RESUMO: O presente artigo tem por objetivo abordar sobre a possível inconstitucionalidade do artigo 1641, inciso II previsto no Código Civil de 2002 que impõe o regime da separação obrigatória de bens às pessoas que contraem matrimônio em idade superior a setenta anos. Tem ainda o condão de analisar determinadas violações ao princípio da dignidade da pessoa humana, autodeterminação e o princípio da afetividade que norteia o casamento nos dias atuais, bem como, trazer à baila uma breve discussão a respeito da incapacidade expressa no Livro de família e inexistente na Teoria Geral do Direito Civil.
PALAVRAS-CHAVE: Inconstitucionalidade. Regime de separação obrigatória. Dignidade. Incapacidade.
ABSTRACT: This article aims to address the possible unconstitutionality of article 1641, item II provided for in the Civil Code of 2002 which imposes the regime of mandatory separation of property to people who marry over the age of seventy. It also has the power to analyze certain violations of the principle of human dignity, self-determination and the principle of affectivity that guides marriage today, as well as bringing up a brief discussion about the inability expressed in the Family Book and non-existent in the General Theory of Civil Law.
KEYWORDS: Unconstitutionality. Mandatory separation regime. Dignity. Inability.
SUMÁRIO: 1.Introdução; 2.O princípio da dignidade da pessoa humana; 3. Princípio da autonomia da vontade; 4. Da capacidade civil do idoso; 5. Diferença entre os regimes de bens; 6.A inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens; 7. Conclusão; 8. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Partindo do pressuposto de que a Constituição Federal é dotada de soberania em relação as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro, servindo de parâmetro no controle de constitucionalidade, levando se em conta que toda norma que vá de encontro com a Carta Magna deverá ser declarada inconstitucional, tendo como base princípios da igualdade da pessoa humana, liberdade, autonomia e autodeterminação, o presente artigo propõe uma visão mais ampla a respeito da inconstitucionalidade prevista no art.1641, III do Código Civil, no qual o legislador ao impor uma idade limite para a escolha do regime patrimonial de bens daqueles que, por pretensão própria, desejassem contrair matrimônio, feriu de morte princípios constitucionais.
Através da análise histórica e doutrinária será permitida uma concepção mais vasta acerca de tal regra, evidenciando deste modo, que a causa de obrigatoriedade do regime de separação de bens é objeto de divergências por parte da doutrina, entre as quais se destacam a ofensa aos princípios constitucionais; a restrição a capacidade civil de pessoa absolutamente capazes e a discriminação por idade.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O inciso II do art.1641 do Código civil impõe que pessoas maiores de setenta anos são obrigadas a casar sob o regime de separação total de bens, separação, portanto, legal, já que a legislação que impõe esse regime. Essas pessoas não têm escolha, são obrigadas a não comunicar o seu patrimônio, não havendo partilha em eventual divórcio. Somente haverá partilha se for comprovado pela parte interessada que houve esforço comum.
Trata o disposto no inciso II do artigo 1.641 do Código Civil, alterado pela Lei nº 12.344 de 09 de dezembro de 2010, da limitação à vontade da pessoa maior de 70 anos, expressando o seguinte: art. “1.641, caput: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos”, dispositivo que impõe à pessoa maior de 70 anos o regime da separação de bens. Diante de tal norma, passa-se a analisar o entendimento atual sobre o dispositivo, sendo certo que alguns doutrinadores reputam-na inconstitucional, enquanto uma minoria prefere entender válida a proteção ao patrimônio do idoso.
No primeiro sentido, posicionam-se Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2010, p. 244, 245):
Nítida violação aos princípios constitucionais. Efetivamente, trata-se de dispositivo legal inconstitucional, às escâncaras, ferindo frontalmente o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) por reduzir a sua autonomia como pessoa e constrangê-lo pessoal e socialmente, impondo uma restrição que a norma constitucional não previu.
De encontro a esse entendimento, destaca Maria Berenice Dias (2021, p.428) que impor o regime da separação total, inclusive com referência ao patrimônio adquirido após o casamento, dá ensejo à ocorrência de perversas injustiças.
Essa vedação contida no referido artigo, tem como justificativa a proteção do idoso que atinge determinada faixa etária de ser enganado ou iludido por alguém que está apenas interessado em enriquecer de forma inescrupulosa, se valendo da carência e vulnerabilidade alheia.
