Resumo: Objetiva analisar a Frente Intensiva de Análise Regulatória e Concorrencial (FIARC) na perspectiva de seus objetivos administrativos e possíveis efeitos perante o Judiciário. Como política pública propriamente dita nascida para coibir o abuso regulatório dentro da Administração Pública, o artigo também perpassará, necessariamente, pelo deslinde da controvérsia acerca dos limites da intervenção judicial na orbita administrativa. Será feita uma análise das competências atribuídas ao órgão de defesa da concorrência e ao Judiciário, quando tratada da matéria aquele atinente. Igualmente, o trabalho em tela abordará a questão da segurança jurídica e eficácia trazidas pela Lei 13.655/2018 combinada com os diplomas normativos que tratam dos assuntos supramencionados.
Palavras chave: Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência. Poder Judiciário. Abuso de Poder Regulatório Estatal. Frente Intensiva de Análise Regulatória e Concorrencial. Judicialização.
Abstract: It aims to analyse the Intensive Regulatory Analysis Front (FIARC) from the perspective of its administrative objectives and possible effects before the Judiciary. As a public policy properly born to curb regulatory abuse within the Public Administration, the article will also, necessarily, run through the controversy about the limits of judicial intervention in the administrative orbit. An analysis of the competences attributed to the competition defense body and to the judiciary will be made when the relevant matter is dealt with. Likewise, the work on screen will adress the issue of legal certainty and effectiveness brought by Law 13.655/2018 combined with the normative diplomas that deal with the aforementioned issues.
Keywords: Administrative Council for the Defense of Competition. Judicial Power. Abuse of State Regulatory Power. Intensive Front of Regulatory and Competitive Analysis. Judicialization.
Sumário: 1.Introdução. 2. A Revisão Judicial dos Atos Administrativos. 3. O Consequencialismo como Norteador das Decisões Judiciais. 4. O Entrelace de Competências: Administrativa, Judicial ou Ambas. 4.1. O Poder Judiciário e a (In) Afastabilidade de Jurisdição. 4.2. CADE: A Penúltima ou Ultima Palavra?. 5. FIARC: Um Catalisador para Judicialização do Abuso de Poder Regulatório Estatal?. 6. Conclusão. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Não é recente a discussão acerca dos limites estabelecidos ao Judiciário para adentrar ao mérito das decisões administrativas. A raiz da questão encontra-se justamente na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) que positivou a separação entre os poderes em seu artigo 2º, dentre seus princípios fundamentais, e ao mesmo tempo, o princípio da inafastabilidade de jurisdição, em seu artigo 5º, XXXV. Logo, resta a pergunta: até onde o Judiciário pode utilizar-se desse último para se imiscuir em questões administrativas?
De se dizer que o próprio Judiciário possui divergências de entendimentos esposados por seus tribunais inferiores e superiores, acerca de uma possível usurpação de competência, na temática de que se vai tratar no presente artigo, envolvendo matéria concorrencial. A doutrina, não menos dissonante, igualmente explicita correntes contrárias entre si acerca de até onde deve ir a apreciação do Judiciário nas matérias decididas pelo Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência, eis que este, como autarquia federal que é, detém funções normativas, fiscalizatórias, sancionatórias e, em especial, judicantes. No entanto, a legislação que daquele trata, Lei 12.529/11, não afasta por completo a possibilidade de intervenção judicial quando necessário, conforme ver-se-á a seguir.
Destarte, a pergunta feita acima subsiste quando vista tanto sob a ótica da autarquia federal quanto sob os holofotes judiciais.
Noutro giro, leva-se em consideração que independentemente da corrente/posição que se adote acerca de qual decisão deve prevalecer, não podemos perder de vista que o legislador federal foi contundente ao prezar com a edição da lei 13.655/18 pela segurança jurídica e eficácia nas decisões nos âmbitos administrativo, controlador ou judicial, com o fito de trazer coerência e estabilidade ao sistema normativo e efeitos práticos perante os destinatários daquelas. Ou seja, independente de qual decisão venha a prevalecer, necessário se faz que nela se preservem os riscos, consequências e dificuldades para a coletividade e o setor específico por ela afetado.
Nesse contexto, pode-se defender uma oportunidade de deferência judicial às decisões administrativas em matéria de concorrência, eis que fincadas novas balizas que devem nortear o gestor público na sua tomada de decisões, de maneira que a atuação judicial poderia ser considerada como ultima ratio.
