RESUMO: Valendo-se do método dialético, o presente estudo visa comparar os sistemas normativos da common law e civil law, respectivamente adotados no Reino Unido e Brasil, a partir da perspectiva da teoria tridimensional do direito e da formação dos valores nas sociedades envolvidas, uma vez que estes são utilizados ao lado dos fatos para sintetizar as normas emanadas pelo Poder legitimamente estabelecido.
Palavras-chave: Moral, Valor, Justiça, Direito Brasileiro, Direito Inglês.
ABSTRACT: Using the dialectical method, this paper aims to compare the normative systems of common law and civil law, respectively adopted in the United Kingdom and Brazil, from the perspective of the three-dimensional theory of law and the formation of values in the societies involved, once that these are used alongside the facts to synthesize the norms issued by the legitimately established Power.
Keywords: Moral. Value. Justice. Brazilian Law. English law.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A formação da norma e a base do poder: 2.1 A moral e o direito;. 3. Em direção à justiça. 3.1. A formação dos valores. 3.2. O valor-fonte. 4. Conclusão 5. Referências.
1.INTRODUÇÃO
Muito se discute a respeito do processo de formação e diferenciação das normas que regulam a vida em sociedade, bem como acerca das bases que tornam autorizados e legítimos os poderes criadores.
Essas discussões são comuns aos sistemas jurídicos anglo-saxão, tradicional em países como o Reino Unido, como no romano-germânico adotado no Brasil e em grande parte do mundo.
Valendo-se do método dialético, o presente estudo enfrenta estas discussões para delinear congruências e divergências nas ideias de formação e diferenciação das normas, e das bases de legitimidade dos poderes criadores, comparando assim, os sistemas jurídicos de common law e civil law.
2.A FORMAÇÃO DA NORMA E A BASE DO PODER
Miguel Reale enfrentou o problema de formação das normas e legitimação dos poderes através da Teoria Tridimensional do Direito, através da qual propôs uma concepção aberta e dinâmica do direito a partir da sintetização dos elementos “fato” e “valor”, que geraria a “norma”.
Assim o direito seria produto do exercício contínuo e dialético cuja síntese realizada pelo Poder, resultaria na norma jurídica.
Ao explicar este processo, Reale diferencia as formas de poder para expor a gênese dos modelos jurídicos de civil e common law.
“(...) cada modelo jurídico, corresponde a um momento de integração de certos fatos segundo valores determinados, representando uma solução temporária (momentânea ou duradora) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social. A decisão é do poder estatal expresso através de órgãos determinados, mas (...) pode ser também o resultado do poder social difuso em uma comunidade, visto como o chamado direito costumeiro não é senão a consagração de reiterados atos anônimos de decidir (...)” (REALE, 1999, p. 554).
Sob este pensamento, a legitimação do Poder sintetizador é ponto fulcral na distinção entre os modelos jurídicos.
O direito legislado brasileiro, lança logo nas primeiras linhas de sua vigente Lei Maior a máxima de que “todo poder emana do povo”, porém, seria desprezar a realidade, tomar tal excerto como base efetiva da legitimidade do poder no sistema jurídico brasileiro, basta ver que desde 1824, na primeira Constituição Brasileira[1], a vontade povo é referenciada como base do poder sintetizador das normas jurídicas, sem contudo haver efetiva participação popular prévia na escolha inicial dos autores do texto normativo.
Neste ponto, a construção histórico-normativa do sistema anglo-saxão parece mais próxima da historicidade do direito preconizada pela teoria tridimensional, pois sua base nos costumes do povo é mais adaptável para harmonizar as tensões geradoras de litígios, legitimando um poder não descrito nas linhas de uma lei suprema, mas com aplicação e verificação práticas e, portanto, com melhores possibilidades de reconhecimento no seio social, por isso a norma há de ter “valores do povo” como um de seus insumos.
A não correspondência dos valores constituintes da norma e os valores sociais implica enfraquecimento do arcabouço normativo, quer seja ele escrito ou costumeiro.
