Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar o modo como o Brasil agiu em relação ao passado marcado por graves violações de direitos humanos. Pretende-se discutir a ausência de um efetivo processo de justiça de transição no país com a adoção de uma política de esquecimento na pauta da redemocratização.
Palavras-chave: Direitos humanos. Justiça de transição. Política de esquecimento. Redemocratização.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceituando justiça de transição. 3. Democratização e justiça de transição no Brasil. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
Como é sabido, a ditadura militar brasileira foi um período marcado por graves violações de direitos humanos, a despeito dos inúmeros debates reacionários e posições controvertidas sobre a questão. Durante esse período, militares se alternaram no exercício da chefia do Poder Executivo, governando o país por meio de Atos Institucionais, responsáveis por cassação de mandatos e direitos políticos, prisões arbitrárias, atos de censura e exílio de cidadãos contrários ao regime em vigor.
O presente estudo, contudo, não tem a pretensão de exaurir os terríveis crimes perpetrados durante tal contexto, mas analisar e debater as medidas tardias adotadas na transição para o regime democrático no país.
Assim, para se discutir o tema, num primeiro momento o artigo em tela abordará o conceito e as dimensões da justiça transacional numa perspectiva ampla e, em seguida, o enfoque será a compreensão histórica brasileira, apontando para o processo de redemocratização desenhado no Brasil e a escolha racional de uma política do esquecimento, que se mostra insuficiente para a consolidação de uma efetiva transição democrática.
2. CONCEITUANDO JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Nos idos do século XX, vários países atravessaram processos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos, empreendendo mudanças de liberalização política. O elemento comum, a despeito das singularidades dos modelos políticos vigentes, assentou-se na necessidade de se estabelecer ou restabelecer um Estado Democrático de Direito, equacionando as violações perpetradas no período de exceção.
Assim, é importante observar que a finalidade primordial da justiça transacional consiste em promover a construção da paz após um período de conflito e de violação sistemática de direitos humanos, buscando restabelecer direitos e evitar futuras violações em massa.
Nessa senda, denominou-se de “justiça de transição” um conjunto de iniciativas empreendidas por vias internacional e interna nos países em processo de democratização, com esforços para disfarçar um novo regime das práticas do regime anterior, isto é, “um modo popular de caracterizar respostas a abusos do passado que ocorreram no contexto de mudança política (...)”[1].
Partindo dessa perspectiva, infere-se que a efetivação da justiça de transição somente se faz presente diante da adoção de uma série de medidas não taxativas e nem todas exclusivamente jurídicas. Os estudos acadêmicos classificaram tais medidas e experiências concretas em dimensões que passaram a influenciar no modo como as nações organizaram a inserção de novos mecanismos em seus processos internacionais, regionais e locais.
Paulo Abrão[2] assevera que a justiça transicional é composta de, ao menos, quatro dimensões, quais sejam: 1) a reparação; 2) o fortalecimento da verdade e a construção da memória; 3) a regularização da justiça e o restabelecimento da igualdade perante a lei e 4) reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos.
De fato, a transição de regimes demonstra a dificuldade de conciliação entre a proteção aos direitos humanos sistematicamente violados e a construção de um caminho viável para a democracia em relação ao tratamento dos excessos cometidos no período antecedente. Tal dificuldade não é estranha à realidade pátria.
3. DEMOCRATIZAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
A justiça de transição no Brasil transcorreu de forma lenta, gradual e controlada. Tanto é assim que o dever do Estado de investigar, processar e punir os violadores de direitos humanos nunca foi cumprido efetivamente no caso brasileiro (MEZAROBBA, 2009).
O filósofo francês Loic Wacquant (2001, p. 06) ressalta que “a despeito do retorno à democracia constitucional, o Brasil nem sempre construiu um Estado de direito digno do nome”. Dito de outro modo, é como se a ditadura militar continuasse a pesar sobre o funcionamento jurídico-político estatal, contribuindo para a construção e o desenvolvimento de uma cultura política avessa ao Estado de Direito.
A consolidação do processo de abertura política deu-se no final dos anos 70, com a revogação do AI-5, a suspensão da censura e a decretação da anistia aos presos políticos. No pensamento militar, não era desejável uma retomada democrática com ampla participação popular, sob pena de acontecer uma revolução. Foram promulgadas então as leis de anistia (Lei nº 6.683/79) e do pluripartidarismo (Lei nº 6.767/79), que se apresentavam como instrumentos jurídicos tradutores da referida transição.
