Considerando a proximidade de mais um ano eleitoral, impende abordar, em breves linhas, aspectos de relevo que possam nortear a atuação dos agentes públicos.
Nesta toada, considerando a omissão legislativa sobre o tema, o presente artigo se propõe a abordar genericamente a juridicidade do recebimento de bens móveis – aqueles suscetíveis de movimento próprio ou de remoção por força alheia sem que isso altere a sua substância ou destinação econômica – por doação, pelos Estados, em período eleitoral.
A indagação tem por fundamento o disposto no artigo 73, § 10 da Lei Federal 9.504/1997 que veda a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
Eis a redação do art. 73 para melhor compreensão do tema:
"Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
[...]
§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)
Em relação ao tempo da proibição, não parece haver controvérsia doutrinária e jurisprudencial, exsurgindo pacífico o entendimento de que, no ano que se realizam as eleições, proíbe-se a distribuição gratuita de bens por parte da administração pública, a qualquer título.
Sobre o âmbito de incidência da vedação legal em ano eleitoral, impõe-se concordar com a doutrina de Djalma Pinto, no sentido de que quando a lei quis restringir a conduta vedada à circunscrição do pleito (federal, estadual ou municipal) assim o fez expressamente, a exemplo dos incisos V e VI, “b” e “c”, do mesmo artigo 73. Diante da omissão (que se pressupõe proposital) da norma do art. 73, § 10, aplica-se a conduta vedada aos agentes públicos de todos os entes federativos.
Portanto, não parece haver dúvida que a regra é válida e cogente, relativamente à generalidade da Administração Pública.
É possível constatar, inclusive, que o TSE vem sendo bastante rigoroso no objetivo de garantir as condições de igualdade entre os candidatos, havendo evidente elevação no peso ponderal desse valor constitucional até mesmo em detrimento de eventual possibilidade de doação que demande urgência na satisfação do interesse público.
Feitas estas considerações iniciais, tem-se que a hipótese a ser abordada neste artigo atine, genericamente, às transferências de propriedade de bens móveis para os Estados, onde há configuração objetiva de doação sendo que, no caso, o ente estatal figura como donatário e não como doador.
O objetivo das normas eleitorais que impõem condutas vedadas a agentes públicos ― e à Administração Pública, por extensão ―, caso do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997, como antedito, é assegurar a legitimidade e igualdade de oportunidade entre os candidatos do certame, interditando comportamentos caracterizadores de abuso de poder político ― ou “uso da máquina pública”, na expressão coloquial.
Quando o intérprete administrativo examina um dispositivo de lei eleitoral naturalmente terá de referir-se à axiologia eleitoral como critério de valoração das restrições e vedações eleitorais para que não resultem do excessivo rigor ou tolerância efeitos inversos ao pretendido pela regra aplicada. Se a lei eleitoral é o principal instrumento de preservação da igualdade eleitoral, seus preceptivos - e, consequentemente, também o aplicador ou intérprete - devem se orientar nesta perspectiva, sob risco de desviar-se o significado dela que é, precípuamente, resguardar a soberania popular.
De fato, a função do mencionado art.73 como um todo, e de seu § 10 em particular, é tipificar modalidades e expedientes pelos quais a disputa eleitoral vem a ser desequilibrada em favor de um dos polos, usualmente daquele que detém, na conjuntura política determinada, maior ascendência sobre a Administração e seus agentes.
Desse modo, toda e qualquer interpretação que se pretenda adequada e razoável da regra inscrita no referido art. 73, § 10, da Lei Eleitoral, deve guardar estrita obediência à finalidade da norma ― proteção aos bens jurídicos isonomia, normalidade e legitimidade das eleições ―, o que deflui, aliás, de determinação constitucional ― art. 14, §§ 9º e 10, da Constituição Federal.
Neste toar, tem-se que a proibição legal encartada no suso referido § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504/1997, alusiva à “distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública”, requer uma conduta que se amolde ao tipo definido no comando legal, de modo que, no nosso entender, dirige a vedação àquele que pratica o ato passível de configurar abuso de poder político, in casu, o doador.
Veja-se, a propósito, a seguinte decisão do Tribunal Superior Eleitoral:
“(...) Conduta vedada (art. 73, IV, da Lei nº 9.504/97). (Não caracterizada. ...) Para a configuração do inc. IV do art. 73 da Lei nº 9.504/97, a conduta deve corresponder ao tipo definido previamente. O elemento é fazer ou permitir uso promocional de distribuição gratuita de bens e serviços para o candidato, quer dizer, é necessário que se utilize o programa social – bens ou serviços – para dele fazer promoção. (...)” NE: Participação de prefeito e vice-prefeito em implementação de programa de distribuição de alimentos intitulado “Pão e leite na minha casa.”
(Ac. nº 25.130, de 18.8.2005, rel. Min. Luiz Carlos Madeira.) (Grifos acrescidos)
Deflui daí que, salvo melhor juízo, não implica, em princípio, ofensa à referida regra proibitiva do § 10 do art. 73 da Lei Federal nº 9.504/1997, o recebimento, por doação, de bem móvel, pela Administração Pública Estadual em ano eleitoral, ou seja, nas hipóteses em que o Estado figure como donatário desses bens, sob pena de responsabilização do receptor pelo cumprimento da norma proibitiva.
Em conclusão, desde que seja conveniente, oportuno e vantajoso para o Estado, instruído o processo com elementos compatíveis de acordo com as normas legais vigentes, inclusive com relação à competência para aceitar a doação e firmar o respectivo termo, não vislumbramos, em princípio, óbice ao recebimento, por doação, de bens móveis por tais entes em período eleitoral.
Adverte-se, todavia, que conquanto se trate de análise genérica, a abordagem do tema não elide eventuais situações que porventura se amoldem à conduta proibitiva encartada na Lei Eleitoral, de modo que se recomenda a máxima cautela e razoabilidade na interpretação de casos concretos, de modo a não se dispor da máquina pública em favor de interesses partidários.
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