Ao analisar o tema, Partington aduz:
“(...) As razões pelas quais as pessoas aceitam em maior ou menor proporção o exercício do poder são complexas. Uma é que a maioria das pessoas, embora aceite que certos serviços, como educação e saúde, devam ser fornecidos, não deseja administrá-los. Eles ficam felizes em deixar políticos e burocratas continuarem com o trabalho. Além disso, uma vez que um governo estabeleça uma reivindicação para exercer o poder, invariavelmente cria o aparato de polícia, serviços de segurança e similares cuja função é fazer cumprir a lei resultante do exercício desse poder.” (PARTIGTON, 2018, p. 25).
Para minimizar as possibilidades deste desacerto, é de suma importância o reconhecimento da legitimidade do Poder.
No caso do direito inglês, a busca de reconhecimento da legitimidade é dupla, pois além das autoridades nacionais, há o regramento estabelecido pela União Europeia que, até a efetiva saída britânica, estará vigente e com incidência no regramento interno.
“(...) No Reino Unido e em muitos outros países desenvolvidos, esse consentimento é mais um dado adquirido do que buscado ativamente (exceto em questões específicas que são objeto de referendos). Aqui e em outras democracias, eleições livres e regulares são vistas como o principal mecanismo pelo qual está implícito o consentimento contínuo ao governo. O que preocupa muitas pessoas atualmente, particularmente nos países onde o processo democrático está bem estabelecido, é que a apatia dos eleitores pode enfraquecer a legitimidade das instituições legislativas. Isso leva alguns a argumentar que o voto nas eleições deve ser obrigatório; essa já é a lei na Austrália, por exemplo.” (PARTIGTON, 2018, p. 26).
Já no Brasil, há uma efetiva busca por constante legitimação, especialmente por parte do atual mandatário da Presidência da República para o quadriênio (2019-2022) Jair Bolsonaro, que reiteradamente participa, quando não, também convoca, manifestações públicas de apoio e reafirmação do voto popular depositado em sua pessoa.
Apesar de esta postura não ser tradicional nos países de civil law, ela se justifica diante do aumento da atividade legiferante do Poder Executivo que, apenas no primeiro ano de mandato expediu 48 (quarenta e oito) medidas provisórias[2], além de 157 (cento e cinquenta e sete) decretos[3] nos 150 (cento e cinquenta) primeiros dias de mandato.
Mesmo admitidas no modelo jurídico brasileiro, tanto a capacidade legislativa atípica quanto a busca por reafirmação de legitimidade por meio de manifestações de rua, encontram resistência e questionamentos nos demais poderes, e fogem da tradição temática dos protestos de oposição aos poderes constituídos e começaram a eclodir no Brasil, em junho de 2013[4].
O Reino Unido também foi palco de manifestações mesmo após o referendo popular a favor do Brexit[5].
Guardadas as devidas proporções, a causa remota das manifestações no Reino Unido e no Brasil é a busca de reafirmação legitimidade do Poder para converter em “norma”, valores e fatos.
Obviamente, a diferença básica entre os dois modelos jurídicos permanece sendo a forma de expressão da norma jurídica, que, no statute law é o direito legislado e na common law é o precedente judiciário, ou seja, o direito comum criado por decisões judiciárias, porém, Maria Sylvia Zanella Di Pietro acrescenta que:
“(...) outra fonte do direito anglo-saxão é a equidade, que serve de fundamento a decisões judiciais nos casos em que não se encontra fundamento no common law a tutela eficaz dos direitos privados. Uma vez proferida a decisão com base na equidade, ela também se transforma em precedente judiciário e passa a integrar o common law.” (DI PIETRO, 2012, p. 17).
Mais uma vez ganha destaque a importância do arcabouço axiológico das sociedades, mas agora para momentos posteriores à escolha e legitimação do Poder e à sintetização da norma, para preencher a lacuna deixada pelos precedentes, na forma de equidade.
Sem valores orientados ao equilíbrio e razoabilidade, ficaria difícil ou impossível suprir lacunas normativas de forma a atender ao mister do direito.
Já no modelo de civil law brasileiro, a equidade se consagra como opção para decisão arbitral no procedimento da Lei 9.099/1995 dos Juizados Especiais Cíveis[6], enquanto eventuais lacunas legislativas são supridas nos casos in concreto através de analogia[7], costumes e princípios gerais de direito.
