja, fora dos limites legais e regulamentares, sem dúvida, compromete a sobrevivência e higidez de todo sistema previdenciário, ainda que essa assistência não tenha natureza securitária, uma vez que os seus beneficiários não são contribuintes do regime geral de previdência.
Assim, na rotina forense, não é raro nos defrontarmos com decisões do Poder Judiciário nas quais o magistrado amplia indevidamente a concessão do amparo, apelidado de “LOAS”, não se atendo rigorosamente aos requisitos legais de regência.
Ainda que se perceba nobreza na atuação judiciária, que, ao nosso ver, por via equivocada, busca cumprir um papel social de proteção aos indivíduos, querendo demonstrar e fincar a sua legitimidade democrática dentro do Estado de Direito, tal percepção de concretização de direitos fundamentais é um caminho perigoso, por permear fronteiras estranhas ao seu âmbito atuação constitucional.
A visão do Judiciário como apenas concessor de benefícios - numa clara opção por distribuir renda-, simplifica a sua função constitucional, e põe em risco a higidez dos sistemas de previdência e assistência sociais, causando insegurança jurídica à Administração no que tange às ações de política pública. Gera, induvidosamente, sérios prejuízos para as futuras gerações de segurados, inclusive com a possibilidade de ruptura econômica da Previdência Social, gerando sua "quebra", sua "falência".
Claro que no atual estágio de evolução processual, não se pode mais aceitar do magistrado posição pacífica e complacente fruto de uma visão puramente abstrata e formal do princípio da igualdade, já que foi inegavelmente esse distanciamento da realidade que acabou causando tanto prejuízo aos ideais democráticos de liberdade e igualdade; mas é preciso que haja limites e formas de controles dessa atuação jurisdicional, que deve respeito à lei, só podendo deixar de aplicá-la quando, fundamentadamente, reputá-la inconstitucional.
A proposta é examinar os fundamentos invocados pelo Poder Judiciário e demonstrar a sua ilegitimidade perante o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente da aplicação analógica do Estatuto do Idoso, como veremos adiante, que será precedida de uma abordagem sobre o papel do Judiciário no moderno Estado Constitucional brasileiro.
A CONTROVÉRSIA DO CRITÉRIO LEGAL - A OBJETIVIDADE DO CRITÉRIO - ENTENDIMENTO DO STF QUE PREVALECIA ATÉ RECENTEMENTE
Como se pôde perceber a renda é um dos requisitos cumulativos para concessão da assistência social. Ou seja, a renda do grupo familiar, este nos termos do artigo 16 da Lei 8.213/91, não pode ser superior a ¼ do salário mínimo “por cabeça” ( ou seja, cada membro do grupo familiar).
Segundo o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 1232/DF, o critério econômico estabelecido pela Lei nº 8.742/93 seria objetivo, não havendo pecha de inconstitucionalidade na previsão legal, uma vez que a Constituição Federal remeteu ao legislador a função de dispor acerca dos requisitos previstos genericamente no artigo 203, inciso V.
Alegava-se nessa ação (ADI 1232/DF ) que o critério estabelecido pela lei ofendida ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao limitar a abrangência da determinação constitucional. Confira-se a ementa do julgado:
CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO A PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
(ADIN- 1232-1/DF – Tribunal Pleno - Julg. 27.8.1998 - DJ 1º.6.2001 – Min. Ilmar Galvão e para o acórdão Min. Nelson Jobim).
O Relator para o Acórdão, Ministro Nelson Jobim, na oportunidade, ponderou o seguinte:
(...) compete à lei dispor a forma da comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma. Portanto não há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição.
Posteriormente, apreciando o Recurso Extraordinário n.º 275.140-5/SP, o Pretório Excelso voltou a reafirmar os efeitos erga omnes da decisão proferida no julgamento ADIN 1232-1/DF. Vejamos:
PREVIDÊNCIA. CONSTITUCIONALIDADE DO § 3º DO ART. 20 DA LEI 8.742/93. - O Plenário desta Corte, ao julgar improcedente a ADIn 1232 proposta contra o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, concluiu, com eficácia “erga omnes”, pela constitucionalidade desse dispositivo legal.
- Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário conhecido e provido.
ACÓRDÃO – Visto, relatado e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigrafias a seguir, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso extraordinário e lhe dar provimento, nos termos do voto do Relatos.
(RE N.º 275.140-5. Relator: Ministro Moreira Alves. Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Recorrida: Maria Casemiro Braz. DJ: 19/09/2000).
Em resumo, o critério legal seria válido, devendo ser observado para concessão da assistência prevista constitucional, sendo utilizado em todos os seus termos pelas instâncias administrativas do INSS.
Criou-se, ao nosso entender, uma presunção juris tantum de miserabilidade, na medida em que só quem faz jus à assistência é o "miserável" nos termos legais, podendo haver, de outro lado, de quem refugir a esse perfil legal, comprovação da miserabilidade por outros meios.
Há, de outro lado, quem entenda que o legislador quis na verdade foi estabelecer uma presunção absoluta de miserabilidade em favor dos que comprovem essa condição legal; não havendo esse enquadramento, subsistiria a necessidade de comprovação por qualquer meio de prova em direito admitido. Essa tese parece ter maior aceitação, notadamente no Superior Tribunal de Justiça.
A RELATIVIZAÇÃO DA PROVA DA MISERABILIDADE
Apesar da existência de critério legal, o que gera, inelutavelmente, a negativa, principalmente no âmbito administrativo, da assistência àqueles que superem o critério de 1/4 de salário mínimo por membro do grupo, muitas vozes se levantam quanto à possibilidade de se comprovar a miserabilidade por outros meios, em razão de o texto constitucional afirmar que "A assistência social será prestada a quem dela necessitar". Não haveria, dessa maneira, a priori, limitação de renda naquele dispositivo matriz.
Maíra de Carvalho Pereira Mesquita defende o seguinte:
Fixado este ponto, não se deve esquecer de que o critério objetivo da renda foi estabelecido para facilitar a aferição da miserabilidade, não podendo servir de empecilho à análise desta condição por outros meios. Com efeito, a depender das peculiaridades de cada caso, pode restar constatado que, apesar de a renda familiar per capita ser igual ou superior a ¼ do salário mínimo, a família do requerente não possui condições de prover o seu sustento, estando evidenciada a condição de hipossuficiência econômica do clã.
Assim, se a renda familiar per capita for igual ou maior que ¼ do salário mínimo, abre-se a oportunidade para que a miserabilidade seja comprovada por outros meios, tais como despesas com medicamentos, tratamentos ambulatoriais, aluguel para moradia, entre outros. Isto não significa infringir o critério estabelecido no artigo 20 § 3º da Lei nº 8.742/93, mas apenas flexibilizar as formas de se constatar a miserabilidade.
De fato, não se pode desconsiderar a existência e a constitucionalidade do critério da renda per capita inferior a ¼ salário mínimo, sob pena de ofensa à autoridade da decisão proferida nos autos da ADI 1232/DF pelo Supremo Tribunal Federal; por outro lado, este critério pode ser flexibilizado, admitindo-se a comprovação da miserabilidade por outras formas, sem afastar a aplicabilidade do disposto no artigo 20 § 3º da LOAS.(MESQUITA,2010,p.2).
Seguindo essa perspectiva, a jurisprudência vinha se inclinando para entender que o parâmetro legal de ¼ do salário mínimo de renda per capita não constitui o único critério para aferição da condição de miserabilidade, devendo-se levar em conta a situação concreta de cada caso.
O STJ tem a seguinte posição, resumida na ementa abaixo:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. LOAS. ASSISTÊNCIA SOCIAL. PREVISÃO CONSTITUCIONAL. AFERIÇÃO DA CONDIÇÃO ECONÔMICA POR OUTROS MEIOS LEGÍTIMOS. VIABILIDADE. PRECEDENTES. PROVA. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N.º 7/STJ. INCIDÊNCIA. REPERCUSSÃO GERAL. RECONHECIMENTO. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SOBRESTAMENTO. NÃO APLICAÇÃO.