Todavia, tal imposição viola o que consta no artigo 1º, inciso III da Carta Magna, qual seja a liberdade individual e o princípio da dignidade da pessoa humana, pois conjectura um preconceito às pessoas idosas, introduzindo na sociedade a ideia de que, ao alcançarem tal idade, tornam-se vulneráveis e, portanto, incapazes de decidir o próprio regime de bens que vigorará no casamento, violando dessa forma o artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal.
Imperioso destacar que o ordenamento jurídico brasileiro tem por base a Constituição, portanto nenhuma norma infraconstitucional pode trazer regramentos contrários ao que está disposto no seu texto, sob pena de ser declarada nula. Nesse sentido, parte da doutrina considera inconstitucional tal dispositivo, pois afronta a princípios constitucionais.
A priori, este artigo representa uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, cânone maior da Constituição Federal de 1988, disposto no artigo 1°, inciso III, da lei maior, que abaixo se reproduz, ao considerar que o indivíduo, ao atingir os setenta anos de idade, tem sua capacidade de discernimento reduzida para prática de atos, como o de contrair matrimônio pelo regime que melhor lhe aprouver, merecendo a proteção do Estado.
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituiu-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento no art.1, inciso III, da CF: a dignidade da pessoa humana.
Em consonância com esse entendimento o ilustríssimo Tavares (2012, p. 589) aduz que:
A dignidade do Homem não abarcaria tão somente a questão de o Homem não poder ser um instrumento, mas também, em decorrência desse fato, de o Homem ser capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu pensar e decidir, como as conhecidas imposições de cunho político-eleitoral (voto de cabresto), ou as de conotação econômica (baseada na hipossuficiência do consumidor e das massas em geral), e sem que haja, até mesmo, interferências internas, decorrentes dos, infelizmente usuais, vícios.
Lôbo Paulo (2010, p. 323) profere as seguintes análises a respeito da norma:
Entendemos que essa hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo a tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente é inconstitucional esse ônus.
Em consonância, Madaleno (2018, p.171), a imposição é um ato discriminatório:
muito embora o Código Civil inclusive afirme em seu primeiro artigo que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, acabou repetindo ato de total discriminação a ferir de morte o princípio da dignidade humana, consagrado pela vigente codificação, quando busca impor o regime obrigatório da separação de bens (CC, art. 1.641, inc. II) para os casamentos de pessoas com mais de setenta anos (Lei n. 12.344/2010).
Corroborando o entendimento supracitado, insta conceituar que o princípio da dignidade da pessoa humana consiste em um valor constante que deve acompanhar a consciência e o sentimento de bem-estar de todos, cabendo ao Estado garantir aos seus administrados direitos que lhe sejam necessários para viver com dignidade, tais como: direito à honra, a vida, à liberdade, à saúde, à moradia, à igualdade, à segurança, à propriedade, entre outros.
3 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
Nesse diapasão, a restrição da liberdade das partes interessadas de escolher o regime de bens que lhes satisfazer, limita sua vontade, criando de tal forma uma incapacidade em relação à idade, afastando a opção de uma pessoa acima de 70 anos de escolher o regime que lhe é mais favorável, liberdade esta que, até os 69 anos, lhe era concedida, inserindo um tratamento discriminatório para pessoas acima desta faixa etária.
Tal imposição do regime de separação obrigatória limita a autodeterminação do indivíduo que atingiu setenta anos, restringindo o direito de se autogovernar, de traçar suas próprias normas de conduta, sem que se seja submetido a imposições de ordem estranha, sendo tratados de forma discriminatória, sendo totalmente contrário ao que prevê o art. 5º da Carta Magna: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Confirmando a compreensão, salienta Maria Berenice Dias (2021, p.428):
A limitação à autonomia da vontade por implemento de determinada idade, além de odiosa, é para lá de inconstitucional. A restrição à escolha do regime de bens vem sendo reconhecida como clara afronta ao cânone constitucional de respeito à dignidade, além de desrespeitar os princípios da igualdade e da liberdade. Ninguém pode ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil.
Do mesmo modo Lôbo (2010, p. 323) aduz que a imposição reduz a autonomia da pessoa e restringe a liberdade:
[...]essa hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo a tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente é inconstitucional esse ônus.
