EDY CÉSAR DOS PASSOS JÚNIOR[1]
(coautor)
RESUMO: O presente artigo busca examinar as possibilidades de reconhecimento multiparental no Brasil, considerando o atual ordenamento jurídico. Analisando a possibilidade de inserção da multiparentalidade no registro de nascimento e da coexistência das modalidades socioafetiva e biológica. Foi utilizada a metodologia dedutiva através de pesquisa bibliográfica em livros de doutrinadores jurídicos e aplicadores do Direito, bem como de alguns casos de entendimentos jurisprudenciais, acerca do tema. Onde constatou-se que, atualmente há mecanismos legais que possibilitam a coexistência dos vínculos biológico e afetivo no registro civil quando a multiparentalidade, tanto âmbito extrajudicial, quando há consenso entre as partes e e os envolvidos forem maior de 12 anos, como por via judicial nos casos em que restarem dúvidas acerca do conjunto probatório ou houver menor de 12 anos envolvidos.
Palavras chaves: Afeto, Filiação, Multiparentalidade
ABSTRACT: This article seeks to examine the possibilities of multiparentality recognition in Brazil, considering the current legal system. Analyzing the possibility of inserting multiparentality in birth registration and the coexistence of socio-affective and biological modalities. The deductive methodology was used through bibliographic research in books by legal scholars and law enforcers, as well as some cases of jurisprudential understandings on the subject. Where it was found that, currently, there are legal mechanisms that allow the coexistence of biological and affective bonds in the civil registry when multiparentality, both extrajudicially, when there is consensus between the parties and those involved are over 12 years old, as by judicial means in the cases in which there are doubts about the evidence or there is a minor under 12 years of age involved.
Keywords: Affection, Affiliation, Multiparentality.
INTRODUÇÃO
Em virtude do pluralismo de ideias e dos novos arranjos familiares que foram se estabelecendo ao longo da história, o conceito de família também se ampliou no decorrer do tempo. A Carta Magna de 1988 expandiu esse conceito ao reconhecer como família não mais somente aquela proveniente do matrimonio formal, mas também aquela fruto de uma união estável (artigo 226, § 3º), assim como a possibilidade de a família ser constituída por qualquer dos pais e seus descendentes (artigo 226, § 4º), reafirmando a igualdade entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (artigo 226, § 5º) e estabelecendo o tratamento igualitário dos filhos, sem qualquer designação discriminatória.
Contudo, princípios como da dignidade da pessoa humana, isonomia, afetividade, entre outros, ampliou ainda mais esse conceito e trouxe a tona discussões sobre novos modelos, como o multiparental.
O presente artigo pretende discorrer acerca da MULTIPARENTALIDADE NO REGISTRO CIVIL: A lei de registro público e as novas concepções de parentalidade.
A multiparentalidade caracteriza-se pela possibilidade de um indivíduo incluir em seu assento de nascimento mais de um genitor ou mais de uma genitora. Apesar da Lei de Registros Públicos, n° 6.015, de 1973 não possuir expressamente essa previsão, tal arranjo tem ganho notoriedade em razão de refletir uma realidade atual da sociedade e através da jurisprudência de julgados e provimentos do Conselho Nacional de Justiça.
Diante das novas concepções de família e parentalidade este trabalho visa responder as indagações acerca da multiparentalidade. A Lei de Registros Públicos, n° 6.015, de 1973, mostra-se suficiente para regular as novas concepções de parentalidades ?
Para tanto é necessário analisarmos as leis, os princípios e as doutrinas do atual ordenamento jurídico que regem o direito de família, no intuito de buscar uma melhor compreensão.
Dessa forma, tem se por objetivo geral, Examinar as possibilidades de reconhecimento multiparental no Brasil, considerando o atual ordenamento jurídico. Buscando Compreender através de pesquisa quantitativa os conceitos de família e sua evolução no direito brasileiro, analisar se, os princípios constitucionais e o ordenamento jurídico atual, são suficientes para preencher supostas lacunas da LRP sobre o tema e Identificar como o direito de registro civil multiparental tem sido viabilizado no sistema judiciário.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 é considerada umas das mais avançadas do mundo, sendo uma de suas características a elevação dos direitos sociais ao patamar de direitos constitucionais, base para os direitos fundamentais. Sendo também uma Constituição de base principiológica, contribuiu muito para evolução de garantias e liberdades nas diversas áreas do direito.
