RESUMO: A COVID-19, doença gerada pelo novo Coronavírus (Sars-COV-2), acarretou a declaração de “emergência de saúde pública de interesse nacional”, pela Organização Mundial da Saúde, bem como o anúncio, no Brasil, primeiramente de situação de emergência de saúde pública e, após, em Estado de Calamidade Pública, sobretudo na seara financeira. Assim, o país brasileiro assentou sua inserção em seu Sistema Constitucional de Crises. Em virtude da enfermidade e com o escopo de minar seus efeitos – ou minorá-los ao máximo -, os gestores públicos evidenciaram limitação aos direitos fundamentais dos pátrios. O presente estudo buscou comprovar, por meio de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, o abarcar do Estado de Calamidade Pública pelo Direito da Legalidade Extraordinária, ao tempo em que analisou a legalidade, a legitimidade e o controle das restrições impostas, concluindo pelo preenchimento da primeira diante do fato de que as restrições impostas o foram pelos próprios brasileiros, através de seus representantes, no que se visualizou a segunda. O controle, seja social, seja o materializado pelo sistema dos freios e contrapesos, ratificará a legalidade da imposição, ao revelar, ter sido esta compatível com a Constituição Federal, resultando em responsabilização se o cenário for contrário à constitucionalidade.
Palavras-chave: COVID-19. Sistema Constitucional de Crises. Direitos. Autolimitação. Representação.
ABSTRACT: COVID-19, a disease caused by the new Coronavirus (Sars-COV-2), resulted in the declaration of “public health emergency of national interest”, by the World Health Organization, as well as, in the announcement, in Brazil, primarily of a situation public health emergency and, later, in a State of Public Disaster, especially in the financial field. Thus, the Brazilian country based its insertion in its Constitutional Crisis System. Due to the disease and with the scope of undermining its effects - or minimizing them as much as possible - public managers have shown limitation to the fundamental rights of their countries. This study sought to prove, by means of a bibliographic search, using the deductive method, embracing the State of Public Calamity by the Law of Extraordinary Legality, while analyzing the legality, legitimacy and control of the imposed restrictions, concluding by filling in the first in the face of the fact that the restrictions were imposed by the Brazilians themselves, through their representatives, in which the second was visualized. Control, whether social or materialized by the system of checks and balances, will ratify the legality of the imposition, by revealing that it was compatible with the Federal Constitution, resulting in accountability if the scenario is contrary to constitutionality.
Keywords: Constitutional Crisis System. Rights. Self-limitation. Representation.
1. INTRODUÇÃO
É legítima a limitação de direitos fundamentais em tempos de COVID-19?
A Organização Mundial da Saúde, agência especializada em saúde, subordinada à Organização das Nações Unidas, declarou que, da COVID-19, doença gerada pelo novo Coronavírus (Sars-COV-2), havia resultado a necessidade de se anunciar, naquele momento, “emergência de saúde pública de interesse nacional”, em virtude do alastramento e da ineficácia inicial do controle da enfermidade. Posteriormente, o órgão assentou tratar-se de uma pandemia planetária.
No Brasil, em um primeiro momento, declarou-se situação de emergência se saúde pública, para depois, sobretudo quanto à questão orçamentária decorrente, reconhecer-se a inserção no Estado de Calamidade Pública.
Embora a Constituição explicite apenas o Estado de Defesa e o Estado de Sítio, bem como a intervenção de um ente político em outro como ocasiões a se verificar crises, os fundamentos que as propiciam se coadunam com os observados no Estado de Calamidade Pública, sendo este instante trazido por legislações pátrias compatíveis com os princípios e finalidades constitucionais. Assim, a COVID-19 acarretou, ao Brasil, sua entrada no Sistema Constitucional de Crises, que possui como vetores, em destaque, a excepcionalidade, a temporalidade, a proporcionalidade/necessidade e a observância estrita à Constituição.
Quando o texto constitucional explana as situações de Estado de Defesa e Estado de Sítio, apresenta direitos fundamentais que podem ser restringidos, mas isso seria possível? E no Estado de Calamidade Pública?
Ademais, atos normativos foram editados diminuindo consideravelmente os benefícios dos brasileiros, listados no texto da Carta Maior. Teria limites ao atuar dos gestores? E como se dá o controle?
Demonstrada a problemática a ser discutida e a relevância da questão no atual momento, seguem-se ordens de considerações que se interligam. Em verdade, o estudo dividir-se-á em dois momentos, um a tratar do Sistema Constitucional de Crises e a COVID-19, e outro, sobre a restrição de direitos fundamentais em face da pandemia da COVID-19 no contexto do Estado Democrático de Direito.
Em uma primeira análise, tercer-se-á considerações sobre a COVID-19 e a declaração do Estado de Calamidade Pública; após, a relação entre o Sistema Constitucional de Crises e a COVID-19; em seguida, debater-se-á como se dá a limitação de direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito, em que vigora a República; findar-se-á pela relação entre o Sistema Constitucional de Crises, a COVID-19 e a autolimitação de direitos fundamentais pelos brasileiros.
O marco referencial teórico do presente estudo apoia-se, sobretudo, nas obras de Ingo Sarlet, Canotilho, Gilmar Mendes, Paulo Gonet e André Ramos Tavares. Através de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, com a ajuda das obras dos escritores supramencionados e as de outros diversos autores, restará completada a análise proposta.
2. A COVID-19 E O ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA
Em 30 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a “emergência de saúde pública de interesse internacional”, em virtude do alastramento da COVID-19, doença oriunda do novo coronavírus (Sars-Cov-2). Conforme matéria jornalística no sítio eletrônico da Revista Veja, sem identificação do editor,
O status de “emergência de saúde pública de interesse internacional” é o nível mais alto de alerta da OMS e é reservado para questões que exigem uma resposta internacional coordenada. Essa é a sexta vez que o órgão dá esse status a um surto. As anteriores foram: a pandemia de H1N1 (gripe suína) em 2009, um ressurgimento da poliomielite e a epidemia de ebola em 2014, o surto de vírus zika em 2016 e o recente surto de ebola na República Democrática do Congo no ano passado. Após a declaração, a OMS considera que todos os governos de países membros das Nações Unidas estão informados sobre os riscos do vírus. Daí em diante, cabe a cada governo tomar suas próprias decisões sobre fechar suas fronteiras, cancelar voos, rastrear pessoas que chegam aos aeroportos ou tomar outras medidas de proteção. (VEJA, 2020).
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia da COVID-19. Isso ocorreu após o número de casos fora da China – onde se iniciou – ter aumentado em treze vezes e chegado ao triplo de países infectados, em quinze dias, totalizando, naquela data, 118.000 casos no Mundo, com 4.291 mortes.
De acordo com o Dicio, dicionário online de português, pandemia é a “epidemia que dissemina por toda uma região”; doença infecciosa e contagiosa que se espalha muito rapidamente e acaba por atingir uma região inteira, um país, um continente, etc.”; ou ainda em um sentido figurado, “qualquer coisa que, concreta ou abstrata, espalha-se rapidamente e tem uma grande extensão de atuação”.
Para Jamil Chade, colunista do UOL, tal afirmação reconhece que
a mera estratégia de conter a proliferação da doença já não seria suficiente. A classificação significa que uma transmissão recorrente está ocorrendo em diferentes partes do mundo e de forma simultânea. Na prática, ao anunciar a pandemia, a agência de saúde indica que governos devem trabalhar não mais para apenas conter um caso. Mas atuar também para atender uma parcela da população mais ampla e vulnerável. Estratégias direcionadas apenas para identificar casos e isolar pessoas precisam ser trocadas por um plano sanitário que evite mortes e que atua para toda a população. (CHADE, 2020).
