EDSON COSME MARTINS FILHO
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar a constitucionalidade da competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militares nos termos do art. 9º do Código Penal Militar. Para tanto, partiu-se de uma abordagem histórica sobre o surgimento da Justiça Militar e seu tratamento nas constituições brasileiras, tendo atenção às peculiaridades dos períodos em que a jurisdição militar propriamente dita se expressou com efetividade. Posteriormente, foi realizado um estudo dos órgãos que compõem a Justiça Militar no Brasil e, em especial, as características que a distinguem da Justiça comum. Propôs-se, ainda, a analisar a competência criminal da Justiça Militar a partir do delineamento constitucional acerca dos casos autorizadores, principalmente no tocante ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, os quais são a tônica de estudo no capítulo final deste trabalho. A Justiça Castrense que se divide no Brasil em estadual e federal, a primeira competente para julgar apenas os militares dos Estados e a segunda os militares integrantes das Forças Armadas e civis, ganhou novos contornos a partir da vigência da Lei nº 13.491/2017 a qual, para além de ampliar o conceito de crime militar, acresceu hipóteses autorizadoras de competência. Ao final deste trabalho, foi realizado estudo sobre os argumentos os quais aduzem a (in)constitucionalidade da competência da Justiça Militar, sensivelmente ampliada a partir da vigência da Lei nº 13.491/2017. Utilizou-se na presente pesquisa o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento monográfico, com o objetivo de avaliar a constitucionalidade da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Concluiu-se pela constitucionalidade da competência da Justiça Militar (federal e estadual) no tocante ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, porquanto a suposta violação à competência do Tribunal do Júri não angaria espaço em virtude da harmonização estabelecida no quadro de competências delineado pela Constituição da República de 1988. Contudo, não se olvidou o fato de que esta conclusão não seja estanque, porquanto tramita no STF a ADI nº 5901 que se propõe a dar solução à (in)constitucionalidade da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Palavras-chave: Justiça Militar. Crimes dolosos contra a vida. Competência. Constitucionalidade.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the constitutionality of the competence of the Military Justice to prosecute and judge intentional crimes (willful crimes) against human life committed by military personnel under the terms of Article 9 of the Military Penal Code. To do so, we started with a historical approach to the emergence of Military Justice and its treatment in Brazilian constitutions, paying attention to the peculiarities of the periods in which the military jurisdiction itself was effectively expressed. Subsequently, a study was carried out of the public departaments that make up Military Justice in Brazil and, in particular, the characteristics that distinguish it from ordinary justice. It was also proposed to analyze the criminal competence of Military Justice based on the constitutional outline of authorizing cases, especially with regard to the trial of willful crimes against life, which are the keynote of study in the final chapter of this work. The Justice Castrense that divides in Brazil into state and federal, the first competent authority to judge only the military of the States and the second the military members of the Armed Forces and civilians, gained new contours as of the enactment of Law 13.491/2017 which, in addition to expanding the concept of military crime, added authorizing hypotheses of competence. At the end of this work, a study was carried out on the arguments which add to the (in) constitutionality of the competence of the Military Justice, significantly expanded since the law enforcement 13.491/2017. In this research, the deductive approach method and the monographic procedure method were used, with the objective of evaluating the constitutionality of the competence of the Military Justice to judge intentional crimes against life. It concluded that the constitutionality of the competence of the Military Justice (federal and state) regarding the trial of intentional crimes against life, as the alleged violation of the competence of the Jury Court does not raise space due to the harmonization established in the framework of competences outlined by Constitution of the Republic of 1988. However, the fact that this conclusion is not watertight has not been overlooked, since the STF a ADI 5901 is being processed in the STF, which proposes to provide a solution to the (in) constitutionality of the competence of the Military Justice to judge intentional crimes against life.
Keywords: Military Justice. Willful crimes against life. Competence. Constitutionality.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO: 1 A JUSTIÇA MILITAR NO BRASIL. 1.1 A Justiça Militar na história. 1.2 O histórico da Justiça Militar nas Constituições brasileiras. 1.3 A composição da Justiça Militar da União e da Justiça Militar Estadual. 2 CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA. 2.1 Crimes dolosos contra a vida comuns e militares. 2.2 O Tribunal do Júri e a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida. 3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA O JULGAMENTO DOS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA. 3.1 A competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida a partir da nova redação do art. 9º do Código Penal Militar dada pela Lei nº 13.491/2017. 3.2 A (in) constitucionalidade da competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes dolosos contra a vida. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
A promulgação da Lei nº 13.491/2017 aviva a celeuma doutrinária e os embates jurisprudenciais dos Tribunais Superiores envolta da ampliação da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes militares praticados nos termos do art. 9º do Código Penal Militar (CPM).
Referida Lei proporcionou à Justiça Militar a competência para julgar não apenas os crimes previstos no Código Penal Militar, mas também os delitos previstos no Código Penal comum (CP) e na legislação penal especial, desde que preenchidas as condições estabelecidas no art. 9º do CPM. O legislador ordinário agiu a contrario sensu das decisões que até então vinham sendo tomadas nos Tribunais Superiores no sentido de se restringir as hipóteses autorizadoras da competência da Justiça Militar.
Nessa esteira, um fato que não pode ser negado é que grande parte da sociedade desconhece a existência da Justiça Militar, e mesmo dentre os seus jurisdicionados, se sabem da sua existência, ignoram sua competência e funcionamento.
Esse panorama é reforçado pela escassa bibliografia sobre a Justiça Militar, podendo ser encontradas poucas obras sobre o assunto, sendo mais detalhado em revistas e periódicos que, geralmente, são produzidos pelos próprios órgãos da Justiça Militar que lidam com a matéria, como o Superior Tribunal Militar e os Tribunais de Justiça Militar estaduais.
Ademais, as discussões e propostas sobre a extinção da Justiça Militar são cíclicas - e esse é um comportamento típico a que o desconhecimento sobre um assunto impulsiona. Ora, não há como perceber a necessidade e relevância de uma instituição para a sociedade, sem antes construir um conhecimento sobre sua origem, organização e atribuições.
Nesse diapasão, este trabalho pretende expor o papel da Justiça Militar inserida no contexto do Poder Judiciário brasileiro, com ênfase na competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Afinal, é constitucional a competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida?
Dessa questão faz-se necessário entender como desponta o tratamento em matéria de competência no Poder Judiciário acerca dos eventuais conflitos que poderão exsurgir. Afinal, há muito se sabe que o julgamento dos integrantes das Polícias Militares estaduais e dos integrantes das Forças Armadas nos crimes que praticam gera o embate crítico supramencionado sobre a própria necessidade da existência ou não da Justiça Militar.
O estudo foi estruturado em três capítulos, de modo que o primeiro capítulo se ocupou em analisar a construção histórica da Justiça Militar, desenvolvida num contexto global e também nas Constituições que vigeram no Brasil até a promulgação da Carta Cidadã de 1988. Assim, têm-se como objetivo, em um primeiro momento, a digressão sobre o tratamento dado à Justiça Militar ao longo dos anos, sendo certo que essa análise revela-se imprescindível para o entendimento da estrutura organizacional da Justiça Castrense.
No segundo capítulo, por outro lado, teve-se por escopo tecer as atuais linhas organizacionais da competência do Tribunal do Júri, realizando-se um comparativo para com a competência da Justiça Castrense para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Deste modo, essa abordagem objetiva levantar os argumentos que pugnam pela suposta violação, ou não, à competência do Tribunal do Júri estabelecida na Constituição Federal de 1988, diante da extensão de competência à Justiça Castrense para julgar crimes dolosos contra a vida.
E por fim, o terceiro e último capítulo tratou com especificidade do estudo da (in)compatibilidade constitucional da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, com enfoque nas recentes alterações promovidas pela Lei nº 13.491/2017.
Impende ressaltar que as técnicas de pesquisa adotas neste trabalho foram a pesquisa bibliográfica e a documental, instrumentalizadas através de pesquisas doutrinárias, jurisprudenciais, de artigos científicos e da legislação relacionada à matéria. Outrossim, para a consecução dos objetivos, optou-se pela utilização do método dedutivo de abordagem e também do método histórico e comparativo de procedimento, o que arregimenta análise crítica ao longo do percurso legislativo, jurisprudencial e doutrinário sobre a competência da Justiça Castrense.
Registre-se, por fim, que pela riqueza e amplitude da matéria, não é pretensão, nem haveria como, explorar e aprofundar todo o assunto em detalhes. Entretanto, realizar-se-á esforço para análise dos principais aspectos que circundam a Justiça Castrense, para então poder-se vislumbrar uma harmonia do quadro de competências constitucionalmente instituído.
1 BREVE HISTÓRICO DA JUSTIÇA MILITAR
Nesse introito, será a expressão "Justiça Militar" utilizada em seu sentido amplo, compreendendo tanto a referência à Jurisdição propriamente militar quanto ao direito penal e processual penal militar.
Essa medida preambular deve-se ao fato de a perspectiva de análise histórica do Direito Penal Militar encontrar barreiras temporais, sobretudo quando se busca precisar o marco inicial de tratamento da matéria. Contudo, sem qualquer prejuízo ao trabalho, essa dificuldade inicial será contornada através de uma análise fidedigna à história das civilizações que se destacaram por serem baluartes do direito e que transpuseram no decorrer dos séculos suas influências a outros países.
A dificuldade inicial a que se está a falar é compartilhada por Figueiredo para quem:
Sobre suas origens, não é segura a informação dos escritores. Sabe-se, entretanto, que essa matéria, mesmo sem adequada sistematização ou cunho científico, vem aflorando, entre os povos, desde a mais alta antiguidade. Neste período histórico vislumbram-se alguns traços de imposição disciplinar, no que tange às forças armadas, entre os assírios, os egípcios e os gregos. Esse embrião da Justiça Militar emergia das necessidades das guerras contínuas em que se empenhavam os povos antigos. (FIGUEIREDO, 1968, p. 99)
É preciso dizer, contudo, que a história da Justiça Penal Militar desenvolve-se ao lado da Justiça Penal comum. Nesse sentido, um raciocínio que busque traçar uma evolução histórica de forma autônoma, na maioria das vezes, não será possível.
Isso posto, conforme alhures mencionado, não se pode definir com exata precisão o momento em que ocorre a incursão do direito penal militar como ramo autônomo em relação ao direito penal comum. É de se perceber, entretanto, que do surgimento dos primeiros exércitos deriva a necessidade de se concretizar um órgão julgador com fulcro em apreciar os crimes cometidos durante operações bélicas.
Neves e Streifinger tentam estabelecer um marco singular em que possam ser percebidos os primeiros lapsos de exteriorização da autonomia do Direito Penal Militar:
[...] o Direito Penal Militar, em que pese a influência dos movimentos condicionantes do Direito Penal comum, desenvolve-se paralelamente e ganha notoriedade com o início da atividade bélica, exigindo, por consequência, a apreciação do fato crime por ângulo diverso [...]. (NEVES; STREIFINGER, 2012, p. 49)
Assim como os retromencionados autores, Corrêa partilha do mesmo raciocínio histórico, senão vejamos:
Quando o homem entrou na faixa das conquistas e das defesas para o seu povo, aí, provavelmente, a Justiça Militar deu os seus primeiros passos, pois logo sentiu a necessidade de poder contar, a qualquer hora e em qualquer situação, com um corpo de soldados disciplinados, sob um regime férreo e com sanções graves e de aplicação imediata. (CORRÊA, 1991, p. 35)
Vê-se, portanto, a gênese da Justiça Militar: consistente em estabelecer um parâmetro especial de tratamento a partir dos delitos que são cometidos no momento em que o corpo bélico de determinado grupo atacava grupos inimigos diversos, ou mesmo em defesa do próprio grupo.
