RESUMO: A lei nº 13.964, de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime” modificou a lei de improbidade administrativa, acrescendo, a este texto, a previsão da possibilidade de autocomposição no bojo de ações que visam a responsabilização por condutas ímprobas. Na verdade, sobre essa possibilidade já se defendia positivamente, haja vista Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle administrativo e funcional de um dos colegitimados, perfilhá-la, desde que ausente a renúncia ao direito material protegido. O presente estudo buscou comprovar, a partir de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, que referida mudança é constitucional e que se está em consonância com o instante evoluído a que submetido o processo civil, sendo o processo coletivo um tipo especial deste, ligada à efetividade, à adequação e à utilidade do acesso à justiça, bem como ao desafogamento do Judiciário, a fim de que o Poder tenha espaço para dirimir o que somente a ele compete.
Palavras-chave: Pacote Anticrime. Improbidade Administrativa. Autocomposição. Efetividade.
ABSTRACT: Law No. 13.964, of 2019, known as “Anticrime Package”, modified the law of administrative improbity, adding to this text the provision for the possibility of self-composition in the midst of actions aimed at holding accountable for improper conduct. In fact, this possibility was already positively defended, in view of the Resolution of the National Council of the Public Ministry, an administrative and functional control body of one of the collegitimates, to profile it, provided that the waiver of the protected material right is absent. The present study sought to prove, based on a bibliographic research, using the deductive method, that said change is constitutional and that it is in line with the evolved moment to which the civil process is submitted, the collective process being a special type of this. , linked to the effectiveness, adequacy and usefulness of access to justice, as well as to the relief of the Judiciary, so that the Power has space to settle what it is responsible for.
Keywords: Anti-crime package. Administrative Dishonesty. Self-composition. Effectiveness.
1. INTRODUÇÃO
O Pacote Anticrime poderia ter inserido modificação na lei nº 8.429/92? Ela é algo novo no que toca ao tema? Ela é compatível com o espírito do constituinte originário e com os desejos dos administrados?
Em que pese a lei nº 13.964, de 2019, ter sido editada com o fito de promover mudanças nas searas penal e processual penal, trouxe, em soma, modificação à lei de improbidade administrativa, que é de caráter civil.
A mudança veio ao encontro do momento vivido pela sociedade, que verificou a eficácia de lhe preferir, qual seja: a solução consensual dos conflitos, sempre que possível. E já era aplicável, pelo Ministério Público, um dos legitimados à ação respectiva, com fundamento nas Resoluções nº 23/2007 e 179/2017, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público.
O presente estudo tecerá considerações acerca da introdução perfilhada ao diploma legal que retrata os atos ímprobos, aclarando o entendimento sobre a matéria. E o fará a partir da sua divisão em tópicos: no primeiro, desenvolver-se-á a ideia da improbidade administrativa como instituto, sua normatização e jurisprudência correlata; após, tratar-se-á acerca da inserção do pensamento negocial na temática; findando-se com breve dissertação relativamente à nova previsão expressa, quando se responderá aos questionamentos acima mencionados.
Demonstrada a discussão em evidência e sua importância no contexto do Direito brasileiro, afirme-se que se realizará uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, tendo por marco referencial teórico, sobretudo, as obras de Daniel Assumpção, de Rafael Rezende e de Fredie Didier Júnior.
2. A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMO INSTITUTO, SUA NORMATIZAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA CORRELATA
A lei que rege a improbidade administrativa é de uma eminência ímpar no contexto da Administração Pública, haja vista ser ligada à ideia de honestidade, probidade, impessoalidade, moralidade, eficiência e tantos outros valores imprescindíveis à consecução dos fins estatais.
Nas palavras de Daniel Assumpção,
A previsão normativa de instrumentos jurídicos aptos a combater a desonestidade, a corrupção e a deslealdade com o trato da coisa pública, representa importante critério de verificação da seriedade de determinado Estado (NEVES; OLIVEIRA, 2020, p. 33).
Siga-se com o tema.
2.1. SUCINTA INTRODUÇÃO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMO INSTITUTO
O artigo 37, da Carta Magna, inaugura o capítulo da Administração Pública no texto da Lei Maior, trazendo como princípios explícitos a serem observados pelos gestores da Administração direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Outros vetores são implícitos na Constituição Federal – como a probidade – e também considerados como princípios constitucionais em virtude da previsão do artigo 5º, §2º, da Constituição Federal (“... não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados por esta Constituição...) e da necessidade de se fazer uma interpretação sistemática da Constituição da República, atendendo aos vetores hermenêuticos da unidade e da integração.
Sobre o campo de aplicabilidade dos axiomas,
qualquer das modalidades de administração pública com que inicialmente trabalhamos: a administração pública enquanto atividade e a administração pública enquanto aparelho ou aparato de poder. Logo, princípios que submetem o Estado quando da criação legislativa de órgãos e entidades, assim como submetem todo e qualquer Poder estatal quando do exercício da atividade em si de administração pública (BRITTO, 2013, p. 822).
