GUILHERME SABINO NASCIMENTO SIDRÔNIO DE SANTANA[1]
(coautor)
RESUMO: A conduta de “Lavar dinheiro” consiste na atividade de afastamento do capital da sua origem ilícita para que, maquiado como se lícito fosse, possa efetivamente ser utilizado e recolocado no mercado. A criação dessa crime parte da ideia de que o agente precisa disfarçar a origem dos valores, desvinculando o dinheiro da sua procedência delituosa, a fim de poder gozá-lo sem riscos. Ocorre que, muitas vezes, o agente atua em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente, ou seja, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, objetivando não ser punido pelos atos cometidos. Dentro desse contexto, no sistema jurídico do common law, surgiu a Teoria da Cegueira Deliberada, que descreve uma situação de cegueira que se dá quando o agente, voluntariamente, age em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta. Entretanto, essa teoria precisou se adaptar ao sistema do civil law, através de institutos parecidos, como o dolo eventual ou culpa consciente. Desta forma, a presente pesquisa teve o propósito de analisar a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, no contexto da prática de crimes de Lavagem de Capitais. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cuja metodologia empregada consiste em pesquisa bibliográfica, principalmente nas áreas jurídicas de Direito Processual Penal, utilizando-se de estudos jurisprudenciais. Ao final, conclui-se que a teoria pode ser equiparada, no nosso ordenamento, ao instituto do dolo eventual.
Palavras-Chave: Lavagem de Capitais. Cegueira Deliberada.
ABSTRACT: The conduct of “Money Laundering” consists of the activity of removing capital from its illicit origin so that, made up as if it were licit, it can effectively be used and put back on the market. The creation of this crime is based on the idea that the agent needs to disguise the origin of the values, separating the money from its criminal origin, in order to be able to enjoy it without risk. It happens that, often, the agent acts in a situation of ignorance, creating obstacles, consciously, that is, the offender causes their ignorance about the illicit, aiming not to be punished for the committed acts. Within this context, in the common law legal system, the Deliberate Blindness Theory emerged, which describes a situation of blindness that occurs when the agent voluntarily acts in a situation of ignorance, consciously creating obstacles to achieve a greater degree of certainty about the potential illegality of their conduct. However, this theory had to be adapted to the civil law system, through similar institutes, such as eventual intent or conscious guilt. Thus, this research aimed to analyze the application of the Theory of Deliberate Blindness, in the context of the practice of Money Laundering crimes. This is a descriptive research, whose methodology used consists of bibliographical research, mainly in the legal areas of Criminal Procedural Law, using jurisprudential studies. In the end, it is concluded that theory can be equated, in our legal system, with the institute of eventual intent.
Keywords: Money Laundering. Wilfull Blindness.
INTRODUÇÃO
A tipificação das condutas que importam em lavagem de capitais foi positivada na Lei n. 9.613/98, e resultou de acordos assumidos pelo Brasil no plano internacional, através das Convenções de Viena, de Palermo e de Mérida. A conduta de “Lavar dinheiro” significa desvincular ou afastar o capital da sua origem ilícita para que, maquiado como se lícito fosse, possa efetivamente ser utilizado no mercado. A criação desse tipo penal parte da ideia de que o agente precisa disfarçar a origem dos valores, desvinculando o dinheiro da sua procedência delituosa, a fim de poder gozá-lo sem riscos.
Ocorre que, nem sempre quem pratica a Lavagem de Capitais tem real ciência de que o proveito obtido é resultado de infração penal. Muitas vezes o agente, voluntariamente, age em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta. Ou seja, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância passa a equivaler-se, no nosso ordenamento, aos institutos do dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.
Dessa forma, a presente pesquisa teve o propósito de analisar a Teoria da Cegueira Deliberada, também conhecida como doutrina da cegueira voluntária (willful blindness); instruções de avestruz (ostrich instructions); doutrina do ato de ignorância consciente; evitação da consciência (conscious avoidance doctrine); do afastamento da consciência (conscious avoidance), no contexto da prática de crimes de Lavagem de Capitais.