Evidente, pois, que a distinção existente nesses contextos delituosos exteriorizava os primeiros contornos do reconhecimento da autonomia do Direito Penal Militar; repise-se, entretanto, que não havia autonomia propriamente dita.
Na antiguidade, nada obstante se mostre difícil organizar linearmente as primeiras expressões do direito penal militar, conforme colaciona Loureiro Neto (2010), não se pode olvidar que alguns povos antigos de civilizações mais organizadas, como Índia, Atenas, Pérsia, Macedônia e Cartago não desconheciam certos delitos militares, os quais, entretanto, eram julgados pelos próprios militares, especialmente os delitos cometidos em tempo de guerra.
Corrêa (1991) elenca duas legislações da antiguidade que destacaram-se por apresentarem disposições sobre o que hoje se concebe por crime militar: o Código de Ur- Nammu (a lei mais antiga de que se tem conhecimento), circunscrito em um contexto sem jurisdição propriamente militar, mas estritamente submetido aos desígnios do Rei, soberano em suas decisões; e o Código de Hamurabi, que também apresentava normas de cunho militar.
Nessa esteira, ainda na antiguidade, contudo, analisando o fértil aspecto expansionista-imperialista, Figueiredo destaca que o Império Romano demonstra ser um dos mais relevantes pontos históricos na averiguação da evolução da Justiça Militar:
Em Roma, porém, onde havia dominante e apaixonado, o espírito das conquistas guerreiras, teve a matéria um tratamento melhor coordenado, já em razão da inteligência, cultura e do espírito prático e consolidado do grande povo. Aí, já se podia falar em instituição militar. A organização militar ajustava-se na organização política e administrativa do Estado. Os juristas entraram em debate no processo de elaboração científica da instituição. E as divergências iluminaram o campo doutrinário. Surgiram as escolas, disciplinando as instituições militares, os tribunais adequados e a jurisdição específica. (FIGUEIREDO, 1968, p. 99)
Não é outra a visão de Corrêa, para quem a história gloriosa da Roma antiga deve e muito ao desenvolvimento de um corpo bélico estruturado e organizado nas bases da disciplina romana, contribuindo consequentemente para a formação de uma rígida jurisdição penal militar; são do autor citado as seguintes lições:
Com os romanos, porém, a Justiça Militar e o Direito Militar ganham realce maior, eis que, e nunca é demais fazer-se a anotação, Roma e sua glória devem, e muito, ao seu exército. Enquanto estes mantiveram unidos, fortes, disciplinados, organizados, treinados, os romanos foram alargando o seu território, chegando aos confins do mundo na época conhecido, e puderam manter-se no domínio de vários outros povos por centenas de anos, bastando dizer-se que o Império Romano do Ocidente só veio a cair em 467 d. C. , e o do Oriente, muito mais tarde, já no século XV, ou mais precisamente, em 1453. (CORRÊA, 1991, p. 40)
Nesse diapasão, pode-se concluir que é sob a existência dos exércitos permanentes, organizados e utilizados tanto nas conquistas quanto em cunho defensivo, que o direito penal militar e a necessidade de uma jurisdição propriamente militar apoiam-se.
Não é preciso muito esforço para entender que a atividade bélica tornando-se organizada e em estado de perene prontidão ter-se-ia como decorrência a necessidade de tratamento especial dos delitos cometidos no contexto bélico, o que demandaria, naturalmente, a constituição de um órgão encarregado da aplicação das sanções e julgamento dos crimes específicos.
Loureiro Neto (2010) perfilhando a relevante contribuição para o reconhecimento da autonomia do Direito Penal Militar a partir da Roma antiga fornece, ainda, importante e detalhada análise para ser concebida a evolução do tratamento e julgamento dos crimes militares.
Retromencionado autor preleciona uma evolução histórica do Direito Militar na Roma antiga em quatro fases:
a) Época dos reis, em que os soberanos concentravam em suas mãos todos os poderes, inclusive o de julgar;
b) Segunda fase, em que a justiça militar era exercida pelos Cônsules, com poderes de imperium majus. Abaixo dele, havia o Tribuno Militar, que possuía o chamado imperium militae, simbolizando a dupla reunião da justiça e do comando;
c) Terceira fase, época de Augusto, em que a justiça militar era exercida pelos prefeitos do pretório, com jurisdição muito ampla; e
d) Quarta fase, época de Constantino, em que foi instituído o Consilium, com a função de assistir o juiz militar. Sua opinião era apenas consultiva. (LOUREIRO NETO, 2010, p. 4)
Superada a análise sobre a relevante contribuição do direito Romano sobre a evolução da Justiça Militar, que começou pela criação da ideia de organização militar expansionista para então culminar em um corpo definido de leis propriamente militares com aplicação bem definida, faz-se necessário analisar o histórico do Direito Penal Militar brasileiro, cuja origem remontar à legislação penal de Portugal.
É fácil constatar que a influência de Portugal durante o período colonial brasileiro é deveras sentida até hoje na aplicação do direito. Conforme Neves e Streifinger (2012, p. 56): "Com efeito, as embarcações da Coroa não trouxeram apenas homens e o espírito colonizador, mas também todo o arcabouço jurídico do Velho Mundo".
De início pode-se destacar que o Direito Lusitano sofreu influência histórica impingida pelo domínio de matriz romana, visigótica, e ainda, sarracena.
Corrêa (1991) assinala que Portugal, assim como toda a Europa, após a queda do Império Romano do Ocidente, viu-se dominada por hordas de bárbaros, sendo os visigodos dominantes na península ibérica. Para se ter ideia da dominação bárbara em terras lusitanas, somente em momento histórico posterior, a partir das invasões árabes, em 712 d.c, que o império visigótico veio a sucumbir.
Complementando a exposição sobre esse contexto histórico, Corrêa cita Romeiro para pontua que essa mixórdia de legislações, então aplicáveis a Portugal durante o histórico de domínio por diferentes povos, é decisiva para se compreender a origem da legislação contemporânea:
Por várias razões Romeiro já havia ressaltado que as mais cariadas leis da época demonstram que desde o período romano até os séculos atuais, os crimes militares receberam sanção de inúmeras leis que podem ser apontadas como a gênese dos atuais Códigos Penais Militares da época contemporânea. (ROMEIRO apud CORRÊA, 1991, p. 51)
Adiante, pode-se dizer que a influência lusitana sobre o Brasil sentida no direito militar desenvolve-se durante o período colonial de forma gradual e lenta, culminando em momento posterior na autonomia de competência da colônia para proferir decisões através de sua própria jurisdição. De início, esse processo destacou-se com órgãos de primeira instância, até culminar numa autonomia propriamente ditada dos órgãos de última instância.
A influência lusitana sobre o direito penal militar brasileiro foi impingida acentuadamente mediante as ordenações do reino de Portugal, dentre as quais, por sua peculiar relevância, pode-se destacar as Ordenações Filipinas, decretadas em 1603 no Reino Português.
É preciso assinalar, porém, que o Brasil colônia não detinha propriamente uma autonomia jurisdicional e legislativa, na medida em que era regido, de forma indireta, pelas leis de Portugal, o que reforçava o ideário lusitano em não estabelecer abertura para uma consequente independência da colônia.
Na visão de Corrêa:
Com as Ordenações Afonsinas, em 1446, as Ordenações Manuelinas, em 1514, e as Ordenações Filipinas, em 1603, vai o Brasil, indiretamente, tendo as suas leis, mas sempre como colônia, tanto que em 1590 a Coroa nega-se a estabelecer um Tribunal de Apelação no Brasil (Salvador), o que só aconteceu em 1609, subordinando-se à Casa da Suplicação, sendo nele o seu presidente o Governador-Geral, mesmo que não pudesse votar ou condenar, mas somente assistir às sessões. (CORRÊA, 1991, p. 57)
Em referência às Ordenações Filipinas, consigna Neves e Streifinger (2012) que não se podia separar com precisão as normas penais militares então contidas no bojo das Ordenações Filipinas das normas penais comuns, pois encontravam-se todas no mesmo espaço normativo, o que demonstrava ainda o desapego a um reconhecimento da autonomia da jurisdição propriamente militar. São estas as considerações dos autores retromencioanados:
A grande questão a ser satisfeita, todavia, é saber se o Direito Penal Militar estava contido no bojo das Ordenações Filipinas. Inicialmente, o Direito Penal do Reino não consagrava nítida separação entre Direito Penal comum e militar, havendo no “Código de Felipo” previsões que poderiam ser consideradas próximas a um Direito Criminal afeto à beligerância, e. g., a disposição do Título XCVII, que tratava dos que “fogem das Armadas”. (NEVES; STREIFINGER, 2012, p. 57)
Fato é que somente em 1763 foram incorporados às Ordenações Filipinas os "Artigos de Guerra" do Conde de Lippe, que vigeram no Brasil até 1907, e que definitivamente passaram a estabelecer disposições específicas voltadas à imposição de sanções aos delitos cometidos em contexto militar e por militares.
No ano de 1907, procedeu o Ministro de Guerra Marechal Hermes Rodrigues Fonseca à reforma por inteiro dos "Artigos de Guerra" do Conde de Lippe, a partir de quando exsurge o Código Penal da Armada (Armada era a denominação dada à Marinha do Brasil).
Nesse diapasão, pode-se então resumir esse percurso histórico-legislativo através dos ensinamentos de Corrêa:
Se as Ordenações Filipinas, apesar de promulgadas em 1603, eram uma legislação ainda medieval, identificável com a vingança pública, herança do Direito Visigótico, do Direito Canônico e das Estatutas de Justiniano, como bem comentou Garcez, a elas juntam-se os artigos de guerra, do Conde de Lippe, surgidos em 1763. Eles vigiram no Brasil, na esfera criminal, até fins do século XIX, quando saiu o Código Penal da Armada, e, quanto ao exército Brasileiro, até 1907, quando o então Ministro da Guerra, Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, o reformou inteiramente, mesmo que, a esse tempo, já o Exército, desde 1899, se utilizasse do Código Penal da Armada. (CORRÊA, 1991, p.56)
A vigência do "Código Penal da Armada" encerra-se em 1944, quando o Decreto-lei nº 6227, de 24 de janeiro passa a dispor sobre o Código Penal Militar.
Este último Código Penal Militar de 1944 vigorou até 31 de dezembro de 1969, com a entrada em vigor do atual Código Penal Militar. Esta última legislação tem incursão histórica no período excepcional do regime militar ao qual será objeto de explanação no próximo subitem.
Por fim, é de bom alvedrio salientar que essa análise da história em perspectiva foi necessária à compreensão dos institutos e das fontes de onde emergem o direito penal militar e a jurisdição castrense, podendo-se dizer que o tratamento dado aos delitos militares há muito foi realizado de modo singular, não somente pelo reconhecimento da especialidade da matéria mas também pelo contexto em que praticados tais delitos.
Inicialmente, antes de adentrar no tratamento dado pelas Constituições brasileiras à Jurisdição Militar, é necessário ressaltar que, mesmo antes da independência do Brasil ocorrida em 07 de setembro de 1822, e da outorga da Carta Imperial de 1824 por D. Pedro I, há um evento imprescindível ao firmamento do ponto de partida para reconhecimento da Justiça Militar em terras tupiniquins. Estar-se a falar da vinda da família real portuguesa para o Brasil.