O referido doutrinador é direto quando menciona os princípios administrativos:
Não basta aplicar a lei, pura e simplesmente, mas aplicá-la por um modo impessoal, um modo moral, um modo público e um modo eficiente. Modos que são, de parelha com a lei, as primeiras condições ou os meios constitucionais primários de alcance dos fins para os quais todo poder administrativo é legalmente conferido. (...) A administração pública somente alcança o patamar da legitimidade plena quanto aos seus meios ou meios de atuação, se, impulsionada pela lei, a esta consegue imprimir o selo dos outros quatro princípios. Operando, estes, como fatores de legitimação conjunta da própria lei, do Direito como um todo e da atividade administrativa em especial (BRITTO 2013, p. 822).
Nos vocábulos de Maria Sylvia Zanella di Pietro, o retrato da impessoalidade:
estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que deve nortear o seu comportamento. Aplicação desse princípio encontra-se, por exemplo, no art. 100, da CF, referente aos precatórios judiciais; o dispositivo proíbe a designação de pessoas ou de casos nas dotações orçamentárias e nos créditos abertos para esse fim (DI PETRO, 2019, p. 219).
E o entender de Fernanda Marinela relativamente ao princípio da moralidade: “é composta não só por correção de atitudes, mas também por regras de boa administração, pela ideia de função administrativa, interesse do povo, do bem comum”, que complementa:
A Constituição Federal, ao consagrar o princípio da moralidade, determinou a necessidade de sua proteção e responsabilização do administrador amoral ou imoral. Para tanto, encontram-se no ordenamento jurídico inúmeros mecanismos para impedir atos de imoralidade, como, por exemplo, regras sobre improbidade administrativa, no art. 37, §4º, da CF e na lei n. 8429/92; (...) e, recentemente, a Lei n. 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção, além de outros instrumentos (MARINELA, 2018, p. 87).
A improbidade administrativa não é uma simples ilegalidade, ou seja, um mero desatendimento à lei; a doutrina denomina improbidade de “ilegalidade qualificada”, sendo necessário um plus, a se somar ao elemento subjetivo do dolo ou ao menos culpa (esta nos casos de dano ao erário) de burlar a lei. Nesse sentido, Daniel Assumpção:
É importante destacar que a improbidade administrativa não se confunde com a mera irregularidade ou ilegalidade, destituída de gravidade e do elemento subjetivo do respectivo infrator. A improbidade é uma espécie de legalidade qualificada pela intenção (dolo ou, excepcionalmente, culpa grave) de violar a legislação e pela gravidade da lesão à ordem jurídica. Vale dizer: a tipificação da improbidade depende da demonstração da má-fé ou desonestidade, não se limitando à mera ilegalidade, bem como da grave lesão aos bens tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa (NEVES; OLIVEIRA, 2020, p. 30).
Assim, a improbidade viria de uma ofensa à moralidade e à probidade, em conjunto com a ofensa à legalidade, até porque Gilmar Mendes, ao tratar do princípio da moralidade, afirma que, para este funcionar como vetor na Administração Pública, deve estar somado a outros.
Em nome deste princípio jurídico, a correção de determinada forma jurídica pode ser questionada em razão de sua desconformidade com determinado critério de correção. Não obstante estas considerações, ao princípio da moralidade pode ser aplicada alguma densificação, tendo em vista outros parâmetros, como o princípio da proporcionalidade, o princípio da não arbitrariedade do ato administrativo e o próprio princípio da isonomia. O princípio da moralidade, portanto, para funcionar como parâmetro de controle administrativo, deve vir aliado aos outros princípios fundamentais, dentre os quais assumem relevância aqueles que funcionam como diretriz para a atuação da Administração Pública. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 860).
Ademais, é de valia lembrar que os princípios constitucionais, por si, ensejam responsabilização, tendo em vista a localização no atual momento do Constitucionalismo, qual seja no neoconstitucionalismo, instante histórico que se preocupa, sobretudo, com a eficácia do texto constitucional, dos direitos fundamentais, sem deixar de lado a limitação do poder do governante, tendo, pois, a Constituição Federal força normativa por si (como já defendia Konrad Hesse) e sendo o centro de todo o ordenamento jurídico. Nas palavras de Roberto Barroso e Miguel Carbonell,
O marco teórico do novo direito constitucional envolve três conjuntos de mudanças de paradigma. O primeiro, já referido, foi o reconhecimento de força normativa às disposições constitucionais, que passam a ter aplicabilidade direta e imediata, transformando-se em fundamentos rotineiros das postulações de direitos e da argumentação jurídica. O segundo foi a expansão da jurisdição constitucional (...) (BARROSO, 2019, p. 281).
Se trata de Constituciones que no se limitan a establecer competencias o a separar a los poderes públicos, sino que contienem altos niveles de nromas materiales o substantivas que condicionan la actuación del Estado por médio de la ordenación de ciertos fines y objetivos. Ejemplos representativos de este tipo de Constituciones lo son la española de 1978, la brasileña de 1988 y la colombiana de 1991. (CARBONELL, 2007, p. 10).
Prova disso é o entendimento do Supremo Tribunal Federal no que toca à aplicação de sua súmula vinculante 13, que trata do nepotismo.