Este trabalho consiste em Pesquisa Básica ou Pura, porque não atua de forma interventiva ou transforma a realidade atual, mas supre uma necessidade intelectual do pesquisador em compreender e conhecer determinados fenômenos (BARROS e LEHFELD, 2014). Quanto aos objetivos, trata-se de Pesquisa Descritiva, pois consiste em um estudo detalhado, com coleta, análise e interpretação de dados, sem a interação ou envolvimento do pesquisador no assunto analisado. Quanto aos procedimentos técnicos, este estudo caracteriza-se por ser uma Pesquisa Bibliográfica, realizada precipuamente na área do Direito Processual Penal, que surgiu a partir de produtos científicos já publicados, constituídos por artigos de periódicos, livros, capítulos de livros e, atualmente com material virtual, disponível na Internet.
1. DA LAVAGEM DE CAPITAIS: OCULTAÇÃO DE BENS, DIREITOS E VALORES
Conforme ensina Lima (2020, p. 646), a expressão "lavagem de dinheiro", em inglês, money laundering, originou-se nos Estados Unidos a partir da década de 1920, época em que lavanderias de Chicago eram utilizadas por gangsters para maquiar a origem ilícita do dinheiro que faturavam, arrecadado com a venda ilegal de drogas e bebidas. Assim, por intermédio de um comércio legalizado, buscava-se justificar a origem criminosa do dinheiro. O uso metafórico da palavra “lavar” simboliza a necessidade de que o dinheiro sujo, obtido como produto de infração penal, pode ser transformado, através da atribuição de aparência lícita, apagando o rastro espúrio.
O interesse em conter tais práticas é mundial. A tipificação das condutas que importam em lavagem, positivadas na Lei n. 9.613/98, resultam de compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional, através das Convenções de Viena, de Palermo e de Mérida. Desse modo, “lavar dinheiro” é a atividade de desvinculação ou afastamento do capital da sua origem ilícita para que, maquiado como se lícito fosse, possa efetivamente ser utilizado, aproveitado e recolocado no mercado. A criação desse tipo penal parte da ideia de que o agente precisa disfarçar a origem dos valores, desvinculando o dinheiro da sua procedência delituosa, a fim de poder gozá-lo sem riscos (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1599).
Para fins didáticos, divide-se o processo de lavagem em três fases. Entretanto, para a consumação do delito, não se exige a ocorrência de todas elas. Na primeira fase, intitulada como colocação ou placement, separa-se fisicamente o dinheiro dos autores do crime, através de depósitos em bancos; trocas por moedas estrangeiras; transferências para paraísos fiscais, aquisição de bens como imóveis, joias, obras de arte, entre outras condutas. Na segunda fase, denominada de dissimulação ou layering, busca-se multiplicar as condutas da primeira fase para que se perca, definitivamente, a origem do dinheiro, para que não se possa identificar a origem ilícita. Exemplo de conduta é realizar sucessivas transferências ou empréstimos, para que se perca a trilha do dinheiro. Quanto a terceira fase, designada de integração, integration ou recycling, o dinheiro é empregado em negócios lícitos, como por exemplo, na compra de bens (empresas em funcionamento, imóveis, entre outros) ou simulações de serviços de difícil mensuração, como por exemplo, prestação de consultorias (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1600).
Trata-se de crime pluriofensivo, atingindo a ordem econômica, a administração da justiça e o bem jurídico protegido pela infração penal antecedente. Quanto ao sujeito ativo do crime, classifica-se como crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive pela que efetua a infração penal antecedente, embora a participação no delito antecedente não seja condição imprescindível para ser autor de crimes de lavagem. As pessoas jurídicas não praticam tal infração, apenas as físicas. Quanto ao sujeito passivo, é a coletividade, através do Estado, e também o sujeito que sofreu prejuízo econômico com a prática da conduta (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1603).