Com efeito, restringir a vontade de indivíduos maiores de sessenta anos de idade de optar pela forma de constituição de família através do casamento, impondo-lhes o regime da separação obrigatória de bens, sob a alegação de que o ordenamento jurídico, mais precisamente o artigo 1.641, inc. II, reflete o caráter protetivo da norma para com a pessoa, é mascarar que a intenção do legislador continuou a expressar a preocupação para com o patrimônio, fugindo à concepção personalista trazida pelo Código Civil de 2002 e, mais do que nunca, ferindo, como dito alhures, o princípio da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, bem como da autonomia da vontade, o qual fora brilhantemente examinado, corroborando a tese de inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para o maior de 70 anos.
4 DA CAPACIDADE CIVIL DO IDOSO
A vulnerabilidade e a fragilidade do idoso, por si só, não servem de argumento para tornar uma pessoa de setenta anos incapaz para os atos da vida civil. Portanto, não existe justificativa para limitar a capacidade de fato do idoso exclusivamente fundamentado no critério da idade, bem como, não se pode afirmar que apenas nessa faixa etária que existem relacionamentos baseados em interesses patrimoniais, pelo contrário, existe interesse em qualquer idade. A problemática surge na ideia de que como um senhor de setenta anos tem liberdade para ocupar cargos de grande influência, mas é considerado incapaz e com pouco discernimento para escolher o próprio regime que lhe aprouver?
Em consonância Rolf, Madaleno (2018, p.171) aduz:
Embora seja pretexto dessa restrição proteger o patrimônio das pessoas com mais idade, para evitar casamentos por mero interesse econômico, não parece esteja o legislador realmente a defender a dignidade humana do septuagenário, precocemente envelhecido numa época em que a expectativa de vida supera, e em muito, os 70 anos. Nem há como presumir a incapacidade do septuagenário apenas porque na sua idade seria, por presunção legal, alvo fácil de um casamento argentário, especialmente porque núpcias de interesse surgem em qualquer idade, apenas não sendo compreensível que uma pessoa possa, por exemplo, atuar como Ministro do Supremo Tribunal Federal, na mais alta Corte do País, com capacidade para julgar o Presidente da República, mas não possa exercer a seu próprio juízo a escolha do regime de bens de seu casamento.
O Código Civil não estabelece como absolutamente ou relativamente incapaz a pessoa maior de 70 anos. Conforme preceitua o art. 3º e 4º no CC, na parte destinada à Teoria Geral, elenca a incapacidade absoluta e a incapacidade relativa. Da seguinte forma:
art. 3ª – São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - (Revogado) ; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
II - (Revogado) ; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - (Revogado) . (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
Conforme exposto, a incapacidade relativa elencada no art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos;
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental, tenham o discernimento reduzido;
IV – os pródigos.
Dessa forma, observa-se que os maiores de 70 anos se encontram incluídos na regra geral que é a capacidade. Analogicamente, se a pessoa com deficiência psíquica, por exemplo, em regra, é capaz para todos os atos da vida civil, porque não o seria o Idoso? Dessa forma, quanto ao idoso, assim como com relação às demais pessoas, a capacidade é presumida e a incapacidade deve ser provada nos casos em que a pessoa idosa não goza mais da faculdade de entender e de querer. Nesse caso, o critério para a relativização da capacidade da pessoa idosa não é a idade, mas sim a deficiência, que deverá seguir as formalidades fixadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
No mesmo sentido são os ensinamentos de Lôbo:
A idade avançada não é por si deficiência ou enfermidade mental. A pessoa pode viver muito tempo como idosa, sem qualquer comprometimento de sua higidez mental. Todos os órgãos da pessoa, inclusive o cérebro, sofrem mutações com o passar dos anos, reduzindo-se as habilidades antes desenvolvidas. Mas essa circunstância natural não é suficiente para suprimir ou reduzir a capacidade de exercício da pessoa, se permanece nela a faculdade de discernir. (LÔBO, 2012, p. 124).