Tanto a equidade quanto as outras formas de preenchimento das lacunas normativas dependem diretamente dos valores subjacentes, o que, novamente, enfatiza a importância da moral, e do estabelecimento da justiça como norte inexorável dos modelos jurídicos adotados no Reino Unido e no Brasil.
2.1 A moral e o direito
A doutrina filosófica e jurídica tem por tradição histórica buscar a diferenciação entre direito e moral para, a partir disso separá-los, como fez Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, ou para incorporá-los como formas de balizamento pessoal e social.
Para propor uma resposta à pergunta “o que é o Direito?”, Kelsen pretendeu “purificar o direito”, livrando-o de elementos metajurídicos, e, reservando a outras áreas do conhecimento as investigações sobre os pensamentos e valores sociais, propôs a separação em relação as demais áreas do conhecimento como a psicologia, sociologia, ética e teoria política.
A teoria de Kelsen não nega que o direito seja um fenômeno social, mas entende que a realidade social deve ser objeto de estudo de outros estudiosos, como o sociólogo, não o jurista, ao qual não cabe emitir juízo de valor sobre o conteúdo da norma, mas tão somente constatar sua vigência ou validade técnico-formal, para então aplicá-la. E, a validade, sob este prisma, “decorre de outras normas interligadas que se prendem, afinal, a uma norma fundamental” (REALE, 1999, p.465).
De acordo com Reale, Kelsen:
“(...) declara que o Direito entendido sempre só como Direito Positivo, pertence todo ao domínio do dever ser como produto normativo. O Direito exprime, assim, um dever ser que vale por si, não envolvendo nenhuma forma concreta de comportamento, nenhuma orientação prática de conduta. É em suma, lógica, mas não eticamente finalista” (REALE, 1999, p. 155)
Ainda sob esta teoria, ao lado das normas jurídicas, outras normas regulam a conduta dos homens entre si, e, também são um fenômeno social, mas desprovido da validade formal. Para Kelsen, estas normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de “moral”. E a disciplina dirigida ao seu conhecimento é chamada de “Ética”. A Justiça é uma exigência da moral, mas não do direito.
O direito procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, a sanção. Esse é um critério decisivo, na visão dez Kelsen, para distinguir o direito de outras ordens sociais. Em paralelo o descumprimento de normas morais não acarretaria sanção, mas desaprovação social que pode ser variável mesmo dentro de um recorte de tempo e espaço.
Assim moral e direito são ordens sociais normativas que regulam condutas humanas na medida em que estas estão em relação com outras pessoas. Contudo, como destaca Kelsen: “(...) uma distinção entre o direito e a moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas em como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana” (KELSEN, 2009, p. 71).”
Já Georg Jellinek, aborda de forma diferente a relação entre direito e moral, a partir da explicação psicológica da transição do fato à norma, do costumeiro ao normativo, ao propor a Teoria do Mínimo Ético. Aduz que:
“(...) Uma norma, não valeria como norma jurídica se sua eficácia psicológica não fosse garantida. Mas um direito só tem garantia de eficácia quando o poder determinante de seus preceitos está tão fortalecido por forças psico-sociais que se justifica a expectativa de estarem esses preceitos em grau de se afirmar como motivos de agir perante opostos motivos individuais” Isso quer dizer que o Direito vale quando é reconhecida a sua validade pela massa dos espíritos.” (apud REALE, 2014, p. 111)
A incorporação psicológica do direito começaria por cada indivíduo que passaria a incorporar como norma de balizamento pessoal, as condutas que ele observa reiteradamente, e, por consequência passa a reproduzir e ser observado pelos demais membros sociais.
Nota-se que sob este pensamento, cada indivíduo teria como primeiro balizador de sua conduta, a própria consciência que, o motivaria ao bom proceder por meio do temor do gravame psíquico emocional gerado pelo remorso. Assim, tanto o estímulo como o desestímulo para uma ou outra conduta seria provocado por ameaças ou vantagens estritamente subjetivas e psicológicas.
Entretanto, Jellineck reconhece a não uniformidade social ao reconhecer a falibilidade de freios e contrapesos estritamente psicológicos. Este reconhecimento, aliás, remonta à alegoria de Giges[8] proposta por Platão, em A República.
