PAULO SÉRGIO FEUZ[1]
ANDREI KAMPFF[2]
(coautores)
1.Introdução
Poderia a Justiça Desportiva atuar para além das atribuições que o artigo 217 da Constituição Federal a conferiu? Por meio da análise de um caso concreto – a crise institucional pela qual passa a Confederação Brasileira de Futebol em 2021 – este artigo tem o condão de responder a este questionamento.
Faz-se uma análise legal, normativa e filosófica do papel da corte desportiva brasileira para propor uma reflexão sobre a contribuição do tribunal no processo de resolução de conflitos dentro do movimento esportivo.
O papel dos tribunais desportivos brasileiros é, de fato, limitado à análise de lides relativas à disciplina e às competições desportivas? É possível ir além desse enquadramento desde que o fim de proteger o esporte e a competição desportiva esteja contemplado?
Como forma de contribuir para este debate, o presente artigo parte de uma premissa: a razão de ser da justiça desportiva é a proteção do bem jurídico esporte e a competição desportiva.
O referido artigo 217 da Constituição Federal, que atribui à justiça desportiva a competência de julgar ações que versem sobre disciplina e competições desportivas, é claro no § 1º ao delimitar seu escopo de atuação. E qual seria o objetivo de atribuir à uma estrutura jurisdicional tal competência se não o de proteger a instituição esporte e a competição desportiva? O cerne, a essência, a razão de ser da justiça desportiva é o esporte e a competição desportiva.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva[3] (“CBJD”) nos lembra do cerne da justiça desportiva em diversas ocasiões; uma leitura sistemática do código não nos permite esquecer. Inicia na listagem dos princípios a serem observados na interpretação e aplicação das normas ali contidas, já no artigo 2º. Os incisos XVII e XVIII referem-se, respectivamente, ao pro competitione (prevalência, continuidade e estabilidade das competições esportivas)[4] e ao fair play.
Passa pela regulamentação da prova testemunhal no artigo 63, que no § 1º prevê que “a testemunha assumirá o compromisso de bem servir ao desporto” e no § 2º permite que o tribunal ouça testemunha incapaz, impedida ou suspeita somente quando “o interesse do desporto o exigir”.
Continua o CBJD a nos lembrar do cerne da justiça desportiva no seu artigo 111, que prevê que as sanções de suspensão, desfiliação ou desvinculação somente serão aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva “com o objetivo de manter a ordem desportiva”. É, aliás, o mesmo ditame da Lei Geral do Desporto (Lei 6.915/1998) no seu artigo 48, onde se lê que “com o objetivo de manter a ordem desportiva” as entidades de administração do desporto e de prática desportiva podem aplicar sanções de advertência, censura escrita, multa, suspensão, desfiliação ou desvinculação.
Voltando ao CBJD, também o seu artigo 114 nos lembra do cerne da Justiça Desportiva quando limita o cabimento da revisão. A revisão é um instituto importantíssimo, cabível quando a decisão de um processo tenha sido proferida de forma imprecisa. O artigo 114 prevê que “não cabe revisão da decisão que importe em exclusão de competição, perda de pontos, de renda ou de mando de campo.”
Fosse outra a razão de existir da Justiça Desportiva que não a proteção do esporte e da competição desportiva, por que limitar o escopo da revisão? Outro instrumento fundamental previsto no CBJD é a Medida Inominada; o artigo 119 limita seu cabimento à “casos excepcionais e no interesse do desporto”.
Os artigos do CBJD que tipificam uma prática punível o fazem porque aquela prática, de alguma forma, prejudica o esporte, a competição desportiva. Ao nosso entender, o artigo no qual se observa isso de forma mais clara é o 243-F, que pune a ofensa a honra por fato relacionado diretamente ao desporto (este texto desenvolverá melhor esta questão posteriormente).
