É comum a imprensa exibir matérias sobre a situação de calamidade dos estabelecimentos prisionais no Brasil. Não há quem não tenha visto cenas de presos com os braços para fora das celas fazendo sinais que denunciam a superlotação, ou talvez ouvido depoimentos de agentes públicos clamando por providências que possam amenizar o sofrimento dos detentos, assim como de todos que com eles convivem.
De acordo com a ordem constitucional vigente, uma pessoa só pode ser considerada culpada a partir do trânsito em julgado de uma sentença condenatória irrecorrível. Logo, antes do trânsito em julgado, todos devem ser considerados e tratados como inocentes, e essa condição impõe a plena liberdade como regra geral. Todavia, considerando que o referido preceito contido na Carta Magna não foi contemplado para que o imputado pudesse delinquir tranquilamente, fugir sem encontrar nenhum obstáculo ou simplesmente criar embaraços à colheita da prova, o recolhimento ao cárcere poderá se mostrar necessário como medida cautelar, uma vez demonstrada a conjugação do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, sem qualquer análise de culpabilidade, que somente poderá ser feita no momento da decisão de mérito proferida ao final do processo, em respeito aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
O que importa é que tanto a custódia de natureza provisória quanto a de caráter punitivo, deveriam seguir rigorosamente os limites da lei, o que está longe de ocorrer nas prisões brasileiras. Sob o argumento de que não há verbas para a construção de novas unidades destinadas ao confinamento, nem mesmo para equipar as que já existem, os presos são empilhados em celas insalubres, acumulando inúmeras doenças, as quais somente os ratos, baratas e lacraias que ali habitam conseguem transitar imunes. Diante desse quadro, somos forçados a refletir sobre a utilidade do cárcere e a crueldade com que tem se revelado. Não é por acaso que alguns, se pudessem optar, prefeririam expirar seus pecados com a morte, espécie de pena que, segundo a legislação brasileira, só é admitida mediante fuzilamento em tempos de guerra.
Não obstante as constantes violações aos direitos humanos, há quem defenda tratamento ainda mais rigoroso, mesmo para aqueles que não tenham sofrido condenação definitiva. Alegam que o açoite forçaria o indivíduo a pensar duas vezes antes de delinquir, isso quando escapasse da pena capital, aplicada aos considerados irrecuperáveis. Aliás, esse discurso se transformou em senso comum, e quem se opuser a ele também correrá o risco de ser sumariamente julgado e executado, não por sentença, mas por intermédio de socos e pontapés desferidos pelo cidadão comum. O povo brasileiro é assim, insiste em implementar tudo aquilo que os países estrangeiros já experimentaram e fracassaram.
Não sabemos de que forma o indivíduo gerado e criado como um bicho terá receio de ser enjaulado como tal em decorrência da prática de um delito. Para ele, que nasceu em um hospital onde havia esgoto aberto na sala de cirurgia; que em sua comunidade viu pessoas mortas com os testículos entalados na garganta; que em casa teve de conviver com um pai alcoólatra e violento; as condições estruturais de uma penitenciária e a animosidade dos que ali habitam têm um toque bastante familiar. Para o reincidente na pena de vida, nada pode ser tão ruim assim. Não haverá como perder aquilo que nunca teve, salvo a chance de ir, vir e delinquir. Desejou a morte inúmeras vezes, e a cada segundo esperou ser surpreendido pela “senhora da foice”. Crê, mais do que suas vítimas, que deva morrer também como um bicho, como um vira-lata atropelado, ou pela “morte severina” citada por J. C. de Mello Neto: “de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia.”. O problema maior está em que a cada cem Severinos, um vira Virgulino, e apesar da mudança da forma de enfrentar a sua sina, a sorte é a mesma, não varia.
É sabido que, além da “morte morrida” e da “morte matada”, há outras motivações para a interrupção da vida! Morre-se também pela liberdade, ao estilo de Ícaro; ou de tristeza, como em Romeu e Julieta; ou por amor, à semelhança de Liù, em Turandot, de G. Puccini, para não revelar o segredo de seu amado Calaf; ou na luta contra a morte, no caso do Capitão Ahab, em Moby Dick, de H. Melville; ou de remorso, pelo que foi narrado em The Imortal Life of Henrietta Lacks, sobre a vida de muitos presidiários dos Estados unidos da América que se oferecem para testes com remédios que podem ser letíferos, sob a justificativa de que ao menos uma vez poderiam fazer algo em favor da humanidade. Talvez essa configure a pena máxima, pela qual o condenado é levado a enxergar o que se tornou em vida, e não o que a vida se tornou.
