Resumo: O presente artigo busca analisar a legislação trabalhista aplicável aos trabalhadores de cruzeiros marítimos após a ratificação da Convenção nº 186 da OIT pelo Brasil. Aliado à isso, busca-se apresentar as controvérsias existentes e as teorias adotadas. Traz também a posição do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais do Trabalho sobre o tema.
Palavras-Chaves: Trabalhador Marítimo. Competência. Justiça do Trabalho.
Abstract: This article seeks to analyze the labor legislation applicable to cruise ship workers after the ratification of ILO Convention No. 186 by Brazil. Allied to this, it seeks to present existing controversies and adopted theories. It also brings the position of the Superior Labor Court and the Regional Labor Courts on the subject.
Key words: Maritime Worker. Jurisdiction. Labor Court.
Sumário: Introdução. 1. Conflito de leis no espaço. 1.1. Lei do pavilhão ou bandeira do navio. 1.2. Aplicação da lei do país de sede do armador. 1.3. Aplicação da teoria do centro de gravidade ou da sede do fato. 2. Posição dos tribunais. 3. Ratificação da Convenção nº 186 da OIT. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
O Direito do Trabalho brasileiro aplica-se às relações empregatícias e conexas, além de outras relações de trabalho que ocorram dentro do território nacional, vigorando o princípio da territorialidade. Nesse sentido, será competente, como regra, o local de prestação de serviços (art. 651 da CLT). Com relação aos empregados brasileiros contratados/transferidos para prestar serviço no exterior, principalmente os trabalhadores marítimos, surge controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
No plano internacional, a Convenção nº 186 da OIT, que trata sobre o Trabalho do Marítimo, foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2019 e promulgada pelo Presidente da República por meio do Decreto 10.671/2021. Com isso, abre-se discussão sobre os direitos dos trabalhadores marítimos, especialmente em relação aos tripulantes contratados no Brasil para trabalharem em navios de cruzeiros de bandeira estrangeira.
Isto porque, nos termos da lei 7.064/82, é direito do empregado a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto na referida lei, quando mais favorável do que a legislação territorial estrangeira, no conjunto de normas em relação a cada matéria (art. 3º, II). Em contrapartida, o Código de Bustamante de 1929 (Convenção de Havana), ratificado pelo Brasil, determina que seja aplicada aos trabalhadores a lei do local da matrícula da embarcação, também conhecida como Lei do Pavilhão ou bandeira do navio.
Fato certo é pela incidência da norma mais favorável ao trabalhador, assegurado pela CF, pela legislação brasileira e pela Constituição da própria Organização Internacional do Trabalho. O questionamento se faz com a ratificação da convenção da OIT pelo Brasil e seus impactos nos direitos dos trabalhadores.
Nesse sentido, o presente artigo desenvolverá a análise sobre legislação trabalhista aplicável aos trabalhadores de navios e embarcações, as teorias adotadas e o posicionamento dos Tribunais sobre o tema proposto.
1. Conflito de leis no espaço.
A lei 7.064/82, que dispõe sobre a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior, prevê em seu art. 3º, II, que é direito do empregado a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto na referida lei, quando mais favorável do que a legislação territorial estrangeira, no conjunto de normas em relação a cada matéria.
No Código de Bustamante de 1929 (Convenção de Havana), por sua vez, ratificado pelo Brasil, determina que seja aplicada aos trabalhadores a lei do local da matrícula da embarcação, também conhecida como Lei do Pavilhão ou bandeira do navio. No entanto, há casos em que a lei do pavilhão é utilizada para burlar os direitos trabalhistas dos trabalhadores (art. 9º da CLT), tendo os tribunais optado pela aplicação de outras teorias.
Assim, para solucionar a controvérsia, a jurisprudência firmou entendimento acerca da legislação que deve ser empregada para reger os contratos de trabalho de empregados de navio ou embarcações, surgindo 03 possibilidades de solução do conflito de leis no espaço. O TST, por sua vez, vai por caminho diverso das teorias que serão expostas abaixo.