O diretor-geral da OMS, porém, em sua fala, no momento de confirmar a declaração, pugnou por prudência, a fim de não se gerar medo desarrazoado, em virtude de uma noção que não condiz com a realidade.
Pandemia não é uma palavra para ser usada à toa ou sem cuidado. É uma palavra que, se usada incorretamente, pode causar um medo irracional ou uma noção injustificada de que a luta terminou, o que leva a sofrimento e mortes desnecessários. (GHEBREYESUS, 2020).
Ratificando a cautela do diretor-geral da Agência, o diretor-executivo do Programa de Emergências da OMS, Michel Ryan:
declaração de uma pandemia não é como a de uma emergência internacional. É uma caracterização ou descrição de uma situação, não é uma mudança na situação. (RYAN, 2020).
Matéria da BBC News, em que não exposto o jornalista que a escreveu e em que se aduz que “declarar uma pandemia significa dizer que os esforços para conter a expansão mundial do vírus falharam e que a epidemia está fora de controle”, trouxe a diferença entre a epidemia, a pandemia e a endemia, através da lição de Rosalind Eggo, acadêmica especialista em doenças infecciosas na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres:
A infecção endêmica está presente em uma zona de maneira permanente, em todo momento durante anos e anos. Epidemia é um aumento de casos seguido de um ponto máximo e, depois, uma diminuição. É o que ocorre nos países onde se registram epidemias de gripe a cada ano: no outono e no inverno aumentam os casos, chega-se a um máximo de infecções, e depois diminuem. Por último, a pandemia é uma epidemia que ocorre em todo o mundo mais ou menos ao mesmo tempo. (EGGO, 2020).
No dia em que pronunciada a situação de pandemia global pela OMS, o então Ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que nada mudaria em nosso Estado, onde se continuaria com o monitoramento dos lugares atingidos e iniciativas e protocolos outrora anunciados, protegendo-se, preferencialmente, o grupo de risco: os idosos e aqueles com a saúde debilitada (MANDETTA, 2020).
Segundo Alexandre Padilha, ex-Ministro da Saúde do Brasil, em entrevista ao HuffPost Brasil, a Organização Mundial da Saúde retarda em mudar a classificação de doenças, pois se preocupa, em soma, com a economia (PADILHA, 2020).
No âmbito nacional, em 06 de fevereiro de 2020, foi editada a lei nº 13.979/20, dispondo sobre as medidas para se enfrentar “a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019”.
A legislação previu medidas limitadoras aos direitos fundamentais individuais relacionados na Constituição Federal, como isolamento social, quarentena (“restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”), determinação de realização compulsória de exames médicos e de vacinas, restrição à locomoção internacional, interestadual e intermunicipal, requisição de bens, entre outras, assentando, no §1º do seu artigo 1º, que tais determinações objetivavam a proteção da coletividamente. Também trouxe novas hipóteses de licitação dispensável, simplificação de processos. Ademais, expressamente afirmou o seu caráter temporário, devendo viger até findar o estado de emergência (artigo 8º c/c art. 1º, §§2º e 3º).
A partir dela, governadores começaram a decretar fechamentos de portos e aeroportos. Então, em 20 de março de 2020, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 926, modificando alguns dispositivos da lei acima mencionada e dispondo que caberia ao Poder Executivo Federal regular os portos, aeroportos e rodovias da União, de forma a reforçar a competência federal.
Em seguida à edição do ato pelo Presidente da República, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o escopo de que a Corte declarasse a incompatibilidade parcial da medida provisória em relação à Carta Magna do país, a partir dos seguintes argumentos: teria tratado de matéria reservada à lei complementar, quanto às providências de política sanitária e os legitimados a implementá-la; e que o tema da saúde é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, fundamentando-se no artigo 23, II, da CF, que possibilita, em seu parágrafo único, a normatização da cooperação entre os entes federativos por lei complementar, não cabendo medida provisória em virtude de vedação expressa no texto constitucional (artigo 62, §1º, III, da CF), em sua visão.
O Ministro Marco Aurélio, relator, em decisão cautelar, afirmou que o chefe do Executivo da União agiu em conformidade com a Constituição, dado o preenchimento dos requisitos para a edição de medida provisória e que as providências relacionadas não afastam atos a serem praticados por Estados, Distrito Federal e Municípios, considerando a competência concorrente do artigo 23, II, da Lei Maior. Disse, ainda, que não deve vingar o alegado acerca de matéria reservada à lei complementar, visto que “presentes urgência e necessidade de ter-se disciplina geral de abrangência nacional”. Por fim, aduziu caber reconhecer, sob uma ótica simplesmente formal, que a disciplina da Medida Provisória nº 926/20 não afasta a ação normativa e administrativa dos demais entes políticos, deferindo, em parte, a medida acauteladora, “de maneira a tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”(STF-ADI 6341 MC/DF, DJ em 25/03/2020). A decisão foi referendada, em 15 de abril de 2020, pelo Tribunal, por maioria (DJ em 16/04/2020).
Antes da confirmação pelo Plenário do STF, o Advogado-Geral da União opôs embargos de declaração, com pleito de suspensão do pronunciamento, contra a decisão monocrática do relator, pedindo que fosse dita a ilegitimidade de Estados e Municípios no que toca à imposição de restrições à circulação de pessoas, bens e serviços, porque da União, segundo ele, a competência para editar normas gerais sobre o assunto. O Ministro Marco Aurélio, assim, concluiu pela perda do objeto do recurso, em virtude da ratificação do seu entendimento pela Corte, que, ao referendá-lo, adicionou a interpretação conforme a Constituição ao §9º do artigo 3º, da lei nº 11.979/20, expondo a competência do chefe do Executivo federal “para dispor mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, preservada a atribuição de cada ente da Federação”, em virtude de o inciso I do art. 198, da CF, explanar a diretriz da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, quanto às ações e serviços públicos de saúde; para a Corte Maior também não seria necessária a edição de lei complementar quanto à matéria, haja vista que o art. 3º, da lei 11.979/2020 não trata de cooperação entre os entes federativos (DJ em 22/04/2020).
Aqui, mencione-se a lição de Márcio André Lopes Cavalcante, interpretando a decisão do STF:
As normas da lei nº 13.979/2020 são o exercício da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica. Vale ressaltar, contudo, que, conforme prevê a Lei do SUS, o exercício dessa competência da União não diminui a competência própria dos demais entes da Federação na realização dos serviços de saúde, até mesmo porque a diretriz constitucional é que ocorra a municipalização dos serviços de saúde (CAVALCANTE, 2020, p. 10).
A COVID-19 permaneceu em ascendência e, por isso, em 18 de março de 2020, o Presidente da República encaminhou a mensagem nº 93/2020 ao Congresso Nacional, com fundamento no artigo 65, da Lei de Responsabilidade Fiscal, requerendo o reconhecimento do Estado de Calamidade Pública com efeito até 31 de dezembro de 2020, em decorrência da pandemia da COVID-19, com as consequentes dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias e da limitação de empenho disposta no artigo 9º, da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O pleito presidencial transformou-se no Projeto de Decreto Legislativo nº 88/2020 na Câmara dos Deputados, tramitando posteriormente no Senado Federal sob o nº 06/2020, onde foi definitivamente aprovado, em 20 de março de 2020. O decreto comportou guarnecer o aparato financeiro, permitindo ao Governo Federal gastar mais do que o teto.
Em 01 de maio de 2020, a Organização Mundial da Saúde prolongou a sua declaração de pandemia mundial, pela enfermidade mencionada.
Por fim, em 07 de maio de 2020, entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 106/20, trazendo um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para a União, relativa às necessidades decorrentes da pandemia. Cabe dizer que o texto editado não foi acrescentado à Constituição de 1988, constituindo-se em um texto avulso a ser observado somente durante a vigência do estado de calamidade pública anteriormente decretado. O ato normativo trouxe, inclusive, a dispensa de limitações legais quanto ao aumento de despesa e renúncia de receitas.
3. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE CRISES E A COVID-19
3.1. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE CRISES
O Brasil se constitui em um Estado Democrático, de acordo com o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, sendo ratificado e completado pelo artigo 1º do mesmo diploma, que dispõe ser o nosso país um Estado Democrático de Direito.
Vale dizer que, ainda que entendendo pela aplicação da teoria da irrelevância jurídica quanto ao preâmbulo constitucional, de forma a afirmar que o mesmo não se situa no âmbito do Direito, o Supremo Tribunal Federal reconhece que a disposição preambular reflete a posição ideológica do constituinte, explicitando os valores por este escolhidos (STF. Plenário. ADI 2076, Rel, Min. Carlos Velloso, julgado em 15/05/2002). Sobre a parte textual, Luís Roberto Barroso aduz que “conterá este documento, como regra, as principais motivações, intenções, valores e fins que inspiraram os constituintes”(BARROSO, 2013, p. 105).
Democracia se relaciona com a ideia de que o poder pertence ao povo, que, como explicitado pelo parágrafo único do artigo 1º, da Carta Magna, exerce-o por meio de representantes eleitos ou diretamente – nesta hipótese, observando as diretrizes constitucionais. Por outro lado, Estado de Direito liga-se ao pensamento de Governo balizado, em seu agir, pela Constituição, sobretudo, bem como pelas demais leis infraconstitucionais, as quais o limita (TAVARES, 2020); refere-se, pois, ao entendimento de respeito ao conteúdo e hierarquia dos diplomas e de suas normas fundamentais, em afastamento à vontade e interesse particular do governante. Aristóteles já, com maestria, aclarava a necessidade de assim o ser, a fim de que se faça presente a estabilidade social:
(...) pois melhor é o elemento que não pode estar submetido a paixões que o elemento em que as paixões são conaturais. Ora, a lei não tem paixões, que, ao contrário, encontram-se necessariamente em cada alma humana (...) (ARISTÓTELES, 2001, p. 1286a).
O Sistema de Crises pode ser também denominado de “estado (ou direito) de necessidade constitucional” “direito de crise”, “legalidade constitucional extraordinária”, entre outros, no entendimento de Walter Claudius Rothenburg (ROTHENBURG, 2013, p. 1563), e adentra na realidade em virtude da ocorrência de uma situação que proporcione o desembarque do ordinário, que justifique violação da normalidade, sendo sua existência relacionada à necessidade de observância cogente à Carta Maior e à lei.
Nas palavras de Aricê Moacyr Amaral Santos, é “... o conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporalidade, têm por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional” (SANTOS, 1989, p. 32). Segundo Flávio Martins, é “um conjunto ordenado de regras e princípios que se destinam a restabecer a ordem e a segurança, diante de graves crises institucionais ou sociais. Tem amparo constitucional, devendo ser realizado nos estritos limites previstos na Constituição” (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 2006).
Este autor aduz que tal sistema é previsto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e que todas as Constituições brasileiras o trouxeram (NUNES JÚNIOR, 2019).
Rodrigo Padilha, por sua vez, assevera que: “Em momentos de deturpação da ordem democrática, de ofensa aos mandamentos constitucionais, é necessária a adoção de medidas para reequilibrar a ordem e a normalidade constitucional” (PADILHA, 2020, p. 862).
Convidado pelo Ministro Gilmar Mendes, em live no canal do Youtube pertencente ao Instituto Brasiliense de Direito Público, realizada pelo Grupo Perspectivas Contemporâneas da Jurisdição Constitucional, que tem o membro da Máxima Corte brasileira como coordenador, em encontro cujo tema foi Constitucionalismo Democrático e Estado de Exceção, o português Jorge Bacelar Gouveia afirmou que, no interstício em que vigora o Estado excepcional, o direito deve ser visto ao contrário e que o Estado de exceção implica, mais ou menos, a depender da realidade do país, em suspensão de direitos (GOUVEIA, 2020).
Dissertando acerca do tema, Bernardo Gonçalves explana os quatro princípios regedores: excepcionalidade, necessidade, temporalidade e obediência estrita à Constituição Federal (GONÇALVES, 2019).
Excepcionalidade no sentido de que medidas de exceção se farão presente, restringindo direitos fundamentais, para assegurar também direitos fundamentais, imprescindíveis ao momento; necessidade como subprincípio da proporcionalidade, inexistindo outro modo de solucionar a crise instalada (alguns doutrinadores põem a própria proporcionalidade como vetor); temporalidade pelas medidas só serem legítimas caso limitadas no tempo; e obediência estrita ao texto constitucional, pois são medidas restritivas de direitos fundamentais (GONÇALVES, 2019).
Nos dizeres de Rodrigo Padilha,
(...) a Constituição adotou um capítulo (Capítulo I do Título V) para discorrer sobre medidas que possam auxiliar os Poderes Públicos a conquistarem o estado constitucional democrático. (...) O referido sistema instaurará um estado de legalidade extraordinária, em que diversos direitos serão suspensos. Por isso, para que esse ato não se transforme em um gole de estado ou de ditadura, é obrigatória a observância de três critérios: a) necessidade (...) ; b) temporalidade (...); c) proporcionalidade (...) (PADILHA, 2020, p. 862).
Flávio Martins, a seu turno, alarga os princípios da temática, adicionando, por exemplo, a publicidade, afirmando que
assim como todo ato do poder público, a decretação das medidas excepcionais para controle das crises deve ser pública, para que haja o controle social e, eventualmente, jurisdicional. Isso decorre do princípio democrático, do princípio republicano e do direito constitucional à informação (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 2006).
A publicidade e a legalidade, em verdade, são dois dos vetores constitucionais-administrativos explícitos, de observância obrigatória por todos os administradores públicos, junto com os outros explícitos e os tantos princípios implícitos (estes dada a redação do artigo 5º, §2º, da CF), que não podem ser afastados nem mesmo em tempo de direito extraordinário, salvo no caso de colisão entre eles, quando se resolverá pela ponderação e aplicação do macroprincípio da proporcionalidade. A observância vinculada decorre da força normativa da Constituição (HESSE, 1991), ou seja, consoante Roberto Barroso, é o texto constitucional ser formado por normas jurídicas propriamente ditas, a serem respeitadas pelo simples fato de estarem dispostas naquele diploma, desnecessitando-se que lei infraconstitucional regulamente o que aquele já o fez (BARROSO, 2018).
O constitucionalista Flávio Martins traz a legalidade como vetor do Sistema Constitucional de Crises, enquanto Bernardo Gonçalves utiliza a expressão “estrita observância à Constituição”, todavia ambos desejam dizer que as ações de exceção só são legítimas se coerentes com os valores, ideias e finalidades constitucionais, pois a Carta Magna previu tal ordenação para não deixar o atuar, em instantes históricos difíceis, na ampla discricionariedade do governante, ratificando seu compromisso com a estabilidade, característica importante no seio da convivência em comunidade.