Assim, se o atleta pratica uma agressão física (artigo 254-A), ele está, além de atingir fisicamente o colega de trabalho, prejudicando o bom andamento da partida e do campeonato. O mesmo ocorre se o clube relaciona na equipe um atleta irregular (artigo 214), se deixa de tomar providências capazes de prevenir e reprimir desordem, invasão e lançamentos de objetos no campo (artigo 213), se o árbitro se omite no dever de prevenir ou de coibir violência ou animosidade entre os atletas (artigo 260).
Todos estes exemplos são práticas puníveis pela Justiça Desportiva por serem consideradas práticas que ameaçam o esporte e a competição esportiva, ainda que tais práticas também atinjam bens jurídicos protegidos em outra esfera.
Álvaro Melo Filho (2018)[5], ao versar sobre o CBJD, nos ensinou:
Vale dizer, o CBJD, buscando uma síntese entre garantismo e defesa do desporto, é o antídoto jurídico, com supedâneo na lex sportiva, para combater os que cultivam valores ou condutas antidesportivas como a violência, doping, manipulação de resultados, indisciplina, racismo, etc., que esgarçam o tecido sócio desportivo, desestabilizam as competições e implodem os princípios básicos do desportivismo e do fair play.
Ora, se a razão de ser da justiça desportiva é a proteção do bem jurídico esporte e a competição desportiva, é pertinente admitir a possibilidade de uma interpretação extensiva das normas constitucionais e legais que a regulam para admitir sua atuação também de forma extensiva.
É nesse contexto que o artigo abordará o caso concerto. A Confederação Brasileira de Futebol passa por uma crise histórica no ano de 2021. Uma disputa política, com ingredientes éticos e jurídicos que provocaram um racha poucas vezes visto na história do movimento esportivo brasileiro. Nessa hora em que dois lados se posicionam de maneira firme, defendendo interesses e direitos contrários, e que o diálogo interno nos parece impossível, é fundamental encontrar um mediador, alguém que tenha a imparcialidade e o conhecimento jurídico para devolver uma segurança institucional à entidade. Este artigo defende que a Justiça Desportiva pode exercer esse papel.
2. A natureza jurídica da Justiça Desportiva e o poder disciplinar
Paulo Schmitt (2007) define Justiça Desportiva como:
(...) o conjunto de instâncias desportivas autônomas e independentes, considerados órgãos judicantes, que funcionam junto a entidades dotadas de personalidade jurídica de direito público ou privado, com atribuições de dirimir os conflitos de natureza desportiva e de competência limitada ao processo e julgamento de infrações disciplinares em rito sumário ou procedimentos especiais definidos em códigos desportivos[6].
O conceito que nos traz o autor remete à autonomia e a independência das entidades desportivas – assim disposto pela Carta Magna no artigo 217. Nesta mesma esteira, Scheyla Decat (2014) conceitua a justiça desportiva como uma instituição de direito privado dotada de interesse público[7].
De fato, a justiça desportiva foi instituída na Constituição Federal com caráter administrativo, ou, nas palavras de Leonardo Andreotti e Luiz Lanfredi (2018), “uma atividade privada regulada pelo Estado e de configuração administrativa”[8]. Os autores trazem na obra mencionada uma importante citação de Dardeu de Carvalho sobre a natureza administrativa da Justiça Desportiva:
A Justiça Desportiva, como se vê, tem origem num ato administrativo típico (...). É a Justiça Desportiva, por isso, uma instituição administrativa, ou melhor, uma justiça administrativa. (...) O poder disciplinar exercido pela Justiça Desportiva também é eminentemente administrativo, porque alicerçado em preceitos e sanções igualmente baixados pelo Ministro da Educação e Cultura, nos termos dos artigos 63/64, do Decreto n°80.228/77.
Os tribunais desportivos, instituídos administrativamente para aplicar normas administrativas (preceitos e sanções disciplinares), não podem deixar de caracterizar-se como órgãos administrativos. São órgãos de administração do Sistema Desportivo Nacional.
