RESUMO: Este artigo analisa o papel do Direito Urbanístico no contexto dos Direitos Difusos e a importância do Direito à cidade como direito da coletividade, no âmbito do meio ambiente artificial.
Palavras-chave: Direitos difusos, Direito Urbanístico, Direito à Cidade, Meio ambiente artificial
ABSTRACT: This article analyzes the role of Urbanistic Law in the context of Diffuse Rights and the importance of the Right to the City as a right of the community, within the scope of the artificial environment.
Keywords: Diffuse Rights, Urbanistic Law, Right to the city, artificial environment
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breves comentários acerca das “dimensões” dos direitos fundamentais 3. Definição de meio ambiente e a ordem urbanística como interesse difuso. 3.1. O papel do Direito Urbanístico. 3.2. A judicialização do urbanismo. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas
1.INTRODUÇÃO
O moderno Estado Constitucional é marcado historicamente por uma trajetória evolutiva dos direitos fundamentais, vinculada à própria história do constitucionalismo. Importante destacarmos que foi ainda na Idade Média, na Inglaterra do século XIII, que encontramos o principal documento que é tido pelos estudiosos da matéria como o início da positivação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Trata-se da Magna Charta Libertatum, um pacto celebrado pelo Rei João Sem Terra em 1215 e pelos bispos e barões ingleses.
A Charta tinha por objetivo garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, mas excluía a população em geral do acesso aos direitos ali consagrados. Ressalte-se que, embora tido como mais importante, não se trata do primeiro, tampouco, do único, documento com tal propósito, já que nos séculos XII e XIII, os reis portugueses e espanhóis já haviam outorgado as chamadas cartas de franquia e os forais.
De toda sorte, embora elaborada num contexto de absolutismo e desigualdade social e econômica, a Magna Charta foi o ponto de partida para diversos direitos e liberdades civis clássicos, tais como o direito ao habeas corpus, o due processo of law e até mesmo o direito à propriedade.
Outro fator importante na evolução dos direitos fundamentais foi a Reforma Protestante, movimento reformista cristão liderado por Martinho Lutero, que, dentre outros aspectos, criticou duramente os abusos do clero e levou ao gradativo reconhecimento da liberdade de opção religiosa e de culto em diversos países.
Posteriormente, a Petition of Rights inglesa de 1628, o Habeas Corpus Act, de 1679 e a Bill of Rights, de 1689, progressivamente vão limitando o poder monárquico e afirmando o parlamento perante a coroa inglesa, implicando ampliação do conteúdo de liberdade e extensão de sua titularidade aos cidadãos ingleses de maneira geral.
A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, elaborada no contexto da revolução francesa, período de intensa agitação política e social na França, também deixam sua marca história na ampliação e consolidação de direitos humanos e direitos fundamentais, influenciando constituições ao redor do globo.
É exatamente após esse período histórico, suscintamente abordado neste artigo, que surgem as chamadas gerações ou, para alguns doutrinadores, dimensões, dos direitos fundamentais.
2.BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DAS “DIMENSÕES” DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Prima facie, importante destacar que a expressão “geração” dos direitos fundamentais como fazendo parte de um processo evolutivo foi difundida por Karel Vasak, em uma conferência proferida em 1979 no Instituto Internacional de Direitos Humanos, em Estrasburgo. A expressão foi criada a partir do lema da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade.
Contudo, ponderamos que existe debate doutrinário sobre o uso dos termos “gerações” ou “dimensões” de direitos fundamentais. Muito porque, para alguns autores, como é o caso do Professor Ingo Wolfgang Sarlet, o termo “geração” poderia denotar a superação de direitos por novos direitos, ficando os anteriores ultrapassados.
Nas palavras do autor, “é de se ressaltar as fundadas críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo ‘gerações’, já que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que a expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina.”.[1] Optamos por adotar a mesma linha de raciocínio do ilustre jurista, com o devido respeito às demais vozes que defendem o uso do termo ‘gerações’.
O fato é que as chamadas dimensões dos direitos fundamentais foram classificados em “dimensões”, tendo como referência, primeiramente, os direitos de liberdade, depois os de igualdade e, finalmente, os relativos à fraternidade.