Convém destacar que a participação na infração antecedente não é condição indispensável para que se possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de capitais. Apenas se exige o conhecimento quanto à origem ilícita dos valores, sendo possível que o agente responda pelo crime de lavagem, mesmo sem ter concorrido para a prática da infração antecedente (LIMA, 2020, p. 647). Além disso, segundo Lima (2020, p. 646), nos casos em que o autor da lavagem é o mesmo autor da infração antecedente, ele responderá por ambos os delitos, em concurso material, com a aplicação cumulativa das penas (CP, art. 69). Entretanto, se praticá-los em uma mesma ação, irá incorrer em concurso formal impróprio (CP, art. 70, última parte).
Seguindo o raciocínio, para que a lavagem possa ocorrer, é necessário que primeiro ocorra uma outra infração penal, ou seja uma “infração penal antecedente”. Significa que se trata de delito acessório ou parasitário, pois está ligado à um delito anterior. O Juiz deve verificar se há indícios da ocorrência dessa infração penal antecedente, não sendo necessário condenação prévia no delito principal, nem que ele seja efetivamente consumado. Também é conveniente dizer que esse delito principal pode ser de qualquer natureza, inclusive de lavagem, o que caracteriza a chamada “lavagem em cadeia” (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1604).
A conduta delituosa, de acordo com o art. 1º da Lei de Lavagem de Capitas, traduz-se em: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Ou seja, os verbos das condutas passam uma ideia de esconder, simular, encobrir, sonegar, camuflar, entre outros sinônimos (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1606).
Além disso, não há forma culposa para o crime, sendo o elemento subjetivo o dolo. O fim especial é justamente a vontade de ocultar e dissimular. Logo, por dolo direto entende-se o que o autor almeja diretamente, o resultado, seja como o fim proposto (dolo direto de 1 ° grau), seja como consequência necessária dos meios escolhidos (dolo direto de 2° grau ou dolo de consequências necessárias). Por outro lado, fala-se em dolo eventual quando o agente, não querendo diretamente a produção do resultado, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco da produção, já o aceitando (LIMA, 2020, p. 659).
É importante ressaltar que, quando o sujeito atua, desconhecendo ou ignorando que os bens sobre os quais recai sua conduta se originam de uma infração penal antecedente, ele incorrerá em erro de tipo. Nesse caso, tanto o erro invencível (escusável, qualquer um poderia errar) ou vencível (inescusável, qualquer um poderia evitar), excluiria o dolo. Se o erro sobre os elementos do tipo for vencível, a infração será imputada na modalidade culposa, o que não é possível no crime de lavagem de capitais,
que admite sua punição exclusivamente a título de dolo (LIMA, 2020, p. 658).
Com efeito, o dolo eventual é admitido. É importante pontuar que aceitar o dolo eventual implica em acatar a ocorrência do crime quando o lavador do dinheiro não tem a certeza de que o objeto da lavagem é produto de atividade criminosa, mas assume o risco de que os bens tenham origem criminosa, com base no indicativo dado pelas circunstâncias do fato (GONÇALVES e BALTAZAR JÚNIOR, 2021, p. 1612).
Segundo aduz Lima (2020, p. 660), o problema resultante da aceitação do dolo eventual no delito de lavagem de capitais reside em sua proximidade com a culpa consciente, que configuraria um indiferente penal por ausência de previsão legal da modalidade culposa de lavagem no ordenamento. De se ver o grau de dificuldade quanto à comprovação do elemento subjetivo da lavagem de capitais, sobretudo devido à existência de uma linha muito tênue a distinguir o dolo eventual da culpa consciente. É bem verdade que, no âmbito material, a distinção se dá pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. No entanto, é difícil conciliar a comprovação desse dolo eventual sem violar princípios, como o da presunção de inocência e vedação da responsabilidade penal objetiva.