Assim como qualquer outra justiça administrativa, a justiça desportiva é uma organização interna que permite que a instituição - o esporte formal e a competição desportiva - possa existir e atingir seus fins previamente estabelecidos. Ou, nas palavras de Carlos Henrique Ramos, a justiça administrativa “funciona como uma espécie de contencioso administrativo próprio e especializado, instituído com a finalidade de proteger o próprio desporto[9]”.
O poder disciplinar na administração pública remete ao dever desta de punir, ante o cometimento de infrações ou qualquer violação de deveres por parte dos agentes públicos. Segundo Hely Lopes Meirelles (2011), o poder disciplinar “é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração[10].”
Antônio Carvalho (2014), numa releitura da doutrina lusitana sobre o tema, ensina que “o fundamento do poder disciplinar reside na necessidade de qualquer organização de possuir uma organização interna que lhe permita prosseguir seus fins (…) para o que dispõe do poder de sancionar aqueles seus elementos que perturbem o bom funcionamento da organização prejudicando seus objetivos”[11].
A justiça desportiva tem sua esfera de atuação restrita à conflitos referentes à disciplina e às competições desportivas. É dizer, pois, que a justiça desportiva foi constitucionalmente e legalmente concebida para tornar possível o esporte formal e a competição desportiva por meio da estruturação de um ambiente propício para a resolução de conflitos advindos do mundo desportivo. Nas palavras do Professor Álvaro Melo Filho, incumbe à Justiça Desportiva “dar sustentabilidade às disputas desportivas para fazer de cada uma delas uma competição que estimule, uma solidariedade que une[12]”.
O esporte formal e a competição desportiva são, e sempre foram, a razão de ser da Justiça Desportiva.
A própria restrição constitucional, legal e regulamentar de acessar a justiça comum para dirimir conflitos sobre infrações disciplinares e competições desportivas objetiva, em última instância, a defesa do esporte e a promoção da continuidade da competição desportiva.
O artigo 217 da Carta Magna prevê em seu § 1º que “o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.”. De pronto seria possível inferir que este artigo conflita com o direito fundamental de ação, expresso no artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal, que prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Entretanto o aparente conflito das normas constitucionais é apenas isso: aparente.
O que o § 1º do artigo 217 prevê é uma condição de admissibilidade das ações que versem sobre competição e disciplina desportivas: apenas após o esgotamento das instâncias da justiça desportiva poderá o poder judiciário ser acionado. Ainda, caso o juízo desportivo não consiga proferir sentença definitiva antes de transcorridos 60 dias, poderá o poder judiciário ser provocado, mesmo que as instâncias desportivas não tenham sido esgotadas. É o que prevê o § 2º do artigo 217 da Constituição Federal.
Sobre o assunto, nos ensina Álvaro Melo Filho[13] (1989):
Esclareça-se que § 1º da nova Lex Magna não proíbe, mas condiciona a que se esgotem, previamente as vias da Justiça Desportiva para posterior acesso ao Poder Judiciário. (...) as partes ganharão, porque verão a pendência decidida com maior celeridade e, por que não dizer, com discrição, evitando-se o alarde normalmente emprestado às questões desportivas quando chegam às barras do Poder Judiciário; ganhará a Justiça Desportiva, que terá seu prestígio reforçado diante de seus jurisdicionados.
É, de fato, salutar que exista um mecanismo que proteja o esporte e a competição desportiva da morosidade da justiça comum e de suas decisões por vezes equivocadas ante a falta da especialidade. Há de se considerar que o Direito Desportivo, como disciplina autônoma que é, com seus princípios próprios, como destaca Rafael Fachada (2017)[14], tem certas peculiaridades que os julgadores na justiça comum nem sempre conhecem.
Não poderia a justiça comum, sabidamente sem estrutura adequada, acompanhar a dinâmica do esporte; condicionar o acesso à justiça comum prestigia a celeridade e a especialização da justiça desportiva, elementos cruciais para a tutela do esporte formal e da competição desportiva. As disputas desportivas exigem uma resposta rápida da justiça; não seria razoável que, ao final de uma competição o resultado dependesse por dias ou meses de uma chancela da justiça.