A vedação ao nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática, dado que essa proibição decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal. [Tese definida no RE 579.951, rel. min. Ricardo Lewandowski, P, j. 20-8-2008, DJE 202 de 24-10-2008, Tema 66.]
Ratificando e em consonância com o constituinte originário, a lei nº 8.429/92, em seu artigo 4º, explicita a precisão de observância dos mesmos princípios do artigo 37, da Carta Magna.
O tema “improbidade administrativa” não se esgota na lei nº 8.429/92; diplomas preveem outros casos de improbidade na Administração, como o Estatuto das Cidades, em seu artigo 52, e a Lei Complementar nº 64/90, que estabelece hipóteses de inelegibilidade. E cabe dizer que o rol dos artigos 9º, 10 e 11, da referida legislação, que trazem as condutas ímprobas, é meramente exemplificativo, ou seja, aberto, não limitado, tanto que, quando vai se descrevê-las, os dispositivos usam a expressão “e notadamente”.
2.2. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, SUA NORMATIZAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA CORRELATA
A lei inicia trazendo quem pode figurar como legitimado passivo de uma possível ação referente, isto é, contra quem pode ser intentada a responsabilização por conduta ímproba:
a) agentes públicos, servidores ou não, da Administração Pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes dos entes federativos, de território, de empresa ou entidade para a qual o Poder Público direcione dinheiro do povo, inclusive se ela apenas recebe benefício, subvenção ou incentivo fiscal ou creditício. Aqui, engloba-se servidores temporários, quem exerce função, cargo, mandato emprego, ainda que transitório e sem remuneração ou é contratado pela Administração Pública, e os estagiários. Contudo, faça-se uma ressalva: para as empresas ou entidades que o Poder Público somente custeia ou custeou menos de 50% do patrimônio ou de sua receita anual, a sanção patrimonial limitar-se-á à contribuição dos cofres públicos, assim como para as entidades apenas subvencionadas ou beneficiadas com incentivo fiscal ou creditício.
b) qualquer outro que concorra, induza ou se beneficie, de maneira direta ou indireta. Aqui, é importante lembrar da súmula 634, do STJ, que explana que, ao particular, será aplicado o mesmo regime prescricional previsto na Lei de Improbidade para o agente público, isso porque o particular só é punido na presença de uma atuação punível de um agente público, aplicando-se àquele as sanções e prescrição a este imputadas (STJ – Jurisprudência em Teses – Improbidade Administrativa I - Tese nº 8). Em outra vertente, esclareça-se que, de acordo com o STJ, não há que se falar em litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e os terceiros beneficiados, vez ser possível a responsabilização unicamente do agente público (STJ – Jurisprudência em Teses – Improbidade Administrativa I - Tese nº 9). Ainda afirme-se, em relação ao particular beneficiário, que a Lei Anticorrupção foi editada para dispor acerca da responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública.
Os artigos 9º, 10 e 11 preveem condutas caracterizadoras de improbidade. Conforme já mencionado, são enumerações exemplificativas. E o elemento subjetivo necessário é o dolo – genérico - e a culpa (esta na hipótese de ato ímprobo perfilhado no artigo 10, do diploma relacionado), podendo as condutas se darem por ação ou omissão.
A configuração do ato ímprobo pela presença do dolo, ainda que genérico, ou seja, sem elemento subjetivo especial, é afirmação retirada da jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1352535/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/4/2018, DJe 25/4/2018; REsp 1714972/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 25/05/2018;AgInt no REsp: 1422805 SC 2013/0398072-8, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 14/08/2018, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/08/2018).
Explicitando o instituto em tela e para a correta subsunção, é interessante pensar que o artigo 9º restará evidenciado quando o agente público for o beneficiado pela conduta ímproba, a exemplo de quando utiliza, em proveito próprio, de bens, rendas, valores da Administração Pública ou se utiliza, para obra ou serviço particular, de pessoas pertencentes ao quadro da Administração, de veículos, enfim, de bens ou material de qualquer natureza, auferindo vantagens. Em outra vertente, assim acontecerá com o artigo 10, na ocorrência de dano ao erário, geralmente com benefício ao particular, quando o agente público facilita, permite ou concorre para o enriquecimento de outrem, ou quando não observa a lei, inclusive em caso de doação a entidade de fins educativos ou assistenciais, mas tem que causar dano ao erário, caso contrário, o ato enquadrar-se-á no artigo 11; o mesmo se diga da atuação negligente na arrecadação de tributo ou conservação do patrimônio público, na frustração de licitação ou em sua dispensa indevida, entre outros.
A responsabilização por improbidade administrativa independe das sanções penais, cíveis e administrativas de legislação específica, e pode se dar em duas ordens: administrativa ou judicial. Aquela se perfaz mediante representação escrita com identificação à autoridade administrativa competente – diferente da possível representação ao Ministério Público, que excepcionalmente pode ser anônima -, sabendo-se que a rejeição da responsabilização por essa via não impede a representação perante o referido órgão fiscalizatório.
Instaurado o procedimento administrativo, porque a autoridade administrativa competente enxergou fundamento suficiente, ela dará conhecimento ao órgão ministerial e ao Tribunal de Contas do Estado sobre a existência do procedimento; ambos podem designar representante, a fim de que este o acompanhe.
Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão processante representa ao Ministério Público ou à sua Procuradoria, com o fito de que eles requeiram o sequestro dos bens do agente ou de terceiro. A lei também prevê, em seu artigo 7º, a discricionariedade de se pedir ao Parquet que ele pleiteie, em juízo, a indisponibilidade de bens do(s) acusado(s), na ocorrência de provável enriquecimento ilícito ou dano ao erário; acerca do tema, o STJ se manifestou dizendo ser cabível tal medida também na hipótese de violação aos princípios, conduta tipificada no artigo 11, da lei nº 8.429/92, porque o seu objetivo é garantir não apenas o pagamento do enriquecimento ilícito ou do dano ao erário, mas, por outro lado, em adição, a multa civil. Vale dizer que o Código de Processo Civil de 2015 não se esmiuçou, como o de 1973, no que tange às medidas cautelares nominadas, gênero de que o sequestro seria espécie. A doutrina aduz ter ocorrido uma ampliação quanto ao uso das medidas cautelares e que tanto as nominadas como as inominadas devem ser requeridas com observância do artigo 301, do Código de Processo Civil.
Já o processo judicial, tem início por provocação do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada (ente político lesado), tramitando sob o rito ordinário.
No que toca a matéria, é interessante atentar ao fato da competência: cabe ao juiz de primeiro grau o seu processamento e julgamento, a exceção dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, consoante jurisprudência deste Tribunal e do STJ, que são julgados no próprio, e do Presidente da República, que não responde por improbidade administrativa. A responsabilização por crime de responsabilidade não afasta a imputação de responsabilidade por improbidade, a exceção do Presidente da República, que apenas responde de acordo com o artigo 86, da Constituição Federal, haja vista o artigo 85, V, da CF, mencionar expressamente ser crime de responsabilidade o ato que atenta contra a probidade administrativa.
O Ministério Público pode ser autor, quando se possibilitará ao ente federativo lesado que o acompanhe no polo ativo, consubstanciando a intervenção móvel ou legitimidade bifronte, à luz da lei de ação civil pública; em não o sendo, atuará obrigatoriamente no feito, como fiscal da ordem jurídica, assim como ocorre no incidente de resolução de demandas repetitivas.
Na via judicial, o processamento segue a seguinte ordem: primeiramente, é oportunizada a defesa prévia ao acusado, sabendo-se que, para anular o processo, necessário que se demonstre o prejuízo; após, o juiz analisa se recebe a ação – em recebendo, cabe agravo de instrumento como forma de impugnação, e em não recebendo (convencido, o magistrado, da inexistência do ato ímprobo, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita), a apelação é o recurso cabível. Observe-se, porém, que, mesmo que o juiz a receba, em verificando posteriormente a inadequação da ação, pode extinguir o processo sem resolução de mérito. Depois, seria o momento ideal, a fim de que o julgador analisasse o pleito de indisponibilidade ou sequestro de bens requerido na inicial, entretanto o STJ outrora afirmou que essas medidas cautelares podem ser efetivadas ainda que antes do recebimento da inicial, e também podem ser concedidas em momento posterior ao ato mencionado.
Outra medida cautelar explicitada pela lei nº 8.429/92 é o afastamento cautelar do agente público, a ocorrer por determinação da autoridade administrativa ou judicial, na hipótese em que vislumbrada a sua necessidade para a instrução. O Superior Tribunal de Justiça afirma que o prazo aqui é de 180 dias. Cabe dizer que a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, sanções expostas no artigo 12, da mesma legislação, somente podem ser imputadas com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
No que toca às punições por conduta ímproba, o STJ assentou a possibilidade de que elas sejam imputadas de maneira autônoma, isto é, não existe a obrigatoriedade em se punir com todas as sanções dispostas no dispositivo respectivo do artigo citado; à critério do Judiciário, de acordo com a natureza, gravidade e outros aspectos relevantes. E a aplicação da pena independe da efetiva ocorrência do dano, salvo quanto à pena de ressarcimento, até porque o artigo 11 se configura em havendo o dolo de descumprimento dos princípios regentes da Administração, bem como da aprovação ou rejeição das contas pelos Tribunais de Contas competentes.
A lei de improbidade administrativa (LIA) perfilha um crime especial em relação à denunciação caluniosa, tipificada no artigo 339, do Código Penal, pois, nesta, pune-se quem dá causa à instauração de investigação imputando, à pessoa, crime de que sabe ser a pessoa inocente. Contudo, aquela lei pune quem imputa ato ímprobo. Então, em nosso ordenamento, dar causa a início de investigação por ilícito que não seja crime, não configura delito penal, sendo fato atípico, salvo na hipótese de dar motivo a que se comece investigação por ato ímprobo, que é delito previsto na LIA. Explique-se: se o agente deu causa à instauração de investigação de improbidade administrativa em virtude de conduta que corresponde a um crime, consubstanciada está a denunciação caluniosa, podendo ser preso de dois a oito anos, somada à imputação de multa por isso; entretanto, se ele deu causa à instauração de investigação de improbidade, e o ato ímprobo equivocadamente imputado a terceiro não corresponder a um crime, responderá pelo delito tipificado no artigo 19, da LIA.