O direito de família foi profundamente impactado quando o conceito de família deixou de ser entendido como um núcleo ecônomico e reprodutivo, o qual os entes participante são ligados por um vínculo sanguíneo e passou ser percebido como um núcleo de desenvolvimento humano com base na afetividade e na solidariedade.
Diante dos novos paradigmas, faz-se necessário o estudo dessas novas concepções de parentalidade. Dentre eles, a multiparentalidade, que encontra assento na possibilidade de um indivíduo incluir em seu registro de nascimento mais de um genitor ou mais de uma genitora, tendo como um de seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para o presente estudo, será adotada a metodologia de pesquisa qualitativa, essa abordagem caracteriza-se pelo estudo de fenômenos sociais e do comportamento humano que não podem ser mensurados em equações e estatísticas, por isso será realizado através da análise de literaturas já existentes acerca do tema, sem o objetivo de realizar inferências sobre o mesmo, mas sim, realizar um levantamento de informações com o intuito de responder aos questionamentos delimitados no presente trabalho.
O mesmo será estruturado através da divisão em capítulos para facilitar a localização e compreensão por parte do leitor acerca da evolução do estudo, sendo que o primeiro capítulo irá abranger uma contextualização histórica acerca da família dentro da perspectiva do direito, o segundo irá realizar uma breve análise da legislação dos registros públicos no ordenamento jurídico brasileira, acerca do registro civil e o terceiro capítulo abordará como essas ações de reconhecimento multiparental tem sido viabilizadas na esfera extrajudicial e judicial.
1. CONTEXTO HISTÓRICO
1.1 FAMÍLIA E FILIAÇÃO
O vocábulo família é oriundo de um contexto bastante remoto e bem diferente do conceito que conhecemos atualmente. A expressão surgiu do latim “famulus”, que no contexto da época significava “escravo doméstico”, que indicava um grupo de pessoas ligadas a escravidão agrícola. Enquanto que para o grupo que detinha uma ligação por laços sanguíneos ou emotivos era utilizada a expressão de “família natural”. Lembrando que naquele período as famílias eram regidas por um sistema patriarcal e compostas por pai, mãe e filhos. Na percepção de Ricardo Calderón:
É inegável que a família é antes de tudo uma manifestação sociológica, cultural e social, preexistindo a qualquer categoria jurídica. Estas expressões sociais em dada coletividade são as que são captadas pelo Direito para definir seus conceitos. Tanto é verdade que outras ciências constroem suas definições relacionadas aos agrupamentos familiares diretamente a partir desta realidade fática, o que se dará com a sociologia, antropologia, psicologia, psiquiatria etc. A leitura jurídica retrata apenas um recorte específico desta realidade pelo Direito, em um dado momento e local, para procurar atender à sua finalidade.( Calderón, 2017, pág. 36 ).
O atual conceito de família no Brasil, que abraça não somente as pessoas que possuem laços sanguíneos, mas também de convivência e afeto, é na verdade resultado de um processo de construção que tem se mantido no decorrer da história e que certamente ainda sofrerá alterações.
Em se tratando de direito, suas origens remetem ao direito romano onde as famílias eram regidas pelo princípio da autoridade. “ O pater familias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte ( ius vitae ac necis). Podia, desse modo vendê-los, impor-lhes castigos e penas corporais e até mesmo tira-lhes a vida” ( Gonçalves, 2012, pág. 34 ). Sob esse mesmo prisma a mulher de igual modo era dominada pelo marido que detinha todo o poder sobre a família, podendo até repudiá-la de forma unilateral.
Essa rigidez sofreu flexibilizações a partir do século IV, com a presença do Imperador Constantino que se converteu ao cristianismo e inserindo a partir de então o conceito cristão de família no direito romano, o qual tem por fundamento a observância da moral e de certa forma traz um detrimento ao totalitarismo patriarcal. Acerca dessas mudanças vejamos o que Carlos Roberto Gonçalves explicita:
Durante a idade média as relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único conhecido. Embora as normas romanas continuassem a exercer bastante influencia no tocante ao pátrio poder e as relações patrimoniais entre conjuges, observava-se também a crescente importância de diversas regras de origem germânica. Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica.É notório que o nosso direito de família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como consequência principal da colonização lusa. ( Gonçalves, 2012, pag. 34 )
No Brasil, em 1824, outorga-se a primeira Constituição brasileira em 25 de março, pelo então imperador D. Pedro I, contudo a mesma não trata a cerca de direito de família, mas apenas pontos concernentes a família real, permanecendo a carga da Igreja Católica Apostólica Romana, que havia sido instituída como religião oficial do Brasil, regulamentar com base em seus ordenamentos e crenças os assuntos referentes a família e casamentos. Ou seja, até o presente momento, não existia a regulamentação do casamento civil, sendo reconhecidas somente as uniões provenientes do matrimônio católico. Sofrendo alterações apenas em 1890, através do decreto nº 181, que instituiu a união civil.