1. Este Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que o critério de aferição da renda mensal previsto no § 3.º do art. 20 da Lei n.º 8.742/93 deverá ser observado como um mínimo, não excluindo a possibilidade de o julgador, ao analisar o caso concreto, lançar mão de outros elementos probatórios que afirmem a condição de miserabilidade da parte e de sua família.
2. "A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo."
3. Assentando a Corte Regional estarem demonstrados os requisitos à concessão do benefício assistencial, verificar se a renda mensal da família supera ou não um quarto de um salário-mínimo encontra óbice no Enunciado n.º 7 da Súmula da Jurisprudência deste Tribunal.
4. O reconhecimento de repercussão geral pelo colendo Supremo Tribunal Federal, com fulcro no art. 543-B do CPC, não tem o condão de sobrestar o julgamento dos recursos especiais em tramitação nesta Corte.
5. Agravo regimental a que se nega provimento. (REsp 1.112.557/MG, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 20/11/2009).
O fundamento, basicamente, é de que não era vontade do legislador constituinte dar limitação à concessão do benefício, além da prova de necessidade, não podendo, posteriormente, uma lei inferior querer dar taxatividade a uma limitação que não está expressa na Constituição, implantando uma leitura restritiva de um benefício social. Logo, o requisito legal seria válido, mas não o único. Aqui já se acenava para postura ativista e escudada sob o argumento de proteção dos direitos fundamentais. Estava aberta, enfim, a porteira para a
O próprio Supremo Tribunal Federal, através do voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da Reclamação n. 4.374 MC/ PE, ponderou que
Os inúmeros casos concretos que são objeto do conhecimento dos juízes e tribunais por todo o país, e chegam a este Tribunal pela via da reclamação ou do recurso extraordinário, têm demonstrado que os critérios objetivos estabelecidos pela Lei n. 8.742/93 são insuficientes para atestar que o idoso ou o deficiente não possuem meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Constatada tal insuficiência, os juízes e tribunais nada mais têm feito do que comprovar a condição de miserabilidade do indivíduo que pleiteia o benefício por outros meios de prova. Não se declara a inconstitucionalidade do art. 20, §3º, da Lei n. 8.742/93, mas apenas se reconhece a possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros fatores indicativos do estado de penúria do cidadão.
Resumindo, podemos extrair do entendimento até então agasalhado pelo STF era de que o critério legal seria até então apto a avaliar a miserabilidade, não padecendo de inconstitucionalidade alguma, nem carecendo de interpretação conforme a Constituição; contudo, esse critério não excluiu a análise da miserabilidade por outros meios legais, confrontando, o julgador, no caso concreto as circunstâncias sociais e econômicas nas quais está inserido o candidato à assistência.
Apesar de concordarmos que é razoável tal entendimento, muitos obstáculos precisariam ser enfrentados para aplicá-lo na prática, sem que haja necessidade de se socorrer ao Judiciário.
É que os agentes administrativos do INSS não poderiam proceder à verificação da renda segundo outros critérios sem qualquer previsão legal. Não se precisa lembrar que a atuação administrativa é toda pautada segundo o princípio da legalidade, sendo-lhes vedado agir em desconformidade com a lei, que, como já se viu, estabeleceu um critério objetivo para o exame do requisito econômico. Não haveria, sem permissão legal, como agir diferentemente.
De conseguinte, toda e qualquer pretensão nesse sentido dependeria de provocação do Judiciário, tornando-o sucedâneo da administração previdenciária. Haveria, inegavelmente, uma usurpação das funções delineadas pela Constituição Federal a cada Poder da República, sem falar não crescente demanda de ações.
O meio de prova, ou melhor, a desconstituição da presunção criada pelo critério legal, nessa toda, teria que ser feita unicamente na instância judicial, o que de certa forma implica em usurpação da atividade administrativa.
Em verdade, haveria de constar na própria lei, instrumento normativo eleito pela Constituição Federal como o adequado para disciplinar a matéria, a menção a essa possibilidade, bem como os meios possíveis, ou, ao menos, indicações de outro critérios elegíveis para a verificação da miserabilidade. Mas, como se viu não houve isso, o que já nos permitiria insistir na tese de que a lei preferiu, com permissão constitucional, eleger um critério único de verificação da renda. Afinal, o que a lei não permite, está vedado.