Nesse sentido, Daniel Sarmento: “Desde que a Constituição de 88 foi editada, o Brasil tem vivido um período de normalidade institucional, sem golpes ou quarteladas. As crises políticas que surgiram neste intervalo têm sido resolvidas com base nos instrumentos previstos pela própria Constituição. (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012, 145). E Walter Claudius Rothenburg:
(...) Ao prever uma disciplina jurídica para tais momentos excepcionais, a Constituição institui mecanismos de autopreservação, a fim de evitar, seja a falta de regulação jurídica (que abriria espaço para a utilização arbitrária do poder público ou mesmo da força bruta, sem limites jurídicos predefinidos), seja o afastamento (suspensão) indiscriminado e episódico da Constituição ou de importantes normas suas, seja a quebra (abandono, ruptura) definitiva da Constituição. Assim, um tratamento diferenciado previsto pela própria Constituição para situações excepcionais é, em certa medida, uma resposta jurídico-constitucional para evitar a própria exceção à Constituição. Dito de outra maneira: quando a exceção à própria Constituição consegue atravessar situações de crise sem ser abandonada – e para isso prevê ela mesma medidas extremas de “salvação pública”-, essa é a prova de sua estabilidade; ela consegue, tem força normativa suficiente para regular não apenas a normalidade, mas também as exceções (in ROTHENBURG, 2013, p. 1562 e 1563).
É eminente para uma sociedade encontrar-se estável, mesmo em instantes complicados, e, para tanto, imprescindível que sua Norma Maior de regulação contenha o atributo da estabilidade, sobretudo que a persiga quando mais a população precisar, isto é, em tempos de crise.
Para uma noção de como a estabilidade é valorizada socialmente, embora por muito tempo usada contrariamente ao correto fim a que se destina, lembre-se a evolução do Constitucionalismo, desde a obra de Hobbes, contratualista, em 1651, oportunidade em que, de acordo com ele, a sociedade, na pessoa de cada um de seus membros, entendeu que melhor seria, buscando a segurança e a paz social, entregar seus direitos individuais, com exceção da vida, a um poder soberano, a fim de que este os administrasse (SOARES, 2004), pois, caso contrário, viver-se-ia todos no Estado da Natureza, em que os municípies, de uma única vez, poderiam querer exercer seus direitos individuais e findar em uma balbúrdia.
Inclusive, ainda no seio da evolução do Constitucionalismo, quando Montesquieu, em seu O Espírito das Leis, usou a expressão “freios e contrapesos” (BRANCO;MENDES, 2015), defendendo a fiscalização de um Poder estatal sobre o outro, fê-lo com o escopo de preservar a proporcionalidade das ações e de evitar excessos, de modo a manter a estabilidade da vida comunitária.
Nas palavras de Walter Claudius Rothenburg,
A preocupação autocentrada da Constituição com sua estabilidade tem base na experiência: crises graves serviam e servem de pretexto para o rompimento da ordem constitucional, o abandono da Constituição, a instalação da ditadura e do arbítrio. É preciso, contudo, saber reconhecer quando uma ordem constitucional legítima está em perigo e requerer a decretação de medidas drásticas de salvação, diferentemente de quando uma ordem constitucional não é – ou não é mais legítima e requer-se a manifestação autêntica do poder constituinte para o estabelecimento de uma nova Constituição. Nesta hipótese, que também é de quebra (abandono) definitiva da ordem constitucional vigente, a utilização espúria de medidas como o estado de defesa ou de sitio representa um obstáculo reacionário indevido à manifestação legítima do poder constituinte. Em menor escala, o recurso a estados de exceção não deve servir de pretexto para ameaçar ou tolher o direito de crítica e de oposição, imprescindível a uma democracia, em que as divergências devem ser livres e protegidas. Feita a advertência, supõe-se que a disciplina constitucional das situações de crise grave garanta a vigência de uma ordem constitucional legítima. (ROTHENBURG, 2013, p. 1563).
Em outra vertente, nos dias hodiernos, a doutrina, quase de forma unânime, filia-se a Canotilho, em sua ideia de Constituição aberta, a partir da qual a Constituição deve prever seus valores e fins sociais mais significativos e seus programas que denotem a conformação constitucional, sem o indesejável “perfeccionismo constitucional (a Constituição como estatuto detalhado e sem aberturas)”, e ao seu pensamento de Constituição-quadro, abrindo espaço para a discricionariedade do legislador, a partir das diretrizes constitucionais. Em soma, os estudiosos, inclusive o português, acenam positivamente à ainda mais evoluída Constituição dúctil, de Gustavo Zagrebescky, também chamada de Constituição maleável, consoante o qual a Constituição disporia os pontos principais para uma vida em comunidade, não lhe cabendo mais delinear um projeto predeterminado de convivência (CANOTILHO, 2003). Para os estudiosos, vendo assim o texto constitucional, permite-se que ele tenha eficácia social, força normativa, e acompanhe a sociedade em seus mais distintos momentos históricos, impedindo que sua força de conformação se perca, burlando que finde em uma “mera folha de papel”, expressão de Lassale.
Assentando a visão sobreposta, Roberto Barroso define a ciência do Direito Constitucional usando os seguintes vocábulos:
Trata-se do conjunto sistemático de conhecimentos teóricos e históricos – conceitos e categorias doutrinárias – que permitem a reflexão acerca da disciplina do poder no âmbito do Estado, sua organização, limites e finalidades, assim como da definição dos direitos fundamentais das pessoas sujeitas à sua incidência. Também se insere no seu campo de estudos a discussão sobre a realização de determinados fins públicos que são retirados da discricionariedade política e transformados em obrigações vinculadas do Poder Público (BARROSO, 2018, p. 46).
Então, com o fito de aclarar a leitura, afirma-se que o “Direito de Síncope”, outra nomenclatura para o momento em exame, possui o dever de observância estrita à Constituição Federal, como delineado por Bernardo Gonçalves, ou à legalidade, ou mesmo à taxatividade, conforme disposto por Flávio Martins, visto que possibilita a restrição de alguns direitos ou garantias, permanecendo-se assegurado, no mais alto grau possível, os direitos e garantias fundamentais, a organização do Estado e a limitação de poder dos governantes, evitando que os gestores se utilizem das circunstâncias para praticarem abusos ou voltarem-se à consecução de seus interesses particulares. Se o Estado ordinário já deve obediência aos seus preceitos, ainda mais o Estado excepcional, em que a interpretação é restritiva e voltada ao não agravamento da crise. Todavia, isso não significa que as hipóteses em que se verifica estar o país inserto no Sistema Constitucional de Crises esgota-se na decretação do Estado de Defesa, do Estado de Sítio ou da Intervenção Federal ou Estadual. O que confirma a situação extraordinária é a sua compatibilidade com os fundamentos e disposições expostos na Carta Magna acerca do Direito Constitucional de exceção.
Na live supracitada, no canal do Youtube, de domínio do Instituto Brasiliense de Direito Público, no âmbito do Grupo Perspectivas Constitucionais e Jurisdição Constitucional , cujo coordenador é o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o Professor português Jorge Bacelar Gouveia fez um comparativo entre os instrumentos explícitos do Sistema Constitucional de Crises, listados pelas Constituições Portuguesa e Brasileira, asseverando que, em Portugal, há uma maior suspensão de direitos. De acordo com o estrangeiro, em sua República, o Estado excepcional é consubstanciado por meio do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, tendo a pandemia COVID-19 gerado a inserção do país neste (GOUVEIA, 2020).
Por lá, o Estado de Emergência estaria mais relacionado a crises econômicas ou sociais e, pela COVID-19 configurar uma anomalia sistemática de ordem sanitária, melhor se enquadra nessa espécie do que no Estado de Sítio, para o qual se reserva motivações políticas ou militares. Em ambos os casos, a duração é de quinze dias, sendo decisões discricionárias e subsidiárias, isto é, somente tomadas na ausência de outra maneira de solução. Em Portugal, elas acarretam na suspensão de direitos fundamentais e no reforço dos Poderes do Governo, que se sobressai, nesse interstício, em relação aos demais. Ainda, lá, há um outro regime, inserto na questão das crises, mas não com previsão constitucional, e sim legal (GOUVEIA, 2020).