Pode-se, então, afirmar que o idoso não está elencado no rol de incapacidade relativa e absoluta prevista no Código Civil de 2002, porém o mesmo Código estabelece em seu artigo 1.641, inciso II, que o idoso maior de 70 anos de idade, ao contrair casamento, é obrigado a casar sob a égide do regime de separação obrigatória de bens, sendo totalmente contraditório, corroborando a tese da inconstitucionalidade do referido dispositivo. Para QUITELLA, 2016:
Desdobra-se em capacidade de direito, a qual decorre da personalidade jurídica e se adquire com esta, e consiste no grau de aptidão da pessoa para adquirir direitos; e na capacidade de fato, a qual consiste na aptidão da pessoa para praticar, pessoalmente, os atos da vida civil. Justamente por se referir à prática dos atos da vida civil, o conceito de capacidade de fato é o mais operacional. Sobre a capacidade de fato, a regra é no sentido de que toda pessoa que a lei não considere incapaz é capaz.
A restrição também colide com alguns artigos do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03), que condena qualquer tipo de tratamento discriminatório dirigido ao idoso em razão da idade. Conforme o art. 2º do referido estatuto:
O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Assim, a limitação da escolha do regime de bens em razão da idade se constitui muito mais uma sanção do que uma preocupação. Além do mais, restou evidente que o Estatuto do Idoso assegura que o direito ao respeito à pessoa idosa compreende a inviolabilidade de sua autonomia e dignidade. De acordo com Schopenhauer (2012, p. 20):
[...] o velho não é um inválido do tempo, e a velhice não é simplesmente o ocaso da vida, que se tem de protelar o máximo possível, nem a fase do "marasmo" senil e da perda dos sentidos, que conflui na morte. A velhice torna-se, antes, o coroamento da existência, o fim positivo, para o qual o indivíduo se prepara e todo o decorrer da vida se orienta. Se for mesmo verdade que já começamos a envelhecer desde o nascimento [...] a qualquer momento da vida é nossa tarefa envelhecer bem.
Nesse sentido, absurda se mostra tal limitação em função da idade, pois não há uma razão plausível a justificar a imposição deste regime ao maior de sessenta anos de idade. Ao contrário, essas pessoas demonstram ter maior maturidade, experiência de vida pessoal, familiar e profissional, do que um jovem de dezoito anos de idade, ou de dezesseis anos emancipado, a quem é dada a liberdade de escolha do regime de bens, estando tanto um como o outro sujeito aos riscos patrimoniais da ilusão e da farsa.
Desse modo, o simples fato de ter completado setenta anos não justifica a incapacidade. No entendimento de Dias (2013, p.257): para todas as outras previsões legais que impõem a mesma sanção, ao menos existem justificativas de ordem patrimonial. Consegue-se identificar a tentativa de proteger o interesse de alguém. Mas, com relação aos idosos, há presunção júris et de jure de total incapacidade mental. De forma aleatória e sem buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento.
5 DIFERENÇA ENTRE OS REGIME DE BENS
O regime de bens trata-se de uma norma que regula as relações patrimoniais entre um relacionamento afetivo, levando-se em conta não só os bens adquiridos na constância da relação como também aqueles trazidos antes do seu início.
Diniz (2008, p. 155) ensina que o regime de bens é:
o conjunto de normas aplicáveis às relações e interesses econômicos resultantes do casamento. É constituído, portanto, por normas que regem as relações patrimoniais entre marido e mulher, durante o matrimônio. Consiste nas disposições normativas aplicáveis à sociedade conjugal no que concerne aos seus interesses pecuniários. Logo, trata-se do estatuto patrimonial que começa a vigorar desde a data do casamento.
Nesse sentido, insta conceituar, a princípio, o regime de comunhão parcial de bens que se caracteriza pela comunicação dos bens de ambos os cônjuges adquiridos na constância do casamento ou da união estável. De modo que, em regra, os bens e valores que cada cônjuge possuía quando do início da relação, bem como tudo o que receberam por sucessão ou doação não se comunicam. No mais, a comunhão parcial é o regime legal adotado no Código Civil vigente. Em que pese os cônjuges não tendo elaborado pacto antenupcial, prevalece o regime da comunhão parcial, igualmente nos casos em que é nulo o pacto antenupcial.