Em 1916, apesar de notada evolução, o conceito de família trazido pelo código civil, ainda trazia uma visão bastante patriarcal. Em seu artigo 233, “ O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”. Contudo, percebe-se que já há a instituição da colaboração da mulher na administração daquilo de interesse comum do casal e dos filhos. Ainda que esse conceito não representasse o ideal, já foi um avanço, porém permaneceu espelhando o período em que foi instituído.
No ano de 1988 com o Advento de uma nova Constituição Federal, trouxe o reconhecimento da união estável em seu artigo 226, § 3º, “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. que até então, apenas encontrava amparo através da Súmula 380 do STF, que tratava a união estável com espécie de sociedade. Para Ricardo Calderón:
A pluralidade de formas familiares admitida na Constituição atendeu a um reclame social há muito pulsante, que não se conformava mais com modelos únicos, o que já era desconexo da realidade. A partir de então, admitiram-se diversas entidades familiares com dignidade constitucional, com a jurisprudência contribuindo ativamente para isso. ( Calderón, 2017, pág. 51 ).
Diante da diversidade de arranjos familiares é consolidado o entendimento da doutrina e da jurisprudência que o conceito de família é muito mais amplo que o expresso no Art. 226, § 3º, da CF/1988, sendo este considerado apenas um rol exemplificativo, pois o que define família vai além dos laços sanguíneos, mas está diretamente ligado por um afeto que se difere de outros, como amizade, conforme destaca Sergio Resende de Barros:
é uma espécie de afeto que, enquanto existe, conjuga intimamente duas ou mais pessoas para uma vida em comum. É o afeto que define a entidade familiar. Mas não um afeto qualquer Se fosse qualquer afeto, uma simples amizade seria família, ainda que sem convívio. O conceito de família seria estendido com inadmissível elasticidade. ( Resende, 2002, pág. 08 ).
A partir do reconhecimento dessa diversidade de estruturas familiares e do elo que liga estes entes, a multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de um indivíduo incluir em seu assento de nascimento mais de um genitor ou mais de uma genitora, algo que na prática já pode ser observado em diversos arranjos familiares, ganha ainda mais notoriedade.
2. A LEI DE REGISTROS PÚBLICOS BRASILEIRA
2.1 DO ASSENTO DE NASCIMENTO E FILIAÇÕES
A lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973, Lei de Registros Públicos, é anterior a atual Carta Magna gerando certo distoamento em relação há algumas temáticas, pois reflete ainda muito da sociedade do período em que foi constituída, principalmente no que tange o direito de família em relação a filiação e assentos de nascimento. Pois a mesma foi criada cerca de uma década, antes do teste de DNA (ácido desoxirribonucléico), criado em 1985 pelo geneticista Alec Jeffreys, na Universidade de Leicester, na Inglaterra, que entre outras diversas finalidades, trouxe a possibilidade de se realizar o teste de paternidade, que consiste em comparar o material genético de um suposto pai e de um suposto filho, para averiguação do vínculo biológico.
Contudo, o vínculo de filiação vai além da genética, segundo VENOSA, citado por GENTIL (2021, pág. 155), a origem da filiação pode ser:
a) Genética ou Biológica: é a que promove a identificação simples da procriação biológica com a relação filial. Pelo fato jurídico do nascimento, se estabelece o vínculo entre o filho e seu pai e mãe. Na origem biológica, há transmissão de carga genética relevante entre pais e sua prole;
b) Civil: corresponde às situações em que a lei autoriza a constituição do vínculo de Filiação, de modo que a relação parental é artificial, decorrendo da expressa autorização legal. Citam-se, como exemplo, os institutos da adoção e da inseminação artificial heteróloga;
c) Socioafetiva: a filiação se estabelece a partir de uma relação de afeto e cuidado, havendo rompimento entre a relação de parentesco e o vínculo meramente genético. A condição de filho prova-se pela posse de estado, pelo reconhecimento social. No Brasil, a valorização prática do afeto como valor jurídico remonta ao trabalho do jurista João Baptista Villela, datado de 1979, tratando da Desbiologização da Paternidade, com o que procurou afirmar que o vínculo familiar se constitui mais por um vínculo de afeto do que um vínculo biológico.