Neste sentido, destaca Celso Ribeiro Bastos que “o intuito do legislador constitucional neste dispositivo foi evitar a concessão de liminares pela justiça comum, com efeitos irreversíveis e na maioria danosos às competições e disciplina desportiva[15]”.
E complementa Álvaro Melo Filho ressaltando que:
“os aplicadores do CBJD devem levar em conta que os litígios jus-desportivos, com sua força midiática e relevância sócio econômica, não permitem a eternização processual ou morosidade decisória inerente à justiça comum, porque incompatível com a dinâmica das competições e credibilidade do desporto[16]”.
3. A mediação na Justiça Desportiva – o Campeonato Carioca de 2020 e o caso CBF em 2021
Este artigo tratou de delinear o cerne da existência da Justiça Desportiva. Passar-se-á a aplicar essa premissa à um caso concreto, a saber: a crise institucional na CBF em 2021.
Contudo, antes de adentrarmos o caso concreto em si, é pertinente recordarmos de outra situação recente na qual a Justiça Desportiva atuou como mediadora: trata-se do imbróglio entre Botafogo, Fluminense e a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) sobre as datas dos jogos do Campeonato Carioca de 2020.
Neste episódio específico, houve mediação antes da decisão do TJD/RJ e também antes de a decisão voltar às mãos do presidente do STJD. A despeito de, infelizmente, ambas oportunidades de mediação não terem resultados positivos, é salutar que o procedimento tenha sido adotado, na tentativa de encontrar uma solução que satisfizesse ambas as partes. Esta forma de solução de controvérsias vai ao encontro de princípios norteadores da Justiça Desportiva, tais como a celeridade e o espírito desportivo (fair play), e até a informalidade, princípio intrínseco do Direito Processual Desportivo.
As formas alternativas de solução de controvérsias assumiram papel relevante no Código de Processo Civil de 2015; o que antes era um ideal, no atual Código estão positivadas a conciliação e a mediação, soluções que buscam a efetivação da celeridade e duração razoável do processo. A mediação é um meio de autocomposição, no qual é apontado um terceiro imparcial de comum acordo entre as partes, sem poder decisório, que vai auxiliar o desenvolvimento da solução da controvérsia ali posta. Desta forma, portanto, o mediador não impõe uma decisão às partes; o papel do mediador é ajudá-las a encontrar uma solução à qual ambas as partes entendam ser justa e satisfatória.
O esporte já trabalha com conciliação, mediação e arbitragem em diversas frentes; podemos observar a adoção destas formas de solução de conflito pelas federações e organizações de administração do desporto internacionais pela previsão destes mecanismos em seus estatutos. No âmbito do Futebol, a CBF estabelece em seu Estatuto que litígios envolvendo entes do futebol brasileiro devem ser submetidos à Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD. Adicionalmente, a estatuto da CBF proíbe que a justiça comum seja utilizada para discutir o mérito de qualquer litígio no âmbito desportivo e obriga seus membros a se submeterem à arbitragem; o artigo 125 do estatuto é claro nesse sentido:
Art. 125 – Em lugar de recorrer aos órgãos da Justiça ordinária, os litígios que não forem de competência da Justiça Desportiva ou da Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD, deverão, obrigatoriamente, ser submetidos à Arbitragem. (CBF, 2017)
Há, portanto, por parte da entidade de administração do futebol no Brasil, uma forte imposição para o uso da arbitragem como forma de resolução de conflitos que não são de competência da Justiça Desportiva ou da CNRD.
Natural que assim seja, já que há diversas vantagens nas formas alternativas de solução de controvérsias. Uma delas é que a solução acordada num processo de mediação é aquela na qual há um grau significativo de satisfação de ambas as partes. Este fator é relevante já que as relações entres os atores no esporte é duradoura e requer cuidado. É necessário prezar pela manutenção dos vínculos e o fato de que a mediação visa a conciliação de interesses mais do que a conciliação de direitos, coloca, consequentemente, a pacificação do conflito como prioridade sobre a solução jurídica pura.