A reorganização administrativa da colônia a partir da transferência da sede da monarquia portuguesa para o Rio de Janeiro foi ponto crucial para a criação do Conselho Supremo Militar e de Justiça, primeiro órgão responsável por dar tratamento singular aos crimes militares.
Conforme obtempera Loureiro Neto:
Com a chegada de D. João VI ao Brasil, pelo alvará de 21 de abril de 1808, criou-se o Conselho Supremo Militar e de Justiça, e em 1834, a Provisão de 20 de outubro previa crimes militares, que foram separados em duas categorias: os praticados em tempo de paz e os praticados em tempo de guerra. (LOUREIRO NETO, 2010, p.5)
O Conselho Supremo Militar e de Justiça detinha duas funções, uma de caráter administrativo e outra de caráter propriamente jurisdicional. Assinala Corrêa (1991) que a função de caráter administrativo concentrava-se em questões referentes a requerimentos, cartas-patentes, promoções, soldos, reformas, nomeações, lavratura de patentes e uso de insígnias, questões às quais deliberava em forma de parecer; quanto à função jurisdicional detinha a atribuição de Tribunal Superior da Justiça Militar, julgando em última instância os processos criminais dos réus submetidos ao foro militar.
Com o advento da República e a promulgação da Constituição de 1891, o Conselho Supremo Militar passou a intitular-se Supremo Tribunal Militar, cuja organização e atribuição foram definidas pela Lei nº 149, de 18 de julho de 1893. Contudo, referido órgão somente passou a integrar o Poder Judiciário pela Constituição de 1934 e, com a Constituição de 1946, veio a denominar-se Superior Tribunal Militar.
Esse aparte, que será adiante melhor explorado, mostra-se importante para entender que a Justiça Militar em terras brasileiras tem seu cerne concentrado não somente a partir da independência e autonomia em relação a Portugal, porquanto muito antes da independência já se expressava através de órgãos sem caráter reconhecidamente jurisdicional localizados na colônia, dos quais o Conselho Supremo Militar e de Justiça demonstra ser o inaugural.
Adiante, realizada essa consideração primordial, para reforçar o detalhamento objeto deste subcapítulo será feita referência às sete Constituições brasileiras no que tange à disposição dada à Justiça Militar, por se tratarem tais documentos de marcos orientadores de cada período histórico e de expressão do poder político, dentre as quais em seus respectivos anos de vigência: a primeira Constituição, do ano de 1824; a de 1891, que inaugurou a forma de governo republicana; a de 1934; a de 1937; a de 1946; a de 1967 e, por último, em vigor há mais de 30 anos, a nominada Constituição cidadã de 1988.
Não é demasia repisar que a Constituição de 1824 foi outorgada por D. Pedro I, sendo característica marcante o fato de ser notadamente inspirada no constitucionalismo inglês, podendo ainda ser considerada no aspecto de sua vigência a de maior duração das sete Constituições brasileiras.
O Título VI da Constituição de 1824 dispunha exclusivamente sobre o Poder Judiciário o que, entretanto, não significava o reconhecimento de autonomia a tal Poder. Corroborando com esse entendimento, Nogueira assinala que:
Muito embora o art. 10 prescrevesse que "os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial", não se pode dizer que o Judiciário constituísse, na prática, um poder independente, na forma como hoje se concebe a harmonia e independência que preside os diferentes poderes do estado democrático. (NOGUEIRA, 2015, p. 26)
Nesse diapasão, não se podia reconhecer autonomia à Justiça Militar devido ao forte domínio subversivo impingido pelos Poderes Executivo e Legislativo sobre o Poder Judiciário, fato que no mais das vezes somava-se à inexistência de tratamento através de leis próprias às questões militares.
No Título V (Do Imperador), Capítulo VIII (Da Força Militar), precisamente no art. 150, da Constituição de 1824 havia uma única e breve determinação no sentido de que uma legislação regularia o sistema da disciplina militar. Contudo, fato é que durante o período Imperial brasileiro não se teve notícia de uma sistemática orgânica de Jurisdição propriamente militar, sendo o trato da matéria relegado à seara administrativa.
Conforme destaca Corrêa, durante o Brasil Império havia uma série de órgãos responsáveis pela resolução das mais variadas questões militares:
[...] foram criados os Conselhos de Disciplina, para verificar a deserção das praças de pré; os Conselhos de Investigação para estudar atos criminosos em geral e deserção de oficiais de patentes; os Conselhos de Guerra para julgar em primeira instância os crimes militares; o Conselho Supremo Militar, tribunal de segunda instância para julgamento dos referidos crimes; e as Juntas de Justiça Militar e os Conselhos para faltas disciplinares. (CORRÊA, 1991, p. 66). Negritou-se.
Figueiredo leciona sobre a retromencionada ausência de relevo à matéria militar durante todo o período imperial brasileiro nos seguintes termos:
[...] o império caiu sem haver dotado a nação de leis penais militares ao nível político das instituições democráticas do país e da cultura das classes armadas, em medidas orgânicas, reduzida que ficou a legislação militar a providências sem sistema, sem método, impostas pelas necessidades ocasionais, de sorte que um dos mais imperiosos problemas que a República teve que resolver foi o da reforma das leis penais militares. (FIGUEIREDO, 1968, p. 102)
Encerrada essa exposição do tratamento dado à matéria militar durante o período Imperial, adentra-se na análise sobre a Constituição de 1891, merecendo transcrição breve trecho da obra "A Constituição de 1891" da autoria de Aliomar Baleeiro em que relata o momento ao qual o país atravessava:
O povo brasileiro cansara-se da monarquia, cuja modéstia espartana não incutia nos espíritos a mística e o esplendor dos tronos europeus. O imperador vestia trajes civis, pretos, como qualquer sujeito respeitável da época, sem as fardas de dourados, de almirante e general, as condecorações, crachás não impressionam o homem da rua. Conta-se que a Princesa Imperial trazia consigo, no decote, fósforos para acender ela mesma as velas à boca da noite. (BALEEIRO, 2015, p.1)
Instalada a República dos Estados Unidos do Brasil, diz-se que somente em 1891 lança-se através do texto Constitucional tratamento à Justiça Militar, configurando e inaugurando a necessária sistematização, ausente na Carta Constitucional de 1824.
Assim, estabelecia a Constituição de 1891 em seu art. 77:
Art.77 - Os militares de terra e mar terão foro especial nos delitos militares.
§ 1º - Este foro compor-se-á de um Supremo Tribunal Militar, cujos membros serão vitalícios, e dos conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes.
§ 2º - A organização e atribuições do Supremo Tribunal Militar serão reguladas por lei. (BRASIL, 1891)
A disposição legislativa em matéria militar dava os primeiros passos pelo expresso arranjo na Constituição republicana de 1891 que reconheceu foro especial aos militares de terra e mar, foro esse composto por um Supremo Tribunal Militar (cujos membros seriam vitalícios) e por Conselhos de Justiça, conforme o texto supracitado.
Corrêa em comentário ao art. 77 da Constituição de 1891 assinala que:
[...] para os crimes militares previstos pela lei militar uma jurisdição especial deve existir, não como privilégio dos indivíduos que os praticam, mas atenta a natureza desses crimes e a necessidade, a bem da disciplina, de uma repressão pronta e firme, com formas sumárias. (CORRÊA. 1991, p. 172)
Adiante, com a Carta Constitucional de 1934 (BRASIL, 1934) a Justiça Militar é disposta como órgão do Poder Judiciário no art. 63, "c", previsto no Título I (Da Organização Federal), Capítulo IV (Do Poder Judiciário), Seção I (Disposições Preliminares), o qual estabelece que "São órgãos do Poder Judiciário os juízes e tribunais militares".
Com importantes considerações sobre o contexto do qual exsurge a Carta Constitucional de 1934, Poletti (1999, p. 9) destaca que as revoluções de 1930 e 1932 reforçaram anseios gerais e impostergáveis, sendo que a "a primeira tinha um ideário liberal em política, embora os acontecimentos posteriores a transformassem num projeto social- democrático e, em seguida, na causa eficiente de uma ditadura bajuladora do fascismo europeu", enquanto que a revolução paulista reforçou o ideário do movimento constitucionalista.
Isso posto, pode-se dizer que a Constituição de 1934 inserida no contexto histórico de reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão, doravante inspirada na Constituição de Weimar de 1919 e na Constituição Mexicana de 1917, voltou-se, ainda, ao necessário delineamento do Poder Judiciário em justiças especializadas, aspiração há muito tempo imprescindível, na medida em que reconhecer a especialização das justiças equivale a um tratamento específico das querelas, solucionadas com acuidade.
No dia 10 de novembro do ano de 1937 elenca-se a segunda Constituição outorgada no Brasil: a Carta Constitucional de 1937, inserta em um momento histórico de crise da ordem e da autoridade em todo o mundo.
No que se refere à Constituição Federal de 1937 (BRASIL, 1937), fato é que essa Carta Constitucional em nada refletia o regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1937, até mesmo porque não chegou a entrar em vigor, na medida em que seu art. 175 declarava que "O atual Presidente da República tem renovado o seu mandato até a realização do plebiscito a que se refere o art. 187, terminando o período presidencial fixado no art. 80 se o resultado do plebiscito for favorável à Constituição". Ora, essa condição a plebiscito para a vigência da Carta Constitucional de 1937 é intuitivo para negar a sua aplicação.
Dessa forma, pouco se pode dizer de importância dessa Carta Constitucional acerca do tratamento do foro militar. Deveras, conforme assinala Porto:
Os males que porventura tenham restado para o País do regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1937 não podem ser atribuídos à Constituição. Esta não chegou sequer a vigorar e, se tivesse vigorado, teria certamente constituído importante limitação ao exercício do poder. (PORTO, 1999, p. 14)
Por outro lado, quanto à Constituição de 1946, não se pode dizer que esta olvidou do tratamento do foro militar, muito pelo contrário, porquanto as Justiças Militares estaduais tornaram-se parte do Poder Judiciário a partir dessa Carta.
Diz-se que a Constituição de 1946 teve importante influência da Constituição de 1934. São nesse sentido as lições de Barbosa Lima Sobrinho:
[...] a Constituição de 1946 era tão parecida com a de 1934 que se podia ter a impressão de um decalque. Não houve, aliás, essa ideia, entre os constituintes de 1946, nem seria de supor que predominasse, na fatura de uma carta de direitos, o propósito de uma imitação servil. [...] O que mais que tudo contribuiu, para a aproximação dos textos, foi a coincidência dos fatores políticos, que inspiraram a elaboração constitucional, orientada, nos dois momentos, pelo pensamento de uma reação contra os exageros do presidencialismo da República Velha, ou contra as tendências ditatoriais, que modelaram a Carta de 1937. (LIMA SOBRINHO, 2015, p. 25)
A Constituição de 1946 (BRASIL, 1946), no Título I (Da Organização Federal), Capítulo IV (Do Poder Judiciário), previa no art. 94 que: "O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos: [...] Juízes e tribunais militares"; de mais a mais, previa, ainda, no Título II (Da Justiça Dos Estados), em seu art. 124, que:
Os Estados organizarão a sua justiça com observância dos arts. 95 a 97 e também dos seguintes princípios: [...] a Justiça Militar estadual, organizada com observância dos preceitos gerais da lei federal, terá como órgãos de primeira instância os conselhos de justiça e como órgãos de segunda instância um tribunal especial ou Tribunal de Justiça. (BRASIL. 1946)
Sob a vigência do regime militar de 1964, foi promulgada nova carta Magna em 24 de janeiro de 1967. O texto constitucional não trouxe alteração no panorama até então construído da Justiça Militar.