Como segunda sistema normativo de freio à vontade de potência[9], seria a moral ou decoro, ou seja, o que a sociedade entende como conduta proceder equilibrado e escorreito. O descumprimento de preceitos morais poderia acarretar com a segregação ou mesmo exclusão social.
Por fim, o direito seria o último bastião ou mínimo ético, pois, superados os freios subjetivos da consciência individual, e desrespeitados os preceitos morais da sociedade, caberiam ao direito e sua força coercitiva, as tarefas de garantir o equilíbrio e, por fim, a manutenção da sociedade.
Apesar dos acertos do pensamento de Jellineck e dos esforços de edificação pura do direito por parte de Kelsen, ambos são passíveis de críticas por não se associarem à necessária orientação de justiça, deixando-a limitada ao cumprimento do anseio social, e, no caso de Kelsen, dissociá-la dos instrumentos coercitivos que só o direito poderia agregar na busca por justiça.
E esta crítica é extraível a partir do contraste destas teorias, em especial, dos conceitos, limites e finalidades por elas trazidos para a moral, com os pensamentos de Aristóteles.
3.EM DIREÇÃO À JUSTIÇA
A grande característica de Aristóteles e uma de suas principais diferenças para com seu mestre Platão, se assenta no fato de que ele tomou por ponto de partida a observação da realidade social para, conforme expõe David Johnston, “entender que o princípio da justiça aplica-se sobretudo a um conjunto de relações entre homens livres e relativamente iguais entre si.” (JOHNSTON, 2018, p. 75).
É o que John Halws mais tarde chamaria de “justiça como equidade” para conceber a ideia de que “os princípios de justiça mais razoáveis seriam aqueles que fossem objeto de mútuo acordo entre pessoas em condições equitativas.” (apud KELLY, 2003, p.5).
Sob esta perspectiva, os preceitos morais – que no entender de Kelsen serviriam à busca de justiça – só poderiam ter bases razoáveis se os membros da sociedade estivessem em igualdade, do contrário, não haveria verdadeira base moral, mas imposição da vontade por parte do mais forte, e a consequência “justiça” de acordo com seus conceitos.
Nieztche acrescenta outro problema na falta de equidade social, ao lembrar que a moral dos escravos seria diametralmente oposta à moral dos senhores, e que, enquanto estes consideram moral praticar a tortura, aqueles consideram moral desrespeitar todo conjunto de leis sociais e jurídicas, não sendo distante afirmar a possibilidade de orgulho e até afirmação social em virtude de atos contra a vida dos senhores.
A falta de observação da realidade para estabelecimento do conceito de justiça pode levar à ruína todo arcabouço normativo, e, pior, a própria sociedade.
Tendo como possível este cenário, o realismo aristotélico serve de norte para aprimoramento das teorias pura do direito e do mínimo ético, para, em relação à primeira agregar um valor extraído de indivíduos em situações equivalentes, ao conteúdo da norma jurídica; e, em relação à segunda agregar esta mesma qualidade de valor para alinhamento finalístico dos regramentos morais e jurídicos à justiça.
Entretanto, outro problema surge, afinal, a própria equidade de base necessária para extração de valores adequados não é de simples alcance, e acaba por entrar em um círculo aporético com a almejada justiça, de sorte que o primeiro, de difícil alcance, torna a segunda tão distante de ganhar traços práticos.
É neste contexto que os valores subjacentes retomam sua necessária relevância como vetores que sinalizam tanto os caminhos para persecução da igualdade de base como para a finalidade da justiça.
3.1A formação dos valores
A importância dos valores enquanto vetores de equidade e justiça se dá graças ao seu caráter a-espacial e atemporal, ou seja, “apresentam um modo de ser que não se subordina ao espaço e ao tempo” e ainda sobrepuja a cultura dos povos. (REALE, 1999, p. 187).
São várias as tentativas teóricas de compreender o processo de formação dos valores e sua internalização individual, social e, por fim, jurídica, mas duas abordagens merecem especial atenção para os fins deste estudo, são as de ordem subjetiva e objetiva.