Assim, direitos de primeira dimensão ou direitos de liberdade são aqueles surgidos nos séculos XVII e XVIII e foram os primeiros reconhecidos pelos textos constitucionais. Esses direitos abrangem direitos civis e políticos inerentes ao ser humano e oponíveis ao Estado, em pleno período absolutista, em que o Estado era o maior supressor das liberdades individuais. Nesta geração, encontram-se o direito à vida, à segurança, ao devido processo legal, à propriedade, à liberdade de pensamento, de culto etc. Vale mencionar que tais direitos implicam uma posição negativa do Estado para com o indivíduo, um não fazer.
Já os direitos de segunda dimensão estão relacionados à igualdade e advieram com o surgimento do Welfare State, após a Segunda Guerra Mundial. São os chamados direitos econômicos, sociais e culturais e que implicam prestação positiva do Estado, que deve fazê-lo por meio da criação de políticas públicas. Compreendem o direito à saúde, ao trabalho, à moradia, à educação, à greve, livre associação sindical etc.
Surgiram posteriormente os chamados direitos de terceira dimensão ou direitos de fraternidade. Tratam-se de direitos coletivos, de titularidade de coletividades ou da própria humanidade como um todo. De acordo com as lições do honorável Professor Paulo Bonavides são “...direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, em um momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”.[2]
É exatamente neste contexto que se encaixam os denominados direitos difusos, pertencentes à comunidades, coletividades, à humanidade, tais como o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade, entre outros.
Concluímos esta etapa no sentido, pois, de que o meio ambiente é direito difuso, de titularidade coletiva, classificado como direito fundamental de terceira dimensão.
3.DEFINIÇÃO DE MEIO AMBIENTE E A ORDEM URBANÍSTICA COMO INTERESSE DIFUSO
De acordo com o artigo 3º, da Lei nº 6.938/81 meio ambiente é o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Não havendo conflito com o que dispõe o artigo 225 da Constituição da República de 1988, a lei referida é considerada recepcionada pelo sistema constitucional em vigor, já que a Carta Magna tutela o meio ambiente em suas diversas dimensões, quais sejam, natural, artificial, cultural ou do trabalho.
De acordo com o Professor José Afonso da Silva, considera-se meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.”.[3]
Para Celso Antonio Pacheco Fiorilo, “o meio ambiente artificial é compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (espaço urbano aberto). Dessa forma, todo o espaço construído, bem como todos os espaços habitáveis pela pessoa humana compõem o meio ambiente artificial.”.[4]
Assim, a ordem urbanística é componente do meio ambiente artificial, bem jurídico difuso no conjunto de relações que estruturam a cidade. Tanto que assim a considera o inciso VI do artigo 1º da lei nº 7.347/1985, a lei que regula a Ação Civil Pública, também recepcionada pela constituição vigente.
3.1 O PAPEL DO DIREITO URBANÍSTICO
De acordo com a lição de José Afonso da Silva “o direito urbanístico é produto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos. Sua formação, ainda em processo de afirmação, decorre da nova função do Direito, consistente em oferecer instrumentos normativos ao Poder Púbico a fim de que possa, com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade.”.[5]
Entendemos indispensável discorrer brevemente sobre a chamada Reforma Urbana. O processo de democratização do Brasil é marcado pela atuação dos movimentos sociais, que, a partir da organização de setores socialmente excluídos do crescimento econômico, entram no cenário público e político, reivindicando direitos e melhores condições de vida.
As Comunidades Eclesiais de Base representaram, certamente, um marco na atuação de tais movimentos, na medida em que, foram tanto garantidoras da população excluída do desenvolvimento das cidades, como incentivadoras de um processo de ocupação que satisfizesse interesses imediatos da população. Evidentemente que isso acabou por gerar um processo de ocupação desordenada, que posteriormente constituiria mais uma demanda ao poder público.
O fato é que influenciada por tais fenômenos, a Constituição de 1988 inaugura uma nova etapa no processo democrático nacional, viabilizando a participação e o acesso à gestão das políticas públicas, com o a criação de conselhos em várias áreas da política social.
Com efeito, a função social da propriedade, garantia fundamental estabelecida no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal, bem como a função social da cidade, ganham força propulsora com a inserção de um capítulo na Carta para tratar exclusivamente da política urbana. Ao exigir um Plano Diretor para os Municípios com mais de 20.000 habitantes, cria-se um instrumento da política de desenvolvimento urbano e de planejamento territorial.