Para Correa (1991) a Constituição de 1967 não inovou quanto à organização da Justiça Militar, com exceção da previsão de recurso ordinário, das decisões proferidas pela Justiça Castrense, para o Supremo Tribunal Federal, nos casos expressos em lei, contra civis, Governadores e Secretários de Estado.
Analisando finalmente a última das Cartas Constitucionais, vigente até os dias atuais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Justiça militar federal é mantida como integrante do Poder Judiciário, sendo composta pelo Superior Tribunal Militar (órgão de 2º grau da Justiça Militar federal) e pelos Juízes Militares, conforme art. 122, incisos I e II.
Quanto à Justiça Militar estadual, o art. 125 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) delegou aos Estados a competência para organização da sua Justiça, podendo a lei estadual criar a Justiça Militar estadual, nos estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.
Por fim, registre-se que no próximo capítulo será explorada com minudência a organização e o funcionamento das Justiças Militares (federal e estadual), encerrando-se essa exposição ressaltando que a evolução da Justiça Militar no Brasil demonstrou que em nenhum momento deixou de estar presente o tratamento especial da disciplina militar, sobretudo, a partir do nascimento da República e, como visto, do primeiro órgão com jurisdição propriamente militar criado em 1808: o Conselho Supremo Militar e de Justiça.
Lobão (2006) assinala que o foro militar é especial, porquanto nele é realizada a lei penal especial, através do diploma processual penal militar, igualmente especial.
De certo, a partir de leitura ao art. 92 da CRFB/88 pode-se afirmar que a Justiça Militar está para a Justiça do Trabalho assim como essa está para a Justiça Eleitoral, é dizer, a Carta Magna elenca esses ramos do Poder Judiciário como vertentes especializadas, merecendo, cada qual, disciplina e competência própria para a integral satisfação do fim a que se propõem. E assim o é, porquanto atirar à vala comum tais ramos especializados da Justiça equivale à negação da própria Justiça.
A Justiça Militar, conforme alhures desenvolvida na história, atualmente divide-se em: Justiça Militar da União (ou federal) e Justiça Militar estadual.
A começar pela Justiça Militar da União, o art. 1º da Lei nº 8.457 de 1992, denominada Lei de Organização da Justiça Militar da União (LOJM) (BRASIL, 1992), prevê que a Justiça Militar federal é composta em 1ª instância: pelos Juízes federais da justiça militar, pelos Juízes federais substitutos da justiça militar e pelos Conselhos de Justiça, e em 2ª instância é composta a pelo Superior Tribunal Militar (STM).
O STM é órgão com sede na Capital da República e jurisdição em todo território nacional, composto por 15 ministros, sendo 10 militares e 5 civis, todos de livre escolha do Presidente da República, após aprovação do Senado, conforme estabelece o art. 123, caput, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Conforme consta do art. 123, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), os ministros militares são oficiais-generais da ativa e de posto mais elevado da carreira, sendo três da Marinha, quatro do Exército e três da Aeronáutica; por outro lado, os ministros civis são escolhidos pelo Presidente da República, dentre brasileiros, maiores de 35 anos, sendo três advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, e dois por escolha paritária, dentre Juízes militares federais e membros do Ministério Público Militar.
A retromencionada Lei de Organização Judiciária Militar da União (LOJM) (BRASIL, 1992) no seu art. 2º é responsável pelo delineamento da Justiça Militar federal no território nacional, e o faz decompondo-o em 12 Circunscrições Judiciárias militares. Cada Circunscrição Judiciária Militar conta com uma Auditoria Militar, exceto a 1ª, 2ª, 3ª e 11ª, as quais têm mais de uma Auditoria.
Conforme a LOJM (BRASIL, 1992), no seu art. 16, nas Auditorias funcionam Conselhos Permanente e Especial, os quais são constituídos por oficiais da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, que conhecem dos feitos da respectiva Arma. O Conselho Especial de Justiça tem competência para julgamento dos oficias, até o posto de capitão de mar e guerra e de coronel das Forças Armadas. Por outro lado, o Conselho Permanente tem competência para julgamento das praças, e também do civil.
Nos termos do art. 16 da LOJM (BRASIL, 1992), os Conselhos de Justiça são compostos por cinco membros, sendo um deles o Juiz federal da Justiça Militar, o qual ingressa no cargo mediante concurso público de provas e títulos, e quatro juízes militares, oriundos da respectiva Arma a qual pertence o acusado, e de posto superior e maior antiguidade que este.
Vê-se, pois, que os Conselhos de Justiça, seja ele Permanente ou Especial, são formados por um modelo de escabinado, sendo os Juízes militares sorteados e escolhidos dentre oficiais de carreira, da sede da Auditoria, conforme prevê o art. 18 da LOJM (BRASIL, 1992).
Assim, o que distingue o Conselho Especial do Conselho Permanente é o acusado submetido a julgamento perante o respectivo Conselho de julgadores; sendo oficial das Forças Armadas será julgado pelo Conselho Especial e, sendo praça ou civil, será julgado pelo Conselho Permanente.
Conforme art. 23 da LOJM (BRASIL, 1992), outra importante diferença existente entre os Conselhos é que o Conselho Especial será constituído para cada processo e dissolvido após a conclusão dos Trabalhos, reunindo-se novamente, caso sobrevenha nulidade do processo ou do julgamento; por outro lado, os Conselhos Permanentes são renovados a cada três meses, funcionando durante todo o ano.
Finda a exposição geral sobre os órgãos que compõem a Justiça Militar federal faz-se oportuna uma breve análise à Justiça Militar estadual, deixando claro que sua estrutura assemelha-se à da Justiça Militar federal.
Quanto aos órgãos que compõem a Justiça Militar estadual tem-se que essa disciplina será disposta por cada Estado-membro da Federação brasileira em compasso com sua autonomia. Destarte, a CRFB/88 no art. 125 (BRASIL, 1988) delega aos Estados a possibilidade de criação da Justiça Militar estadual, sendo composta em 1ª instância pelo Juiz de direito da justiça militar estadual e pelos Conselhos de Justiça, Especial e Permanente.
A composição dos Conselhos de Justiça da Justiça Militar estadual é a mesma da Justiça Militar federal: um Juiz de direito da justiça militar e quatro Juízes militares. Com efeito, adverte Lobão:
A legislação estadual relativa à formação e composição dos Conselhos de Justiça segue o modelo da lei federal, relativa aos órgãos julgadores de 1ª instância da Justiça Militar federal. O fato de a presidência dos Conselhos ter sido deferida ao Juiz de Direito do Juízo militar (art. 125, § 5º, da CF), não alterou a composição do colegiado, que continua observando a lei federal. Portanto, o Conselho Permanente, é composto pelo Juiz de Direito do Juízo Militar, um oficial superior e três oficiais até o posto de capitão. O Conselho Especial é composto pelo Juiz de Direito do Juízo Militar, e quatro oficiais de posto superior, ou mais antigos do que o acusado, ou na falta, por oficiais mais modernos do que o réu. (LOBÃO. 2009, p. 132)
De mais a mais, para efeito de divisão da Justiça Militar estadual, cada Estado e o Distrito Federal constituem uma Circunscrição Judiciária militar estadual, com um Juízo Militar em cada uma delas, deixando-se claro, contudo, que os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, possuem mais de uma auditoria.
Conforme dispõe o art. 125, § 3º da CRFB/88 (BRASIL, 1988), a Justiça Militar Estadual em 2ª instância será constituída pelo Tribunal de Justiça do Estado ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a 20.000 (vinte mil integrantes).
Por fim, encerrando este subcapítulo, cumpre esclarecer que somente os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul possuem Tribunais de Justiça Militares, de modo que nos demais Estados da Federação a 2ª instância da Justiça militar é exercida pelos Tribunais de Justiça.
De acordo com o art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), é reconhecida a instituição do Tribunal do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a plenitude de defesa; o sigilo das votações; a soberania dos veredictos; e por fim, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Muito embora a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) mencione no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), a instituição do Tribunal do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, olvida-se em conceituar esses delitos. Assim, mostra-se imprescindível uma inicial exposição conceitual para compreensão de quais órgãos serão competentes para julgamento de tais crimes.
De mais a mais, será visto que existem crimes dolosos contra a vida previstos tanto no Código Penal comum quanto no Código Penal militar, cada qual com tipificações e características peculiares e que merecem a devida exposição.
Consigna Feitoza (2010) que o Código Penal (BRASIL, 1940) estabelece o que se considera como crimes dolosos contra a vida, sendo eles: o homicídio doloso (art. 121), induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122), infanticídio (art. 123) e o aborto (arts. 124 a 126).
Reconhecendo a importância do Título I (Dos crimes contra a pessoa), Capítulo I (dos delitos contra a vida), da Parte Especial do Código Penal, Cunha (2020) destaca que os delitos previstos neste Capítulo são aqueles que eliminam a vida humana, considerada o bem jurídico mais importante do homem, razão de ser de todos os demais interesses tutelados, merecendo inaugurar a Parte Especial do Código Penal.
Em seguida, contudo, reconhece o supracitado autor que essa alocação não implica o estabelecimento de hierarquia entre as normas incriminadoras, reverberando em verdade a importância do tratamento da matéria.
A iniciar pelo delito previsto no art. 121 do Código Penal (Brasil, 1940) sob a rubrica marginal "Homicídio", Cunha (2020) o define como a injusta morte de uma pessoa (vida extrauterina) praticada por outrem (destruição da vida humana, por outro homem).
Masson (2017) consigna que o bem jurídico protegido é a vida humana exterior ao útero materno, assegurada pelo art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988.
Assim, essa conceituação inicial sobre o delito de homicídio (art. 121, CP) leva à conclusão de que a eliminação da vida humana não acarreta na sua automática tipificação. De modo que ocorrendo o extermínio da vida humana intrauterina estará caracterizado o delito de aborto; e por outro lado, se já iniciado o trabalho de parto, presentes as elementares do art. 123 do CP poderá resultar a caracterização do delito de infanticídio.
No art. 122 do Código Penal (BRASIL, 1940) está previsto outro delito que tem como bem jurídico tutelado a vida extrauterina, sob a rubrica marginal "Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação".
Conforme leciona Masson (2017), o suicídio é a destruição deliberada da própria vida humana, contudo, tal conduta não é criminosa, em face do postulado da alteridade que orienta o Direito Penal. Assim, o autor completa o raciocínio aduzindo que o que veda o Código Penal é a conduta daquele que concorre para que outrem destrua voluntariamente sua própria vida.
Registre-se de passagem que, com a vigência da Lei nº 13.968/2019, o delito previsto no art. 122 do Código Penal (BRASIL, 1940) sob a rubrica marginal de "Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio", passou a denomina-se "Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação".
Conforme se vê, a Lei nº 13.968/2019 alterou o Código Penal no seu art. 122 (BRASIL, 1940) para tipificar a conduta daquele que induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça. Evidente, pois, que melhor seria ter alocado a conduta do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação no Capítulo II (Das lesões corporais) do Título I da Parte Especial do Código Penal.
Quanto a essa alteração, a doutrina insurge-se para pontuar que a conduta do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação não pode ser considerada no rol dos crimes dolosos contra a vida; deixando-se claro que permanece nesse rol de crimes a conduta do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, sendo que somente esta tem a vida como bem jurídico tutelado.