Referentemente à prescrição, o interstício para sua ocorrência é de: cinco anos, contados do término do mandato, cargo em comissão ou função de confiança (se o agente público foi reeleito, o prazo só começa a ser contado do fim do segundo mandato consecutivo), ou da data para prestação de contas à Administração Pública para as entidades do parágrafo único do artigo 1º, da LIA (“entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público, bem como para aquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”). Se, porém, o agente público possuir cargo efetivo ou emprego, o interstício prescricional é aquele relacionado, pela sua lei de regência, para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público. Lembre-se, todavia, que o Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, fixou a tese de imprescritibilidade das ações que buscam o ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa, o que não pode ser confundido com a prescritibilidade da reparação de danos à Fazenda Pública por ilícito civil.
Findando o presente tópico, explana-se apontamentos importantes sobre a temática: não se pode esquecer da possibilidade da coexistência de título executivo extrajudicial advindo do respectivo Tribunal de Contas e de sentença condenatória em ação civil pública por improbidade, relacionada ao ressarcimento, inocorrendo “bis in idem”, ainda que em virtude do mesmo fato, observando-se, contudo, quando da segunda execução, o desconto devido. Ademais, a improbidade administrativa é apta a gerar demissão de servidor, seja pelo Judiciário, seja em processo administrativo disciplinar, consoante o STJ.
3. A INTRODUÇÃO DO PENSAMENTO DA JUSTIÇA NEGOCIAL E O MICROSSISTEMA COLETIVO
A legislação que rege a improbidade, no Brasil, compõe o microssistema coletivo brasileiro, de acordo com a doutrina e a jurisprudência brasileira, conforme abaixo se explana:
(...) Nos termos da jurisprudência desta Corte, a ação civil pública por ato de improbidade administrativa e a ação popular formam um microssistema de proteção de direitos coletivos, sendo plenamente compatíveis. Nesse sentido: STJ, AgInt no REsp 1.379.659/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 18/04/2017; AgRg nos EREsp 995.995/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe de 09/04/2015; REsp 1.221.254/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 13/06/2012. VII. Agravo interno improvido.(STJ - AgInt no AREsp: 1410272 GO 2018/0320810-0, Relator: Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 16/05/2019, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/05/2019)
Nessa esteira, Daniel Assumpção:
(...) sempre que a lei específica, no caso a lei nº 8.429/92, não tiver previsão a respeito de algum aspecto processual, deve-se buscar no núcleo duro do microssistema a solução. O Superior Tribunal de Justiça é tranquilo na aplicação da lei nº 7.437/85 subsidiariamente à lei nº 8.429/92. (NEVES; OLIVEIRA, 2020, p. 184).
Sobre a tutela jurisdicional coletiva, o referido autor aduz:
(...) A tutela jurisdicional é voltada para tutela do direito material (...) distinção existente entre tutela jurisdicional individual e coletiva, que adota como critério de distinção a espécie do direito material violado. (...) Dessa forma, a tutela coletiva deve ser compreendida como uma espécie de tutela jurisdicional voltada a determinadas espécies de direitos materiais. A determinação de quais sejam esses direitos é tarefa do legislador, não havendo uma necessária relação entre a natureza do direito tutelado e a tutela coletiva. Significa dizer que mesmo direitos de natureza individual podem ser protegidos pela tutela coletiva, bastando, para isso, que o legislador expressamente determine a aplicação desse tipo de sistema processual – microssistema coletivo – a tais direitos. É exatamente o que ocorre com o direito individual homogêneo que, mesmo tendo natureza individual, é objeto de tutela coletiva por expressa previsão do Código de Defesa do Consumidor. O mesmo ocorre com os direitos individuais indisponíveis do idoso, da criança e do adolescente, desde que a ação coletiva seja promovida pelo Ministério Público, nos termos dos arts. 15, 74 e 79 da lei nº 10.741/2001 (Estatuto do Idoso) e arts. 11, 201,V, e 208, VI e VII, da lei nº 8.069/1990 (ECA). (NEVES,; OLIVEIRA, 2020, p. 191 e 192).
Aclarando a temática, Fredie Didier e Hermes Zaneti:
Uma relação jurídica é coletiva se em um de seus termos, como sujeito ativo ou passivo, encontra-se um grupo (comunidade, categoria, classe, etc.; designa-se qualquer um deles pelo gênero grupo) e, se no outro termo, a relação jurídica litigiosa envolver direito (situação jurídica ativa) ou dever ou estado de sujeição (situações jurídicas passivas) de um determinado grupo. Assim, presentes o grupo e a situação jurídica coletiva, temos um processo coletivo. Assim, processo coletivo é aquele em que se postula um direito coletivo latu sensu (situação jurídica coletiva ativa) ou que se afirme a existência de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.) de titularidade de um grupo de pessoas (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2020, p. 35 e 36).
Assim, o direito coletivo refere-se a presença de um grupo em um dos polos da relação.