No regime da comunhão universal de bens, que antigamente era o regime considerado legal pelo Código Civil de 1916, até a entrada em vigor da Lei do divórcio, prevalece a máxima ´´tudo é nosso´´, ou seja, tem-se a criação de uma única massa patrimonial, na qual todo o patrimônio anterior ao casamento é agora do casal e os bens futuros, gratuitos ou onerosos irão se comunicar.
Em se tratando de regime de participação final nos aquestos, diferente dos demais, trata-se de uma espécie híbrida, pois traz características tanto do regime de separação convencional, quanto do regime de comunhão parcial de bens, ou seja, nesse regime os bens adquiridos antes do casamento não se comunicam. Na constância do matrimônio, assim como ocorre no regime de separação total de bens, cada cônjuge mantém seu próprio patrimônio, com administração exclusiva de seus bens, inclusive os imóveis, desde que previamente estipulado no pacto antenupcial. No entanto, na eventualidade da dissolução conjugal, serão apurados os aquestos sobre os bens adquiridos de forma onerosa pelo casal.
Paulo Lôbo (2014, p. 325) assim conceitua o regime de participação final nos aquestos:
é um regime sem qualquer tradição na experiência brasileira, dotado de certa complexidade, por agregar elementos da comunhão parcial, separação absoluta e apuração contábil de passivo e ativo. De modo geral, os bens adquiridos antes ou após o casamento constituem patrimônios particulares dos cônjuges, da mesma forma que as dívidas que cada um contrai, mas, na dissolução da sociedade conjugal, os bens são considerados segundo o modelo da comunhão parcial.
O último regime é o da separação de bens, que pode ser convencional ou obrigatório, o qual será detalhado no próximo tópico. Em síntese, no regime de separação convencional de bens, não é possível a comunicação dos bens anteriores ao casamento, nem comunicação dos bens adquiridos durante o matrimônio, nesse caso existem duas massas patrimoniais diferentes.
Nesse sentido, ensina Gonçalves (2012, p. 342):
Quando se convenciona o aludido regime, o casamento não repercute na esfera patrimonial dos cônjuges, pois a incomunicabilidade envolve todos os bens presentes e futuros, frutos e rendimentos, conferindo autonomia a cada um na gestão do próprio patrimônio. Cada consorte conserva a posse e a propriedade dos bens que trouxer para o casamento, bem como os que forem a eles sub-rogados, e dos que cada um adquirir a qualquer título na constância do matrimônio, atendidas as condições do pacto antenupcial.
Em suma, o regime de separação convencional de bens é aquele em que cada cônjuge conserva, com exclusividade, a posse, o domínio e a administração dos seus bens presentes e futuros.
6 A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS
Em que pese a variedade de regimes de casamento previstos no Código Civil, tais como: comunhão parcial, universal, participação final nos aquestos, separação convencional, a separação obrigatória de bens é uma imposição legal para toda união, seja casamento ou união estável, bastando apenas que um dos noivos tenha idade igual ou superior a 70 (setenta) anos, de modo que o patrimônio dos cônjuges ou companheiros não se possam se comunicar.
Segundo Dias (DIAS, 2011, p. 89), trata-se de tentativa de restringir o desejo dos nubentes mediante sanção, configurando verdadeira ameaça.
A forma encontrada pelo legislador para evidenciar sua insatisfação frente à teimosia de quem desobedece ao conselho legal e insiste em realizar o sonho de casar é impor sanções patrimoniais. Os cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória não podem contratar sociedade entre si ou com terceiros. Parece que a intenção do legislador é evitar qualquer possibilidade de entrelaçamento de patrimônios.
A intenção originária desta obrigação, não obstante os debates e discordâncias promovidos pelos estudiosos do tema, era no sentido da aplicação compulsória de um regime de separação de bens baseado na justificativa de que seria necessário proteger o patrimônio de pessoas com mais idade, partindo do contestável pressuposto de que são vulneráveis e estão sujeitos a serem enganados por pessoas ´´interesseiras´´.
Em contrapondo a esse argumento, Farias e Rosenvald (2017, p. 335) afirmam ser desarrazoado e discriminatório o dispositivo 1647, II, do Código Civil, que reduz a autonomia do idoso como sujeito, “em nítida violação aos princípios constitucionais”, além de estabelecer uma restrição que a própria Constituição não fez.