Ao chegar, pois, no âmago do trabalho, a Frente Intensiva de Análise Regulatória e Concorrencial (FIARC), de origem muito recente, inserta na Instrução Normativa nº 97/2020 da SEAE (Secretária de Advocacia da Concorrência e Competitividade), representa uma política pública inovadora, cujo principal escopo é combater o abuso de poder regulatório perpetrado pelo poder estatal, no qual se inserem Estados e Munícipios e os atos normativos editados por suas respectivas Administrações Públicas, cujo conteúdo vai ao encontro da lógica defendida pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e a os princípios constitucionais em que aquele se esteia.
A FIARC se insere no cenário concorrencial com diversas ideias para fomentar o diálogo interno entre as Administrações Públicas, porém na própria instrução que a normativiza, ela, igualmente, não deixa de prever a presença do Judiciário, quando necessário. Assim surge a questão central do presente estudo: seria essa nova política pública um freio ou combustível para que mais ações em matéria de abuso regulatório desaguem no Judiciário?
A metodologia aplicada na feitura deste artigo segue o método hipotético indutivo, pelo qual se busca, a partir de elucubrações formuladas a partir do exame de casos concretos e da interpretação atos normativos, chegar a um prognóstico plausível sobre os efeitos da FIARC. Igualmente, partindo-se de estudos de casos/pesquisa empírica são sopesados seus impactos na maior ou menor judicialização de políticas públicas no âmbito regulatório-concorrencial.
2. A REVISÃO JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
De início, far-se-á uma breve síntese acerca da possibilidade de revisão judicial dos atos emanados da Administração Pública. Como de sabença, os atos administrativos dividem-se em vinculados e discricionários, sendo os primeiros aqueles que possuem todos os elementos fixados em lei, dela não se podendo afastar, sob pena de ilegalidade, ao passo que os segundos gozariam de um juízo de valor baseado na oportunidade e conveniência quanto aos elementos motivo e objeto, permanecendo vinculados quanto à competência, finalidade e forma.
Como consequência dessa diferença apontada entre os atos vinculados e discricionários, temos que os primeiros somente podem ser objeto de anulação, consoante preceitua o Enunciado Sumular nº 346 do Supremo Tribunal Federal, sobre a possibilidade de a Administração Pública declarar a nulidade de seus próprios atos, a qual ilustra o Princípio da Autotutela no âmbito administrativo:
Súmula 346 - A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo.
Ao contrário, no tocante aos atos discricionários, estes podem ser objeto tanto de anulação quanto de revogação, dada a margem de liberdade conferida pelo legislador à essa espécie, nos termos do Enunciado Sumular nº 473 da Corte Maior, o qual dispõe que “a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
Visto isso, não sobejam dúvidas quanto ao exame de legalidade realizado nos atos vinculados pela própria Administração Pública, em decorrência do princípio da autotutela, bem como pelo Judiciário, eis que restrito apenas à observância das formalidades legais, calcado no artigo 5, XXXV, da CRFB/88. Contudo, esse não é o caso quando se fala do exame do mérito dos atos discricionários, eis que tendo sido atribuída pelo legislador ao administrador público a competência para decidir segundo seu arbítrio, dentro das balizas legislativas, entra-se em uma zona cinzenta quanto aos limites da intervenção judicial sobre tais atos. Haveria, então, na intervenção judicial no mérito de um ato administrativo, uma usurpação de competência ou mesmo ativismo judicial? Poderia ser suscitado o sistema de freios e contrapesos para legitimar a atuação judicial diante de um abuso de poder que, no caso concreto, estaria ferindo os princípios basilares da Administração Pública insculpidos no artigo 37, caput, da CRFB/88?
Na corrente que defende a impossibilidade de controle judicial dos atos administrativos tem-se como exemplo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (DI PIETRO, 2012), a qual discorre que, a princípio, o ato discricionário é passível de sofrer o controle judicial, desde que seja respeitada a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei. A lógica de tal premissa seria a de que, sendo a discricionariedade um poder delimitado pelo legislador, não poderia o Poder Judiciário invadir do espaço que foi reservado ao administrador, uma vez que isto levaria a violação a opção legítima realizada pela autoridade competente.