Vale lembrar, por fim, que utilizar os ganhos obtidos com a infração antecedente não caracteriza a lavagem de capitais. Se o criminoso usa o dinheiro obtido com a prática de crimes para comprar imóveis em seu próprio nome, ou se gasta o dinheiro obtido em viagens ou restaurantes, isto por si só não é suficiente. Em síntese, o simples usufruto do produto ou proveito da infração antecedente não tipifica o crime em pauta, até porque trata-se do mero aproveitamento do produto do crime. A punição somente se justifica quando ela não é desdobramento natural da ação criminosa, exigindo-se ação específica e dolo específico para concretizar a lavagem (LIMA, 2020, p. 652).
2- APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA, WILFULL BLINDNESS OU OSTRICH INSTRUCTIONS EM CRIMES DE LAVAGEM DE CAPITAIS
Segundo Régis (2016), nos Estados Unidos, desenvolveu-se a Teoria da Cegueira Deliberada, pela jurisprudência, para as hipóteses em que aquele que é ciente da tipicidade de sua conduta, coloca-se em situação de ignorância deliberada, para sair impune por tal ato. Entretanto, vale lembrar que o sistema penal Norte-Americano se baseia no common law, que tem suas próprias características e se difere do civil law, adotado no Brasil. Destaca-se que, no common law, não há clareza entre elementos objetivos do tipo, tipicidade objetiva, tipicidade subjetiva nem o conceito de dolo. O direito dessa origem se preocupa com a intenção criminosa (má-intenção ou mens rea). Procópio e Carvalho (2020, p. 296) conceituam a teoria da seguinte forma:
A teoria da cegueira deliberada consiste em uma doutrina de origem nos Estados Unidos que equipara a ação de um agente que provoca um desconhecimento do ato ilícito que pretende realizar, colocando obstáculos para ter reais noções, como forma de alegar, caso seja repreendido, que não sabia da ilicitude do ato que cometia, com a ação de um agente que tem conhecimento do resultado ilícito e ainda assim o realiza. Caracteriza-se como uma ignorância provocada para se escusar a lei e das possíveis punições que caberiam à determinado fato, então, segundo a teoria, os agentes evitam ao máximo o conhecimento da ilicitude do objeto material do crime que pretendem cometer, para que, dessa forma, possam alegar um estado de ignorância quanto à ilegitimidade dos atos cometidos.
Para Santo (2017), essa situação de cegueira se dá quando o agente, voluntariamente, age em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta. Ou seja, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância passa a equivaler-se, no nosso ordenamento, aos institutos do dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.
Muitos são os nomes atribuídos a esta teoria, como por exemplo: doutrina da cegueira voluntária (willful blindness); instruções de avestruz (ostrich instructions); a doutrina do ato de ignorância consciente; evitação da consciência (conscious avoidance doctrine); do afastamento da consciência (conscious avoidance), entre outros nomes que entendem os estudiosos do tema. Este instituto busca punir aqueles que, deliberadamente, “fingem” não conhecer a ilicitude do seu ato, para, a partir de então, buscar vantagens indevidas em cima deles (RÉGIS, 2016).
Como o tipo penal da lavagem de capitais traz como elementar a infração penal antecedente, na hipótese de o agente desconhecer a procedência ilícita dos bens, faltar-lhe-á o dolo de lavagem, acarretando na atipicidade de sua conduta, ainda que o erro de tipo seja evitável, já que o crime não é punido a título culposo. Por isso, é comum que o responsável pela lavagem de capitais procure evitar a consciência quanto à origem ilícita dos valores por ele mascarados (LIMA, 2020, p. 662).
A Teoria da Cegueira Deliberada pode ser aplicada nas hipóteses em que o agente tem consciência da possível origem ilícita dos bens por ele ocultados ou dissimulados, mas, mesmo assim, cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar sua representação acerca dos fatos. Desta forma, aquele que renuncia a adquirir um conhecimento hábil a subsidiar a imputação dolosa de um crime acaba por responder como se tivesse tal conhecimento (LIMA, 2020, p. 662-663).