O Direito precisa acompanhar o desenvolvimento da sociedade, sob pena de ficar obsoleto, e o Direito Processual Civil vem perpassando por mudanças, a fim de corresponder às tendências modernas, até porque se verificou que o sistema tradicional adotado, até então, seria insuficiente para atender às demandas que lhe eram postas. O Direito Processual Coletivo é espécie do gênero processual civil, é o chamado processo civil especial.
Acerca das grandes alterações vividas pelo ramo, Rios Gonçalves:
O processo civil tem, nos dias de hoje, passado por grandes alterações. A par das teorias e fundamentos clássicos, assiste-se ao surgimento de novos movimentos e tendências, cujos instrumentos se prestam a atender às necessidades das sociedades contemporâneas. Há, hoje em dia, uma priorização de certos aspectos do processo, para os quais o sistema tradicional não dava solução. Os casos mais evidentes são os relacionados ao acesso à justiça e à lentidão dos processos, bem como à distribuição dos ônus decorrentes da demora na solução dos conflitos. (...) A busca atual e os novos rumos do processo dirigem-se à universalização da justiça, com a facilitação do acesso a todos, melhor distribuição do ônus do processo, além da tutela de interesses que, por estarem fragmentados entre os membros da coletividade, não eram adequadamente protegidos (socialização da justiça). A isso, deve-se acrescentar a tendência da constitucionalização do direito (GONÇALVES, 2018, p. 58).
Ao elencar os valores relacionados ao momento atual e às perspectivas para o futuro, o doutrinador citado é firme ao elencar a busca de formas alternativas de solução de conflitos como um deles.
Ao dissertar sobre as equivalentes jurisdicionais, Daniel Assumpção retrata não ter o Estado o monopólio da solução dos conflitos, pois a lei admite que este escopo seja alcançado pelas partes, entre si, enaltecendo o benefício de, em alguns momentos, elas serem valoradas:
A valorização das formas alternativas de solução dos conflitos já é demonstrada no art. 3º, do Novo Código de Processo Civil. Nos termos do §2º, o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos, enquanto o §3º prevê que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos devem ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (NEVES, 2016, p. 3 e 4).
É de salutar importância, todavia, enaltecer a expressão “sempre que possível” na incidência das equivalentes jurisdicionais para a solução de conflitos, devendo ocorrer a substituição do sistema tradicional apenas quando isso for o mais justo. Nesse sentido, a lição de Daniel Assumpção:
Por outro lado, em especial em determinadas áreas do direito material, como o direito consumerista, a distância econômica entre o litigante contumaz (fornecedor) e o litigante eventual (consumidor) gera transações – ou conciliações a depender do sentido emprestado ao termo – absolutamente injustas e que passam longe da tão propalada pacificação social. Se parece interessante por variadas razões para o fornecedor, para o consumidor a transação é muitas vezes um ato de necessidade, e não de vontade(...) Porque, ao se consolidar a política da conciliação em substituição à jurisdição, o desrespeito às normas de direito material poderá se mostrar vantajoso economicamente para sujeitos que têm dinheiro e estrutura para aguentar as aguras do processo e sabem que do outro lado haverá alguém lesado que aceitará um acordo, ainda que desvantajoso, somente para se livrar dos tormentos de variadas naturezas que o processo atualmente gera. (NEVES, 2016, p. 4 e 5).
Com a evolução do Direito, viu-se que a maneira conciliatória, negocial, de resolver conflitos poderia ser mais eficaz em um contexto em que fosse permitido sua atuação. Isso possui íntima relação com o postulado da efetividade, também entendido como valor desse novo instante, com o da resposta justa ao jurisdicionado e com o vetor da razoável duração do processo, além de sua compatibilidade com o Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido e enaltecendo o princípio da adequação, Fredie Didier e Hermes Zaneti Júnior:
Nesta nova justiça, a solução judicial deixa de ter a primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser ultima ratio, extrema ratio. A ideia de adequar o acesso à justiça aos direitos é defendida internacionalmente. A justiça não estatal não é apenas alternativa, mas, em determinados casos, é a justiça mais adequada. O princípio que faculta essa possibilidade é justamente o princípio da adequação. Assim, do acesso à justiça dos tribunais passamos ao acesso dos direitos pela via adequada de composição, da mesma forma que, no campo do processo, migramos da tutela processual, como fim em si, para a tutela dos direitos, com finalidade do processo. ((DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2020, p. 376).
Com o fito de, resumidamente explanar a autocomposição e sua solução consensual de resolução de conflitos, extrai-se os vocábulos de Daniel Assumpção:
A autocomposição é uma interessante e cada vez mais popular forma de solução dos conflitos sem a interferência da jurisdição, estando fundada no sacrifício integral ou parcial do interesse das partes envolvidas no conflito mediante a vontade unilateral ou bilateral de seus sujeitos (...) é um gênero, do qual são espécies a transação – a mais comum, a submissão e a renúncia. Na transação, há um sacrifício recíproco de interesses, sendo que cada parte abdica parcialmente de sua pretensão para que se atinja a solução do conflito. Trata-se do exercício de vontade bilateral das partes, visto que quando um não quer dois não fazem a transação. Na renúncia e na submissão, o exercício de vontade é unilateral, podendo até mesmo ser consideradas soluções altruístas do conflito, levando em conta que a solução decorre do ato da parte que abre mão do exercício de um direito que teoricamente seria legítimo. Na renúncia, o titular do pretenso direito simplesmente abdica de tal direito, fazendo-o desaparecer juntamente com o conflito gerado por sua ofensa, enquanto na submissão o sujeito se submete à pretensão contrária, ainda que fosse legítima sua resistência. (NEVES, 2016, p. 5).