A SOLUÇÃO DADA RECENTEMENTE PELO STF - JULGAMENTO DO RE 567.985/MT e Reclamação nº 4.374/PE
Após essa exposição, abordaremos o desfecho do caso pela recente decisão do STF, que enfrentou a questão da constitucionalidade do artigo que regulou a questão econômica para concessão do amparo social, que foi tão referido ao longo desse capítulo.
A magistratura federal vinha utilizando-se dos argumentos examinados anteriormente para "reparar" uma suposta injustiça social, que, segundo os julgados, restringia a vontade do legislador constitucional.
Assim, a eleição pela lei do critério de renda per capita até 1/4 de salário mínimo para cada integrante do grupo familiar, feita pela lei, estaria em desarmonia com o texto magno. Curioso é que, conforme tentamos apontar ao longo desse capítulo, NENHUM, pelo menos nas dezenas de sentenças que analisamos, juiz em primeiro ou segundo grau enfrentou a questão sob o prisma da constitucionalidade desse critério, quando muito sob o argumento da ofensa da isonomia, que , como demonstramos, não se sustentaria perante a já consolidada jurisprudência do STF, cristalizada na súmula 339.
Preferiram em suas decisões lançar mão de interpretações e argumentos que são superficiais, que geram descrédito ao próprio judiciário. É bem verdade, que no caso do critério legal da renda, por honestidade intelectual, temos que dizer que por força da ADI 1232/DF, que reputava constitucional o critério legal, impediria, pela força vinculante da decisão, de o juiz entender diferente. Mas, de outro lado, tal decisão não autorizava a absurda e canhestra aplicação da analogia, pela clara presença de norma regulamentadora. Aos nossos olhos, o recurso, ainda que equivocado à analogia, que vem fazendo escola dentro do Judiciário para diversos outros casos, foi uma forma de contornar na legislação e fazer valer a vontade do juiz. Outros casos seriam bem oportunos ao trabalho, mas ante a o propósito mais abreviado, nos limitamos apenas ao do caso do BPC.
Ademais, ainda que com força vinculante da ADI 1232, restaria a possibilidade de os órgãos ordinários do Judiciário, autorizado pelo próprio STF e STJ, consoante registramos no item do abrandamento legal do critério, aferir por outros meios a miserabilidade e diante do caso concreto entender que, ainda que se suplantasse a renda, faria jus ao benefício; mas se manteria, de regra, válida a opção legal da renda e não se precisaria fazer uso da analogia. Essa seria em nossa opinião, a decisão mais adequada; contudo, seria mais trabalhoso aos juízes, porque teriam que demonstrar em suas decisões, caso a caso, a razão da mitigação da regra ordinária, e tendo que investigar por outros meios o padrão da miserabilidade. O que nos leva a crer que, por essa razão, optaram por fazer alusão à analogia e generalizar a possibilidade de detentores de aposentadoria se enquadrar também na exceção do Estatuto do Idoso.
Pois muito bem. A questão foi resolvida pelo STF, ignorando muitos dos argumentos apresentados pela Advocacia da União. Reconheceu a Corte Suprema o esvaziamento do quanto decidido nos autos da ADI 1232/DF, que afirmara a constitucionalidade do critério legal da aferição da miserabilidade, em razão da defasagem do critério eleito para fins de caracterização da miserabilidade do núcleo familiar. Assentou-se que, diante das significativas mudanças socioeconômicas, revelar-se-ia anti-isonômico, sobretudo em razão de diversas outras políticas governamentais de assistência social, a aferição da miserabilidade do núcleo familiar unicamente pelo critério matemático de ¼ do salário mínimo de renda per capita, destituída de qualquer outra informação.
Insistimos, mais uma vez, nada impediria que o STF mantivesse o critério do artigo 20, dando interpretação conforme para permitir outros meios de prova da miserabilidade, assim como já vinha entendendo o STJ.
Em seu voto, o relator da reclamação, ministro Gilmar Mendes, defendeu a possibilidade de o Tribunal “exercer um novo juízo” sobre aquela ADI, considerando que nos dias atuais o STF não tomaria a mesma decisão.
O ministro observou que ao longo dos últimos anos houve uma “proliferação de leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais”.