A relevância da mediação é aumentada em momentos de incerteza jurídica como o que vivemos em 2020 e 2021 por conta da pandemia. As leis e os regulamentos foram pensados para disciplinar relações em tempos “normais” e, frequentemente, não nos dão ferramentas suficientes para solucionar as controvérsias que surgem ante situações tão singulares. De tal forma que, quando a simples subsunção do fato à norma não dá conta de resolver questões com nuances tão únicos, sentar-se à mesa, com o auxílio de um terceiro imparcial, torna-se algo fundamental.
É, portanto, salutar que a Justiça Desportiva tenha incorporado a mediação como forma de solução das controvérsias no Campeonato Carioca de 2020.
O mesmo poderia ser dito em relação à crise institucional na CBF ocorrida em 2021. Poderia a Justiça Desportiva ter assumido um papel mais relevante nessa questão.
Rogério Caboclo foi afastado de suas atividades como Presidente da CBF pela Comissão de Ética da CBF em 6 de junho de 2021, dois dias depois da acusação formal de uma colaboradora da entidade contra ele de assédio moral e sexual.
Rogério Caboclo negou à época as acusações e preparou um vasto material com uma equipe grande e capacitada de assessores. Depois de uma decisão da diretoria por um novo afastamento por mais 60 dias, a Comissão de Ética se manifestou e prorrogou por mais 60 dias o afastamento.
A diretoria revogou a decisão anterior. Até porque ela foi alvo de ponderações necessárias. Em um paralelo, poderia uma comissão de ministros afastar o presidente da República?
Pela nossa carta constitucional, essa decisão cabe ao Congresso Nacional. Pelo Estatuto da CBF, de maneira parecida, essa decisão caberia a Assembleia Geral, reunião de todos presidentes de federações nacionais. Está no artigo 38 do Estatuto:
Art. 38. Compete, ainda, exclusivamente à Assembleia Geral Administrativa, sempre em escrutínio secreto, destituir o Presidente e Vice-Presidentes da CBF, havendo comprovada justa causa e observado o devido processo legal.
Pois, bem. A crise foi instaurada. Os dois lados tinham argumentos juridicamente inteligentes. Um deles defendendo o afastamento preventivo para melhor apuração dos fatos; outro, que entende que houve o descumprimento de normas internas e, inclusive, constitucionais no afastamento determinado.
Diante dessa confusão e disputa, a CBF sangrou, com uma divisão interna histórica que precisava de uma solução urgente.
Sabe-se que o conflito é eminentemente político, mas valores éticos e a legalidade não podem ser jamais esquecidos nesse processo. E como proteger essa disputa política?
Parece-nos claro que um “juiz” independente precisaria atuar. E qual a instância maior da Justiça Desportiva brasileira, o “STF do esporte”?
O Superior Tribunal de Justiça Desportivo é a instituição mais importante do movimento jurídico brasileiro, a referência maior da Lex Sportiva em nosso território. E seria crucial ele assumir a responsabilidade histórica de tentar trazer luz e paz em um momento tão conturbado para o futebol, em que uma solução jurídica e institucional se fez urgente.
A questão que se coloca é de competência. Ou seja, o STJD poderia analisar essa questão? Entendemos que sim.
A Constituição Federal, em seu já referido artigo 217, reforça a autonomia das entidades esportivas e também determina a competência da Justiça Desportiva. Nesse artigo, como já frisamos neste texto, a competência fica determinada para questões relativas à disciplina e competições esportivas.
Essa seria uma interpretação mais restritiva de competência, limitando um papel importantíssimo desse Tribunal na proteção do movimento esportivo. Por isso, não seria a interpretação apropriada devido ao momento que vivia o futebol brasileiro.
A própria legislação mostra que o papel da Justiça Desportiva é muito maior, devendo zelar pela Ordem Desportiva.
A Justiça Desportiva é regulada por uma lei federal específica, a Lei 9615/98, conhecida como Lei Pelé, a Lei Geral do Esporte brasileiro. Segundo a Lei Pelé, a competência da Justiça Desportiva está em processar e julgar processos referentes às infrações disciplinares e competições desportivas definidas no CBJD e regulamentos das entidades de administração do desporto, de acordo com o art. 50.
