Em alguns trabalhos temos demonstrado a preocupação como os excessos do Poder Judiciário, notadamente na seara previdenciária, onde se verifica que decisões judiciais, amiúde, ignoram solenemente norma expressa, para atender ao que o julgador parece entender como efetivação de direitos fundamentais. Nesse contexto, nos parece pertinente recorrer à chamada reserva de consistência, como modo de balizar os excessos e desmandos das decisões judiciais.
Inicialmente, cumpre nos remeter a origem da expressão “reserva de consistência”. Ela foi utilizada Peter Häberle, que a ela se referiu e explicou do seguinte modo:
Colocado no tempo, o processo de interpretação é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está submetido à reserva da consistência (Vorbehalt der Bewährung), devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais.
Häberle defende, nesta sua obra, que a interpretação da constituição não pode ser mais atributo de uma sociedade fechada, restrita aos juristas, mas que a interpretação seja realizada pela sociedade aberta e pluralista, composta pelos seguimentos públicos, mas também particulares, cidadãos, etc.[1]
Como apontou Lênio Streck, na medida em que aumentam as demandas por direitos fundamentais e na medida em que o constitucionalismo, a partir de preceitos e princípios, invade cada vez mais o espaço reservado à regulamentação legislativa(liberdade de conformação do legislador), cresce a necessidade de se colocar limites "ao ‘poder hermenêutico" dos juízes.[2]
Nesse sentido, Daniel Sarmento, alertando para o risco de se caminhar para uma empolgação constitucional dos magistrados, assinalou com precisão:
muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser.[3]
Perfeitas as palavras de Sarmento, que traduzem exatamente o sentimento externado neste breve trabalho. Aprenderam os juízes, principalmente os menos desavisados de suas limitações funcionais, a invocar tantos princípios, notadamente os de conceitos extremamente abertos, quanto necessários para fundamentar sua íntima e pessoal opinião.
Em razão disso, e com o intuito de aumentar o coeficiente de legitimidade do processo judicial, deverá o juiz se guiar por parâmetros objetivos, evitando que a decisão judicial se torne uma mera opção pessoal, sem qualquer base normativa aceitável - é essa ocorrência que tentamos demonstrar no estudo de caso.
Ao aplicar normas de direitos fundamentais, o juiz deve objetivar, através de uma argumentação muito mais consistente do que a normalmente utilizada, os valores subjetivos que o levaram a decidir. Os argumentos mais fortes da decisão deverão buscar parâmetros constitucionalmente aceitos e não aspectos meramente pessoais. A decisão judicial não pode ser como um caderno de colorir que o juiz preenche com as suas cores favoritas.
Como explicam Laurence Tribe e Michael Dorf,
os juízes precisam encontrar métodos que embasem suas decisões em algo mais do que somente suas visões pessoais; afinal, a Constituição não é simplesmente um espelho por meio do qual é possível enxergar aquilo que se tem vontade, ou então uma bola de cristal com a qual podemos ver qualquer coisa que queremos.[4]
Portanto, quando o juiz necessita decidir um caso utilizando a técnica da ponderação, há um dever especial de aumentar a carga argumentativa de sua decisão - na tentativa de demonstrar a legitimidade de sua atuação. Esse reforço da carga argumentativa decorre do dever constitucional de motivação dos atos judiciais e é um fator extremamente importante a ser observado pelo Judiciário quando está sopesando valores constitucionais. Se não houver uma transparência e objetividade na argumentação, a técnica da ponderação pode se transformar num verdadeiro “ovo Kinder Joy”[5], que, ao invés de melhorar a qualidade da decisão, trará mais desvantagens e descrédito ao processo judicial.
Por isso, todo juiz tem o dever de ser consistente, de convencer, de expor as razões de decidir e de dar transparência ao processo decisório, através de uma hermenêutica democrática e aberta, tal como sugerida por Peter Häberle[6]. É o que se pode chamar de dever ou reserva de consistência. Aliás, a expressão é do próprio Häberle. Em razão do dever de consistência, o Judiciário, ao decidir casos difíceis envolvendo uma colisão de valores constitucionais, precisa reunir argumentos fortes que demonstrem que sua solução é a correta, sob a ótica da própria Constituição.
Quando o objeto da jurisdição constitucional for a análise de uma escolha tomada por outros poderes, recomenda-se a auto-contenção caso não seja atingida carga de argumentação suficiente para demonstrar o desacerto da escolha dos outros poderes - tal advertência é fundamental para uma ponderada atuação judicial, e vem sendo solenemente ignorada. Nessas situações, deve-se reconhecer que, por não ter sido demonstrada a presença do vício de inconstitucionalidade do ato controlado (por ação ou por omissão), a demanda deverá ser julgada a favor do Poder Público, prestigiando, com isso, as soluções adotadas pelos demais poderes constituídos e, consequentemente, respeitando o princípio da separação e harmonia entre os poderes.
A reserva de consistência, destarte, representaria um limite ao Poder Judiciário, notadamente nos casos em que há omissão/inércia/insuficiência do Legislador, em que o juiz é “chamado” a suprir o "vazio". Na nossa ótica, no caso que nos propomos analisar em seguida, e em muitos outros, sequer há qualquer das três qualificadoras que rendesse ensejo à atuação judicial.
Por tal reserva, enfim, o Julgador deve apresentar os diversos argumentos racionais e , igualmente, justificativas que legitimam o seu entendimento (seja para suprir um vazio, seja para invalidar uma norma do legislador). Nesse caso, quanto mais amplo for o debate e plural os argumentos, tanto maior legitimidade haverá, o que seria muito caro ao Judiciário, já que é tão sequioso nesse propósito. A segunda possibilidade foi a utilizada pelo STF na recente decisão sobre a questão.
Apenas à guisa de complementação, há uma tendência de considerar a reserva de consistência como o dever de fundamentação das decisões por parte do juiz, o que não está necessariamente errado, mas não esgota seu sentido, uma vez que não deve ser considerada essa reserva apenas num sentido formal de fundamentação, mas, mormente, num sentido material/substantivo.
O julgador, por fim e em resumo, deve demonstrar os argumentos convincentes (consistentes) de seu entendimento. Consequentemente, haverá uma autocontenção judicial, pois somente atuará ou atuará nos limites dos argumentos e justificativas racionais. Eis, em síntese, a limitação que bem serviria à nossa realidade.
[1] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997.
[2] 120 Apresentação ao livro: DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. xv.
[3] SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200.
[4] DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.17.
[5] É um chocolate em forma de ovo, com parte externa sabor a chocolate ao leite e interna chocolate branco. Contém um brinde surpresa no seu interior, que, por muitas vezes, é a parte preferida pelos compradores,principalmente as crianças que querem só o brinquedo.
[6] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997.
Procurador Federal. Ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Especialista em Direito Processual Civil, DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS PELO IDP, ESPECIALISTA EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO PELA PUC/MINAS e em Direito Público pela UNB. Membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Trabalhista e Previdenciário. Mestrando em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Jose Aldizio Pereira. A reserva de consistência e o dever de fundamentação como limite à atuação do Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/40582/a-reserva-de-consistencia-e-o-dever-de-fundamentacao-como-limite-a-atuacao-do-poder-judiciario. Acesso em: 27 dez 2024.
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