Nada obstante a sensação de vitória pelas vítimas, grupos e movimentos sociais que lutavam pela aprovação da lei de anistia, fato é que, além de não ser ampla, geral e irrestrita, referido instrumento político-normativo excluía, em verdade, os envolvidos na luta armada, considerados pelo regime autoritário como terroristas. Com efeito, tratou-se de uma autoanistia para os agentes da repressão estatal, uma medida característica de um processo transicional sob o controle do regime anterior.
É possível perceber o quanto o processo transacional brasileiro tem no conceito de anistia - imposta pelo regime de exceção - uma de suas principais características, impossibilitando-se uma plena transição para o Estado de Direito. A não responsabilização dos agentes perpetradores de crimes de Estado e de graves violações de direitos humanos no período de exceção, bem como a imposição de um padrão forçado de esquecimento contrapõem o papel que o Direito deve exercer num contexto de transição de regime autoritário para democrático. A transição brasileira, nesse sentido, opõe-se a outras, como a Argentina, onde existe um claro rechaço ao conjunto de atores que romperam com a legalidade.
Num segundo momento, o processo transicional brasileiro é marcado pelo processo constituinte com a promulgação da Constituição de 1988, ampliando-se a consolidação do sistema político-eleitoral e a garantia dos direitos fundamentais. Inegavelmente, a promulgação da Carta Cidadã é notadamente o marco jurídico mais importante da transição, não sendo, contudo, suficiente para efetivar a tão sonhada transição democrática. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República de 1988 (ADCT) preocupou-se pouquíssimo com problemas de “justiça”, cabendo aos operadores do direito a incumbência de encontrar fórmulas e mecanismos que permitissem a gradual compatibilização do acervo jurídico-normativo do período autoritário anterior com o novo acervo democrático em construção.
Há, assim, um modelo de transição de longa duração controlado por agentes do regime repressor que impossibilitou que as forças democráticas tivessem, ainda em 1988, capacidade para tratar de pautas essenciais de transição.
Não à toa que apenas no período mais atual, pós constituinte e de amadurecimento institucional, que as demandas propriamente ditas por justiça de transição surgiram.
4. CONCLUSÃO
Do quanto exposto, depreende-se que a justiça transacional, em essência, busca olhar para o futuro na expectativa de reformar instituições, promover o aprimoramento dos mecanismos democráticos e fortalecer a democracia no afã de evitar e prevenir violações sistemáticas a direitos humanos.
Nada obstante, no caso do Brasil, o desenvolvimento de uma justiça de transição foi politicamente travado por uma abertura democrática lenta e suave, caracterizada pela manutenção da mentalidade conservadora e autoritária.
Desta feita, a transição brasileira é marcada pela continuidade institucional entre antigo e novo regime, assim como pela manutenção de um pensamento jurídico-político militarizado.
Tem-se, assim, que a efetiva reconciliação democrática não deve estar calcada na cultura do esquecimento, mas sim nos pilares da justiça transacional que têm por escopo a recomposição do Estado e da sociedade.
Não se olvide, dessarte, que somente uma justiça de transição efetiva será capaz de guiar o país para um novo horizonte na história democrática brasileira, fundado no resgate da ordem democrática, da conscientização da sociedade e da garantia dos direitos humanos, além do abandono da cultura do esquecimento e do medo.
5. REFERÊNCIAS
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[1] P.112 apud MEZAROBBA, Glenda. De que se Fala, quando se diz "Justiça de Transição"? BIB. São Paulo, jan. 2009, p. 112.
[2] ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D. As dimensões da Justiça de Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In: A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspectiva nacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011.
Advogada, inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Paraná sob o nº 74.371, formada em 2014 pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes, 2018 e em Direito Tributário pela Faculdade Cidade Verde, 2020. Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2021- presente.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Flavia Augusta rodrigues. Não calarão: a política de tentativa de esquecimento no processo de redemocratização do Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2022, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58555/no-calaro-a-poltica-de-tentativa-de-esquecimento-no-processo-de-redemocratizao-do-brasil. Acesso em: 23 nov 2024.
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