Eis, pois, o papel do Direito Urbanístico, regular a ocupação territorial de maneira a atender à coletividade, garantindo a todos o acesso à moradia digna, direito social previsto no artigo 6º da Constituição da República, assim como aos serviços urbanos, ao saneamento básico, ao transporte adequado, aos equipamentos públicos etc.
Optarei por não adentrar ao mérito da questão da autonomia do Direito Urbanístico em relação aos demais ramos, tendo em vista que a própria Constituição da República, no artigo 24, inciso I, ao tratar da competência para legislar sobre a matéria, indica se tratar de ramo específico da Ciência Jurídica.
Arriscamo-nos, portanto, a apresentar um conceito de Direito Urbanístico como sendo o conjunto de regras e princípios destinados à regular a ocupação territorial urbana, de modo a garantir aos ocupantes do espaço urbano o acesso à terra, aos serviços urbanos, aos equipamentos públicos e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Tratando-se as normas de Direito Urbanístico de interesses difusos e, como vimos, classificados como direitos de terceira dimensão, implicam ao Estado prestações positivas, a serem consubstanciadas por meio da implementação de políticas públicas aptas a cumprir o papel pretendido pela ordem jurídica vigente.
O artigo 182 da Constituição Cidadã dispõe que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.”. O § 2º do mesmo dispositivo estabelece que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”.
Deste modo, verificamos que a responsabilidade pelo planejamento urbano e ordenamento territorial foi delegada aos Municípios, que o deve fazer por meio do Plano Diretor, instrumento da Política de Desenvolvimento Urbano. Evidentemente, a edição de normas gerais em sede de Direito Urbanístico permanece sendo competência da União Federal.
Não se pode descurar da importância do artigo 183 da Carta, que institui nova modalidade de usucapião, a denominada usucapião especial urbana, instituto de fundamento pro misero, que confere ao titular do direito a aquisição de propriedade urbana de até 250m² em prazo reduzido de cinco anos, atendidos os demais requisitos ali previstos. Trata-se de mais um instrumento jurídico que tem por objetivo garantir o acesso à terra e o direito à moradia, tendo em vista o cumprimento da função social da propriedade urbana.
O capítulo da Constituição Federal que regula a política urbana foi regulamentado em 2001, pelo chamado Estatuto da Cidade, Lei Federal nº. 10.257, que estabelece as diretrizes gerais da política urbana. Com efeito, segundo o artigo 2º da norma referida “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, considerando-se algumas diretrizes gerais.
Dentre elas, ressaltamos a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; e a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais.
A norma aludida prevê ainda diversos instrumentos para garantir o cumprimento da função social da propriedade, tais como o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, para os casos de imóveis subutilizados, o IPTU progressivo no tempo, a desapropriação com pagamento em títulos e a própria usucapião especial urbana.
3.2 A JUDICIALIZAÇÃO DO URBANISMO
Tratando-se de interesse difuso, a Lei Federal nº. 7.347/85 atribuiu ao Ministério Público a atividade de fiscalização e judicialização da ordem urbanística, de maneira genérica. Nesta toada, eventualmente, está o órgão ministerial imbuído do dever de instaurar inquéritos civis e até mesmo ajuizar ação civil pública em face dos Municípios que estejam descumprindo os preceitos da ordem urbanística.
Assim, parcelamentos irregulares do solo, usos incompatíveis com o zoneamento local, danos ao meio ambiente causados pela interferência humana, apenas para exemplificar, são frequentemente objeto de medidas judiciais para compelir o Poder Público a tomar providências no sentido de reverter o cenário ilegal.
De outra banda, há possibilidade de judicialização das regras de direito urbanístico por parte da população em geral. A este respeito, podemos citar a própria usucapião constitucional como medida garantidora do direito à moradia e da garantia do cumprimento da função social da propriedade.
Porém, o que dizer da judicialização voltada à implementação das políticas públicas? Trazendo à baila uma problemática fática, para ilustrar, dados do IBGE[6] informam que em 1950 havia no Brasil uma população urbana de 18.782.891 de habitantes, sendo que em 2010 essa população saltou para 160.925.792. Por outro lado, houve queda da população rural, de 33.161.506 para 29.830.007 de habitantes.