Dentre os doutrinadores que partilham essa posição, Cabette assinala que:
Até o surgimento da Lei 13.968/19 não havia dúvida de que se tratava de um crime exclusivamente contra a vida. Acontece que essa novel legislação incluiu também o induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, o que implica na abrangência de outro bem jurídico, que já não é mais somente a vida humana, mas também a integridade física. Certamente, a melhor opção do legislador seria ter incluído essa questão do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, não no artigo 122, CP, mas diretamente no Título I – “Dos Crimes contra a pessoa”, Capítulo II – “Das Lesões Corporais”, do Código Penal Brasileiro. A automutilação ficaria melhor alocada no corpo do artigo 129, CP e não no artigo 122, CP como foi procedido. (CABETTE, 2020)
Adiante, no art. 123 do Código Penal está previsto o delito sob a rubrica marginal de "Infanticídio", conceituado por Cunha (2020) como o homicídio praticado pela genitora contra o próprio filho, influenciada pelo estado puerperal, durante ou logo após o parto. Desse modo, assim como no delito de homicídio (art.121, CP) e induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122, CP), pode-se dizer que o bem jurídico protegido pelo Código Penal ao tipificar tal conduta é a vida humana.
Nos arts. 124, 125 e 126, o Código Penal tipifica a conduta do aborto. Para Masson (2017, p. 83) citando Maggiore, o aborto "é a interrupção violenta e ilegítima da gravidez, mediante a ocisão de um feto imaturo, dentro ou fora do útero materno".
Ainda, segundo Masson (2017), no aborto provocado pela gestante (autoaborto), no consentimento para o aborto, ambos tipificados pelo art. 124 do Código Penal, e no aborto com o consentimento da gestante (aborto cosentido), definido pelo art. 126 do Código Penal, somente existe um único bem tutelado: o direito à vida, do qual o feto é titular. Por outro lado, no aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante (art. 125), protege-se também, além da vida do feto, a integridade física e psíquica da gestante.
Por todo o exposto, pode-se listar os seguintes crimes que têm a vida como bem jurídico tutelado, todos previstos no Código Penal comum: Homicídio (art. 121), Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122), Infanticídio (art. 123), Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124), Aborto provocado por terceiro (art. 125) e, por fim, o aborto consentido previsto no art. 126.
Interessante observar que a jurisprudência e a doutrina rechaçam da conceituação como crimes dolosos contra a vida uma série de delitos, cuja vida é o bem jurídico tutelado de forma mediata, fato esse suficiente para que ocorra o afastamento da competência do Tribunal do Júri.
Dentre esses delitos tem-se o latrocínio (art. 157, § 3º, inciso II, do CP), o Genocídio (Lei nº 2.889/1956), entre outros.
Na doutrina, consigna Feitoza (2010) que o latrocínio, mesmo tendo o evento morte, não é crime doloso contra a vida, mas crime contra o patrimônio, uma vez que o art. 157, § 3º do CP encontra-se no capítulo "dos crimes contra o patrimônio".
Na jurisprudência, é possível alcançar esse entendimento de exclusão do latrocínio da conceituação de crime doloso contra a vida a partir do enunciado sumular de nº 603 do Supremo Tribunal Federal, uma vez que este afasta o latrocínio dentre os crimes de competência do Tribunal do Júri.
Outrossim, ainda é possível excluir do conceito de crime doloso contra a vida, além do latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante sequestro qualificada pela morte, entre outros crimes. A justificativa para tal exclusão repousa no mesmo argumento aduzido para a exclusão do latrocínio, a saber: são crimes contra o patrimônio.
O genocídio também não é considerado um crime doloso contra a vida.
Renato Brasileiro (2018) leciona quanto ao genocídio, previsto na Lei nº 2.889/1956, no sentido de não poder ser considerado um crime doloso contra a vida, pois tutela, na verdade, a existência de grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Registre-se, todavia, a advertência do autor, uma vez que se praticado mediante morte de membros do grupo, deverá o agente responder pelos crimes de homicídio em concurso formal impróprio com o delito de genocídio.
Neste último exemplo, portanto, é inarredável a competência do Tribunal do Júri, conforme será adiante elucidado.
Ressalte-se que o genocídio também encontra-se previsto na Parte Especial do Código Penal Militar, no Livro I (Dos crimes em tempo de paz), e no Livro II (Dos crimes em tempo de guerra), nos art. 208 e 401, respectivamente.
Destarte, com o mesmo entendimento exposto anteriormente, em específico sobre referido delito previsto no Código Penal militar, Neves e Streifinger (2012) assinalam que o crime de genocídio não tem por objeto jurídico a vida, mas sim a humanidade, porquanto consiste em um crime que afeta os mais profundos sentimentos de desenvolvimento livre e digno da raça humana.
Assim, pode-se concluir que o genocídio previsto no Código Penal Militar (arts. 208 e 401) tal qual previsto na Lei nº 2.889/1956 não pode ser conceituado como crime doloso contra a vida, porquanto não é esta o objeto jurídico protegido, mas a existência de grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Não se pode olvidar que o Código Penal militar (BRASIL, 1969) também prevê crimes dolosos contra a vida, quais sejam: para os delitos praticados em tempo de paz, o Homicídio (art. 205) e a Provocação direta ou auxílio a suicídio (art. 207); para os delitos praticados em tempo de guerra, o Homicídio (art. 400).
Assinalam Neves e Streifinger (2012) que o homicídio (art. 205) tipificado no Código Penal militar, assim como o tipificado no Código Penal comum tem como objetividade jurídica a proteção do direito à vida da pessoa; ademais, advertem os autores que o sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, tanto o militar da ativa, federal ou estadual, como o militar inativo, bem como o civil, de modo que quanto a este, tem-se restrição à esfera federal, em face do que estabelece o art. 125, § 4º da CRFB/88.
O delito de homicídio também encontra-se previsto no art. 400 do Código Penal militar (BRASIL, 1969), desta feita com localização no Livro II (Dos crimes militares em tempo de guerra) da sua Parte Especial. Quanto a este delito as observações acima elencadas aqui repetem-se, alterando-se apenas a pena em abstrato cominada ao delito, em face da razão de ser perpetrado em situação de excepcionalidade.
Na visão de Neves e Streifinger (2012) importante observação deve-se acrescer quanto ao delito de homicídio previsto no art. 400 do Código Penal militar, porquanto este deve ser praticado em presença do inimigo, isto é, às vistas dele, para que haja enquadramento típico.
Ainda, como último delito previsto no Código Penal militar cuja objetividade jurídica é a vida tem-se a provocação direta ou auxílio a suicídio (art. 207). Aqui, merecem as mesmas observações quanto ao sujeito ativo do crime de homicídio (art. 205) também previsto no Código Penal militar.
Malgrado as semelhanças dos crimes dolosos contra a vida previstos no Código Penal militar se comparados àqueles previstos no Código Penal comum, deve-se ressaltar que eles recebem tratamento diverso, porquanto a competência para julgamento desses crimes, a depender da situação, poderá ser distinta.
Em observância aos arts. 124 e 125 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), os crimes dolosos contra a vista previstos exclusivamente no Código Penal militar sempre serão objeto de julgamento perante a Justiça Militar desde que se enquadrem nas hipóteses descritas nas alíneas do inciso II (no caso de cometimento por militar da ativa) e inciso III (no caso de cometimento por civil), ambos previstos no art. 9º do CPM.
É nesse sentido o entendimento de Pacelli (2020), para quem a Justiça Militar só aprecia delitos militares, impondo-se a separação obrigatória dos processos em caso de concurso de crimes (comuns e militares), diante da absoluta especialização e especialidade dessa jurisdição.
Por outro lado, a competência do Tribunal do Júri é forçosa tratando-se de crimes dolosos contra a vida comuns, conforme prevê o art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "d", da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Assim, encerrada a exposição conceitual sobre os crimes dolosos contra a vida comuns e militares, faz-se oportuna a identificação das peculiaridades da instituição do Tribunal do Júri, as quais orientarão a digressão proposta sobre uma possível (in) compatibilidade para com a competência da Justiça Militar.
O Tribunal do Júri na visão da doutrina tem genuína localização no Título II da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Essa localização reforça-se como um pleito ampliativo de defesa dos réus, e de seu direito de liberdade.
Dentre outros, essa é a posição de Feitoza (2010), o qual inclusive ressalta que referida localização no Título II da Constituição Federal de 1988 faz com que o Tribunal do Júri não possa ser abolido nem mesmo por emenda constitucional, conforme estabelece o art. 60, § 4º, inciso IV, da CRFB/88.
Renato Brasileiro de Lima define o Tribunal do Júri através das seguintes lições:
O Tribunal do Júri é um órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância, pertencente à Justiça Comum Estadual ou Federal, colegiado e heterogêneo, formado por um juiz togado, que é seu presidente, e por 25 (vinte e cinco) jurados, 7 (sete) dos quais compõem o Conselho de Sentença, que tem competência mínima para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, temporário, porquanto constituído para sessões periódicas, sendo depois dissolvido, dotado de soberania quanto às decisões, tomadas de maneira sigilosa e com base no sistema da íntima convicção, sem fundamentação, de seus integrantes leigos. (LIMA, 2018, p. 1349)
Ainda, segundo Renato Brasileiro de Lima (2018), o Tribunal do Júri tem competência fixada em virtude da natureza da infração penal praticada (ratione materiae), nos termos do art. 69, inciso III, do Código de Processo Penal.
Há também que se ressaltar o entendimento da doutrina segundo o qual a competência do Tribunal do Júri é definida como mínima, não significando essa competência mínima que o legislador não possa ampliar o âmbito de competência do Tribunal do Júri.
Dentre outros, é esse o entendimento de Denilson Feitoza:
Ao Júri é assegurada a competência para julgar crimes dolosos contra a vida, que é a sua competência atual. Se a Constituição utiliza o verbo assegurar, significa que é competência mínima e, portanto, é teoricamente possível que a lei amplie a sua competência para crimes diversos, além dos crimes dolosos contra a vida. (FEITOZA, 2010, p. 515)
Ainda, segundo Aury Lopes Jr. (2018), a competência originária do Tribunal do Júri não impede que julgue outros delitos não dolosos contra a vida, desde que sejam conexos com um crime doloso contra a vida.
Com efeito, assinala Pacelli (2020) que conforme estabelece o art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal, além dos crimes dolosos contra a vida, o Tribunal do Júri também terá competência para o julgamento dos crimes conexos, salvo em se tratando de crimes militares e eleitorais, casos em que deverá haver separação obrigatória dos processos.
Assim, exemplificando, Denilson Feitoza (2010) prevê ser possível que o Tribunal do Júri julgue um crime de homicídio e um crime conexo de resistência ou de homicídio e tráfico de entorpecentes. Contudo, completa o autor, que o Tribunal do Júri não poderá julgar um crime militar de violência contra superior, ainda que encontrando-se em conexão com o crime comum de homicídio. A separação dos processos nesse último caso é forçosa.
Há na doutrina entendimento no sentido da necessidade criação de um júri militar para julgar os crimes militares dolosos contra a vida. Como precursor desse pensamento, pode-se citar Rogério Nejar, para quem:
As duas principais virtudes da Justiça Militar são a celeridade e a especificidade, as quais respaldam os dogmas da hierarquia e da disciplina militar.
De outra banda, a principal crítica à Justiça Militar é o custo para efetivação de justiça. A Justiça Comum, como cediço, está assoberbada de processos, das mais diversas naturezas, gerando um enorme congestionamento e demora da prestação jurisdicional.