Conforme será demonstrado, o debate sobre a lei aplicável aos trabalhadores marítimos será reaberto com a ratificação da Convenção nº 186 da OIT. Isto porque, referida convenção determina que seja aplicada aos trabalhadores a lei do local da matrícula da embarcação, nos termos do Código de Bustamante.
1.1. Lei do pavilhão ou bandeira do navio.
A Lei do pavilhão ou bandeira do navio consta no Código de Bustamante de 1929 (Convenção de Havana), tratado internacional que cuida de termas relacionados aos contratos internacionais. Referido Código foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 18.871/29, dispondo que:
Art. 281 do Código de Bustamante: “As obrigações dos oficiais e gente do mar e a ordem interna do navio subordinam-se à lei do pavilhão”.
Trata-se, portanto, de regra geral que vigora no direito internacional e também, em tese, no Brasil. Assim, o país de pavilhão ou de bandeira do navio ou embarcação é aquele que registrou o navio e o habilitou para navegar (local da matrícula), devendo, regra geral, reger as relações entre os marítimos e seus empregadores.
No entanto, há situações em que são constatadas fraudes ao matricular embarcações em locais com menos direitos trabalhista, reduzindo os custos com a mão de obra e aumento da lucratividade. Referida técnica é percebida quando a propriedade e controle efetivo do navio estão em um Estado diferente do que se constata o registro da embarcação.
Nesses casos, a jurisprudência tem afastado aplicação da lei do pavilhão, aplicando a lei do país do armador ou da teoria do centro de gravidade.
1.2. Aplicação da lei do país de sede do armador.
Conforme afirmado, há casos em que a lei do pavilhão é utilizada como artifício para a redução dos direitos trabalhista, tendo a jurisprudência afastado a aplicação da lei do pavilhão e aplicado a lei do país de sede do armador. Nessas situações, verifica-se que o país em que o navio está matriculado não guarda qualquer relação com o armador.
O termo “armador” é um termo técnico empregado para designar a empresa que explora a atividade econômica atrelada ao navio ou embarcação. Desta forma, trata-se de artifício utilizado para a redução dos direitos trabalhistas e aumentar a lucratividade da empresa.
Assim, afastada a Lei do pavilhão diante da fraude, aplica-se a lei do país de sede do armador.
1.3. Aplicação da teoria do centro de gravidade ou da sede do fato.
Nos casos em que não são constatadas as fraudes aos direitos trabalhistas acima demonstrada com a aplicação da lei do país de sede do armador, a jurisprudência tem afastado a aplicação da Lei do Pavilhão e aplicado a teoria do centro de gravidade ou da sede do fato.
A aplicação da teoria do centro de gravidade (most significant relationship, do direito norte-americano) ou da sede do fato (Savigny) permite ao juiz do trabalho aplicar a legislação para reger o contrato de trabalho em navios ou embarcações do país em que esse contrato de trabalho mais tenha irradiado efeitos. A ideia de centro de gravidade diz respeito à identificação da legislação do país em que o contrato de trabalho foi exercido com preponderância.
Se uma empresa armadora sueca, por exemplo, navega em águas brasileiras em um cruzeiro com bandeira ou pavilhão de Honduras, neste caso, a teoria do centro de gravidade aponta para a legislação brasileira para reger o contrato de trabalho dos empregados que laboram na referida embarcação. Isto porque, diante do caso concreto, verifica-se que há uma relação mais próxima com o direito brasileiro, na medida em que o fato provocou maiores efeitos nesse local.
Nesse sentido, conforme demonstrado, as relações de trabalho da tribulação de navios são regidas, em regra, pela lei da matrícula da embarcação. No entanto, caso constatada fraude, chamada de bandeira de favor, a relação jurídica a ser aplicada será a do país da sede do armador. De outro lado, também poderá ser utilizada a teoria do centro de gravidade ou da sede do fato, mesmo que não seja constatada fraude, aplicando-se a lei do local em que o contrato mais irradiou efeitos.
Com relação ao TST, atualmente o entendimento majoritário (07 das 08 turmas) é pela aplicação do princípio da norma mais favorável. Com isso, houve o cancelamento da súmula 207 do TST pelo Pleno, que previa a aplicação da lei do local de prestação de serviços.