Lado outro, a doutrina de Odete Medauar (MEDAUAR, 2012) posiciona-se no sentido de que se o poder detém o poder, se ao Poder Judiciário cabe a jurisdição, é da lógica da separação de poderes o controle judicial sobre a Administração Pública, sem que se possa cogitar de ingerência indevida. Para isso os ordenamentos garantem a independência dos juízes.
É a partir de ambos os posicionamentos doutrinários acima que será verificada a existência (ou não) de judicialização da matéria atinente ao abuso de poder regulatório estatal. Porém, não sem antes tratar dos elementos atinentes ao consequencialismo, que se faz presente agora, nas decisões de todas as esferas.
3. O CONSEQUENCIALISMO COMO NORTEADOR DAS DECISÕES ADMINISTRATIVAS E JUDICIAIS
Acredita-se ser necessário abrir um flanco no presente artigo para tratar do consequencialismo, previsto no art. 21 do Decreto 4.657/42, com edição dada pela Lei 13.655/18, o qual passou a prever que a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Deve-se ter em mente que as alterações feitas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) tiveram como escopo orientar a atuação do administrador público em diálogo com os órgãos de decisão, no intuito de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas. Isto é, em razão da hipertrofia da atividade de controle da Administração, desempenhada pelos órgãos de controle interno e externo e pelo Ministério Público, o legislador entendeu ser necessário promover um ambiente dialógico entre tais órgãos e o gestor público, com a finalidade de evitar a vulnerabilização da gestão pública, ou seja, o receio do gestor público de inovar na Administração e sofrer punição posterior por isso.
Do consequencialismo emerge o dever de maior motivação dos atos administrativos, em especial, dos discricionários, que embora gozem de certa subjetividade por parte do administrador público, demandam agora a uma fundamentação mais consistente, que compreende desde a edição de atos normativos até a sua execução. Vale lembrar que a presunção de legitimidade de todo e qualquer ato administrativo é relativa, de maneira que, acaso vazia ou parca a motivação ou verificadas as consequências negativas dele advindas, partilha-se, aqui, do entendimento de que válido será o exercício do controle judicial sobre o ato.
O que mais se visa com a inserção do consequencialismo na LINDB é, literalmente, o que se vê na redação de seu art. 30:
As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
O exame apurado e detido do caso concreto em que determinado ato normativo irá incidir é de suma importância para extração dos efeitos (positivos e negativos) que dele advirão. Se for reconhecido pela Administração Pública que ela mesma pratica atos de abuso de poder regulatório no setor concorrencial, fato é que antes de editar atos normativos que tenham a mínima chance de serem contrários à concorrência, deve ela verificar os impactos gerados no mercado que se pretende normatizar, sobre os destinatários/usuários e, obviamente, se condizem com os preceitos constitucionais e legais referentes à matéria.
4. ENTRELACE DE COMPETÊNCIAS: ADMINISTRATIVA, JUDICIAL OU AMBAS
Como já observado acima, ocorre um dilema sobre qual deve ser a decisão dominante em questões técnicas: a do Poder Executivo ou a do Poder Judiciário. Ao trazer para a matéria concorrencial, pode-se indagar: quem deve ter a última palavra quando se trata de direito antitruste, o CADE ou o Poder Judiciário?
Ressalte-se que não foi negligenciada a existência das agências reguladoras dentro desse contexto, porém como elas também fazem parte da Administração Pública, a presente análise legal e jurisprudencial ficará restrita ao CADE, como referencial à FIARC, que será tratada mais adiante.
Destarte, examina-se, agora, a (im)possibilidade de resolução da celeuma entre o CADE e o Judiciário.