Extrai-se da leitura do artigo 1.641, inciso II, que deste indivíduo é reprimida a liberdade de escolha, independentemente de sua capacidade de discernimento. O contraponto da questão se desdobra pelo fundamento de que na mesma lei que limita sua autonomia de escolha com a imposição do regime de separação obrigatória de bens, permite que esta mesma pessoa possa vender, testar, alienar, ou seja, dispor de todo seu patrimônio pouco importando a idade e se de fato é plenamente capaz de discernir sobre suas decisões. Logo, de imediato se percebe que o legislador intervém de maneira direta na vida privada, tendo o poder de ditar em quais situações que uma pessoa maior de setenta anos tem a capacidade de exercer a sua autonomia da vontade.
Para TARTUCE, 2014, p. 138, o inciso II visa, supostamente, à tutela do idoso, potencial vítima de um golpe do baú, em geral, praticado por pessoa mais jovem, com más intenções. De qualquer forma, até para sustentar a tese de inconstitucionalidade a seguir demonstrada, a este autor parece que a norma tende a proteger não o idoso, mas os seus interesses patrimoniais de seus herdeiros, que, muitas vezes, à espreita, esperam a morte do familiar e o recebimento do acervo patrimonial. De imediato, insta notar que o casamento para o idoso, NÃO TRARÁ PREJUÍZOS AFETIVOS, MAS VANTAGENS, AINDA MAIS SE CONTRAÍDO COM PESSOA MAIS JOVEM. Vale ainda se lembrar do antigo provérbio a respeito da herança: filho bom não precisa, o filho ruim não merece”.
Por outro lado, é espantoso e incompreensível, no estágio de desenvolvimento da sociedade, o Código Civil de 2002 reproduzir dispositivo anacrônico e injusto que o Código Civil de 1916 previa em um período em que ainda havia a preponderância do patrimônio em dissonância ao valor do indivíduo como pessoa humana, mantendo a proibição da opção de escolha do regime de bens ao contraente maior de setenta anos de idade, conforme se constata pela leitura do artigo 1.641, inc. II, numa época em que se prioriza pela repersonalização das relações familiares, com a supervalorização da pessoa, compreendendo que ela está acima do patrimônio por não ter um preço, mas sim uma dignidade. Para Madaleno (2013, p. 67):
causa o Estado Democrático de Direito dano irreparável à cidadania do idoso ao constrangê-lo com a restrição de seus direitos; ao monitorar e desconsiderar a sua vontade na suposição de sua proteção, e acreditar estar defendendo o seu patrimônio, sem perceber que fere de morte o mais precioso atributo humano depois da vida, representado pelo respeito constitucional á dignidade da pessoa humana, sem limite em razão da idade.
Urge destacar que, manifestações jurisprudenciais reconheceram a violação aos princípios constitucionais, a exemplo o posicionamento adotado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em decisão proferida em março de 2014, Relator Desembargador José Antonino Baía Borges.
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIREITO CIVIL - CASAMENTO - CÔNJUGE MAIOR DE SESSENTA ANOS - REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - ART. 258, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 3.071/16 - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE HUMANA. - É inconstitucional a imposição do regime de separação obrigatória de bens no casamento do maior de sessenta anos, por violação aos princípios da igualdade e dignidade humana. (MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça, Arg. Inconstitucionalidade nº 1.072.09649733-5/002- Relator: Des. José Antonino Baía Borges, 2014).
No mais, a norma que impede os maiores de setenta anos de escolherem o seu regime de bens cria, ainda, que indiretamente, uma sensação de incapacidade de exercício de direito. Para Lôbo (2014, p.295):
além de sua inconsistência moral e inconstitucional, a norma que impede aos maiores de 70 anos liberdade de escolha do regime de bens cria, indiretamente uma incapacidade de exercício de direito, sem o devido processo legal, que permita o Poder Judiciário averiguar se é caso ou não de interdição do nubente idoso. A idade avançada por si só, não gera incapacidade civil. A norma é preconceituosa, na medida em que veda o direito ao amor, ao afeto matrimonial e à expressão plena dos sentimentos da pessoa idosa.