Nesse sentido, ele citou diversas normas, como a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; e a Lei 10.219/2001, que criou o Bolsa Escola.
Conforme destacou o relator, essas leis abriram portas para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo artigo 20 da Loas, e juízes e tribunais passaram a estabelecer o valor de meio salário mínimo como referência para aferição da renda familiar per capita. Pontuou que
É fácil perceber que a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição, foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas com repercussão no âmbito econômico e financeiro. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria na distribuição de renda.
Quis o ministro convencer a todos de que esse contexto proporcionou que fossem modificados também os critérios para a concessão de benefícios previdenciários e assistenciais se tornando “mais generosos” e apontando para meio salário mínimo o valor padrão de renda familiar per capita.
Para ele “Portanto, os programas de assistência social no Brasil utilizam atualmente o valor de meio salário mínimo como referencial econômico para a concessão dos respectivos benefícios”, sustentou o ministro.
Ele ressaltou que este é um indicador bastante razoável de que o critério de um quarto do salário mínimo utilizado pela Loas está completamente defasado e inadequado para aferir a miserabilidade das famílias, que, de acordo com o artigo 203, parágrafo 5º, da Constituição, possuem o direito ao benefício assistencial.
Conforme asseverou o ministro, ao longo dos vários anos desde a sua promulgação, a norma passou por um “processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas, políticas, econômicas, sociais e jurídicas”. Com esses argumentos, o ministro votou pela improcedência da reclamação, consequentemente declarando a inconstitucionalidade incidental do artigo 20, parágrafo 3º, da Loas, sem determinar, no entanto, a nulidade da norma.
Claro que o STF exerceu o seu papel de garantidor e intérprete da Constituição Federal, e assim o fez dentro dos instrumentos colocados à disposição dessa missão - nesse aspecto, aplaudimos o STF. Contudo, por diversas razões, não concordamos com o desfecho do caso.
Ora, pegando como gancho o fundamento de que a conjuntura nacional se alterou nos últimos anos, indagamos o seguinte: se o valor do salário mínimo teve um crescimento vertiginoso frente a qualquer outro referencial econômico como se falar em da defasagem de seu 1/4?
De outro lado, em defesa do argumento da existência de outros programas sociais com critérios mais benevolentes, pedimos vênia para trazer à colação trecho, ainda que um pouco longo, dos memoriais entregues aos Ministros quando do julgamento. Basicamente, os argumentos são os que se seguem.
DAS DISTINÇÕES ENTRE O BPC E O PBF
Segundo se nota da legislação supracitada, o PBF, da mesma forma que o BPC, são programas que têm por finalidade a transferência de renda. Contudo, o Bolsa Família não é destinado à manutenção da pessoa para fazer frente às suas necessidades básicas. Consiste numa espécie de auxílio para complementação mensal da renda do grupo familiar carente, de forma a permitir a melhoria da sua condição de vida.
A análise das normas relativas ao BPC e ao PBF revela que o Estado pretende alcançar algumas pessoas ou famílias hipossuficientes economicamente, exigindo-se a comprovação da renda inferior a ¼ do salário mínimo familiar per capita para o BPC, e de outras rendas familiares para o PBF (atualmente, até R$ 140,00 – cento e quarenta reais - per capita).
E por que essa distinção?
A resposta se encontra justamente nos destinatários, objetivos e valor de cada benefício.
O idoso e o deficiente, destinatários do BPC, necessitam de uma renda que lhes garanta sua subsistência, uma vez que a idade e a incapacidade podem impedir o acesso ao mercado do trabalho. Essa renda é concedida sem exigência de qualquer contraprestação por parte do idoso ou deficiente para a permanência no programa. O valor do benefício é de um salário mínimo, ou seja, elevado em comparação com os demais benefícios assistenciais e equivalente ao valor percebido por milhões de brasileiros pelo seu labor mensal. Então, o critério para aferir a hipossuficiência econômica pode, em determinado momento, ser mais rígido, de forma a permitir o amparo daqueles que realmente necessitam da Assistência Social de forma tão ampla.