Súmula nº 207 do TST. CONFLITOS DE LEIS TRABALHISTAS NO ESPAÇO. PRINCÍPIO DA "LEX LOCI EXECUTIONIS" (cancelada) - Res. 181/2012, DEJT divulgado em 19, 20 e 23.04.2012. A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação.
Assim, à luz do princípio da norma mais favorável, na hipótese de existência de um caso concreto e mais de uma norma trabalhista igualmente aplicável, o operador do direito deverá optar por aquela mais favorável independentemente de sua posição na escala hierárquica.
Nota-se, portanto, que o Tribunal Superior do Trabalho afasta a aplicação das 03 teorias acima mencionadas e possui entendimento majoritário pela aplicação da norma mais favorável. A título exemplificativo coloca-se abaixo a seguinte ementa:
EMPREGADO CONTRATADO NO BRASIL. LABOR EM NAVIO DE CRUZEIRO INTERNACIONAL. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. 1 – Há transcendência política quando se verifica em exame preliminar o desrespeito à jurisprudência majoritária do TST quanto ao tema decidido no acordão recorrido. 2 – Aconselhável o provimento do agravo de instrumento para melhor exame do recurso de revista quanto à provável divergência jurisprudencial. 3 – Agravo de instrumento a que se dá provimento. II- RECURSO DE REVISTA. RECLAMANTE. LEIS Nºs 13.015/2014 E 13.467/2017. IN Nº 40 DO TST EMPREGADO CONTRATADO NO BRASIL. LABOR EM NAVIO DE CRUZEIRO INTERNACIONAL. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. 1 – A tese vinculante do STF no julgamento do RE 636.331/RJ (Repercussão Geral – Tema 2010) não tratou de Direito do Trabalho, e sim de extravio de bagagem de passageiro: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”. 2 – A jurisprudência majoritária do TST (sete das oito Turmas), quanto à hipótese de trabalhador brasileiro contratado para desenvolver suas atividades em navios estrangeiros em percursos em águas nacionais e internacionais, é de que nos termos do art. 3º, II, da Lei nº 7.064/82, aos trabalhadores nacionais contratados no País ou transferidos do País para trabalhar no exterior, aplica-se a legislação brasileira de proteção ao trabalho naquilo que não for incompatível com o diploma normativo especial, quando for mais favorável do que a legislação territorial estrangeira. 3 – O Pleno do TST cancelou a Súmula nº 207 porque a tese de que “A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação” não espelhava a evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria. E após o cancelamento da Súmula nº 207 do TST, a jurisprudência majoritária se encaminhou para a conclusão de que somente em princípio, à luz do Código de Bustamante, também conhecido como “Lei do Pavilhão” (Convenção de Direito Internacional Privado em vigor no Brasil desde a promulgação do Decreto nº 18.871/29), aplica-se às relações de trabalho desenvolvidas em alto mar a legislação do país de inscrição da embarcação. Isso porque, em decorrência da Teoria do Centro de Gravidade, (most significant relationship), as normas de Direito Internacional Privado deixam de ser aplicadas quando, observadas as circunstâncias do caso, verificar-se que a relação de trabalho apresenta uma ligação substancialmente mais forte com outro ordenamento jurídico. Trata-se da denominada “válvula de escape”, segundo a qual impende ao juiz, para fins de aplicação da legislação brasileira, a análise de elementos tais como o local das etapas do recrutamento e da contratação e a ocorrência ou não de labor também em águas nacionais. 4 – Nos termos do art. 3º da Lei n° 7.064/1982, a antinomia aparente de normas de direito privado voltadas à aplicação do direito trabalhista deve ser resolvida pelo princípio da norma mais favorável, considerando o conjunto de princípios, regras e disposições que dizem respeito a cada matéria (teoria do conglobamento mitigado). 5 – Não se ignora a importância das normas de Direito Internacional oriundas da ONU e da OIT sobre os trabalhadores marítimos (a exemplo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n° 4.361/2002, e da Convenção n° 186 da OIT sobre Direito Marítimo – MLC, não ratificada pelo Brasil). Contudo, deve-se aplicar a legislação brasileira em observância a Teoria do Centro de Gravidade e ao princípio da norma mais favorável, que norteiam a solução jurídica quanto há concorrência entre normas no Direito Internacional Privado, na área trabalhista. Doutrina. 