Em se tratando de filiação o registro de nascimento é o documento que materializa essa realidade, o mesmo possui natureza de direito e garantia constitucional, posto que o é necessário para o exercício pleno da cidadania do indivíduo. A cerca disso, Gentil (2021, pág. 119) preleciona:
Importante indicar que a gratuidade, com vistas ao exercício pleno da cidadania, foi ampliada para todo e qualquer cidadão, nos termos da Lei 9.534, de 10 de dezembro de 1997, que alterou o art. 30 da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e, igualmente, acrescentou o inciso VI ao art. 1º da Lei 9.265, de 12 de fevereiro de 1996, estabelecendo que o registro civil do nascimento e o assento de óbito, bem como a respectiva primeira via de Certidão, são gratuitos por se tratarem de atos necessários ao exercício da cidadania.
No artigo artigo 54, a Lei 6.015/73, traz um rol de informações que devem conter no mesmo, como: “O nome e o prenome, que forem postos à criança; Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal. (Redação dada pela Lei nº 6.140, de 1974) e os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos”, entre outros.
Em seu § 2º a mesma declara que o nome do pai constante da Declaração de Nascido Vivo não constitui prova ou presunção da paternidade, somente podendo ser lançado no registro de nascimento quando verificado nos termos da legislação civil vigente, conforme redação incluída pela Lei nº 12.662, de 2012. Ou seja, a filiação paterna pode ser incluída em momento posterior no registro de nascimento, porém, não há previsão expressa acerca da possibilidade de inclusão de mais de um genitor ou genitora.
Contudo, entre os princípios do registro civil das pessoas naturais, temos o PRINCÍPIO da veracidade registral, sobre o qual GENTIL afirma:
Segundo este princípio, os registros e demais atos praticados no Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais devem refletir e espelhar a veracidade dos fatos jurídicos que afetam à pessoa natural. Durante muito tempo, o Registro Civil das Pessoas Naturais, por conta da rigidez e taxatividade dos registros públicos, não se propôs a acompanhar as mudanças e alterações pelas quais a sociedade e os seres humanos passam e que, direta ou indiretamente, causam repercussão nos atos registrados. (Gentil, 2021, pág. 1130).
Sendo assim, fica evidente que o registro civil, tem por função registrar a realidade fática civil das pessoas. E foi por esse motivo que a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) sofreu uma alteração em 2009, pela Lei nº 11.924, tornando possível acrescentar o sobrenome do padrasto/madrasta no assento do nascimento da pessoa natural: O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável (…), poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família (Art. 57,§ 8º). Essas alterações possuem correlação com o Princípio do melhor interesse da criança, que segundo MONACO, citado por Gentil, deve ser analisado sob duas dimensões distintas:
Do ponto de vista objetivo, consiste em um dos princípios primordiais que devem ser considerados pelo Estado na definição de políticas públicas, mas não o único.
Do ponto de vista subjetivo, consiste em uma prescrição dirigida ao Estado-legislador, ao Estado-juiz e ao Estado-administrador, de modo que i) a lei deve prever, sempre, a melhor consequência para a criança, diante de duas ou três possibilidades que se apresentem; ii) devem ser aplicadas leis e normas jurídicas que sejam consentâneas com as reais necessidades dos infantes; e iii) devem ser executadas políticas públicas que efetivem tais interesses.
Em face da sua importância e de sua estreita relação com a dignidade da pessoa, este Princípio tem influenciado, sobretudo a partir de meados do século XX, o instituto da Filiação, que passou considerar, para fins de seu estabelecimento, os anseios e necessidades de proteção à criança. (Gentil, 2021, pág. 152).
Com a alargamento do conceito do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, novos conceitos têm surgido, de forma a complementar lacunas que por vezes as normas jurídicas não conseguem suprir, face a dinâmica da sociedade. Há algumas décadas atrás seria difícil cogitar que tais alterações como a filiação socioafetiva e multiparental ganhariam tamanha notoriedade.