Por consequência, o que se defende é a existência de um Tribunal do Júri, presidido por juiz de direito, composto por um Conselho de Sentença, exclusivamente, de civis, escolhidos nos termos estabelecidos no Código de Processo Penal, aplicável por omissão, consoante previsto no artigo 3º do Código de Processo Penal Militar. A Constituição Federal criou a competência da Justiça Castrense para os crimes praticados por militares contra civis e ainda estabeleceu o juiz togado para as causas, ressalvada a competência do Tribunal do Júri. Sendo assim, nada mais lógico do que aplicar diretamente o texto constitucional, desonerando a sobrecarregada Justiça Comum e prestigiando a especificidade da Justiça Militar. (NEJAR, 2018)
Prevalece o entendimento exposado por Denilson Feitoza (2010) segundo o qual para compatibilizar a competência da Justiça Militar que não prevê um Tribunal do Júri, não seria possível instituí-lo como parte de sua organização judiciária. O autor assinala haver dificuldades em vislumbrar um Júri presidido por um juiz de direito militar e composto por cidadãos civis.
Assim, se por um lado há de ser reconhecida a higidez da instituição do Júri com competência decorrente de disposição expressa da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), no art. 5º, inciso XXXVIII, por outro lado, há de se reconhecer que há muito os crimes dolosos contra a vida não têm o Júri como o órgão jurisdicional exclusivamente competente para seu julgamento.
Nesse ponto, tornam-se imperativas algumas observações as quais orientarão as discussões que serão realizadas no próximo capítulo sobre a possível incompatibilidade do quadro de competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Estar-se a falar da competência da Justiça Militar (federal e estadual) para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
A primeira observação é que em apenas três hipóteses poder-se-ia vislumbrar autorização para que a Justiça Militar proceda ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em nítida supressão à competência do Tribunal do Júri.
O primeiro caso autorizador de competência tanto da Justiça Militar estadual quanto da federal, encontra-se previsto no art. 9º, inciso II, alínea "a", do Código Penal militar (BRASIL, 1969). É o caso do crime doloso contra a vida praticado por militar da ativa contra militar da ativa.
Acrescente-se que a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), em seu art. 125,
§ 4º, proíbe expressamente a Justiça Militar estadual de julgar policiais militares nos crimes dolosos contra a vida de civis, devendo o julgamento ocorrer perante o Tribunal do Júri.
Por outro lado, por expressa disposição no Código Penal militar (BRASIL, 1969) em seu art. 9º, § 2º, a Justiça Militar federal tem competência paga julgar o militar da união nos crimes dolosos contra a vida de civis, sendo esse o segundo caso autorizador da competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
E ainda, nos termos do art. 9º, inciso III, alíneas "b", "c", "d", do Código Penal militar (BRASIL, 1969), a Justiça Militar federal julga os civis que praticarem crimes dolosos contra a vida de militares da união, sendo este o terceiro e último caso autorizador da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Ressalte-se, por oportuno, como última observação que por disposição no art. 125, § 4º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a Justiça Militar estadual não julga civis, em qualquer caso.
Feitas estas observações e voltando-se à exposição deste subcapítulo, faz-se remissão à vigência da Lei nº 13.491/2017, porquanto esta cinde o entendimento de que tanto na Justiça Militar estadual quanto na federal, a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a resumir-se-ia apenas aos crimes dolosos contra a vida previstos exclusivamente no Código Penal militar, os quais foram objeto de apresentação no subcapítulo anterior, quais sejam: homicídio (art. 205) e provocação direta ou auxílio a suicídio (art. 207), previstos para o tempo de paz; e homicídio (art. 400), previsto para o tempo de guerra.
Muito embora seja objeto de aprofundamento no próximo capítulo, resumidamente, pode-se dizer que a Lei nº 13.491/2017 foi responsável por ampliar a competência da Justiça Militar, essa ampliação é realizada através do alargamento do que se considera no conceito de crime militar. E como visto, ampliando-se o conceito de crime militar, a competência da Justiça Militar é consequentemente ampliada, porquanto esta só julga crimes militares.
De mais a mais, a Lei nº 13.491/2017 referendou a Lei nº 12.432/2011 ao manter a competência da Justiça Militar federal para julgar militares das Forças Armadas por crimes dolosos contra a vida de civis, quando praticados no contexto do art. 9º, § 2º do CPM, contexto esse também substancialmente ampliado.
Tem-se assim, com a vigência da Lei nº 13.491/2017, um reforço à já referida possibilidade de incompatibilidade do quadro de competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Restringindo-se ao objeto de exposição deste subcapítulo, abstrai-se que os crimes dolosos contra a vida comuns previstos no Código Penal e que não constavam do Código Penal militar, como o infanticídio (art. 123) e o aborto (arts. 124 a 126), passam a denominar- se crimes militares por extensão, desde já vislumbrando-se a possibilidade de serem objeto de julgamento perante a Justiça Militar (estadual e federal), pelo que dessume redução às hipóteses de competência do Tribunal do Júri.
É essa a posição da doutrina em sua maioria, sobre o panorama de competência a partir da vigência da Lei nº 13.491/2017. Dentre outros, pode-se citar Ronaldo João Roth, o qual aduz que:
Importante destacar, outrossim, que, na medida em que o legislador fixou a competência da JMU para os crimes dolosos contra a vida de civil, a Lei 13.491/17 passou a considerar que todos os delitos de competência do Júri (art. 5º, XVIII, alínea “d”, CF) e previstos no Capítulo I do Título I do Código Penal Comum (homicídio doloso - art. 121; induzimento, instigação e auxílio ao suicídio - art. 122; infanticídio - art. 123; aborto nas diversas formas - arts. 124/126) são considerados crimes militares, logicamente desde que, e somente se, tais crimes forem praticados no contexto das atribuições militares previstas no § 2º do art. 9º do CPM, caso contrário, serão crimes comuns. (ROTH, 2018)
Um possível questionamento sobre a exposição até aqui realizada trata-se de saber se não estaria havendo invasão da competência do Tribunal do Júri, porquanto, repise-se, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) prevê no art. 5º, inciso XXXVIII a competência do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
De todo modo, guarda-se esse questionamento, o qual será objeto de análise e crítica no próximo capítulo.
Encerra-se aqui este capítulo, uma vez estabelecidas as premissas sobre a competência do Tribunal do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida comuns, bem como breves exposições sobre as exceções a essa competência.
Retomam-se as discussões no próximo capítulo deste trabalho, utilizando-se dos conceitos já aduzidos, sobre quais as hipóteses vislumbradas pela doutrina e jurisprudência que autorizam a competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, com enfoque na suposta incompatibilidade constitucional para com o Tribunal do Júri.
É preciso consignar, de início, que a Justiça Castrense estadual não possui competência para julgamento de civis, diferentemente quanto à competência dos Conselhos Permanentes, nas Auditorias da Justiça Militar federal, que julgam civis e praças das Forças Armadas, desde que preenchidos os pressupostos do art. 9º do Código Penal Militar.
Essa conclusão é abstraída do art. 125, § 4º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o qual dispõe: "Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares [...]".
Assim, assinala Renato Brasileiro de Lima (2018) que a Justiça Militar estadual tem sua competência fixada em razão da matéria (ratione materiae) e em razão da pessoa (ratione personae), é dizer: julgamento dos militares dos Estados (competência ratione personae) nos crimes militares definidos em lei (competência ratione materiae).
Outrossim, completa Renato Brasileiro de Lima (2018) no sentido de que a Lei que diz o que é crime militar é o Decreto-Lei nº 1.001/1969, denominado Código Penal militar (CPM), sendo que esta conceituação de crime militar consta do art. 9º.
Se por um lado, na esteira do que acima foi afirmado, a Justiça Militar estadual detém competência para julgar somente militares dos Estados nos crimes militares definidos em lei, quanto à Justiça Militar federal, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) prevê no art. 124, caput, que compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.
Em sendo assim, tanto civis como aqueles militares integrantes das Forças Armadas poderão ser julgados pela Justiça Militar federal, que tem sua competência fixada apenas em razão da matéria (ratione materiae), porquanto julga os crimes militares, independentemente do acusado.
Feitas estas iniciais e breves considerações, adentra-se no objetivo deste subcapítulo que é discorrer sobre quais os casos autorizadores da competência da Justiça Militar (federal e estadual) para julgamento de crimes dolosos contra a vida a partir da Lei nº 13.491/2017.
De posse dos conceitos e comparativos aduzidos, primeiramente faz-se necessário adentrar-se no histórico legislativo do Código Penal Militar para então responder satisfatoriamente ao objetivo propugnado no parágrafo anterior.
Até o ano de 1996 os crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares estaduais e por militares integrantes das Forças Armadas eram julgados pelas Justiças Militares estadual e federal, respectivamente. Isso porque neste ano entrou em vigor a Lei nº 9.299/96 (BRASIL, 1996) que acrescentou um parágrafo único ao art. 9º do CPM, dispondo o seguinte: "os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum".
Assinala Renato Brasileiro de Lima (2018) que à época, tanto o Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário nº 260.404/Minas Gerais - Tribunal Pleno - Rel. Min, Moreira Alves) quanto o Superior Tribunal de Justiça (Habeas Corpus nº 102.227/Espírito Santo - 5ª Turma - Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima) entenderam constitucional referida alteração dada pela Lei nº 9.299/96, malgrado haver importante precedente do Superior Tribunal Militar (Recurso Criminal nº 6.449-0/Rio de Janeiro) considerando como crime militar o delito de homicídio doloso praticado por militar das Forças Armadas em serviço contra civil.
No que tange à Justiça Militar estadual a competência para julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis é sepultada de vez com a vigência da Emenda Constitucional 45/2004, que alterou o art. 125, § 4º da CRFB/88, o qual passou a dispor expressamente a competência do Tribunal do Júri para julgamento em tal caso.
Adverte Renato Brasileiro de Lima (2018) que malgrado a alteração impingida pela Lei nº 9.299/96, acrescentando o parágrafo único ao art. 9º do CPM, não se podia concluir que a Justiça Militar (estadual e federal) não teria mais competência para processar e julgar crimes dolosos contra a vida, porquanto subsistiam duas situações em que a competência da Justiça Militar seria mantida.
A primeira delas referia-se ao homicídio doloso cometido por militar da ativa contra militar da ativa. Nesse caso, em conformidade com o art. 9º, inciso II, alínea "a" cumulado com (c/c) o art. 205 (Homicídio) ambos do CPM, se militares estaduais ou federais em situação de atividade praticassem homicídio doloso contra outro militar em situação de atividade impor-se-ia a competência da Justiça Militar estadual ou federal, a depender da respectiva instituição.
A segunda situação seria o homicídio doloso cometido por civil contra militar das Forças Armadas em serviço, porquanto, como visto no início deste subcapítulo, em tal caso a Justiça Militar federal detinha (e ainda detém) competência para julgamento de civil.
Assim, em conformidade com o disposto no art. 9º, inciso III, alíneas "b", "c", ou "d" c/c art. 205 (Homicídio) ambos do Código Penal militar (BRASIL, 1969), restava entender tratar-se de competência da Justiça Militar federal para julgar o civil, que seria submetido a julgamento perante o Conselho Permanente de Justiça.
Nessa toada, a Justiça Militar (federal e estadual) que até então possuía competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas ou estaduais, nos termos do art. 9º, inciso II do CPM, com a Lei nº 9.299/96 deixa de ser competente apenas para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil (com a ressalva da decisão acima mencionada proferida pelo STM quanto ao julgamento dos integrantes das Forças Armadas).