Alfim, imperioso destacar que a vedação presente no dispositivo fere também um dos princípios basilares do direito de família, que é o princípio da afetividade, que passou a ser reconhecido no sistema jurídico brasileiro. De modo que, com sua inserção no ordenamento passou-se a dar mais importância ao afeto e a relação individual na família, havendo desprendimento de laços biológicos, idade, sexo ou de qualquer preconceito. Sendo assim, todo o impedimento, discriminação, se torna inaceitável e contraditório, quando o que mais deveria importar é o sentimento daqueles que resolveram constituir uma família.
Para Madaleno (2018, p.146)
O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana.
Diante de todos os argumentos e de tudo o que fora exposto neste estudo, não há como não reconhecer a inconstitucionalidade do regime da separação obrigatória de bens imposta para os nubentes maiores de setenta anos.
7 CONCLUSÃO
As questões e fundamentos abordados têm como principal justificativa a primazia da preservação da autonomia de escolha do maior de 70 anos que sobre si recai uma imposição descabida do legislador que afronta princípios garantidores que salvaguardam a dignidade de qualquer ser humano.
É clarividente que a intenção do legislador quanto ao dispositivo que impõe o regime de separação obrigatória de bens ao indivíduo que atingiu determinada idade, baseia-se, sobretudo na ideia de uma proteção ao idoso em face de qualquer relacionamento constituído sob a égide de interesse em auferir vantagens econômicas.
Todavia, é de se questionar até em que momento essa proteção exacerbada sobrevém a autonomia do idoso sem o prejudicar, ou melhor, sem reprimi-lo de exercer seus direitos fundamentais, tendo em vista que fora deixada de lado a questão afetiva do idoso, impossibilitando-o de viver livremente suas escolhas de vida, reduzindo-o a incapacidade, não podendo escolher o seu próprio regime de bens.
Neste diapasão, vê-se que a obrigatoriedade deste regime de casamento, viola diretamente os princípios constitucionais, limitando a autonomia do indivíduo e principalmente ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana que dispõe que não deve haver nenhum tipo de distinção entre as pessoas.
Outrora, verifica-se ainda que a sociedade moderna, bem como o legislador levando-se em conta inúmeros avanços sociais ainda se mostram demasiadamente arcaicos, preconceituosos e conservadores em alguns pontos, um deles, a imposição do regime da separação obrigatória de bens aos nubentes maiores de 70 anos.
Sendo assim, em valorização a principiologia constitucional, o posicionamento é pela inconstitucionalidade da norma que institui o regime legal da separação de bens, tendo-se em vista que tal dispositivo fere a autodeterminação da pessoa, que objetiva privilegiar dispositivos legais que visam ao interesse pessoal, quais sejam o afeto e a vontade às normas que resguardam questões meramente patrimoniais.
Urge destacar que o vigente Código Civil, na iminência de abandonar os ideais patrimonialistas que permearam o revogado diploma de 1916, mostrou-se incapacitado quanto à evolução do direito, caminhando na contramão dos princípios constitucionais, notadamente do princípio da autonomia da vontade e da autodeterminação da pessoa, ao instituir o regime da separação obrigatória de bens aos nubentes com idade superior a 60 anos, majorando posteriormente para 70, o que se revela, frise-se, inconstitucional, por privilegiar a tutela de direito patrimonial, em sua natureza essencialmente disponível em detrimento da tutela da dignidade da pessoa humana, na qual se inserem a autonomia da vontade, o direito à autodeterminação e a afetividade, além de se constituir uma discriminação injustificável, qual seja, a incapacidade do idoso simplesmente em razão da idade, marginalizando-o em relação a um patrimônio que ele mesmo foi capaz para construir, gerir e preservar até essa idade.
Por derradeiro, a idade avançada, por si só, não pressupõe a incapacidade do indivíduo de exercer todos os atos de sua vida civil. Nesse sentido, os idosos têm assegurado o direito constitucional de envelhecer com dignidade. No mais, as pessoas idosas detêm algo que nenhum jovem possui: a experiência de vida!
8 REFERÊNCIAS
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Artigo publicado em 01/12/2021 e republicado em 07/06/2024
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Faculdade Metropolitana de Manaus- FAMETRO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Mikaelly Viana. A inconstitucionalidade da obrigatoriedade do regime de separação total de bens para maiores de 70 anos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2024, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57745/a-inconstitucionalidade-da-obrigatoriedade-do-regime-de-separao-total-de-bens-para-maiores-de-70-anos. Acesso em: 21 nov 2024.
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