Em sua obra, O Pecado de Nossa Época, Karl Menninger defende a tese de que o Estado gastaria muito menos com investimentos na área de saúde mental do que com o aparato repressor implantado. Aliás, não é exagero afirmar que o atual modelo não gera nenhum benefício para a sociedade, muito menos para o apenado, que, além de tudo, costuma se colocar na posição de vítima quando submetido a um sofrimento não contemplado pela lei, passando longe do que deveria ser considerado como essência do castigo, ou seja, a oportunidade de olhar para si mesmo. Quem se vê em pecado, aceita as penas com misericórdia. Porém, quando aplicadas em demasia, sente-se um mártir. Por outro lado, se dela escapar, sentir-se-á perdido, como aconteceu com um dos pilotos responsáveis pelo lançamento da bomba atômica em Hiroshima, que, em vez de punido, foi condecorado na condição de herói. A devolução das honrarias não evitou que terminasse seus dias em um hospício. Situação semelhante ocorreu com o psiquiatra Wilhelm Reich, que ao descobrir o adultério da mãe, acabou revelando o fato ao pai, que passou a humilhá-la de forma tão severa que o previsível desfecho foi o suicídio. Nem a genialidade do renomado psiquiatra foi capaz de impedir que na fase adulta se aventurasse a uma séria de atividades que o levassem a receber do Estado a contrapartida da punição, que, talvez, acreditasse ser justa e legítima. O trágico fim de Reich se deu atrás das grades.
No romance de Friedrich Dürrenmatt, A Pane, o personagem Alfredo Trapps protagoniza uma história que reforça a ideia de que a verdadeira justiça requer uma análise introspectiva. Quando dirigia a caminho de casa, Trapps teve o seu intento interrompido devido a uma pane no motor. Com a ajuda de um mecânico, o carro foi rebocado sob a promessa de que ficaria pronto somente na manhã seguinte. Apesar de existir um trem que poderia levá-lo para casa, se assim quisesse, preferiu ficar por lá. Entretanto, como os hotéis estavam lotados, Trapps saiu vagando por aquela cidadezinha, até que se deu com um senhor, de idade quase provecta, fazendo alguns serviços de jardinagem nos muros e portões de sua casa. Após uma breve conversa, na qual Trapps contou a sua história, o seu novo amigo o abrigou. Quando foi avisado pelo proprietário que se hospedaria em uma casa onde havia quatro homens extremamente cultos e experientes que fariam um julgamento dos atos dele, Trapps sorriu e asseverou: “não há culpas em mim!”. O problema é que entre comezainas fartas e bebidas cada vez melhores (a cada revelação), o protagonista da obra de Dürrenmatt acabou por sentir-se extremamente culpado.
Como diziam os Romanos em tom sarcástico: In vino veritas. O efeito do álcool, de livrar o ich das correntes do superego, deixando o id livre para agir, é coisa consabida há milênios. Várias lendas hebraicas há, sobre a participação do diabo na primeira vinha de Noé, usando, por exemplo, a baba do bode, o sangue do leão e do porco, alguma secreção do macaco, enfim... À medida que se adentrava o subconsciente de Trapps, o álcool que se lhe oferecia era melhor e, em determinado momento, passou a ser mais antigo e raro, partindo de um simples Campari até que, na iminência da almejada confissão, se chegasse ao conhaque Roffignac de 1893. Assim, invadiram os umbrais do unknown de Alfredo Trapps e, de portal em portal, chegaram ao busílis: mediante artifício, ele matara alguém. Na sequência, Trapps se deu a inflexão da pena que julgou aplicável.
A consciência sobre a sua natureza e a vilania de seus atos é o que deveria bastar como pena para o criminoso. De que forma seria possível alcançar essa utopia? Não sabemos. Entretanto, os esforços devem ser empregados nesse sentido, ou continuaremos a agir como revelou Clarice Lispector em sua análise sobre o jus puniendi. A escritora sustentava não existir direito, mas sim poder de punir, pois o homem somente é punido porque a força do Estado se sobrepõe à dele. Acrescentava ainda que o Direito Penal se assemelha às práticas da medicina medieval, segregando o doente, sem curá-lo e sem procurar as causas de sua enfermidade. Por fim, conclui que só haverá o “direito de punir” quando tal medida implicar no emprego de uma vacina contra o gérmen do crime, como ensinava Carnelucci. Enquanto isso não se realizar, a aplicação de pena é pura “morfina às dores da sociedade”.
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel e Renato Maluf são advogados em AMARAL GURGEL Advogados.
SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO & GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral. Pena de vida: O que cabe aos Severinos e Virgulinos. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51082/pena-de-vida-o-que-cabe-aos-severinos-e-virgulinos. Acesso em: 22 nov 2024.
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