Posteriormente à Lei nº 9.299/96 que incluiu um parágrafo único ao art. 9º do CPM, no ano de 2011, entrou em vigor a Lei nº 12.432 (BRASIL, 2011), responsável por dar a seguinte redação ao referido parágrafo único:
Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (BRASIL, 2011)
Pode-se dizer que houve a inclusão de uma ressalva à competência do Tribunal do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares integrantes das Forças Armadas, hipótese em que a competência para julgamento passaria a ser da Justiça Militar federal.
Renato Brasileiro de Lima (2018) assinala que o que fez a Lei nº 12.432/2011 ao alterar a redação do parágrafo único do art. 9º do CPM foi prever a competência da Justiça Militar federal para julgamento dos integrantes das Forças Armadas nos casos de utilização do procedimento do "tiro de abate" ou "tiro de destruição", disciplinado no art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, caso em que, mesmo sobrevindo vítima civil nessa operação militar, não haveria que se falar em competência do Tribunal do Júri para julgamento do militar.
Adiante, a última lei a alterar a competência da Justiça Militar para julgamento de crimes dolosos contra a vida é a Lei nº 13.491/2017.
Esta Lei transformou o parágrafo único do art. 9º do CPM em dois parágrafos, através dos quais acrescentou novas hipóteses/contextos de competência da Justiça Militar federal para julgamento de crimes dolosos contra a vida, ainda que praticados contra civil.
Em síntese, para além da hipótese da operação de "tiro de abate" (inserida pela Lei nº 12.432/2011), são acrescidos os seguintes contextos em que os crimes dolosos contra a vida cometidos por integrantes das Forças Armadas contra civis deverão ser julgados pela Justiça Militar federal, nos termos do art. 9º, § 2º do CPM:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: a) Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica; b) Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999; c) Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar;e d) Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. (BRASIL, 1969)
Ainda que esta última alteração promovida pela Lei nº 13.491/2017 possa ser considerada nitidamente ampliativa do foro militar, é possível entender que percurso histórico-legislativo como um todo acerca da competência da Justiça Castrense (federal e estadual) para julgamento dos crimes dolosos contra a vida foi muito mais restritivo que ampliativo.
Assim, com fulcro em tecer o atual delineamento da competência da Justiça Castrense (federal e estadual), passa-se à análise dos pontos sedimentados pela doutrina e jurisprudência, em especial para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Iniciando pela Justiça Militar estadual, é pacífico o entendimento respaldado no texto constitucional (art. 124, § 4º, CRFB) atual que esta não julga os militares dos Estados (integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar) nos crimes dolosos contra a vida de civis que praticarem. E os motivos para esta conclusão foram discorridos acima.
Contudo, o mesmo não pode ser dito quando um militar estadual da ativa pratica crime doloso ou culposo contra a vida de outro militar estadual da ativa, porquanto, neste caso, a competência será da Justiça Militar estadual, conforme se depreende da leitura conjunta do art. 9º, inciso II, alínea "a", do CPM c/c art. 125, § 4º, da CRFB/88.
Soma-se a essa última hipótese o caso de militar estadual da ativa que praticar crime culposo contra a vida de civil. O reconhecimento da competência da Justiça Militar estadual em tal situação é imperativo, pois se o art. 125, § 4º, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) ressalva a competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil, e este Tribunal, por expressa disposição no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "d", da CRFB/88, somente julga crimes dolosos contra a vida, os crimes culposos hão de ser excluídos da sua competência.
De mais a mais, o art. 9º, § 1º do CPM (BRASIL, 1969) dispõe expressamente ser da competência do Tribunal do Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civil.
De outra monta, é fácil afirmar que a competência da Justiça Militar federal para julgamento de crimes dolosos contra a vida é significativamente maior que a da Justiça Castrense estadual.
Assim, são três as considerações a serem feitas.
A primeira é que, assim como na Justiça Militar estadual, como regra, a Justiça Militar federal não julga crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis, ressalvados os contextos descritos no art. 9º, § 2º, do CPM (que engloba praticamente a total atuação das Forças Armadas atualmente).
Em tais contextos de atuação das Forças Armadas (e apenas aqueles indicados no art. 9º, § 2º, do CPM, repita-se) ocorrendo crime doloso contra a vida de civis a competência pra julgamento será da Justiça Militar federal.
A segunda consideração a ser feita é que a Justiça Militar federal assim como a Justiça Militar estadual continua competente para julgar os crimes contra a vida dolosos ou culposos cometidos por militar da ativa contra militar da ativa (integrantes das Forças Armadas), conforme se depreende do art. 9º, inciso II, alínea "a", do CPM (BRASIL, 1969).
E, por fim, a terceira consideração diz respeito aos civis que praticarem crimes dolosos contra a vida de militar em serviço integrante das Forças Armadas. Em tal caso, a competência da Justiça Militar federal é imperativa, conforme se depreende do art. 9º, inciso III, alíneas "b", "c" e "d", do CPM (BRASIL, 1969).
Registre-se, ainda, quanto a esta última hipótese que há uma tendência dos Tribunais Superiores em excluir os civis do julgamento perante a Justiça Militar federal.
Em âmbito nacional, o STF (Habeas Corpus nº 86.216/ Minas Gerais - Rel. Min. Carlos Britto - 1ª Turma) já entendeu que o cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional, sendo necessária ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar, como a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, da Lei e da ordem, inscritos no art. 142 da CRFB/88.
Na mesma linha de entendimento dos precedentes mencionados no parágrafo anterior, Marcelo Uzeda de Faria bem assinala que:
A tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, é no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28). (FARIA. 2019, p. 115-116)
Por fim, já encerrando este subcapítulo, é de bom alvitre esclarecer outra grande modificação realizada pela Lei nº 13.491/2017 que reflete na digressão até aqui realizada.
Trata-se da mudança que foi impingida à redação do art. 9º, inciso II, do Código Penal Militar (BRASIL, 1969), a qual para fins de melhor exposição pode ser assim esquematizada:
Anteriormente à vigência da Lei nº 13.491/2017 |
Posteriormente à vigência da Lei nº 13.491/2017 |
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: II- os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: |
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: II- os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: |
Quadro autoral.
Em suma, o que fez a Lei nº 13.491/2017 foi ampliar o conceito de crimes militares que passam a assim ser considerados, além dos previstos no CPM, também aqueles previstos no Código Penal comum (CP) e na legislação penal especial, desde que praticados nos contextos descritos nas alíneas dos incisos II e III do art. 9º do CPM.
Com efeito, para se ter um exemplo, cita-se o crime de aborto previsto no art. 125, do Código Penal comum. Referido delito não era tipificado no Código Penal Militar, e assim não poderia ser julgado pela Justiça Castrense.
Agora, é plenamente possível de ser julgado pela Justiça Militar, conforme consigna Renato Brasileiro de Lima em suas lapidares lições, com as quais encerra-se o presente subcapítulo:
A Justiça Militar teve sua competência ampliada para o julgamento de crimes previstos na legislação penal, aí incluída não apenas o Código Penal Comum, mas também os delitos previstos na legislação extravagante. Exemplificando, caso um Oficial-médico das Forças Armadas provoque um aborto em uma gestante civil, sem o seu consentimento, no interior de hospital militar, tal delito passou a ser considerado crime militar por força da Lei nº 13.491/2017, por mais que o estatuto penal castrense não preveja os crimes de aborto no título que versa sobre os crimes contra a pessoa. Por consequência, o agente deverá ser denunciado perante a Justiça Militar da União pela prática do crime do art. 125 do CP c/c art. 9º, inciso II, alínea "b", do CPM. (LIMA. 2018, p. 391)
De todas as alterações proporcionadas pela Lei nº 13.491/2017 ao art. 9º do Código Penal Militar, questiona-se especialmente a ampliação que proporcionou à competência da Justiça Militar estadual para julgar crimes dolosos contra a vida.
Destarte, como foi visto, havia tendência restritiva por parte dos Tribunais Superiores no sentido de se restringir a competência da Justiça Militar, sendo que a Lei retromencionada ampliou o rol de crimes dolosos contra a vida que agora poderão ser objeto de julgamento perante a Justiça Castrense estadual.
É igualmente objeto de especial questionamento a ampliação dos contextos autorizadores à Justiça Militar federal para julgar os militares integrantes das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civis.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) aduz, no art. 124, caput, que a competência da Justiça Militar da federal firmar-se-á para o julgamento dos crimes militares, assim definidos em lei. A Lei que define os crimes militares é o Código Penal militar, nos arts. 9º e 10, em tempo de paz e em tempo de guerra, respectivamente.
De outro lado, também estabelece a Carta Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988), no art. 125, § 4º, que a competência da Justiça Militar estadual recai sobre os militares dos Estados nos crimes militares que praticarem, ressalvando-se os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil, em que a competência será do Tribunal do Júri.
Vê-se, portanto, que a competência do Tribunal do Júri é ressalvada de forma expressa pela Constituição Federal de 1988 apenas no tocante ao julgamento de militares estaduais nos crimes dolosos contra a vida de civil, de modo que igual ressalva não é feita quanto à Justiça Militar federal.
De posse dessa digressão, insta discorrer sobre os posicionamentos críticos que vislumbram uma possível incompatibilidade constitucional da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida; repise-se, significativamente ampliada com a vigência da Lei nº 13.491/2017.
Com a supracitada Lei nº 13.491/2017 alterando o art. 9º do CPM, o legislador ordinário vai de encontro ao posicionamento dos Tribunais Superiores e de grande parte da doutrina.
A doutrina insurge-se, em especial, no sentido de estar a Justiça Militar usurpando a competência do Tribunal do Júri estabelecida no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "d", da CRFB/88.
Essa é a posição de autores como Hoffmann e Barbosa, para quem:
O que o legislador fez foi verdadeira gambiarra legislativa ao mudar a competência da mesma categoria de delito quando praticado por militares federais contra civis, aproveitando-se do silêncio do artigo 124 da CF. Em vez de respeitar a lógica do sistema (julgamento pelo Tribunal do Júri de militares que praticam crimes dolosos contra a vida de civil), estabeleceu uma inexplicável diferenciação no tratamento dos militares agindo em idêntica situação. (HOFFMANN; BARBOSA. 2017)
No mesmo sentido que os autores retromencionados, porém destacando o corporativismo que poderá existir com a ampliação e chancela da competência da Justiça Militar no julgamento dos crimes dolosos contra a vida a partir da vigência da Lei nº 13.491, Aury Lopes Jr. destaca que:
[...] a nova lei vai muito além da questão da competência do júri. Representa uma significativa ampliação da competência das Justiças militares da União e dos estados, que agora terão de dar conta de uma imensa demanda para a qual não estão preparadas e tampouco foram criadas. Esse entulhamento exigirá um sustancial investimento na estrutura das Justiças militares e também na própria investigação preliminar no âmbito militar, o que dificilmente ocorrerá a médio prazo. [...] Como consequência, é previsível a (de)mora processual e o aumento da sensação de impunidade/corporativismo. Particularmente, pensamos que, no âmbito dos crimes contra a vida, o julgamento no tribunal do júri seria até mais favorável aos militares do que a Justiça castrense. (LOPES JR, 2017)
A partir desses argumentos exposados, vê-se relutância da doutrina em anuir que o art. 124, caput, da CRFB/88 admita uma ampliação ampla e irrestrita do conceito de crime militar.
É dizer, para uma parte da doutrina, quando o art. 124, caput, da CRFB/88 prevê que a Justiça Militar federal será competente para julgar os crimes militares definidos em lei, não estaria o constituinte a autorizar que todo e qualquer delito seja conceituado como militar.