No Brasil a teoria se parece com o instituto do dolo eventual, quando comprovado que o autor da lavagem de capitais tenha deliberado pela escolha de permanecer ignorante a respeito de todos os fatos quando tinha essa possibilidade. Em outras palavras, conquanto tivesse condições de aprofundar seu conhecimento quanto à origem dos bens, direitos ou valores, preferiu permanecer alheio a esse conhecimento. A teoria também se parece com o instituto da actio libera in causa, positivada no art. 28, II, do CP, que aduz que ninguém pode beneficiar-se de uma causa de exclusão da responsabilidade penal provocada por si próprio (LIMA, 2020, p. 663).
Entretanto, segundo Callegari e Scariot (2020), a Cegueira Deliberada não trabalha com assunção ou aceitação de um provável resultado. A teoria age como um alargamento do conceito do “saber” e “conhecer”, e possui pressupostos próprios: a) o réu deve acreditar, em seu íntimo, que haja uma alta probabilidade de existir um fato criminoso; b) o réu deve tomar medidas deliberadas para evitar conhecer desse fato. Esses requisitos vão além de imprudência e negligência, limitando o alcance da referida teoria. É bem verdade que essa teoria se revelou flexível para a determinação da responsabilidade penal no sistema consuetudinário. Entretanto, quando transportada para o sistema positivista, a cegueira encontra obstáculos dogmáticos, sobretudo na perspectiva da teoria geral do crime a qual é de base finalista. Por isso, no direito brasileiro, a jurisprudência passou a considerar a ignorância deliberada equivalente ao dolo eventual.
Tratando-se da aplicação concreta da teoria, tem-se o caso julgado pelo o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, da ação penal R 5520-CE 2005.81.00.014586-0. Segundo Lima (2020, p. 663):
No Brasil, a teoria da cegueira deliberada foi efetivamente utilizada para fundamentar as condenações por lavagem de capitais nos autos do
Processo Criminal nº 2005.81.00.014586-0, relativo à subtração da quantia de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais) do interior do Banco Central do Brasil localizado na cidade de Fortaleza/CE, cuja sentença em 1 ª instância foi proferida pelo Juiz Federal Danilo Fontenelle Sampaio. Referida teoria foi utilizada como fundamento para a condenação de dois empresários, proprietários de uma concessionária de veículos, pela prática do crime do art. 1 º, V e VII, § 1 º, I, § 2°, I e II, da Lei 9.613/98, em virtude de terem recebido a quantia de R$ 980.000,00 (novecentos e oitenta mil reais), em notas de cinquenta reais em sacos de náilon, pela compra de 11 (onze) veículos, dentre eles 03 (três) Mitsubish 1200, 02 (dois) Mitsubish Pajero Sport, e 01 (um) pajero Full, sendo que os acusados teriam recebido a quantia sem questionamento, nem mesmo quando a quantia
de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) foi deixada pelo intermediário para "fut uras compras", tendo também se abstido de comunicar às autoridades responsáveis a movimentação suspeita. (LIMA, 2020, p. 663).
Conforme podemos perceber, a teoria fundamentou a condenação dos sujeitos, em sede de primeiro grau. Mas a sentença foi reformada pelo Tribunal, que entendeu se tratar de responsabilidade penal objetiva, vedada por nosso ordenamento, absolvendo os sujeitos. O Tribunal concluiu que não havia elementos concretos na sentença recorrida que demonstrassem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei nº 9.613/98. De acordo com o entendimento que prevaleceu, a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada depende da sua adequação ao ordenamento jurídico nacional, que pode ser perfeitamente adotada, desde que o tipo legal admita a punição a título de dolo eventual.