Para GOMES SALDANHA, citado por Gentil:
A existência de filiações partidas, de 2ª classe, de meias filiações, repudia o contemporâneo direito internacional da filiação. Somente uma visão unificada da relação filial consagra a proteção integral do interesse superior da criança, por mais nobres que sejam os interesses sociais e familiares que ao lado dele existam.( Gentil, 2021, pág. 152)
3. DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
O reconhecimento da multiparentalidade no registro de nascimento como forma de expressão da realidade já presente em diversos arranjos familiares, é algo que tem gerado diversas demandas judiciais e posicionamentos muitas vezes antagônicos dentro da doutrina e por vezes nos próprios tribunais, posto que envolve não apenas a inclusão de mais um pai ou mãe, mas em virtude de todos os efeitos decorrentes desse reconhecimento, principalmente em relação aos direitos sucessórios.
Todavia, não é de agora que temos precedentes favoráveis a sua efetivação. Em 2014, a Juíza Maria Aglae Vilardo, titular da 15ª Vara de Família da Capital do Rio de Janeiro, reconheceu o direito de 3 (três) irmãos terem em seus registros de nascimento duas mães, sendo uma biológica e outra socioafetiva.
O ação foi proposta pelos irmãos que após já estarem na idade adulta, resolveram acionar o judiciário para requerem a inclusão do nome da madrasta em seus assentos de nascimento, porém sem a exclusão da mãe biológica do mesmo, visto que após o falecimento da genitora, foram criados por ela como mãe e o sentimento era recíproco em relação aos irmãos e a madrasta.
Segundo a Juíza, esse seria um exemplo clássico de família formada por laços afetivos, pois percebe-se na relação, que os laços entre os 3 irmãos e a madrasta são fortes o suficiente para caracterizar a maternidade.
O Estado de Direito, deve garantir o reconhecimento e o respeito as diferenças, de forma a primar pelo princípio do melhor interesse, ainda que não tenha menores envolvidos, mas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, criando mecanismos que legitimem as novas formas de relacionamento que a própria sociedade vem criando.
Para a Juíza Maria Aglae Vilardo:
“O que temos é uma tradição de séculos, onde somente constavam pai e mãe no registro civil, que deixa de ser seguida porque a própria sociedade criou novas formas de relacionamento sem deixar de preservar o respeito por quem participou desta construção. É uma formação familiar diferente e que o Estado de Direito, caracterizado exatamente por respeitar as diferenças sem qualquer forma de discriminação, deve reconhecer”. (Assessoria de comunicação, IBDFAM, 2014 ).
Em 22 de setembro de 2016, houve o julgamento no STF do RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060 SC, acerca do tema de REPERCUSSÃO GERAL que analisava a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, sobre o qual deliberaram não haver prevalência entre as modalidades de vínculo parental, sendo perfeitamente possível a coexistência de ambas as paternidades.
O mesmo teve como relator o Ministro Luiz Fux, que propôs o texto da tese aprovada não por unanimidade, mas por ampla maioria. Fixando a TESE DE REPERCUSSÃO GERAL 622 : “ A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
A tese deixa explícita a possibilidade do reconhecimento multiparental, ao afirmar a possibilidade da coexistência jurídica, de uma paternidade socioafetiva simultaneamente com uma biológica, a depender do caso concreto, sem que nenhuma sobrepuja a outra. Principalmente em relação a equiparação das modalidades, a tese irá trazer pacificação em um tema que ainda havia bastante dissensão e que a maioria das decisões inclinavam para a prevalência do vínculo biológico sobre o socioafetivo. Com isso o Supremo Tribunal federal, estabelece um importante marco em um tema ainda novo no direito de família.