“(...) A primeira corrente é, como dissemos, a subjetivista, reunindo várias teorias psicológicas da valoração, como por exemplo, a de tipo hedonista, desenvolvida desde Aristipo e Epicuro até Bentham e Meinong (valioso é o que nos agrada, causando-nos prazer) ou a de tipo voluntarista, como a que, desde Aristóteles até Ribot e Ehrenfels, liga o problema do valor à satisfação de um desejo, de um propósito, a uma base sentimental-volitiva (valor é o que desejamos ou pretendemos).” (REALE, 1999, p. 188)
Em ambas as correntes, pode-se verificar a presença do desejo humano, pois, terá valor o que necessariamente atrai o homem por razões fisiológicas ou não.
Miguel Reale ainda divide os valores em dois grandes grupos, os valores constantes e os valores cambiantes. Estes variam de acordo com o tempo e espaço, mas aqueles seriam supra culturais e invariáveis, tendo como alicerce e centro nevrálgico, o princípio da dignidade da pessoa humana.
É este princípio, por seu traço perene, que deve ser o vetor máximo para a busca da justiça.
3.2 O valor-fonte
“Quando se estuda o problema do valor, devemos partir daquilo que significa o próprio homem (...)”. É este o ponto de partida apontado por Miguel Reale ao iniciar seu tópico que coloca a pessoa como valor fonte do demais valores. E, não seria para menos, afinal, o homem tem a capacidade de síntese que o diferencia dos demais animais.
Entretanto, Reale coloca a “pessoa humana”, e não simplesmente “o princípio da dignidade da pessoa humana” como valor base do ordenamento. Não se trata de mera troca semântica, mas de um efetivo acerto metodológico que não destaca a pessoa do ordenamento jurídico, antes coloca a própria, e não apenas sua dignidade, como fonte e base transcendental.
A ideia de dignidade poderia ser restrita ou ampliada pelo ordenamento jurídico de acordo com a reserva do possível e do interesse geral, como por exemplo, o acesso a tecnologias de saúde às expensas do Estado. Entende-se no Brasil, que a dignidade da pessoa humana prevalece até os limites da lista de tecnologias incorporadas ao Sistema Único de Saúde, já as não incorporadas estariam fora da cobertura obrigatória do Estado[10], ainda que essenciais à sobrevida do paciente.
Já o conceito de pessoa não pode ser restrito por qualquer ordenamento. Não pode haver expressão jurisprudencial ou legislativa que defina o que é pessoa humana ou que não se enquadrariam no conceito de pessoa, indivíduos de determinada etnia, religião ou opção sexual.
Portanto é a pessoa humana, e não apenas o que se entende como necessário para que esta tenha dignidade, que constitui o verdadeiro valor-fonte de todo ordenamento normativo.
Daí o caráter atemporal e a-espacial deste valor, e, também, a razão pela qual é o valor fonte de todos os outros. O homem é o próprio valor sintetizador dos demais valores. A pessoa é a verdadeira força em torno da qual orbita o ordenamento em qualquer de suas expressões: civil ou common law.
A ideia de dignidade da pessoa humana é, neste contexto, o desejo de existência plena inerente a todos.
O espectro do desejo de existência plena, compreende múltiplos e variáveis atrações que externam a individualidade de cada um.
E o que atrai o homem? O que o faz sacrificar prazeres em busca de sobrevivência ou sobrevivência em busca de prazeres?
O homem inclina sua busca ao que conhece. Se não conhece, certamente estará fora de sua visão de desejo ou de necessidade, e, portanto, não terá valor algum.
Inevitavelmente a sociedade terá influência no que franquia acesso ao homem. Caso limite acesso a elementos para a formação do conhecimento, também limitará a construção de elementos de representação (do desejo ou da necessidade), e, sendo esta a base buscada pelo cérebro para aprender outros elementos, ter-se-á menos possibilidade de novos aprendizados aumentando o espectro do “não entendido”, do “não conhecido”, do “sem valor”, ampliando o que Schoppenhauer chamou de “insondável”.
Se compararmos o nível de estudo das sociedades inglesa e brasileira, esta soma 47,4%[11] pessoas de ambos os sexos, com mais de 25 anos, que concluíram o ensino médio, enquanto aquela ostenta 77% [12]de pessoas na mesma faixa etária, com o diploma deste nível.