Outro caso de aplicação da teoria no Brasil foi a Ação Penal 470, conhecida como mensalão. Nessa situação concreta, o Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na Teoria da Cegueira Deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. Vejamos trecho do acórdão:
O Direito Comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual, merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo Direito anglo-saxão (willful blindness doctrine). Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte- -americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa. Nesse sentido, há vários precedentes, como US vs. Campbell, de 1992, da Corte de Apelação Federal do Quarto Circuito, US vs. Rivera Rodriguez, de 2003, da Corte de Apelação Federal do Terceiro Circuito, US vs. Cunan, de 1998, da Corte de Apelação Federal do Primeiro Circuito. Embora se trate de construção da common law, o Supremo Tribunal Espanhol, corte da tradição da civil law, acolheu a doutrina em questão na Sentencia 22/2005, em caso de lavagem de dinheiro, equiparando a cegueira deliberada ao dolo eventual, também presente no Direito brasileiro, Na hipótese sub judice, há elementos probatórios suficientes 124 para concluir por agir doloso - se não com dolo direto, pelo menos com dolo eventual -,quanto a Pedro Corrêa, Pedro Henry, Valdemar da Costa Neto, Jacinto Lamas, estes dois na extensão do voto do Revisor, Enivaldo Quadrado e a Breno Fischberg.
Conforme Santo (2017), há incompatibilidade na Teoria da Cegueira Deliberada com o sistema jurídico romano-germânico ou civil law, que funda a sistemática brasileira, positivista, possuindo inclusive, através da legislação, a definição dos pressupostos da imputação subjetiva na legislação, art. 18 do Código Penal Brasileiro. A Teoria da Cegueira Deliberada é aplicada em um sistema jurídico consuetudinário, conforme a conveniência do caso concreto, deixando de apresentar um fundamento sistêmico pronto e acabado uma vez que não há definição normativa do elemento subjetivo que defina o dolo e a negligência, diferentemente do sistema continental europeu e brasileiro.
Nesse aspecto, acrescenta VALLÈS (2013) que essa teoria promove uma flexibilização na responsabilidade subjetiva, aumentando a possibilidade, inclusive, para imputar responsabilidade a quem de fato não possui. Portanto, para alguns autores, há incompatibilidade dessa teoria com o sistema jurídico de imputação subjetiva existente no Brasil porque exige, para sua aplicação, a redefinição do conteúdo do dolo e da negligencia, redefinido o tipo subjetivo. Ademais, explica VALENTE (2017) que essa teoria também promove a violação dos Princípios da Lesividade e da Ofensividade, eis que vedam a criminalização de condutas meramente morais ou inadequadas socialmente. A ampliação da responsabilidade penal, nesse caso, gera a deformação da dogmática penal.
Assim, a Teoria da Cegueira Deliberada deve ser utilizada com cautela, para que não haja uma ampliação demasiada sobre o conceito de dolo. Afinal, a garantia do devido processo legal impõe ao órgão acusador comprovar a ocorrência do crime. Assim, a teoria não pode ser utilizada como mera alternativa quando não se consegue comprovar com definitividade a consciência do agente quanto aos elementos de sua conduta (ASSUNPÇÂO, 2017, p. 13).
Para Procópio e Carvalho (2020, p. 307), em países de tradição de common law que não trabalham elementos dolo e culpa, a teoria confere uma vantagem nas decisões e julgamentos, pois ela se direciona àqueles que buscam uma forma de burlar a lei para se beneficiar com bens ilícitos. Sabe-se que é difícil descrever com precisão a mentalidade de um sujeito e o seu desejo apenas por meio de indícios e deduções, e, no nosso ordenamento, existe uma segurança conferida pela lei, em que a dúvida beneficia o réu.