Lembre-se que a autocomposição é tão relevante para a efetividade e para a utilidade do acesso à justiça que o artigo 139, V, do Código de Processo Civil (CPC) prevê explicitamente que ela poderá se realizar a qualquer momento, bem como a Resolução nº 179/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, e, ainda, o CPC evidencia sua importância em diversos momentos, a exemplo dos arts. 165, 166, §3º, 190, 221, parágrafo único, 334, §5º, 381, II, entre outros. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já assentou a possibilidade de autocomposição até em processos de índole objetiva, afirmando que o fez “com vistas a conferir maior efetividade à prestação jurisdicional” (STF. Plenário. ADPF 165/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 01/03/2018).
Feita tal diferenciação, concentre-se no objeto principal de análise do presente estudo.
4. A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, A AUTOCOMPOSIÇÃO E O PACOTE ANTICRIME
A lei nº 7.347/85 (LACP) é um dos diplomas que compõem o núcleo duro do direito (processual) coletivo, no qual se insere a improbidade administrativa, assim como o Código de Defesa do Consumidor. Desse modo, não havendo norma específica na lei que rege dada matéria do âmbito do direito coletivo, esta será complementada pela disposição das outras que compõem o microssistema, sobretudo pela lei da ação civil pública e pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A lei nº 7.347/85 foi alterada pelo CDC e passou a prever, em seu art. 5º, §6º, a possibilidade de os órgãos públicos firmarem compromisso de ajustamento de conduta, com eficácia de título executivo extrajudicial.
Nesse ponto, vale lembrar que não são todos os legitimados a figurarem no polo ativo da ACP, dispostos no art. 5º, da lei respectiva, que possuem a prerrogativa de promover o compromisso de ajustamento de conduta, mas apenas aqueles que detêm natureza pública, quais sejam, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Administração direta e suas autarquias e fundações de direito público.
No que toca à natureza jurídica do compromisso de ajustamento de conduta, parte da doutrina entende se tratar de modalidade específica de autocomposição, a exemplo de Fredie Didier e Hermes Zaneti, enquanto uma segunda corrente doutrinária defende ser um verdadeiro negócio jurídico, como o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 1º, da Resolução 179/2017).
Um ponto importante refere-se a analisar os limites a que se submete tal instrumento. É vedada a disponibilidade do direito material tutelado, podendo ocorrer a disponibilidade do direito processual. Nesse sentido, Geisa de Assis Rodrigues, “De conseguinte, o compromisso tem que ser um meio através do qual se possa alcançar, pelo menos, tudo aquilo que seja possível obter em sede de eventual julgamento de procedência em ação judicial relacionada àquela conduta específica” (RODRIGUES, 2002, p. 175), assim como Fredie Didier e Hermes Zaneti:
Pelo compromisso de ajustamento de conduta, não se pode dispensar a satisfação do direito transindividual ofendido; não cabe a renúncia, mas, tão somente, a regulação do modo como se deverá proceder à reparação dos prejuízos, a concretizar os elementos normativos para a efetivação do direito coletivo. (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2020, p. 381).
Ratificando o pensamento acostado, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão de controle administrativo e funcional dos membros de um dos legitimados à propositura do acordo, editou as Resoluções 23/2007 e 179/2017, para regulamentar a atuação deste no referido instrumento negocial, nas quais, de forma categórica, em seus arts. 14 e 1º, respectivamente, afirmou que o Parquet poderá firmar o compromisso com o responsável pela ameaça ou lesão aos direitos tutelados “visando (unicamente) à reparação do dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à compensação e/ou à indenização pelos danos que não possam ser recuperados”, complementando que “não sendo o titular dos direitos concretizados no compromisso de ajustamento de conduta, não pode o órgão do Ministério Público fazer concessões que impliquem renúncia aos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (...)”.
Mais uma vez utilizando-se de Fredie Didier e Hermes Zaneti Júnior, aclara-se o que se afirmou:
Não é possível haver renúncia ao direito sobre o que se funda a ação coletiva, que não é de titularidade do legitimado extraordinário coletivo, mas do grupo; é possível, porém, cogitar o reconhecimento da procedência do pedido, por se tratar de benefício para o grupo – salvo em casos de situações jurídicas coletivas passivas, em que a tônica da indisponibilidade se mantém, pois situações jurídicas coletivas não estarão no polo passivo do processo (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2020, p. 378).
Em regra, o compromisso tem eficácia de título executivo extrajudicial, afinal é celebrado, na grande maioria das vezes, antes de ser iniciada a ação que visa à efetivar a responsabilidade do acusado, entretanto nada impede que seja feito na fase judicial, quando, após a homologação do magistrado, ostentará eficácia de título executivo judicial. No entanto, mesmo sendo perfectibilizado no meio de um processo judicial, permanece a impossibilidade de disposição do direito material, tendo em vista a natureza indisponível dos direitos tutelados e a discrepência entre o polo ativo e o titular do direito protegido.