Quanto ao Brasil, o expoente apresentou quatro situações que desaguam no Direito de exceção, quais sejam: a) Estado de Guerra, que não seria diretamente regulado; b) Intervenção federal, de natureza econômica ou de manutenção da ordem e da supremacia da ordem federal sobre as demais; c) Estado de Defesa e Estado de Sítio, assemelhando-se o primeiro ao Estado de Emergência Português e o segundo, ao Estado de Sítio de seu país (GOUVEIA, 2020).
3.2. O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES E O ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA DECLARADO EM VIRTUDE DA COVID-19
A sobrevivência das Constituições, nas sociedades modernas, pluralistas, requer que a Carta Maior do Estado abra um espaço para a completude pelo legislador ordinário, indicando os textos constitucionais os valores, as ideias e os fins imprescindíveis a que se deve submeter a comunidade ao longo dos anos. Assim se manifesta André Ramos Tavares: “O sistema constitucional, contudo, é aberto, encontrando-se em constante evolução, tendo em vista o contato com a realidade social, o que ocorre especialmente pela concepção cultural e concretista do Direito Constitucional” (TAVARES, 2020, p. 283). E Paulo Gonet:
(...) Não é correto supor que as normas constitucionais determinam integralmente todo o conteúdo possível das normas infraconstitucionais. Elas regulam apenas em parte a deliberação legislativa que lhes confere desenvolvimento. O legislador, no entanto, na tarefa de concretizar o que está disposto na norma constitucional, não perde a liberdade de conformação, a autonomia de determinação. Mas essa liberdade não é plena, não pode prescindir dos limites decorrentes das normas constitucionais. (BRANCO; MENDES, 2015, p. 66).
Reitere-se, como outrora, que está a se aguçar a possibilidade de que existam outras situações, trazidas por lei, que possam ser tidas como configuradoras do Estado Constitucional de Crises, como ocorre em Portugal, conforme afirmado por Jorge Bacelar Gouveia. Desse modo, em consonância com o acima mencionado, o que atesta a situação extraordinária é a verificação de que seja compatível com os fundamentos e determinações da Lei Maior no que toca ao Direito de exceção. Por isso, atesta-se que o princípio da unidade é um dos vetores hermenêuticos. Sobre o assunto, Paulo Gonet: “o primeiro desses princípios, o da unidade da Constituição, postula que não se considere uma norma da Constituição fora do sistema em que se integra” (BRANCO;MENDES, 2015, p. 94), e Eros Grau: “não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços” (GRAU, 2003, p. 88). Em adição, o pensamento de Peter Håberle: “Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade” (HÅBERLE, 2002, p. 13).
O Estado de Calamidade Pública, em virtude da pandemia mundial COVID-19, foi decretado, no Brasil, com fundamento no artigo 65, da Lei de Responsabilidade Fiscal:
Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:
I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;
II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição.
De acordo com Marcelo Roubicek:
O termo calamidade pública costuma ser associado também à expressão estado de emergência. Ambas estão relacionadas, mas não significam exatamente a mesma coisa em termos legais. O estado de emergência ocorre quando há entendimento de que danos à saúde e aos serviços públicos são iminentes – ou seja, quando esses danos estão muito próximos de se concretizar. A calamidade pública é justamente o passo seguinte à emergência: ocorre quando a situação de prejuízo já estiver instalada. (ROUBICEK, 2020).
Referindo-se detalhadamente à pandemia em exame, Leonardo Carneiro da Cunha assim dispôs:
A pandemia do Covid-19 é, enfim, um fato jurídico processual em sentido estrito, pois é um acontecimento da natureza que, juridicizado pela incidência de norma processual, é apto a produzir efeitos dentro do processo. O reconhecimento oficial de um estado de calamidade pública configura um motivo de força maior. O evento de força maior caracteriza-se como justa causa, a justificar a fixação de um novo prazo pelo juiz para a prática do ato (CPC, art. 223, § 2º), sendo motivo para interromper o prazo recursal (CPC, art. 1.004), podendo ainda acarretar sua prorrogação por período superior a dois meses (CPC, art. 222, § 2º). (DA CUNHA, 2020).
O decreto nº 7.257/2010, editado pelo Executivo Federal, assentou o conceito de calamidade pública, em seu artigo 2º, IV: “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”.
Segundo o ato normativo referido, o reconhecimento da calamidade pública se dará mediante requerimento, ao Ministério da Integração Nacional, do Executivo Estadual, Distrital ou Municipal relacionado à área afetada, cabendo àquele efetivar o que se pleiteou, se entender cabível.
Vê-se, então, que, por esse decreto, a calamidade pública limitar-se-ia a ser declarada em âmbito local. Todavia, com a chegada da COVID-19 ao Brasil, consubstanciada em uma crise sanitária mundial, a exigir providências drásticas e efetivas pelos gestores, sobretudo pelo Poder Executivo Federal – a gerenciar a política de enfrentamento -, o reconhecimento da calamidade pública, em todo o território nacional, foi medida necessária e imposta.
Em instantes de anormalidade social, o texto constitucional previu, explicitamente, para a extensão nacional, a decretação do Estado de Defesa (art. 136, da CF), ou do Estado de Sítio (art. 137 e seguintes, da CF), entretanto a COVID-19 não se enquadra nas hipóteses taxativamente normatizadas para os respectivos instrumentos – o Estado de Defesa exige que o problema se restrinja a locais restritos e determinados, e o Estado de Sítio é a última medida a ser tomada, na demonstração de ineficácia de todas as demais -. André Ramos Tavares quanto ao Estado de Defesa: “só se admite o estado de defesa quando a instabilidade ou calamidade puderem ser individualizadas em locais restritos e determinados” (TAVARES, 2020, p. 1.173).
Assim, verificou-se a pertinência do momento com o disposto no artigo 65, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que abarca a calamidade pública oposta no campo de todo o território brasileiro, em soma à previsão do artigo 21, XVIII, do Texto Maior, que aduz caber à União o planejamento e a promoção da defesa permanente das calamidades públicas.
A inserção da calamidade pública no Direito da Legalidade Excepcional é inegável, ratificada pela Constituição da República do Brasil em diversas de suas passagens: o seu artigo 148 elucida poder a União instituir empréstimos compulsórios, através de lei complementar, para atender despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, ao passo que seu artigo 167, §3º, ao tratar de crédito extraordinário, menciona “calamidade pública” como um de seus fundamentos.
Dessa forma, a pandemia planetária denominada COVID-19 acarretou a inserção, do país brasileiro, no Sistema Constitucional de Crises.
4. A DEMOCRACIA, A REPÚBLICA E A LIMITAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Assim como outrora mencionado no presente estudo, cabe dizer que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito (artigo 1, caput, da CF), tendo, segundo o seu preâmbulo, a Assembleia Nacional Constituinte se reunido para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar inúmeros direitos dispostos no texto da Carta de 1988, principalmente aqueles relacionados à dignidade da pessoa humana, ao pluralismo político, à liberdade, à igualdade, aos direitos sociais, à justiça, entre outros.
Democracia, de acordo com o endereço eletrônico da enciclopédia livre Wikipédia, é
um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal. Ela abrange as condições sociais, econômicas e culturais que permitem o exercício livre e igual da autodeterminação política. (...) O sistema democrático contrasta com outras formas de governo em que o poder é detido por uma pessoa — como em uma monarquia absoluta — ou em que o poder é mantido por um pequeno número de indivíduos — como em uma oligarquia (WIKIPÉDIA, 2020).
Já nas palavras do Dicio, dicionário online de português:
a) Governo em que o poder é exercido pelo povo; b) sistema governamental em que os dirigentes são escolhidos através de eleições populares; c) Regime que se baseia na ideia de liberdade e soberania popular, em que não existem desigualdades e/ou privilégios de classes: a democracia, em oposição à ditadura, permite que os cidadãos se expressem livremente (DEMOCRACIA, 2020).