6 – Cumpre registrar que o próprio texto da Convenção n° 186 da OIT sobre Direito Marítimo – MLC, não ratificada pelo Brasil, esclarece que sua edição levou em conta “o parágrafo 8º do Artigo 19 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, que determina que, de modo algum a adoção de qualquer Convenção ou Recomendação pela Conferência ou a ratificação de qualquer Convenção por qualquer Membro poderá afetar lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores do que as condições previstas pela Convenção ou Recomendação”. 7 – Não afronta o princípio da isonomia a aplicação da legislação brasileira mais favorável aos trabalhadores brasileiros e a aplicação de outra legislação aos trabalhadores estrangeiros no mesmo navio. Nesse caso há diferenciação entre trabalhadores baseada em critérios objetivos (regência legislativa distinta), e não discriminação fundada em critérios subjetivos oriundos de condições e/ou características pessoais dos trabalhadores. 8 – Desde a petição inicial a pretensão do reclamante é de aplicação da legislação brasileira mais favorável. Desde a defesa a reclamada sustentou que deveriam ser aplicadas Lei do Pavilhão (Código de Bustamante) e a MLC (Convenção do Trabalho Marítimo) utilizada no País da bandeira da embarcação (Malta) e no País sede da empregadora (Bahamas). 9 – Deve ser provido o recurso de revista do reclamante para determinar a aplicação da legislação brasileira mais favorável e determinar o retorno dos autos para que o TRT prossiga no exame do feito como entender de direito. 10 – Recurso de revista a que se dá provimento” (ARR-11800- 08.2016.5.09.0028, 6ª Turma, Relatora Ministra Katia Magalhaes Arruda, DEJT 12/04/2019).
No entanto, em sentido contrário é o entendimento da 4ª Turma TST, que entende pela aplicação da Lei do Pavilhão:
[…] TRABALHO EM NAVIO DE CRUZEIRO SOB BANDEIRA ESTRANGEIRA. PRÉ-CONTRATAÇÃO NO BRASIL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS NA COSTA BRASILEIRA E EM ÁGUAS DE OUTROS PAÍSES. GENTE DO MAR. CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. LEI DO PAVILHÃO (CÓDIGO DE BUSTAMANTE). I) A indústria do transporte marítimo internacional, inclusive de cruzeiros turísticos, tem caráter global, seja quanto à nacionalidade dos navios (pavilhão), seja quanto à diversidade de nacionalidades da tripulação, impondo-se que a gente do mar tenha proteção especial e uniforme numa mesma embarcação. A concepção de aplicação da legislação brasileira aos tripulantes brasileiros contratados por navios estrangeiros não se sustenta diante da realidade da atividade econômica desenvolvida pelas empresas estrangeiras de cruzeiros marítimos, pois, se assim fosse, em cada navio haveria tantas legislações de regência quanto o número de nacionalidades dos tripulantes. Num mesmo navio de cruzeiro marítimo, todos os tripulantes devem ter o mesmo tratamento contratual, seja no padrão salarial, seja no conjunto de direitos. Reconhecer ao tripulante brasileiro – contratado para receber em dólar – direitos não previstos no contrato firmado, conduziria à quebra da isonomia e subversão da ordem e da autoridade marítima, uma vez que os próprios oficiais poderiam questionar suas obrigações à luz da legislação de sua nacionalidade, em desrespeito à lei do pavilhão. Daí porque ser imperativo a aplicação, para todos os tripulantes, da lei do pavilhão, como expressamente prescreve o art. 281 da Convenção de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 18.791/1929): ” As obrigações dos oficiais e gente do mar e a ordem interna do navio subordinam-se à lei do pavilhão “. II) As tratativas preliminares para a contratação de trabalhador, iniciadas em território brasileiro por empresa de agenciamento e arregimentação de trabalhadores para prestar serviço a bordo de embarcação estrangeira com trânsito pela costa brasileira e em águas internacionais, não permitem concluir que a contratação se deu em solo brasileiro, pois a efetivação do contrato somente ocorre com a convergência de vontades das