Ora, sendo o direito um fenômeno social composto pela síntese entre fatos e valores, e, sendo os valores produtos do desejo ou da necessidade humana, e estas são formadas com base no que é apresentado ao homem, então, necessariamente podemos concluir que há possibilidade de a sociedade inglesa possuir uma gama maior de valores, e, portanto, de insumos formadores do seu conjunto normativo.
Esse conjunto axiológico mais amplo fornece mais elementos formadores das normas concretas típicas da common law, ao passo que a sociedade brasileira, inspira mais cuidados na formação de sua estrutura normativa, afinal, há menos possibilidades de formação de uma vasta e diferenciada gama de valores que possibilitem a sintetização de normas pontuais para cada caso, ressaltando a importância de leis escritas que melhorem as chances de estabilização social e composição de litígios.
4.CONCLUSÃO
Conclui-se, que Direito e Moral têm por finalidade primeira e última a preservação da harmonia mínima necessária para a efetiva dignidade da pessoa humana, sendo esta, portanto, o vetor superior de justiça, para, em qualquer sistema normativo, orientar com posição de supremacia, o processo de sintetização das normas jurídicas, evitando a sobreposição da vontade do mais forte e mitigando a falta de equidade de base existente em todas as sociedades.
5.REFERÊNCIAS
COMPARATO, Fabio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno – São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
JOHNSTON, David. Breve história da justiça; tradução de Fernando Santos – Edição padrão – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
KELSEN, Hans [1960]. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6a ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NIETZCHE, Friedrich. A genealogia da moral; tradução de Mário Ferreira dos Santos. – Petrópolis: Vozes, 2017.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. – 19ª ed. – São Paulo: Saraiva, 1999.
REALE, Miguel. Fundamentos do direito. – 6ª ed. – Rio de Janeiro, 2014.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o sofrimento do mundo e outros ensaios; tradução de Gabriel Valladão Silva. – Porto Alegre: L&PMPocket, 2019.
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. 1764. Ed. Ridendo Castigat Mores. Versão para e-Book. eBooksBrasil.org.
[1] Preâmbulo da Constituição do Império: DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brasil (...)”
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm Consultado dia 11 de junho.
[2]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/01/10/primeiro-ano-de-governo-teve-48-medidas-provisorias-editadas Consultado dia 11 de junho.
[3]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/04/interna_politica,760088/bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor.shtml Consultado dia 11 de junho
[4] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44310600 Consultado dia 11 de junho
[5]https://exame.com/mundo/super-sabado-do-brexit-comeca-com-manifestacoes-em-londres/ Consultado dia 11 de junho
[6] In verbis: Art. 25. O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios do Juiz, na forma dos artigos. 5º e 6º desta Lei, podendo decidir por equidade.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.099%2C%20DE%2026%20DE%20SETEMBRO%20DE%201995.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20os%20Juizados%20Especiais%20C%C3%ADveis%20e%20Criminais%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Consultado dia 11 de junho
[7] In verbis: Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm Consultado dia 11 de junho
[8] Na parábola, Giges encontra um anel que lhe daria o poder da invisibilidade e lhe garante a absoluta possibilidade de agir conforme sua consciência que, sem demora, é deixada de lado para satisfazer aos intentos egoísticos sem os escrúpulos ou amarras sociais.
[9] Termo cunhado por Friedrich Nietzche para exprimir os desejos e impulsos que impulsionam os seres humanos a galgar, disputar, se expor a riscos e sacrifícios em busca do que compreendem por melhor.
[10]http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439095&caixaBusca=N#:~:text=Imprensa,-Not%C3%ADcias%20STF&text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,Sistema%20%C3%9Anico%20de%20Sa%C3%BAde%20(SUS) Consultado dia 30 de junho.
[11] https://brasilemsintese.ibge.gov.br/educacao/anos-de-estudo.html Consultado em 12 de junho.
Advogado. Assessor Especial Chefe de Gabinete. Mestrando em Teoria Geral e Filosofia do Direito e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUCSP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Francisco Tadeu da Silva e. Direito, moral e a questão da justiça. Estudo comparado de sistema jurídico e sociedades inglesa e brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jan 2021, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56058/direito-moral-e-a-questo-da-justia-estudo-comparado-de-sistema-jurdico-e-sociedades-inglesa-e-brasileira. Acesso em: 24 nov 2024.
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