A Lei Maior brasileira explana pertencer ao povo o poder, acolhendo o espírito democrata, no parágrafo único de seu artigo inaugural, aduzindo sê-lo exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente, em seus termos. A eleição de representantes consubstancia que o país brasileiro adotou a República como forma de governo.
Giovani Sartoni materializa seu pensamento acerca da democracia: “democracia é, acima de tudo, um critério de legitimidade (...). Nenhum democrata rejeita que o poder apenas é legítimo quando tem origem no povo e assenta no seu consenso” (SARTORI, 2018), e Robert Dahl cita as vantagens de se viver sob seu regime, destacando a participação efetiva – lembre-se que a cidadania é um dos fundamentos da Constituição de 1988 -, a aquisição do entendimento esclarecido e o exercício do controle definitivo do que se planeja (DAHL, 2001). Em sua obra, este faz alusão, ainda, às características da democracia moderna:
Funcionários eleitos. O controle das decisões do governo sobre a política é investido constitucionalmente a funcionários eleitos pelos cidadãos. Eleições livres, justas e frequentes. Funcionários eleitos são escolhidos em eleições frequentes e justas em que a coerção é relativamente incomum. Liberdade de expressão. Os cidadãos têm o direito de se expressar sem o risco de sérias punições em questões políticas amplamente definidas, incluindo a crítica aos funcionários, governo, o regime (...) (DAHL, 2001, p. 99-100).
Amartya Sen afirma, sobre o tema, “Não é difícil pensar que concentrar-se na democracia e na liberdade política é um luxo (...)” (SEN, 2005, p. 174).
Em outra vertente, Estado de Direito, etimologicamente, é o governo das leis; remonta à ideia de um governo baseado no que as leis direcionam, ocupando a Constituição o pico da pirâmide hierárquica das legislações, naquilo que Kelsen chamou de “concepção jurídica da Constituição”.
Assim, o Estado Democrático de Direito proclamado pelo texto brasileiro significa que o poder, em nossa Nação, pertence ao povo, que o executa de maneira direta – através de plebiscitos, referendos ou por proposituras legislativas - , ou indiretamente, utilizando-se de seus representantes (por isso a expressão “República brasileira”), todavia estes não agem de acordo com o seu interesse particular, e sim conforme o que almeja cada um dos que compõem o povo do país.
Dentro da ideia de poder, inclui-se a legitimidade para a feitura de atos normativos de cumprimento obrigatório por todos e, porque os eleitos a realiza em nome do povo, sua legitimidade é reconhecida, e a obrigatoriedade, imposta. O limite a eles demandado é justamente a consonância com os objetivos para os quais foram designados.
Nessa esteira, as palavras de Mário Lúcio Quintão Soares:
O Estado Democrático de Direito, enquanto comunidade do povo, consiste em uma comunidade de valores ou igualdade ideal política. O povo só pode ser representado quando o princípio da representação, como forma de dominação, vincula-se aos valores desta comunidade política ideal. (SOARES, 2004, p. 273).
Aclarando a temática, Ingo Sarlet considera a acepção acima aludida não unicamente no sentido formal, mas também em junção ao aspecto de um Estado material de Direito,
(...) no qual, além da garantia de determinadas formas e procedimentos inerentes à organização de poder e das competências dos órgãos estatais, se encontram reconhecidos, simultaneamente, como metas, parâmetros e limites da atividade estatal, certos valores, direitos liberdades fundamentais, chega-se à noção – umbilicalmente ligada à ideia de Estado de Direito – de legitimidade da ordem constitucional e do Estado (SARLET, 2006, p. 70).
Diverso não é o entendimento de Patrícia Jeronimo: “As normas jurídicas, antes mesmo de assumirem a sua função ordenadora da existência humana em sociedade, são expressão dos valores que presidem a essa existência, dependem dele” (JERONIMO, 2001).
Luís Roberto Barroso deixa às claras seu entendimento sobre Constitucionalismo e Estado Constitucional, em ligação com o exposado:
Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de Direito) (...) Em um Estado Constitucional, existem três ordens de limitação de poder. Em primeiro lugar, as limitações materiais: há valores básicos e direitos fundamentais que hão de ser sempre preservados, como a dignidade da pessoa humana, a justiça, a solidariedade e os direitos à liberdade de religião, de expressão, de associação. Em segundo lugar, há uma específica estrutura orgânica exigível: as funções de legislar, administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes, mas que, ao mesmo tempo, se controlem reciprocamente. Por fim, há as limitações processuais: os órgãos do poder devem agir não apenas com fundamento na lei, mas também observando o devido processo legal, que conjuga regras tanto de caráter procedimental como de natureza substantiva (...) (BARROSO, 2018, p. 25).
A respeito do que é complementado por Ingo Sarlet:
Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização de poder, a essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material. Para além disso, definitivamente consagrada a íntima vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais. (SARLET, 2006, p. 69-70).
Especificamente quanto à Constituição brasileira atual, a lição de Daniel Sarmento,
Além dos direitos fundamentais, o outro “coração” da Constituição de 88 é a democracia. Dentre outras medidas, ela consagrou o sufrágio direto, secreto, universal e periódico para todos os cargos eletivos – elevado, inclusive, à qualidade de cláusula pétrea -; concedeu o direito de voto ao analfabeto; erigiu, às bases pluralistas e liberais, o sistema partidário; e consagrou instrumentos de democracia participativa, como o plebiscito, o referido e a iniciativa popular de leis (SARMENTO, 2012, p. 129).
Que continua:
Apesar da forte presença de forças que deram sustentação ao regime militar na arena constituinte, foi possível promulgar um texto que tem como marcas distintivas o profundo compromisso com os direitos fundamentais e com a democracia, bem como a preocupação com a mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no sentido da construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da pessoa humana (SARMENTO, 2012, p. 126).
Ainda quanto à Carta Maior vigente, Sahid Maluf também menciona a enfatização dos direitos individuais e a criação de novos mecanismos de proteção e garantia em relação aos direitos individuais e coletivos (MALUF, 2015).
De acordo com Ingo Sarlet, a Constituição positiva determina os princípios e direitos fundamentais no objetivo de expressar os valores que são de consenso mútuo na comunidade (SARLET, 2006), ao passo que Canotilho defende que essa positivação promove a “reserva da justiça”, a ser resguardada pela ordem constitucional (CANOTILHO, 2003).
Ainda importante transcrever os vocábulos utilizados por Ingo Sarlet, na exposição da matéria:
Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico) integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que, num Estado Constitucional democrático, se tornam necessárias certas vinculações de cunho material (...) (SARLET, 2006, p. 72).
Correlacionando Estado Democrático de Direito e direitos fundamentais, o ensinamento de Lenio Streck:
A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais-sociais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação ou uma forma de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pelas necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais. A essa noção de Estado se acopla o conteúdo material das constituições, através dos valores substantivos que apontam para a mudança do status quo da sociedade. Por isso, no Estado Democrático de Direito, a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-compromissário-valorativo-principiológico. (STRECK, 2003, p. 171).
Que finaliza:
O paradigma do Estado Democrático de Direito liga-se inexoravelmente à função transformadora que o Direito assume. Da ideia de Direito como ordenação e até mesmo de promoção, exsurge um papel para o Direito que vai muito além da Constituição enquanto mero instrumento para a aferição da parametricidade formal. Isto demandou um novo tipo de concepção acerca da jurisdição constitucional. Trata-se da instituição de tribunais aptos a instrumentalizar e dar guarida à materialidade dos textos constitucionais. (STRECK, 2003, p. 170).
Vê-se, desse modo, que os direitos fundamentais constituem um dos elementos primordiais da Constituição da República Federativa do Brasil, sendo os valores imprescindíveis, consensualmente entendidos, como de necessário respeito.