Inegável que houve significativo progresso com a referida decisão, conforme também entendem Flávio Tartuce e Rodrigo da Cunha Pereira. Não se nega que alguns pontos não restaram acolhidos, como a distinção entre o papel de genitor e pai, bem destacado no voto divergente do Min. Edson Fachin ao deliberar sobre o caso concreto, mas que não teve aprovação do plenário. Esta é uma questão que seguirá em pauta para ser melhor esclarecida, sendo que caberá a doutrina digerir o resultado do julgamento a partir de então. Merecem ouvidos os alertas de José Fernando Simão, a respeito do risco de se abrir a porta para demandas frívolas, que visem puramente o patrimônio contra os pais biológicos. Essa possibilidade deverá merecer atenção especial por parte dos operadores do direito, mas não parece alarmante e, muito menos, intransponível. O parecer do Ministério Público Federal apresentado no caso concreto que balizou a repercussão geral também traz esses alertas, mas confia na existência de salvaguardas dentro do próprio sistema: “De todo modo, os riscos de indolência e excesso nas questões alimentícias são controlados pelo binômio necessidade-possibilidade, que obsta o enriquecimento ilícito dos envolvidos na multiparentalidade. (...) Eventuais abusos podem e devem ser controlados no caso concreto. Porém, esperar que a realidade familiar se amolde aos desejos de um ideário familiar não é só ingênuo, é inconstitucional.” ( CALDERÓN, 2016 )
Mesmo com as lacunas e desafios acerca do tema, é inegável a contribuição que essa decisão da Corte Constitucional trouxe para o direito de família e sobre tudo para a garantia de direitos fundamentais. Para Maria Berenice Dias (2016, p. 682-683) esse reconhecimento é uma obrigação constitucional.
Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta flagrar a presença do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. A pluriparentalidade é reconhecida sob o prisma da visão do filho, que passa a ter dois ou mais novos vínculos familiares. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo o direito à afetividade. Já sinalizou o STJ que não pode passar despercebida pelo direito a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental, compreendida como expressão da realidade social. Esta é a tendência da Justiça que vem admitindo o estabelecimento da filiação pluriparental quando o filho desfruta da posse de estado, mesmo quando não há a concordância da genitora. Também na hipótese da adoção unilateral é possível o reconhecimento da multiparentalidade. No dizer de Belmiro Welter, não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, que fazem parte da trajetória da vida humana, é negar a existência tridimensional do ser humano, pelo que se devem manter incólumes as duas paternidades. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecêlos. Não há outra forma de preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo no que diz com o respeito à dignidade e à afetividade.
Em 2017, a Corregedoria Geral de Justiça do CNJ editou o provimento CNJ 63/2017, o qual “Instituiu modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida”, que facilitou o reconhecimento do vínculo socioafetivo através instituição de novas atribuições ao RCPN brasileiro, permitindo no caso de consenso das partes, o registro de diversas situações antes não contempladas formalmente.
O provimento também trouxe, um rol aparentemente exemplificativo de documentos probatórios que o STF estabelece e menciona a necessidade de existência de pelo menos 3 (três) critérios.
1) o chamado de tractatus, que é ser tratado e educado como filho; 2) o reputatio, que é ter a reputação de filho, ser visto dentro da família e pela sociedade como filho; e 3) o nominativo, que diz respeito ao nome. São requisitos comuns nas relações de filiação que tem como base o amor e o afeto, em que o desenvolvimento do indivíduo está sob a responsabilidade dos pais. Ressalte-se, porém, que este terceiro não é considerado elemento crucial, sendo suficiente a fama e o trato para efetivar o estado de filiação socioafetiva. (Gentil, 2021, pág.186 )
Ou seja, não basta o mero querer, mas trata-se de observar o caso concreto para a análise da subsistência dos elementos norteadores que caracterizam a relação de afetividade.
Em 14 de agosto de 2019, a Corregedoria Geral de Justiça do CNJ editou o provimento 83/2019, que alterou a Seção II do provimento nº 63/2017, trazendo modificações em diversos artigos, dentre eles o art. 14, ao qual foram acrescidos novos parágrafos.
Por fim, foram acrescidos novos parágrafos ao art. 14 para esclarecerem a polêmica existente com relação à multiparentalidade e ao termo unilateral presente na normativa. O texto do caput foi mantido tal qual antes: “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento”. O novo § 1º do art. 14 do Prov. 63 trouxe clara limitação quanto ao número de pais ou mães que poderá constar do registro de nascimento a partir de agora, pois prevê: “somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno”. Portanto, com a justificativa de procurar evitar adoções à brasileira, caso o requerente pretenda incluir mais de um ascendente socioafetivo, deverá realizar seu pedido na via judicial (§ 2º). ( Gentil, 2021 págs. 186 e 187 )
O reconhecimento do vínculo no registro de nascimento é muito mais do que o cumprimento de uma formalidade legal, posto que no art. 1.603 do Código civil determina que a filiação é provada pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil. Ou seja, caso haja o reconhecimento das filiações biológica e socioafetiva, as mesmas devem constar nos assentos de nascimento, de outra forma, todas as vezes em que se precisar provar o vínculo por meio de documentos, a relação que não constar no registro de nascimento deverá apresentar a certidão judicial que reconheceu o vínculo multiparental, gerando uma violação da intimidade e a depender do caso até mesmo uma situação vexatória.