Nesse mesmo período, São Paulo, um lugar que em cem anos (entre 1854 e 1954, data de seu quarto centenário) passou de 30 mil para mais de 2,5 milhões de habitantes, chegando a 10 milhões nas décadas seguintes, surge como maior cidade do país, centro econômico mundial e uma das maiores aglomerações urbanas do mundo. Na medida em que as demandas por habitação popular não foram atendidas pelas ofertas habitacionais produzidas, tanto pelo poder público como pelo mercado imobiliário, a principal alternativa para as famílias de baixa renda se tornou a compra de lotes irregulares, posto que mais baratos, e a ocupação de áreas com restrições ambientais ou destinadas à implantação de equipamentos públicos.
Em paralelo, o planejamento ínfimo do Estado na ampliação da infraestrutura urbana e o fomento a um mercado imobiliário elitista geraram uma falta de oferta de imóveis destinados à população de baixa renda, um significativo aumento de imóveis subutilizados dentro do espaço urbano e, sobretudo, o crescimento abrupto de uma população desamparada, fator de nascedouro dos assim chamados núcleos urbanos informais. “Favelas” e loteamentos informais que se consolidam ao longo do tempo, inclusive com a tardia implantação da infraestrutura pelo poder público, sem que, no entanto, os moradores possam gozar de títulos que lhes garantam a propriedade dos imóveis que habitam.
Ainda no âmbito de pesquisas do IBGE[7], dados indicam que mais de 3.200.000 domicílios brasileiros se situam sobre assentamentos precários, ocupando área de aproximadamente 170.000 hectares. A irregularidade, seja ela urbanística ou fundiária, é característica presente no território de quase todas as cidades brasileiras, principalmente nas regiões metropolitanas, marcadas que foram por processos de conurbação, fruto do desenvolvimento acentuado que se deu com a industrialização do Brasil, pós década de 50. Tais dados, referem-se apenas aos assentamentos precários. Se somados os parcelamentos e condomínios irregulares de classe média e alta, certamente esse número saltaria para no mínimo 40% do território nacional.
Margens de mares (palafitas), ocupações ao redor de córregos e lagos, de rodovias, topos de morro e outras áreas sem valor econômico, passaram a ser objeto de ocupação espontânea. Por outro lado, com a publicação da Lei Federal nº. 6766/79, alargou-se a complexidade dos processos de aprovação e licenciamento do parcelamento do solo junto aos órgãos públicos. Ademais, a exigência de altos percentuais destinados a áreas públicas, fez com que muitos investidores, sequer iniciassem, ou desistissem no meio do caminho, de estabelecer parcelamentos na observância das normas vigentes, gerando um passivo de parcelamentos irregulares que só cresce com o passar dos anos.
O Censo Demográfico 2010, aponta que 11% da população da Região Metropolitana de São Paulo – RMSP (2.162.368 habitantes) habitam em aglomerados subnormais (favelas)[8]. Resultado da irregularidade está em que, além da ausência de condições mínimas de habitabilidade em muitos casos, os possuidores de lotes em núcleos urbanos informais não estão inseridos no mercado imobiliário formal, o que acaba por lhes usurpar o exercício da cidadania e o gozo do direito à moradia, em seus aspectos formal e material.
No ímpeto de problematizar a questão, não necessariamente oferecendo uma resposta, haveria a possibilidade de demandar contra o Estado exigindo a produção de moradia ou até mesmo compelindo-o à promoção da regularização fundiária das áreas já ocupadas irregularmente?
Ainda ilustrando, em 2009 foi publicada a Lei Federal nº. 11.977, que, além de criar o Programa Minha Casa Minha Vida, instituiu normas relativas à regularização fundiária urbana. Em 2017, referida lei foi derrogada, dando vez à Lei Federal nº. 13.465, que passou a disciplinar a matéria. Em que pese sejam os procedimentos ali descritos todos de natureza administrativa, a omissão do Poder Público poderia gerar demanda oponível ao Estado mediante ação judicial?