4.1. O PODER JUDICIÁRIO E A (IN)AFASTABILIDADE DE JURISDIÇÃO
É possível dizer, prontamente, que o CADE não possui o monopólio da aplicação da lei concorrencial, sendo viável a busca pela tutela direta do Poder Judiciário, com fulcro no art. 5, XXXV, da CRFB combinado ao art. 47 da Lei 12.529/11. Além disso, viável argumentar, que há a característica dos atos administrativos não fazerem coisa julgada, não cabendo à Administração Pública uma análise final da regularidade de seus próprios atos. Afinal de contas, se assim o fosse estar-se-ia colocando o CADE como juiz e parte simultaneamente, o que vai de encontro aos princípios processuais civis e administrativos da moralidade e imparcialidade, os quais ao CADE também se aplicam, por força do art.115 da Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
Em realidade, há duas correntes sobre a possibilidade de revisão judicial da decisão prolatada pelo CADE, as quais dividem-se em: administrativista e a judicialista. A primeira baseia-se nos Enunciados Sumulares nº 346 e nº 473 do Supremo Tribunal Federal, anteriormente transcritos, bem como no art. 53 da Lei 9.784/99, cuja redação é idêntica ao Enunciado Sumular nº 473 do STF, tanto para revogação quanto para anulação de decisões do CADE. A segunda, por seu turno, defende a revisão apenas de decisões nulas, afirmando que não se pode falar em revogação de decisão tomada no exercício da função judicante do CADE, já que não se reveste de discricionariedade administrativa. O Órgão não julga por conveniência e oportunidade e, portanto, não pode revogar suas decisões sob esse fundamento.
Ato contínuo, o fato de se tratar de processo administrativo sancionador não pode passar em branco; havendo uma infração contra a ordem econômica, há claramente uma condenação, que normalmente é pecuniária, mas pode constituir também obrigação de fazer ou não fazer. É de se indagar a razão pela qual uma sociedade empresária que sofre sanções, muitas vezes, fortíssimas não pode demandar uma revisão judicial do ato.
Demais disso, tem-se o princípio do duplo grau de jurisdição, ainda que entre instâncias administrativa e judicial, decorrente da necessidade de permitir uma reforma em grau de recurso de uma decisão injusta ou errada. Ou seja, resta institucionalizada no ordenamento pátrio a necessidade de haver uma instância revisora das decisões. Isso significa que o direito leva em conta a possível falibilidade humana e aponta, se for o caso, a correção. Ora, se a decisão do CADE, na sua parte procedimental, por que não admitir a revisão do mérito? Veja-se que o CADE decide em instância única e que a inexistência de recursos possíveis contra as suas decisões de mérito não pode simplesmente eliminar a revisão de seus atos.
Nesta senda, trazemos à baila trecho de julgado emanado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na Apelação/ Reexame Necessário nº 2005.34.00.037482-6, que ilustra a defesa da revisão judicial das decisões do CADE:
(...) II - Não há que se falar, ainda, em violação à competência do CADE, nem mesmo em impossibilidade de anulação de sua decisão. Isso porque, na espécie, prevalece a competência da ANTAQ (sem eliminar a do CADE), com a regulamentação que lhe é inerente, que autoriza a incidência da THC2. Por outro lado, inexiste qualquer impedimento ao conhecimento da matéria pelo Poder Judiciário, cuja atuação não está limitada à averiguação de nulidades no processo administrativo, mas também diz respeito ao exame do objeto do procedimento, na medida em que não é possível excluir da apreciação judicial lesão ou ameaça de lesão aos direitos da autora (Constituição Federal, art. 5º, XXXV). Não se trata de interferência no mérito administrativo, conforme alega o CADE, tendo em vista que aquele se refere à margem de liberdade conferida pela lei, dentro da qual o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decide entre duas ou mais soluções admissíveis, o que não ocorre na espécie. No caso, a intervenção judicial é legítima porquanto a decisão administrativa se encontra em descompasso com a legislação de regência.
Resulta, portanto, no arranjo de variados argumentos plausíveis para levar ao Judiciário a apreciação de matérias do direito concorrencial, sem com isso ferir a autonomia decisória do CADE. Todavia, ver-se-á, a seguir, que esse não é o entendimento mais atual dos tribunais superiores.