Não restam dúvidas quanto à possibilidade do registro multiparental nos assentos na esfera extrajudicial, desde que haja consenso entre os envolvidos e estará limitada a três genitores, sendo dois biológicos e um socioafetivo, conforme dispõe o provimento CNJ 83/2019. Sendo que nos casos de menores entre 12 e 17 anos, far-se-á necessário a manifestação do Ministério Público. Contudo, nos casos duvidosos ou menores de 12 anos necessitará submeter a via judicial em virtude da necessidade de uma dilação probatória maior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, a conclusão retrata o resultado da pesquisa , que não tem a intenção de esgotar as reflexões acerca do tema, mas apenas demonstrar de forma sucinta um panorama a respeito da temática delimitada neste trabalho. Apresentando em linhas gerais as ideias que correspondem à estrutura básica do trabalho e o raciocínio central da pesquisa.
A multiparentalidade é uma temática relativamente nova no direito de família, com fundamentos no princípio da afetividade e do respeito a dignidade da pessoa humana, que une pessoas não por laços de consanguinidade, mas meio do afeto mútuo.
O conceito de família evoluiu no decorrer da história através de novos paradigmas criados pela própria sociedade, o que fez com que as normas também evoluíssem no sentido de acompanhar esses anseios. Em 1890, o decreto nº 181 inovou ao instituir a união civil, assim como o Código Civil de 1916 no qual já se percebe uma leve evolução acerca do papel da mulher no lar.
Contudo, o grande marco estrutural no direito de família foi a promulgação da Carta Magna de 1988, a qual traz inúmeras mudanças, inclusive no conceito de família que deixa de ser visto apenas como núcleo econômico e reprodutivo e passa a ser entendido como núcleo de formação da personalidade humana com base nas relações de afeto. Dessa forma, trazendo a possibilidade do reconhecimento de outros modelos e vínculos familiares e consequentemente novas formas de se conceber a filiação. Carregada de princípios a nova Constituição, não apenas estimula, mas também traz a possibilidade da concretude de diversos direitos e garantias antes negligenciadas, face às lacunas de normas positivadas.
Todavia, nesse novo contexto a Lei de Registros Públicos, datada de 1973, se mostrou insuficiente para regular as novas situações advindas dos novos modelos de parentalidade e filiação, encontrando obstáculo para a efetivação dos registros no assentos de nascimento, levando uma grande demanda ao judiciário afim de preencher via judicial as lacunas da lei.
Diante das inúmeras ações, gerou um novo conflito em relação a falta de harmonização das decisões, não somente quanto ao reconhecimento do vínculo socioafetivo, como também da equidade das modalidades de filiação biológica e socioafetiva nas relações multiparentais, que na maioria pendiam para a prevalência da biológica. Situação essa, que foi pacificada através da Tese 622 do STF, que fixou em repercussão geral não haver prevalência entre nenhuma das modalidades, mas sim no caso concreto aquela que for de melhor interesse do menor ou das partes.
O Conselho Nacional de Justiça através do provimento nº 63/2017, que facilitou o reconhecimento do vínculo socioafetivo através da instituição de novas atribuições ao RCPN brasileiro, permitindo no caso de consenso das partes, o registro de diversas situações antes não contempladas formalmente, com posterior complementação através do provimento nº 83/2019, que estabeleceu a possibilidade de registro multiparental na esfera extrajudicial, desde que haja consenso entre os envolvidos e estará limitada a três genitores, sendo dois biológicos e um socioafetivo, preenchendo em parte as lacunas da Lei de Registros Públicos n° 6.015, de 1973.
REFERÊNCIAS:
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Bacharelando em Direito pela FASEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MILHOMEM, Leomar Oliveira. A multiparentalidade no registro civil: a Lei de Registros Públicos e as novas concepções de parentalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2022, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58579/a-multiparentalidade-no-registro-civil-a-lei-de-registros-pblicos-e-as-novas-concepes-de-parentalidade. Acesso em: 21 nov 2024.
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