Sobre a origem dos direitos fundamentais, Mário Lúcio Quintão Soares:
O termo droits fundamentaux foi cunhado na França, por volta de 1770, no movimento político e cultural que culminou com a Revolução Francesa e sua respectiva Déclaration. Na Alemanha, logo após, a expressão alcançou especial relevo na doutrina, e sob a designação de Grundrecht , articular-se-ia como sistema de relação entre indivíduos e Estado, enquanto fundamento da ordem jurídico-positiva. (SOARES, 2004, p. 90).
Eles não se esgotam no título II, da Carta Magna, o qual se inicia com o artigo 5º; sua previsão se acosta em diversos outros dispositivos constitucionais, bem como são extraídos, conforme demasiadamente explanado no presente estudo, do regime e dos princípios adotados pela Constituição ou pelos tratados internacionais a que faz parte o país brasileiro, o que é ratificado pelo parágrafo segundo de seu artigo 5º.
Alguns dos direitos fundamentais aclarados pelo texto constitucional foram a saúde (detalhadamente no artigo 196 e seguintes, da CF), a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa, a propriedade privada, a redução das desigualdades regionais e sociais; esta última também é um objetivo fundamental da República pátria, conforme o inciso III do artigo 3º, e o trabalho é, em soma, encartado junto com outras garantias relacionadas, no artigo 5º, da Lei Maior. A erradicação da pobreza se constitui, por outro lado, também em um objetivo fundamental do Estado brasileiro.
Por sua vez, a dignidade da pessoa humana é fundamento do Brasil, conforme disposição constitucional, entretanto cabe dizer que os constitucionalistas atribuem à mesma um valor maior, justificando que ela abarca o mínimo existencial para um ser humano viver com dignidade. Dessa maneira, ela se revela em fundamento primeiro da Constituição e, com o fenômeno da Constitucionalização do Direito – todos os ramos a observar os valores constitucionais, de forma primeva -, ela assume ainda mais vazão; por exemplo, hoje, no Direito Civil, fala-se em “Teoria do Patrimônio Mínimo”, a partir da qual tem que ser assegurado ao homem, ao menos, um patrimônio suficiente, para que ele viva com dignidade.
É tanto que, no estudo da evolução do Constitucionalismo, em que se menciona a ideia de uma Constitucionalismo Globalizado ou Global, uma de suas premissas é vetar a limitação da dignidade da pessoa humana por parte de qualquer movimento constitucional.
Os direitos fundamentais são, indubitavelmente, limites ao atuar estatal (status negativo de Jellinek), todavia possuem como uma de suas características a relatividade, no sentido de que são garantidos dentro dos parâmetros balizados pela Constituição. Nessa esteira, Alexandre de Moraes:
Os direitos e garantias fundamentais consagradas pela Constituição, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito do alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (MORAES, 2018, p. 70 e 71).
No que toca à restrição dos direitos constitucionais, André Ramos Tavares aduz que diversos dispositivos constitucionais a preveem – e por isso ela pode ocorrer-, dentre os quais os que aludem às restrições vinculadas aos Estados de Exceção. Para o autor, “nessas situações, é prevista expressamente a possibilidade de restrição de direitos fundamentais” (TAVARES, 2020, p. 482).
Isso se justifica porque, em outra ponta, encontra-se outro vetor tão eminente quanto o restringido e, naquele caso concreto, merece se sobressair e receber proteção. O limite da interferência e afastamento momentâneo se acopla na “teoria dos limites dos limites”, em que se impossibilita a ofensa ao núcleo essencial do que se propõe a restringir.
Pelo exposto, diga-se que a limitação de direitos fundamentais tem fonte constitucional, visto que revelada pelo próprio texto da Constituição, explícita ou implicitamente, e, em muitas ocasiões, regulada por lei.
A Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Carta Magna vigente no país, pode opor restrições a esses elementos primeiros da ordem inaugurada, pois ela se formou mediante a vontade popular, mesmo motivo por que as leis que delineiam eventuais limitações são cogentes, afinal editadas pelos representantes do povo, verdadeiros titulares do poder.
5. O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES, A COVID-19 E A AUTOLIMITAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS PELOS BRASILEIROS
A Organização Mundial da Saúde declarou a COVID-19, doença proveniente do Coronavírus (Sars-COV-2), “emergência de saúde pública de interesse internacional”, em virtude de seu célebre contágio e ineficiência inicial de autoridades em relação ao seu controle. Posteriormente, no Estado Brasileiro, restou reconhecido o Estado de Calamidade Pública. Assim, o país se viu inserto no Direito da Legalidade Extraordinária.
Com o escopo de minorar eventuais efeitos dela decorrentes, a União editou lei prevendo uma série de medidas, dentre as quais o isolamento, a quarentena, a determinação de realização compulsória de exames, a limitação da locomoção interestadual e intermunicipal, entre outras. Instado a se manifestar acerca do papel dos governos estaduais e municipais durante a crise e quanto à obediência a determinações e atos normativos federais, inclusive porque alguns deles editaram normas em seus âmbitos – veiculando, por exemplo, o fechamento do comércio e de praças ou locais públicos -, o Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Marco Aurélio, assentou ser a matéria de competência concorrente (do que se extrai também comum no quesito competência material), em atenção ao que preconiza os artigos 24, XII, 23, II e 30, VII, todos da Carta Maior. O Plenário do STF, ao referendar a medida cautelar outrora concedida pelo relator, assentou que a proteção da saúde cabe a todos os entes federativos.
Na vigência do Sistema Constitucional de Crises, os governantes se viram na necessidade de realizarem um juízo de ponderação entre o direito fundamental à saúde em detrimento de uma série de outros, a saber: liberdade de locomoção, propriedade privada, busca do pleno emprego, livre iniciativa, desencadeando conflitos de opiniões entre os brasileiros sobre a efetividade e o acerto de tais providências. Muitos, até, afirmaram que o fechamento do comércio – determinado por alguns gestores locais – seria medida desarrazoada e geradora de crise dificilmente recuperável para o país, a acarretar pobreza violenta, marginalização e mortes por fome; bem como que a proibição de que os munícipies frequentassem praias e praças levaria a um colapso da saúde mental, afinal as pessoas já permaneciam, por longos dias, em suas residências.
Fazendo um corte epistemológico preciso no tema, afirme-se que, aos governantes, é assistido o direito de restringir direitos fundamentais dos administrados, respeitados os comandos e valores constitucionais, em atenção à viga conhecida como supremacia do interesse público sobre o privado, uma das “pedras de toque”, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello. O Sistema Constitucional de Crises, em que inserido o país, regido por vetores como excepcionalidade e temporalidade, permite que ocorra, vez que fundamento para a supremacia do interesse coletivo.
Como outrora exposto, o gestor deve se lembrar, porém, que age buscando interesse público, inexistindo espaço para o que entende melhor para si, ou até para o Estado como pessoa jurídica, e não para o Estado como representante da coletividade.
Nesse sentido, o entendimento de Mário Lúcio Quintão Soares:
A representação democrática está vinculada, pois, ao conceito de função, que se expressa no juramento e no ethos democrático dos funcionários públicos, o qual contém três tipos de controle: o cumprimento da lei, a preservação do interesse público e a decisão imparcial e justa. (SOARES, 2004, p. 180).
Sobre a representação, Canotilho nos faz compreender: segundo o autor, é preciso que se distinga a representação democrática formal da material, devendo as duas se instrumentalizarem de maneira conjunta. A autorização e a legitimidade para representar (delegação de vontade) denota a representação democrática formal, ao passo que a representação democrática material se materializa pela força dessa legitimidade, que se consubstancia somente diante da justeza do conteúdo dos atos dos representantes (CANOTILHO, 2003).