4.2. CADE: A PENÚLTIMA OU ÚLTIMA PALAVRA?
De antemão, cabe informar que a criação do CADE pela Lei. 12.529/11 advém de norma constitucional de eficácia limitada contida no §4º do art. 173 do Texto Maior, o qual discorre que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Dessa forma, o CADE surgiu como a autarquia federal de caráter judicante, com jurisdição em todo o território nacional, cujo objetivo precípuo é prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica. Pode-se considerar que se trata de uma função judicante atípica, eis que se trata do Poder Executivo, por meio de sua Administração Indireta, exercendo, em tese, a função de julgar, como denominado pela lei. Para Carlos Ari Sundfeld, a leitura mais lógica da expressão "órgão judicante" é a que vincula o CADE a um certo método de trabalho, ou seja, que lembra a condição de independência, imparcialidade e impessoalidade, construída segundo um modelo de Direito. Por outro lado, enquanto a ação do Judiciário tem âmbito universal, com a finalidade de normalização das relações interpessoais ameaçadas por crises jurídicas, o CADE é apenas órgão de intervenção administrativa na vida privada, ao qual cabe a aplicação de sanções administrativas por condutas anticoncorrenciais, realizando a limitação administrativa de direitos com vetos a atos de concentração. (SUNDFELD, 2003)
Em verdade, o método judicante se presta a instrumentalizar o exercício da função administrativa, tendo em vista a realização do interesse público, o qual, no caso, é o interesse na garantia de condições concorrenciais no mercado. Ainda que se reconheça a existência de um conflito de interesses na base dos processos concorrenciais, a atuação do CADE não se pauta pela pacificação de tais conflitos, tampouco visa determinar quem tem razão. O conflito individual pode encontrar uma resolução por via reflexa, porém a decisão proferida pela autarquia centra-se na defesa da concorrência.
Nesse sentido, tendo em mente que a tutela final do CADE diz respeito a um bem difuso, como acima mencionado, decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do agravo regimental e recurso extraordinário nº 1.083.955, a questão sobre quem possui a última palavra em matéria de defesa da concorrência, como se observa a seguir:
1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos.
2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa.
3. A natureza prospectiva e multipolar das questões regulatórias se diferencia das demandas comumente enfrentadas pelo Judiciário, mercê da própria lógica inerente ao processo judicial.
4. A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação. Consoante o escólio doutrinário de Adrian Vermeule, o Judiciário não é a autoridade mais apta para decidir questões policêntricas de efeitos acentuadamente complexos (VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty: An institutional theory of legal interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 248–251).
5. A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública. Em perspectiva pragmática, a invasão judicial ao mérito administrativo pode comprometer a unidade e coerência da política regulatória, desaguando em uma paralisia de efeitos sistêmicos acentuadamente negativos.
6. A expertise técnica e a capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica demanda uma postura deferente do Poder Judiciário ao mérito das decisões proferidas pela Autarquia. O controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos, consoante a firme jurisprudência desta Suprema Corte.
7. Os controles regulatórios, à luz do consequencialismo, são comumente dinâmicos e imprevisíveis. Consoante ressaltado por Cass Sustein, “as normas regulatórias podem interagir de maneira surpreendente com o mercado, com outras normas e com outros problemas. consequências imprevistas são comuns. Por exemplo, a regulação de novos riscos pode exacerbar riscos antigos (...). As agências reguladoras estão muito melhor situadas do que os tribunais para entender e combater esses efeitos” (SUSTEIN, Cass R., "Law and Administration after Chevron”. Columbia Law Review, v. 90, n. 8, p. 2.071-2.120, 1990, p. 2.090).
8. A atividade regulatória difere substancialmente da prática jurisdicional, porquanto: “a regulação tende a usar meios de controle ex ante (preventivos), enquanto processos judiciais realizam o controle ex post (dissuasivos); (...) a regulação tende a utilizar especialistas (...) para projetar e implementar regras, enquanto os litígios judiciais são dominados por generalistas” (POSNER, Richard A. "Regulation (Agencies) versus Litigation (Courts): an analytical framework". In: KESSLER, Daniel P. (Org.), Regulation versus litigation: perspectives from economics and law, Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 13).
(...)
10. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE detém competência legalmente outorgada para verificar se a conduta de agentes econômicos gera efetivo prejuízo à livre concorrência, em materialização das infrações previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).
11. As sanções antitruste, aplicadas pelo CADE por força de ilicitude da conduta empresarial, dependem das consequências ou repercussões negativas no mercado analisado, sendo certo que a identificação de tais efeitos anticompetitivos reclama expertise, o que, na doutrina, significa que “é possível que o controle da “correção” de uma avaliação antitruste ignore estas decisões preliminares da autoridade administrativa, gerando uma incoerência regulatória. Sob o pretexto de “aplicação da legislação”, os tribunais podem simplesmente desconsiderar estas complexidades que lhes são subjacentes e impor suas próprias opções” (JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros – SBDP, 2016, p. 152-155).”(grifo nosso)
A ementa do julgado acima reflete como argumentos principais quanto à expertise nata da autarquia federal para lidar com questões diretamente ligadas a sua área de atuação e que ensejaram sua criação a priori, e destaca o perigo de decisões conflitantes proferidas pelo Judiciário com efeitos práticos danosos (consequencialismo negativo). De fato, os argumentos do Supremo Tribunal Federal são tão fortes quanto os trazidos no tópico anterior, mas na defesa da autoridade máxima do CADE. Todavia, a Corte filia-se à corrente que defende que a questão concorrencial começa no CADE e nele termine, sob pena de um desvirtuamento de sua finalidade e de uma sobreposição do Judiciário ao exame técnico promovido pela autarquia.