A lei nº 8.429/92 proibia, até o advento do Pacote Anticrime, a celebração de acordo ou transação, no seio de ação de improbidade administrativa. Contudo, a Resolução nº 179/2017, do CNMP, já admitia, o que o fez explicitamente, ressalvando que o compromisso não prejudicaria o ressarcimento ao erário nem a aplicação de uma ou de algumas sanções previstas pela lei, a serem ponderadas de acordo com a conduta praticada.
A partir da entrada em vigor do referido ato normativo do CNMP, passou-se a admitir a composição negocial nas hipóteses de improbidade administrativa, embora vozes em sentido contrário se levantaram aduzindo a impossibilidade de ato normativo de 2º grau afrontar o disposto em lei.
Todavia, o Ministério Público, em seus mais diversos ramos, aplicavam a Resolução e, consequentemente, firmavam acordos no bojo de investigações que sabidamente ensejaria a propositura de ações civis públicas visando à responsabilização por improbidade administrativa, sobretudo pelas considerações – bem - perfilhadas pelo CNMP, no texto minoritariamente impugnado, quais sejam: efetividade e promoção da justiça, utilidade da redução da litigiosidade, tendência unânime à desjudicialização, desafogamento do Judiciário, que teria espaço para garantir o acesso à justiça, entre outras.
Então, em consonância com a tendência do país na desjudicialização e pelos motivos positivos acima assentados, o legislador, em boa hora, modificou a lei de improbidade administrativa e passou a permitir, com a entrada em vigor da lei nº13.964/19, em 24 de janeiro de 2020, a autocomposição dos conflitos no bojo de inquéritos civis públicos iniciados com o fito de reunir elementos probatórios aptos a justificarem a impetração de uma demanda de responsabilização por ato de improbidade administrativa, observando-se a impossibilidade de renúncia ao direito protegido, afastando qualquer argumento quanto à sua não aplicação porque disposta em ato normativo de 2º grau eventualmente contrário à lei.
5. CONCLUSÃO
A lei nº 13.964, de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, trouxe inúmeras mudanças relacionadas ao direito penal e ao processo penal, modificando a legislação do Código Penal, do Código de Processo Penal e a extravagante, em vários dispositivos. Em soma, modificou a lei de improbidade administrativa, assentando a possibilidade de autocomposição nas ações que visam a responsabilização por atos ímprobos.
A lei de improbidade administrativa ostenta caráter sancionador, embora na esfera administrativa, e o caráter de sanção também está ligado às searas penal e processo penal, por isso há de se verificar a pertinência em, no Pacote Anticrime, adicionar-se mudanças também na lei nº 8.429, de 1992.
Desse modo, afasta-se qualquer alegação de ter havido uma espécie de “contrabando legislativo”, expressão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015, quando proibiu que fossem incluídas, em emendas, pelos parlamentares, disposições que nada se relacionavam ao assunto assentado no texto em exame.
Verifica-se ser possível algumas formas de autocomposição na seara penal, inexistindo, assim, motivo para que não haja tal permissão na esfera do direito sancionador administrativo. Afinal, se pode no “mais”, qual seria a justificativa, para que não coubesse no “menos”?
O Conselho Nacional de Justiça já orientava os membros do Ministério Público, para que realizasse a autocomposição nas ações voltadas a responsabilizar gestores públicos, sendo também a posição de alguns doutrinadores, atendendo-se, porém, como explanado no presente estudo, à impossibilidade de renúncia no que toca ao direito material, podendo haver renúncia quanto ao direito processual. Pode haver, então, acordo quanto à forma de cumprimento das punições, ou no tocante à adequação do agir do administrador às exigências constitucionais, legais e/ou regulamentares, ou, ainda, relativamente à compensação ou à indenização. Isso porque observou-se os benefícios de institui-la nos mais diversos conflitos, destacando-se a efetividade da prestação da justiça, a utilidade e a duração razoável do processo, as quais ocorreriam no objeto do acordo, bem como em outros conflitos sobre os quais não se logrou êxito na autocomposição, ou nos quais esta é impossibilitada, uma vez que o Judiciário estaria mais livre para se concentrar neles. Vale dizer que aquilo que é acordado é, inclusive, mais fácil de ser cumprido.
Assim, cabe aduzir que foi positiva a mudança perfilhada na lei nº 8.429, de 1992, e consentânea com os desejos do constituinte originário e dos jurisdicionados.
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Advogada. Pós-Graduada pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Pós-Graduada pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, MARCELLA VIEIRA DE QUEIROZ. A Improbidade Administrativa e a ratificação da possibilidade de autocomposição com o advento do pacote anticrime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54805/a-improbidade-administrativa-e-a-ratificao-da-possibilidade-de-autocomposio-com-o-advento-do-pacote-anticrime. Acesso em: 04 nov 2024.
Por: MARIA EDUARDA DA SILVA BORBA
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