No interstício em que o Direito de Exceção encontrava-se em vigor, legislação foi editada com o fito de explanar nova hipótese de dispensa de licitação – esta, instrumento de garantia da impessoalidade, da moralidade e da eficiência -, assim como a medida provisória nacional, MP nº 966/2020, dispondo que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos somente se daria mediante ações ou omissões perpetradas com dolo ou culpa grave, ambas relacionadas, direta – ou mesmo – indiretamente, ao objeto do desencadeamento do direito excepcional. Na mesma linha, o artigo 2º, do referido ato, previu: “considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.
Diga-se que o Sistema Constitucional de Crises se consolida como direito restrito, motivo por que sua interpretação deve se dar de maneira, ainda mais, enfática e em proximidade aos valores e elementos mostrados pelo constituinte originário. Dessa forma, princípios como o da publicidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, paradigmas substanciais do Estado pátrio, precisam ser observados pelos gestores, inclusive na vigência do Estado Constitucional de Crises, cabendo aos órgãos fiscalizatórios, nos que se inclui os demais Poderes estatais, estarem atentos ao cumprimento das finalidades constitucionais pelos agentes, visto que atos normativos editados só são válidos se compatíveis com a substância da Carta Magna e, em adição, são inapropriados para servirem como meio de afastar responsabilizações, afinal leis ou qualquer outra espécie normativa se legitima quando imposta em razão do interesse público (primário).
Prova disso é a previsão do artigo 141, da Lei da República, que traz a prestação de contas ao Congresso Nacional, pelo Presidente da República quanto a providências tomadas na vigência dos Estados de Exceção constitucionais, e eventual responsabilização, a ser imputada aos executores e agentes de medidas restritivas, por seus atos inconstitucionais, ilegais e/ou em excesso.
Nessa linha, interessantes as palavras de Márcio André Lopes Cavalcante:
O estado democrático garante também o direito de examinar as razões governamentais e o direito da cidadania de criticá-las. Os agentes públicos agem melhor, mesmo durante as emergências, quando são obrigados a justificar suas ações. Assim, o exercício da competência constitucional para as ações na área da saúde deve seguir parâmetros materiais a serem observados pelas autoridades políticas. Esses agentes públicos devem sempre justificar suas ações, que serão controladas pelos demais Poderes e pela sociedade (CAVALCANTE, 2020, p.8).
Acerca do tema, Peter Håberle: “a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática” (HÅBERLE, 2002, p. 14).
Aduzindo acerca do espírito da Constituição Federal de 1988, Márcio Lúcio Quintão Soares:
A força normativa da Carta de 1988 contrapõe-se às arbitrariedades cometidas pelos eventuais detentores do poder, principalmente graças às execráveis medidas provisórias e emendas à Constituição, exigindo-se, portanto, um Judiciário independente e imparcial para resguardar o primado da Constituição em relação aos atos estatais e o legislador. (SOARES, 2004, p. 179-180).
Em ratificação ao pensamento exposado, a Constituição de 1988 trouxe mecanismos, a fim de que o guardião da Constituição – o Supremo Tribunal Federal – fosse provocado, para verificar a compatibilidade de atos normativos com o texto democrático de 1988. Valendo-se disso, legitimados impetraram ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo, alegando a inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 966/2020 (ADIs nºº 6421,6422,6424,6425,6427,6428 e 6431).
Analisando-a, o STF concedeu, por maioria de votos, medida cautelar parcial, no sentido de que os atos dos agentes políticos, relacionados à pandemia da COVID-19, obrigatoriamente devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias, especialmente da Organização Mundial da Saúde. Para a Corte Máxima, “agentes políticos deverão observar o princípio da autocontenção em caso de dúvida sobre a eficácia ou o benefício das medidas a serem implementadas”, determinando que “a autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos” (STF - Plenário, 21.05.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).
O relator, Ministro Roberto Barroso, assentou a necessidade de interpretá-la conforme a Constituição, perfilhando o erro grosseiro como o ato administrativo capaz de provocar ofensa ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado, em virtude de eventual inobservância de normas e critérios científicos e técnicos. Em outra vertente, o Ministro Fux enfatizou que a crise exige celeridade no atuar do gestor que, valendo-se da medida provisória, sente-se mais seguro para atuar, mas asseverou que isso não pode significar uma carta de alforria para atos irresponsáveis de agentes públicos; em suas palavras, “o erro grosseiro, previsto na norma é o negacionismo científico. O agente público que atua no escuro o faz com risco de assumir severos resultados”. Gilmar Mendes afirmou também que as balizas de atuação, nesse período, não se afastam do regime de responsabilidade civil e administrativa constitucionalmente em vigor em circunstâncias de normalidade.
No julgamento, Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia ficaram vencidos no ponto em que entenderam pelo não alcance da norma para os atos de improbidade administrativa e para os objetos de fiscalização dos Tribunais de Contas, o que foi defendido por doutrinadores como Landolfo Andrade, porém a maioria do Plenário decidiu de maneira contrária.
Alguns juristas, como Landolfo Andrade (ANDRADE, 2020), em rede social, ainda mencionaram, talvez por coadunarem com o entendimento exposto no parágrafo antecedente, que a medida provisória seria desnecessária, visto prever semelhante disposição perfilhada pelo artigo 28, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, entretanto, com o decisium do Tribunal Constitucional, afasta-se tal interpretação, pois, embora gramaticalmente e, por isso, por uma interpretação literal, o dispositivo afirme “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, a incidência deste não acarreta o afastamento da norma que retrata a responsabilização por improbidade administrativa nem por decisão do Tribunal de Contas, em sua ação fiscalizatória, ambos de natureza constitucional. O fundamento a possibilitar a diferenciação consiste em ser a medida provisória um ato normativo editado na vigência do Estado Constitucional de Crises, de substratos temporários e excepcionais, precisos para um atuar mais célere e seguro do gestor; enquanto a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro remonta a períodos de normalidade.
Por fim, cabe transcrever os vocábulos de Georges Abboud:
A crença fácil e excessiva na ideia de que momentos de crise exigem, necessariamente, leis novas e mais rigorosas estabelece um mau precedente: o de que a constituição não dá soluções às crises. A história, “mãe da verdade, depositária das ações, testemunha do passado e anúncio do presente” nos ensina o oposto: as constituições modernas nasceram das crises e são as filhas redentoras dos tempos imemoriais da barbárie (...) As Constituições são os remédios para as crises, e não há civilização fora da constitucionalidade (ABBOUD, 2020).
Estabelecidas, então, a bússola na autolimitação dos direitos fundamentais dos brasileiros, no interstício de vigência da COVID-19, em nosso país democraticamente legal.
6. CONCLUSÃO
No Estado Democrático de Direito assentado na República Federativa do Brasil, aos gestores públicos, assiste-se o direito de restringir direitos fundamentais da população, vez que ela mesma o faz, pois os agentes públicos, em verdade, a representam, em decorrência de eleições justas e periódicas.
A limitação ao garantido pela Lei Magna exige uma interpretação conforme à Constituição, sistemática, axiológica, unitária e, sobretudo, harmônica, inclusive no que toca eventuais atos normativos que, porventura, objetivem diminuir responsabilizações por atos excessivos ou burlar o controle social ou a consolidação do mecanismo dos freios e contrapesos, explícita e implicitamente adotado pelo constituinte originário, a fim de não descaracterizar o sistema organizatório-funcional delineado.
Dessa forma, finde-se o estudo ressaltando a legalidade na restrição temporária de direitos fundamentais, em decorrência da preocupante situação imposta aos Estados, no que o Brasil está incluído, pela COVID-19, desde que atendido o que democraticamente assentado no mais evoluído texto constitucional brasileiro.
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