partes envolvidas. Agência de recrutamento atua na aproximação das partes contratantes, sem que se torne parte nas relações de trabalho daí decorrentes (Convenção 181 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, Art. 1º, 1, a. III) Inaplicável a Lei nº 7.064/82, cujo pressuposto é a contratação de trabalhadores no Brasil ou transferidos por seus empregadores para prestar serviço no exterior, hipótese não revelada pelas premissas fáticas constantes no Acórdão Regional, de forma que a legislação brasileira não pode ser invocada sob o fundamento de ser mais benéfica ao trabalhador brasileiro que atua no exterior. O art. 3º da referida Lei se aplica na situação de empregado transferido para o exterior, hipótese que não se ajusta ao caso dos autos. A própria Lei nº 7.064/82 prevê a inaplicabilidade da legislação brasileira para o empregado contratado por empresa estrangeira (artigos 12 e seguintes). IV) Assim, a legislação brasileira não é aplicável ao trabalhador brasileiro contratado para trabalhar em navio de cruzeiro, (1) por tratar-se de trabalho marítimo, com prestação de serviços em embarcação com registro em outro país; (2) porque não se cuida de empregado contratado no Brasil e transferido para trabalhar no exterior. O fato de a seleção e atos preparatórios terem ocorrido no Brasil não significa, por si só, que o local da contração ocorreu em solo brasileiro; (3) o princípio da norma mais favorável tem aplicação quando há antinomia normativa pelo concurso de mais de uma norma jurídica validamente aplicável a mesma situação fática, o que não é a hipótese do caso concreto, pois não há concorrência entre regras a serem aplicáveis, mas sim conflito de sistemas. V) Ademais, independentemente do local da contratação ou do país no qual se executam os serviços, é inafastável a regra geral de que a ativação envolvendo tripulante de embarcação é regida pela lei do pavilhão ou da bandeira, e não pela legislação brasileira (Código de Bustamante, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 18.791/1929). VI) Demonstrado que a prestação de trabalho ocorreu em embarcação estrangeira, independentemente de ter navegado em todo ou em parte em águas brasileiras, não há falar em aplicação da lei brasileira. Assim, não há incidência do princípio do centro de gravidade (most significant relationship), o que levaria a situações limítrofes da prevalência do tempo de navegação em águas nacionais, internacionais ou estrangeiras, com risco de tratamento diferenciado da tripulação, em flagrante violação das normas de direito internacional privado e do art. 178 da Constituição Federal. VII) O Supremo Tribunal Federal firmou tese em repercussão geral (Tema 210) no sentido de prevalência, com arrimo no art. 178 da Constituição Federal, de tratados internacionais sobre a legislação brasileira, especificamente no caso de indenização por danos materiais por extravio de bagagens em voos internacionais, caso em que devem ser aplicadas as convenções de Varsóvia e Montreal em detrimento do Código de Defesa do Consumidor. A tese firmada restou assim editada: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.” A ratio desta tese de repercussão geral deve ser aplica ao presente caso, pois diz respeito a conflito de legislação nacional com aquelas previstas em acordos internacionais, essencialmente a discussão ora travada. VIII) Recurso de revista provido para afastar a condenação com base na legislação trabalhista nacional e, consequentemente, julgar improcedentes os pedidos formulados na reclamação trabalhista. (RR-1829-57.2016.5.13.0005, 4ª Turma, Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 01/02/2019).
Assim, em razão da divergência com uma das turmas (que aplica a Lei do Pavilhão), foi interposto embargos de divergência para a SDI-1 quanto ao tema, distribuídos ao Ministro Cláudio Brandão, o qual ainda está pendente de julgamento.
No que tange STF, ainda não há posição da Corte sobre o tema. Isto porque, o RE 636.331 tratou sobre contrato de transporte internacional aéreo e não Direito do Trabalho. Logo, nesses casos, com base no art. 178 da CF, a posição é pela prevalência da Convenção de Varsóvia em face do CDC.