Defende-se neste trabalho que deixar ao arbítrio judicial o exame de situações nas quais se deve capitular ou não o ilícito anticoncorrencial e determinar quais devem ser ou não as sanções devidas é o mesmo que admitir a substituição da Autarquia em sua função básica. Além do fato de que a mera possibilidade de judicializar a questão conduz a um relaxamento na conduta dos agentes de mercado, eis que notória a morosidade e o dispêndio financeiro de um processo judicial, o que em última análise, prejudica a eficiência do sistema de controle da concorrência.
Ao voltar os olhos para a FIARC examinar-se-á se ela, de fato, pode ou consegue seguir a mesma trilha do CADE.
5. FIARC: UM CATALISADOR PARA JUDICIALIZAÇÃO DO ABUSO DE PODER REGULATÓRIO ESTATAL?
A Frente Intensiva de Análise Regulatória e Concorrencial (FIARC) possui sua origem legal no art. 4º da Lei 13.874/19, em especial, nos incisos II e IV, e seu embrião foi a Consulta Pública 01/2020, da Secretaria de Acompanhamento Econômico (atual Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade), que resultou na Instrução Normativa nº97 de 02 de outubro de 2020.
O programa da FIARC tem o mérito de buscar estruturar um procedimento ordenado, que permite a reguladores e agentes privados consultar a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade, quanto à adequação de dispositivos infralegais considerados problemáticos do ponto de vista concorrencial. É louvável uma política pública que vise coibir o abuso de poder regulatório estatal (o Estado como defensor da ordem econômica versus o Estado normatizador de atos que prejudicam a mesma ordem econômica), sem amarras normativas que bloquem a livre concorrência, a fim de contribuir para análises regulatórias em temas setoriais e desenvolvimento da infraestrutura de mercado.
Em contraposição, como aspectos negativos, salta aos olhos o fato de que o resultado último do procedimento da FIARC é um parecer opinativo não-vinculante, consoante art. 18, caput e §1º da Instrução Normativa supracitada. Ou seja, não há coercibilidade nem autoexecutoriedade que reforcem a manifestação técnica, sendo ela de cumprimento apenas facultativo pelo destinatário. No mais, a Secretaria não tem o poder de determinar a revisão de uma lei ou ato normativo nocivo, ela apenas analisa a (anti) competitividade da norma e se pronuncia a respeito.[1]
Diante te tal fato, indaga-se: como proceder à revisão de uma lei ou ato normativo entendido como anticoncorrencial pela FIARC?
Antes de responder, devem ser levantados outros pontos. Com o referido parecer em mãos, o Subsecretario da Advocacia da Concorrência oficiará o órgão da administração pública responsável pela edição do ato normativo, no intuito de auxiliá-lo na revisão de seu conteúdo, sob os prismas da legalidade e juridicidade. Ocorre que as autoridades encarregadas de regulamentar atividades econômicas, por definição, editarão normas que implicam restrições à liberdade de iniciativa, tendo na promoção da concorrência apenas um dentre diferentes valores jurídicos a serem considerados no exercício da atividade regulatória. Por consequência, é bastante plausível que haja situações de discordância interpretativa, com a emissão de pareceres conflitantes por diferentes órgãos da Administração Pública. Diante da divergência entre a Secretária e o órgão emissor da norma, como agir?
É forçoso concordar com a opinião do jurista Fernando Stival (2020), que com seu posicionamento responde a ambos os questionamentos:
E, nesses casos, em última análise, a única alternativa disponível seria a judicialização do regulamento objeto da consulta, transferindo o ônus decisório ao Poder Judiciário. Não somente isso, o provimento judicial invariavelmente recairá em duas alternativas: a anulação do regulamento impugnado, em casos de patente ilegalidade, que demandará a elaboração de novo regulamento; ou, alternativamente, a determinação à autoridade regulatória de revisão do regulamento considerado abusivo.