Filio-me à corrente que defende a possibilidade, dada a natureza dos direitos difusos, como já exaustivamente explanado neste ensaio, direitos fundamentais de terceira dimensão, que exigem uma prestação positiva do Estado. Contudo, a problemática é infindável, esbarrando na cláusula da reserva do possível, constantemente invocada pelas procuradorias locais, e, ainda pior, na alegação de que eventualmente se estaria ferindo o princípio federativo, que determina a separação dos poderes, na medida em que, o Judiciário, ao proferir sentença condenatória em face de um Município, por exemplo, estaria interferindo na lei orçamentária.
Robert Alexy, ao tratar do tema, expôs: “Direitos a ações positivas suscitam o problema de saber se e em que medida a persecução de objetivos estatais pode e deve estar vinculada a direitos subjetivos dos cidadãos. Sob uma Constituição que submete os direitos garantidos constitucionalmente a um amplo controle judicial de constitucionalidade esse problema é, em essência, o problema de repartição de competências entre o tribunal constitucional e o legislador.”.[9] Acrescentamos, entre o Judiciário e o Poder Executivo. A questão é de difícil solução e está longe de ser resolvida.
4.CONCLUSÃO
Concluo o presente artigo defendendo, assim como o faz o ilustre Professor José Afonso da Silva, que o Direito Urbanístico é um ramo independente do direito, pertencente à classe dos chamados direitos difusos, classificados como direitos de terceira dimensão, conforme ensinamento do não menos honorável Professor Ingo Wolfgang Sarlet, reconhecendo, no entanto, que no âmbito da epistemologia da Ciência Jurídica, a afirmativa é complexa.
Muito porque, ora estamos diante de regras administrativas que limitam ou regulam o exercício da propriedade por parte de particulares, porém, com fundamento em ideais essencialmente públicos, destinados à garantir o interesse da população em geral, outrora estamos diante de direitos subjetivos de cidadãos, como por exemplo é o caso da usucapião constitucional, que possui, a princípio, natureza eminentemente civil, de direito privado. Não se pode arredar, todavia, que, ainda que se veja certa correspondência com o direito administrativo ou com o direito civil, por vezes, o escopo do Direito Urbanístico é majoritariamente público, destinado à garantir o direito da coletividade a determinados bens jurídicos de maneira a se fazer cumprir o mandamento constitucional estabelecido no artigo 3º, inciso I, da Carta Magna, que estabelece o objetivo geral de se construir uma sociedade livre, justa e solidária.
É certo que na raiz de algumas normas de Direito Urbanístico, temos por fundamento a própria dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil.
Evidentemente, ainda pendem divergências jurídicas de enorme relevância quanto à efetivação dessas normas, no âmbito da atuação do Poder Judiciário.
Porém, é certo que, em relação a determinadas regras, a própria Lei da Ação Civil Pública franqueia a atuação do Ministério Público, como custus legis.
Estariam aqueles titulares, por exemplo, do direito à moradia, aptos a pleitearem em juízo uma atuação do Estado? Entendemos que sim, pelo quanto já explanado, mas reconhecemos as teses em sentido contrário como legítimas e bem fundamentadas. São pendências que o tempo e a atuação do Tribunal Constitucional solucionará.
5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Tradução Virgílio Afonso da Silva. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. Malheiros. 2015. São Paulo.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. 2003. Malheiros. São Paulo.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9ª ed. Saraiva. 2008. São Paulo.
SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. 2015. Saraiva. São Paulo.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. Malheiros. 2009. São Paulo.
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https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/saude/9662-censo-demografico-2010.html?=&t=series-historicas
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[1] SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. 2015. Saraiva. São Paulo.
[2] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. 2003. Malheiros. São Paulo.
[3] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. Malheiros. 2009. São Paulo.
[4] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9ª ed. Saraiva. 2008. São Paulo.
[5] SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 7ª Edição. Malheiros. 2012. São Paulo.
[6]https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/saude/9662-censo-demografico-2010.html?=&t=series-historicas
[7] http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=7552cd_2010_agsn_if
8https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811202013480105748802.pdf
[9] ALEXY, Robert. Tradução Virgílio Afonso da Silva. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. Malheiros. 2015. São Paulo.
Advogado. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Bacharel em Direito pela UNIFIEO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOBRINHO, João Henrique de Amorim. Direitos difusos – o papel do Direito Urbanístico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2020, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/55955/direitos-difusos-o-papel-do-direito-urbanstico. Acesso em: 23 nov 2024.
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