3. Ratificação da Convenção nº 186 da OIT.
No plano internacional, a Convenção nº 186 da OIT, que trata sobre o Trabalho do Marítimo, foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2019 e promulgada pelo Presidente da República por meio do Decreto 10.671/2021. De forma implícita e explícita, prevê a aplicação das leis trabalhistas da nação da 'bandeira' do navio. Desta maneira, a ratificação da Convenção 186 poderá trazer mudanças no entendimento do TST, ou provocar a manifestação do STF.
Com a ratificação da Convenção 186 da OIT, que prevê, em vários dispositivos, normas menos favoráveis ao trabalhador que a legislação brasileira, discute-se se haverá mudança nesse cenário, especialmente após o STF firmar tese no sentido da prevalência das Convenções de Varsóvia e Montreal sobre as regras do CDC no que concerne ao extravio de bagagem por companhia aérea, por respeito ao art. 178, caput da CF (Tema 210).
No entanto, vale ressaltar que conforme o § 8º do art. 19 da OIT, de modo algum, a adoção de qualquer convenção da OIT por país membro poderá afetar lei daquele país que assegure condições de trabalho mais favoráveis. Nesse sentido, a ratificação da convenção não afastará a aplicação da lei brasileira aos trabalhadores contratados no Brasil para trabalharem em cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira.
À título de explicação, as Convenções da OIT são editadas conforme um contexto de graves violações aos direitos humanos e direitos trabalhistas. Assim, com o intuito de minimizar os impactos, as convenções e recomendações da OIT estabelecem patamares mínimos de trabalho para que haja a adesão do maior número de países possível.
Considerações Finais
A lei 7.064/82 prevê a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto na referida lei, quando mais favorável do que a legislação territorial estrangeira, no conjunto de normas em relação a cada matéria. O Código de Bustamante de 1929, por sua vez, determina que seja aplicada aos trabalhadores a lei do local da matrícula da embarcação, também conhecida como Lei do Pavilhão ou bandeira do navio.
Nos casos em que são constatadas fraudes aos direitos trabalhistas e direitos humanos, os tribunais aplicam a lei do país de sede do armador, também podendo ser aplicada a teoria do centro de gravidade ou da sede do fato do local em que o contrato mais irradiou efeitos. O TST, por sua vez, aplica a norma mais benéfica.
Com a ratificação da Convenção 186 da OIT, que prevê, em vários dispositivos, normas menos favoráveis ao trabalhador que a legislação brasileira, discute-se se haverá mudança nesse cenário. Sob uma ótica mais crítica, verifica-se que os direitos trabalhistas previstos na Convenção da OIT são inferiores aos dispostos na CF, CLT e leis federais. Isto ocorre, pois, as convenções buscam disciplinar apenas os direitos considerados como patamar civilizatório mínimo, não impedindo com que sejam aplicadas outras leis mais favoráveis.
É nesse sentido que dispõe parágrafo 8º do art. 19 da Constituição da OIT que determina que, de modo algum, a adoção de qualquer convenção da OIT por país membro poderá afetar lei daquele país que assegure condições de trabalho mais favoráveis. Dessa forma, os tribunais deverão harmonizar as regras existentes e aplicar a que melhor se enquadre ao caso concreto.
Felizmente, a ratificação da convenção demonstra que o Brasil está alinhado com as diretrizes da OIT de promover um trabalho cada vez mais digno para os trabalhadores marítimos e não afasta, automaticamente, a aplicação da lei trabalhista brasileira, que é norma mais favorável ao trabalhador, a luz da Convenção da OIT.
Referências
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SUSSEKIND, Arnaldo. Conflitos de leis do trabalho. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979.
Artigo publicado em 28/09/2021 e republicado em 14/05/2024
Advogada. Formada pelo Instituto Damásio de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TERZINI, Beatriz Victória de Diego. Trabalhadores marítimos e a legislação trabalhista aplicável. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 maio 2024, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57233/trabalhadores-martimos-e-a-legislao-trabalhista-aplicvel. Acesso em: 22 nov 2024.
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