Por outro lado, verifica-se das normas relativas ao PBF que o destinatário dos benefícios é a família. Nesta, encontram-se pessoas com capacidade de inserção no mercado de trabalho. Constata-se a existência de renda, embora baixa, razão pela qual é concedido um auxílio ou bolsa de forma a complementá-la, mas dependente do cumprimento de obrigações por parte da família beneficiada, cujo valor varia de R$ 32,00 (trinta e dois reais) a R$ 230,00 (duzentos e trinta reais). Em se tratando de auxílio ou bolsa, o critério para aferir a hipossuficiência econômica pode ser, de fato, dadas as circunstâncias de cada momento de desenvolvimento social e distribuição de riqueza do país, mais amplo, permitindo o amparo de várias famílias.
Portanto, a partir dos destinatários, objetivos e valor de cada benefício, verifica-se que não é razoável a conclusão de que a legislação referente a benefícios extintos e atualmente incorporados ao PBF teria alterado, no passado, o art. 20, § 3º da Lei nº 8.742/93, adotando critérios mais elásticos para a concessão do BPC, como por exemplo, a adoção do limite de ½ salário mínimo. Essa interpretação é flagrantemente casuísta.
Tanto é assim que, atualmente, o Bolsa Família, originado, dentre outros, dos programas previstos nas Leis nºs 9.533/97 e 10.689/03, possui como regra de corte mais elástica o valor máximo de renda familiar per capita de R$ 140,00 (cento e quarenta reais). E como o valor atual do salário mínimo é de R$ 622,00 (seiscentos e vinte e dois reais), seu quarto, de R$ 155,50 (cento e cinquenta e cinco reais e cinquenta centavos), supera o teto de renda do PBF. O limite para concessão do BPC (1/4 do salário mínimo - R$ 155,50), assim, mostra-se atualmente maior que o do Bolsa Família (R$ 140,00).
Em realidade, considerados os efeitos e o conteúdo da decisão proferida pelo STF na ADI nº 1.232, somente uma teórica e eventual inconstitucionalização superveniente do disposto no art. 20, § 3º da Lei nº 8.742/93, quando muito e apenas para se esgotar o argumento, permitiria uma alteração de jurisprudência da Corte. No entanto, a regra legal de acesso ao BPC se vale de um fator que, de per si, afasta qualquer conclusão nesse sentido.
Como o limite de acesso ao BPC equivale a ¼ do salário mínimo, e considerando a política reiterada de aumentos reais concedidos ao salário mínimo, tem-se que, desde 1995, ano seguinte à implantação do Plano Real, a variação real do salário mínimo, descontada a incidência do INPC, foi de 139,5%. Ou seja, apenas na vigência do Real, mesmo não tendo sido alterado, em termos absolutos, o critério da renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, os reajustes reais deste, de 139,5%, garantiram que também a regra de acesso ao BPC, em termos relativos, tenha sido reajustada no mesmo percentual de 139,5%, ampliando significativamente o público alvo do BPC pela correção real do valor do salário mínimo.
Em outras palavras, a regra de corte do BPC foi reajustada, em termos reais, em mais de 100% desde a sua instituição em 1993, o que afasta qualquer hipotético processo de inconstitucionalização da norma. Tanto que, hoje, seu critério é mais elástico que o utilizado pelo Bolsa Família. Isso, sem a necessidade de qualquer alteração legislativa, nova regulamento administrativo ou decisão judicial.
Outrossim, também não merece amparo o entendimento de que o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) teria promovido qualquer alteração nesse quadro normativo/constitucional.
Para nós, os argumentos seriam suficientes para uma decisão diferente da apresentada pelo STF. Contudo, não nos cabe ir de encontro ao decido, mas apenas manifestar a preocupação com as decisões judiciais que ampliam direitos sem, entretanto, se atentar minimamente à possibilidade do Estado absorver o impacto das mesmas. As consequências são inúmeras. No caso em questão, além do aspecto de custeio, vale citar o caos na administração previdenciária, que sequer tem mais regramento para aferir a condição de miserabilidade. Lembremo-nos de que os servidores do instituto são, como agentes administrativos, submetidos à legalidade para conduzir a sua atuação; e como agirão após o julgamento, já que o critério posto tornou-se inconstitucional? Negarão todos os pedidos para que o candidato ao benefício siga com a sua sorte perante o Judiciário? Enfim, criou-se um vácuo legislativo sem data para solução.