Ao fim, a revisão de lei/ato normativo somente recai na competência do Judiciário, quando negada pela própria Administração responsável por sua elaboração, assim como o conflito entre pareceres administrativos emitidos por diferentes órgãos da Administração Pública, igualmente, será objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Nesse cenário, ao interessado cabe unicamente utilizar o parecer da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade como subsídio técnico para lançar mão de alternativa da qual dispunha desde o início, isto é, a impugnação do ato considerado ilegal ou inconstitucional perante o Judiciário.
Por conseguinte, embora, a princípio, mereça aplausos a iniciativa de criação do programa da FIARC, seus dispositivos legais acabam por criar um círculo vicioso em que, apesar de competente e possuir a expertise necessária para averiguação de ato normativo anticoncorrencial, seu fim gera tão somente um parecer, cuja observância não é compulsória pelo suposto órgão administrativo infrator. A eventual controvérsia interpretativa poderá inclusive alcançar órgãos administrativos diversos, tais como a Secretaria, o órgão emissor da norma e talvez o Ministério Público e o Tribunal de Contas, o que enseja dispêndio de recursos públicos e insegurança jurídica.
Consequentemente, com o atual desenho, a manifestação técnica FIARC resultará, inevitavelmente, na provocação do Judiciário naquelas hipóteses em que não ocorra a revogação ou alteração pela autoridade competente do ato normativo considerado anticoncorrencial pelo parecer respectivo, gerando uma judicialização de matéria estritamente técnica nessa área, já refutada pelo STF em relação aos procedimentos do CADE, conforme anteriormente debatido.
6. CONCLUSÃO
Diante dos argumentos expendidos conclui-se o presente trabalho não de forma taxativa, eis que a FIARC é um programa muito novo e sem subsídios concretos para atestar a provável judicialização das questões nele levantadas.
O que sim se pode afirmar é que, da perspectiva aqui desenhada, a FIARC provavelmente seguirá um caminho semelhante ao CADE, se não pior e mais fácil de ser visto. Explica-se. O CADE, pela lei que o rege, possui competências normativas, fiscalizatórias e sancionatórias, logo, mais difícil é para o Judiciário sobre ele se sobrepor, ainda que pelo motivo da inafastabilidade de jurisdição. A FIARC, por sua vez, aparenta caminhar em círculos que contam apenas com a boa vontade do órgão administrativo emissor do ato normativo em mudar de opinião, ante o parecer jurídico opinativo não vinculante emitido pela SEAE. Afora isso, nada mais se tem ou pode fazer.
Sendo assim, a atuação da Frente Intensiva de Análise Regulatória Concorrencial, conquanto necessária para o reconhecimento de que o Estado em suas funções legislativas e administrativas pode eventualmente abusar de seu poder regulatório e infringir normas de defesa da concorrência; pode acabar por ser um catalisador de infinitas demandas judiciais sempre que se questione um ato normativo estatal como sendo anticoncorrencial. Resta, então, esperar que o Estado, a partir da atividade da FIARC, não se olvide do consequencialismo, positivado expressamente, para rever situações de discordâncias, ilegalidades e danos à coletividade, decorrentes de normas que afetem as relações de mercado, sob pena de tornar a sua atuação um estímulo à judicialização de matéria técnica, criado por iniciativa do próprio Estado brasileiro.
7.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
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[1] Segundo o secretário Geanluca Lorenzon: “O poder mais forte que temos é classificar uma norma como anticompetitiva, que é um selo forte”. Trecho de citação retirada do artigo Economia cria grupo que analisará denúncias de abusos regulatórios. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/concorrencia/economia-grupo-denuncias-abusos-06102020.
Mestra em Direito e Políticas Públicas pela UNIRIO, Pós Graduada pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Especialista em Direito Civil pela PUC-MG, Especialista em Direito Administrativo pela UCAM, Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Sarah Lopes de Araújo. A FIARC como (des) incentivo à judicialização do abuso de poder regulatório estatal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2021, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57142/a-fiarc-como-des-incentivo-judicializao-do-abuso-de-poder-regulatrio-estatal. Acesso em: 23 nov 2024.
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