Em específico quanto aos crimes dolosos contra a vida, cujo julgamento é especialmente atribuído ao Tribunal do Júri no art. 5º, inciso XXXVIII, da CRFB, o argumento contrário a uma autorização ampla e irrestrita pelo constituinte ao legislador ordinário ganha força, porquanto se a Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo tal disposição específica sobre o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é porque essa previsão tem observância imperativa.
Contudo, de outra monta, há aqueles que entendem que seja a intenção do constituinte outorgar ao legislador ordinário a possibilidade de ampliação da conceituação do que seja crime militar. Desse argumento conclui-se não haver qualquer vício material quando o legislador ordinário na sua atuação defina quais os crimes poderão ser conceituados como militares, como o fez com a Lei nº 13.491/2017.
Dentre outros, esse é o entendimento de Pedro Lenza:
Observa-se que estamos diante de uma situação excepcional, qual seja, o afastamento da regra do júri por lei, em razão do comando estabelecido no art. 124, caput, da CF, que prescreve ser competência da Justiça Militar da União processar e julgar os crimes definidos em lei. [...] O STF ainda não enfrentou essa questão de modo específico, devendo o debate ser travado no sentido de se admitir efetivamente, como fez a lei, o afastamento da regra do júri com base no "cheque em branco" supostamente prescrito no referido art. 124 da Constituição. (LENZA. 2016, p. 898-899)
Esse argumento ganha especial destaque quando a Constituição Federal de 1988 no art. 125, § 4º, exclui expressamente da Justiça Militar estadual a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis, outorgando-a ao Tribunal do Júri. Isso porque os defensores desse entendimento argumentam no sentido de que quando o constituinte quis excluir a competência da Justiça Militar em relação à do Júri ele o fez expressamente.
Veja-se nesse ponto que no tocante à Justiça Militar federal essa exclusão é realizada pelo legislador ordinário e de forma muito mais branda, nos termos do art. 9º, § 2º, do CPM (BRASIL, 1969). Por outro lado, quanto à Justiça Militar estadual a exclusão é feita de modo irrestrito pelo constituinte - reitere-se, através da EC 45/2004 que deu nova redação ao art. 125, § 4º, da CRFB/88.
A exclusão é branda para a Justiça Militar federal, porque no art. 9º, § 2º, do CPM (BRASIL, 1969), há a descrição de praticamente todos os contextos em que as Forças Armadas são empregadas atualmente no país e, se dessa atuação ocorrerem crimes dolosos contra a vida de civis, é forçoso reconhecer a competência da Justiça Militar federal.
Adriano Alves Marreiros, assim como Pedro Lenza, entende pela compatibilidade da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, e nesse sentido chancela as mudanças impingidas pela Lei nº 13.491/2017 ao art. 9º do Código Penal Militar; para o autor:
Não parece cabível em razão do Princípio da Unidade da Constituição que já mencionamos: não se admite norma constitucional originária inconstitucional. O mesmo texto original da CF que previu o júri entre os direitos e garantias fundamentais com “competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida” também previu as competências das Justiças Militares que se baseavam no escabinado e não no júri. Os dois devem ser compatibilizados sem que aquele tenha o poder de tornar este inaplicável.
Repito, tenho muita simpatia pelo conceito, sempre valorizamos o mais legítimo tribunal que existe, mas não há respaldo para essa interpretação seja na JMU, seja nas estaduais/distrital. (MARREIROS, 2017)
Do que se abstrai das lições consignadas pelo autor retromencionado é a tese, há muito consagrada na doutrina e jurisprudência em matéria de interpretação da Constituição Federal de 1988, que inadmite a inconstitucionalidade de leis constitucionais originárias.
Segundo Lenza (2016) essa teoria prevê não ser admissível controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte originário. Daí deriva o entendimento de que tentar restringir a competência da Justiça Militar equivaleria a tentar declaração de inconstitucionalidade de lei constitucional originária, porquanto a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) prevê nos arts. 124, caput, e 125, § 4º, a competência da Justiça Militar para julgar os crimes militares.
Em suma, pretendem aqueles que defendem a constitucionalidade da competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida que ela seja compatibilizada com a competência do Tribunal do Júri.
Malgrado essas posições acima afirmadas, não se pode afirmar que o debate em torno da (in) constitucionalidade da competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes dolosos contra a vida esteja estanque.
Isso porque está pendente no STF o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) em face da Lei nº 13.491/2017.
A ADI tramita sob o nº 5901 e foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em suma, no mérito, a ADI nº 5901 busca a declaração da inconstitucionalidade da competência da Justiça Militar a partir da Lei nº 13.491/2017 por violação: a) à competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; b) ao devido processo legal; e c) ao princípio do juiz natural.
Na ADI nº 5901 alega-se, ainda, o descumprimento de Tratados internacionais sobre direitos humanos e a declaração da inconstitucionalidade do veto ao art. 2º do projeto de Lei nº 44/2016, do qual derivou a Lei nº 13.491/2017.
A partir do presente estudo, foi visto que a Justiça Militar possui particularidades notórias as quais estão imbricadas na análise da sua competência para julgamento dos crimes militares. Tais particularidades são olvidadas por diversas obras jurídicas de autores que discorrem sobre competência criminal. Em outras tantas obras, sequer é feita referência à Justiça Castrense, tampouco às especificidades da sua competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, quando em comparação à instituição do Tribunal do Júri.
Assim, malgrado o esgotamento das nuances da Justiça Militar não seja a intenção deste trabalho, foi possível chegar a significantes resultados através das assertivas aqui propugnadas. Dentre esses resultados está a conclusão pela constitucionalidade da competência dessa Justiça especial para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Foi visto que a CRFB/88 nos art. 124 e 125 estabelece o delineamento geral ao qual o legislador ordinário deverá seguir na conceituação do que seja crime militar. No art. 9º do Dec.-lei nº 1.001/1969 o legislador instituiu uma conceituação precisa do que se enquadra como crime militar. E esse dispositivo sofreu ao longo dos anos sensíveis alterações que, ora restringiam o conceito de crime militar (e assim, consequentemente, a competência da Justiça Militar, já que esta só julga crime militar), ora o ampliavam.
Também foi possível entender pela exposição realizada que quando o constituinte quis restringir a competência da Justiça Militar, ele o fez expressamente, como ocorreu com a vigência da EC 45/2004, ao prever que a Justiça Castrense estadual não possuirá competência para julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis.
Nesse diapasão, restou consignado que a parte da doutrina que leciona no sentido de restringir o foro militar, entendendo não haver legitimidade constitucional em abrir espaço à Justiça Militar para julgamento de crimes dolosos contra a vida, o faz com base no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "d", da CRFB/88, com a alegação de que estar-se-ia violando a competência do Tribunal do Júri.
Conforme visto, essa é a posição de Aury Lopes Jr. (2017), bem como de Hoffmann e Barbosa (2017).
Entretanto, consigne-se na linha do que foi proposto por Lenza (2016) somente por Emenda à Constituição poder-se-ia fazer tal restrição, não havendo como o Poder Judiciário imiscuir-se na tentativa de exclusão da competência da Justiça Militar, sob pena de arvorar-se legislador.
Aliás, é sob essa mesma tentativa de restrição do foro militar para julgamento crimes dolosos contra a vida que almeja-se na ADI nº 5901 a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 13.491/2017.
É forçoso concluir que a vontade do legislador constituinte é imperativa, já que a Carta Magna espraia ao longo do seu texto e necessidade de se manter a integridade da Justiça Militar para julgamento dos crimes militares.
Ao elencar o foro militar como integrante do Poder Judiciário, como já previsto em Cartas Constitucionais anteriores à de 1988, a integral satisfação do fim a que propõe o constituinte não será respeitada com a procedência da ADI nº 5901.
Nessa linha de raciocínio, depreende-se, por exemplo, é que no tocante à competência da Justiça Militar estadual, certamente haveria afronta à CRFB/88 caso o legislador ordinário quisesse estabelecer o seu âmbito a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis, porquanto essa disposição iria de encontro ao que é previsto no art. 125, § 4º da Carta Magna.
Como objetivo principal a que se propôs o trabalho, chegou-se ao resultado de que através de uma interpretação sistemática da CRFB/88 esta autoriza a Justiça Militar a julgar os crimes dolosos contra a vida, excepcionando-se apenas o caso da Justiça Militar estadual tratando-se de crimes dolosos contra a vida de civis, hipótese em que é imperativo o reconhecimento da competência do Tribunal do Júri.
Esse resultado pode ter fundamentação visualizada em importante enunciado de súmula vinculante o qual poderá ser utilizado para explicação do assunto, ainda que não tratando de modo específico sobre a competência da Justiça Militar, mas que ajuda a entender a sua compatibilidade para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Trata-se da súmula vinculante nº 45 a qual elenca importantes lições, principalmente no que tange ao princípio da especialidade ressaltado pela exposição de Lenza (2016).
Dispõe a Súmula Vinculante nº 45 que: "A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual". Daqui pode ser retirada a seguinte assertiva: se a competência ou o foro por prerrogativa de função estiver estabelecido na própria Constituição Federal, há de se respeitar essa disposição a despeito da competência do Tribunal do Júri.
Vê-se a consagração do já citado princípio da especialidade. Assim, através do mesmo raciocínio é forçoso concluir que a competência da Justiça Militar seja observada, já que encontra-se prevista na própria Constituição, excepcionando a regra geral do Tribunal do Júri (art. 5º, inciso XXXVIII da CRFB/88) para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Quer-se consignar que no julgamento da ADI nº 5961 vá o Supremo Tribunal Federal pronunciar-se no sentido de que não há, assim, quaisquer conflitos estabelecidos na CRFB/88 atinentes a uma suposta violação à instituição do Júri, porquanto, em verdade, a própria CRFB/88 excepciona a competência do Júri.
De mais a mais, vislumbrando-se possíveis divergências que poderão surgir no futuro, sobretudo a partir da vigência da Lei nº 13.491/2017, não passa sem consideração a crítica da doutrina à ampliação das hipóteses em que a Justiça Militar Federal poderá julgar crimes dolosos cometidos por integrantes das Forças Armadas contra a vida de civis.
É preciso averiguar em estudos futuros se essa ampliação é legítima, e se a CRFB/88 abre espaço para o legislador ordinário atuar em tal caso. Com o emprego cada vez mais frequente das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem, fazendo às vezes das Corporações Policiais Militares, essa é uma questão que não passará despercebida pelos Tribunais Superiores.
Destarte, através da linha de estudo desenvolvida ao longo do trabalho o que se entrevê, nesse caso, é a mesma necessidade de se observar o delineamento sistemático da Constituição Federal de 1988 em matéria de competência criminal, analisando a questão sob o crivo do princípio da especialidade.
Assim, por todo o exposto, repise-se que pelas razões desenvolvidas, a suposta violação à competência do Tribunal do Júri não angaria procedência, porquanto retira-se da própria Carta Magna o fundamento especializante da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida, conforme dispõe os arts. 124 e 125 da CRFB/88.
Tinge-se o contorno do quadro de competências constitucionalmente atribuído, de modo que quando quis vedar a competência da Justiça Militar (e em hipótese específica), o constituinte o fez de modo expresso no art. 125, § 4º, da CRFB/88, tratando-se de crimes dolosos contra a vida de civil, por exemplo.
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Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Breno Leonardo Oliveira. A (in) constitucionalidade da competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2021, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57013/a-in-constitucionalidade-da-competncia-da-justia-militar-para-o-julgamento-dos-crimes-dolosos-contra-a-vida. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Sócrates da Silva Pires
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