Quando em juízo, caberá "
ao magistrado, diante do caso concreto, realizar a análise da situação, aferindo a situação da família dentro do contexto sócio-econômico em que se encontra inserida. Para tanto, fatores como moradia, saúde, educação, lazer e segurança devem ser analisados em conjunto com o critério econômico para balizar a aferição do preenchimento desse requisito para fins de concessão do benefício assistencial.[1]
Vale ainda registrar que também a decisão extirpou o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso, sob o seguinte argumento:
“Estatuto do Idoso dispõe, no art. 34, parágrafo único, que o benefício assistencial já concedido a qualquer membro da família não será computado para fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas. Não exclusão dos benefícios assistenciais recebidos por deficientes e de previdenciários, no valor de até um salário mínimo, percebido por idosos. Inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo.” (RE 580.963, rel. min.Gilmar Mendes, julgamento em 18-4-2013, Plenário, DJE de 14-11-2013.)
Igualmente discordamos pelas razões já lançadas. E enfim, uma análise mais aprofundada da decisão será objeto de um futuro trabalho. Aqui cumpriu-nos a lançar o pano de fundo da discussão sob o papel do Judiciário brasileiro, que anda eufórico no seu papel de concessor de benefícios, a pretexto de efetivação de direitos fundamentais.
E não se pode olvidar que se o Poder Legislativo é circundado por limites na função legiferante, sua típica atribuição constitucional, quiçá o Judiciário, que sequer, originariamente, é autorizado a ter poder normativo.
3 - CONCLUSÃO
Ainda que se perceba nobreza na atuação judiciária, que, ao nosso ver, por via equivocada, busca cumprir um papel social de proteção aos indivíduos, querendo demonstrar e fincar a sua legitimidade democrática dentro do Estado de Direito, tal percepção de concretização de direitos fundamentais é um caminho perigoso, por permear fronteiras estranhas ao seu âmbito atuação constitucional.
Aliás, ao ignorar instrumentos legislativos, o julgador acaba por desprestigiar a vontade popular neles materializada, tornado-se ainda mais afastado do seu papel democrático, permitindo que ele, dessa sorte, se substitua ao legislador.
Ainda mais gravoso para nós é o fato de inexistir, ao menos no caso estudado, omissão do Poder Público que justifique a atuação positiva e materialista do Judiciário, ou seja, que renda ensejo a invasão de competência institucional. No caso, como nos manifestamos anteriormente, trata-se de clara opção legislativa em destinar a exclusão apenas aos benefícios assistenciais, por entender que esses têm por destinatários pessoas miseráveis e desassistidas.
A visão do Judiciário como apenas concessor de benefícios - numa clara opção por distribuir renda-, simplifica a sua função constitucional,e põe em risco a higidez dos sistema de previdência e assistência sociais, causando insegurança jurídica à Administração no que tange às ações de política pública. Gera, induvidosamente, sérios prejuízos para as futuras gerações de segurados, inclusive com a possibilidade de ruptura econômica da Previdência Social, gerando sua "quebra", sua "falência".
[1] Trecho extraído da sentença proferida recentemente, nos autos do processo 0505189-13.2013.4.05.8101S, de lavratura do juiz João Batista Martins, perante a 29 Vara Federal no Ceará, juízo onde atua o autor do trabalho.
Procurador Federal. Ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Especialista em Direito Processual Civil, DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS PELO IDP, ESPECIALISTA EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO PELA PUC/MINAS e em Direito Público pela UNB. Membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Trabalhista e Previdenciário. Mestrando em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Jose Aldizio Pereira. Critério econômico do amparo social: o entendimento judicial e a solução dada recentemente pelo STF - julgamento do RE 567.985/MT e Reclamação nº 4.374/PE Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2014, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/38420/criterio-economico-do-amparo-social-o-entendimento-judicial-e-a-solucao-dada-recentemente-pelo-stf-julgamento-do-re-567-985-mt-e-reclamacao-no-4-374-pe. Acesso em: 22 nov 2024.
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