Por fim, a única utilidade que a Teoria da Cegueira Deliberada tem no Brasil é para embasar argumentos que poderiam melhorar a definição de dolo eventual. Há quem sustente de plano a não aplicabilidade, em razão do Princípio da Legalidade. Por outro lado, há quem entenda que a aplicabilidade é possível, aperfeiçoando a dogmática à luz de caso concreto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme art. 1º da Lei de Lavagem de capitas, praticar este crime importa em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Não há forma culposa para a prática deste crime, sendo o elemento subjetivo o dolo.
Todavia, há finalidade especial neste dolo, consistente na vontade de maquiar, modificar, ocultar e dissimular o percurso percorrido pelo proveito do crime, de modo a torná-lo aparentemente lícito. Desta feita, o dolo direto significa que o autor almeja diretamente o resultado, seja como o fim proposto (dolo de primeiro grau), seja como consequência necessária dos meios escolhidos (dolo de segundo grau). Por outro lado, fala-se em dolo eventual quando o agente, não querendo diretamente a produção do resultado, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco da produção, já o aceitando.
Quando o sujeito atua, desconhecendo ou ignorando que os bens sobre os quais recai sua conduta se originam de uma infração penal antecedente, ele incorre em erro de tipo. Nesse caso, tanto o erro invencível ou vencível, excluiria o dolo. Se o erro sobre os elementos do tipo for vencível, a infração será castigada na modalidade culposa, o que não é possível no crime de lavagem de capitais, que admite sua punição exclusivamente a título de dolo.
Com efeito, o dolo eventual é admitido, mas o problema resultante da aceitação do dolo eventual no delito de lavagem de capitais reside em sua proximidade com a culpa consciente, que, configuraria um indiferente penal, por ausência de previsão legal da modalidade culposa de lavagem no ordenamento. De se ver o grau de dificuldade quanto à comprovação do elemento subjetivo da lavagem de capitais, sobretudo devido à existência de uma linha tênue a distinguir o dolo eventual da culpa consciente. É bem verdade que, no âmbito material, a distinção se dá pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. No entanto, é difícil conciliar a comprovação desse dolo eventual sem violar princípios, como o da presunção de inocência e vedação da responsabilidade penal objetiva.
A Teoria da Cegueira Deliberada, quando importada pelo Brasil, se parece com o instituto do dolo eventual, uma vez que traduz a ideia de que o autor da lavagem de capitais tenha deliberado pela escolha de permanecer ignorante a respeito de todos os fatos quando tinha essa possibilidade. Em outras palavras, conquanto tivesse condições de aprofundar seu conhecimento quanto à origem dos bens, direitos ou valores, preferiu permanecer alheio a esse conhecimento. A teoria também possui semelhanças com o instituto da actio libera in causa, positivada no art. 28, II, do CP, que aduz que ninguém pode beneficiar-se de uma causa de exclusão da responsabilidade penal provocada por si próprio.
Entretanto, a cegueira deliberada, conforme exposto, tem gênese num sistema jurídico de common law, por isso, não trabalha com assunção ou aceitação de um provável resultado. A teoria age ampliando os conceitos do “saber” e “conhecer”, e possui pressupostos próprios: a) o réu deve acreditar, em seu íntimo, que haja uma alta probabilidade de existir um fato criminoso; b) o réu deve tomar medidas deliberadas para evitar conhecer desse fato. Esses requisitos vão além de imprudência e negligência, limitando o alcance da referida teoria. É bem verdade que ela se revelou flexível e fértil para a determinação da responsabilidade penal no sistema consuetudinário. Entretanto, quando transportada para o sistema positivista, a cegueira encontra obstáculos dogmáticos, sobretudo na perspectiva da teoria geral do crime a qual prevalece ser de base finalista. Por isso, no direito brasileiro, a jurisprudência passou a considerar a ignorância deliberada equivalente ao dolo eventual, tendo sido aplicada, no Brasil nos casos da ação penal R 5520-CE 2005.81.00.014586-0 (Assalto ao Banco Central) e Ação Penal 470 (Mensalão).
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[1]Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação PROFINIT/UNIVASF. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Direito da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF. Advogado.
MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
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