E a mesma Lei traz os princípios norteadores desse Tribunal privado. Entre eles, o da legalidade e da moralidade. Um pouco antes, a Lei Pelé traz o art. 48:
Art. 48. Com o objetivo de manter a ordem desportiva, o respeito aos atos emanados de seus poderes internos, poderão ser aplicadas, pelas entidades de administração do desporto e de prática desportiva, as seguintes sanções:
IV - suspensão;
V - desfiliação ou desvinculação.
§ 1º. A aplicação das sanções previstas neste artigo não prescinde do processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.
§ 2º. As penalidades de que tratam os incisos IV e V deste artigo somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva.
Ou seja, a Lei Pelé dá a Justiça Desportiva uma competência maior. Segundo a Lei, um afastamento só poderia ser decidido após decisão do Tribunal esportivo.
A Justiça Desportiva tem como guia o já referido Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o CBJD. A função primordial das disposições do CBJD é regular o funcionamento da Justiça Desportiva e o processo disciplinar.
Diz o art. 111 do CBJD:
Art. 111. A imposição das sanções de suspensão, desfiliação ou desvinculação, pelas entidades desportivas, com o objetivo de manter a ordem desportiva, somente serão aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva.
O fato é: o STJD é a instância maior do movimento jurídico do esporte brasileiro e tem, entre tantas responsabilidades, aquela o cerne de todas elas juntas: manter a higidez, a paz, a segurança da Ordem Desportiva.
Não se manifestando, haverá sempre o risco iminente de o caso tomar o caminho mais perigoso para o movimento esportivo, o da judicialização. Esse é um caminho que pode implicar em risco grande de punição para o futebol brasileiro, inclusive com intervenção da FIFA.
É que não obstante a permissão constitucional e legal de provocar o judiciário, observadas todas as exigências de admissibilidade para fazê-lo, a FIFA proíbe que seus membros procurem a justiça comum de seus países para recorrer das decisões da justiça desportiva[17]. Isso quer dizer que todos aqueles que estão dentro da estrutura desportiva estão proibidos de procurar o judiciário comum para dirimir questões desportivas regulamentares e disciplinares.
Para fazer cumprir tal proibição, a FIFA determinou que as associações nacionais devessem fazer constar de seus estatutos ou regulamentos uma clausula que proíbe os acessos aos tribunais comuns de direito. A CBF o fez inserindo em seu Estatuto os artigos 124 e 127, que preveem:
Art. 124 – Fica expressamente proibido postular, demandar ou recorrer à Justiça ordinária, exceto nas hipóteses admitidas pela FIFA.
Art. 127 – Aquele que descumprir ou, de qualquer modo, concorrer para a infração da norma imposta pela FIFA e CONMEBOL, que veda demandar ou recorrer aos órgãos da Justiça ordinária, ficará sujeito à jurisdição, às penalidades e sanções estabelecidas nos Estatutos da FIFA, da CONMEBOL e da CBF.Parágrafo único - Caso a CBF tome conhecimento de qualquer medida ou ação na Justiça ordinária promovida em benefício de entidade de prática ou de administração do desporto, por si ou por terceiros, tal infração deverá ser imediatamente comunicada à CONMEBOL e à FIFA para as providencias cabíveis.
Finalmente, o CBJD prevê punição de exclusão do campeonato ou torneio que estiver disputando e multa de R$100,00 (cem reais) a R$100.000,00 (cem mil reais) aos que procurarem o poder judiciário para pleitear matéria referente à disciplina e competições antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, ou que se beneficiarem de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro.
Nesse sentido, destaca Guilherme Campos de Moraes[18] que mesmo que um torcedor (terceiro; que não está submetido à Justiça Desportiva, portanto não poderá sofrer sanções dela) procure o judiciário e obtenha benefícios, se a entidade de prática desportiva fizer uso deste benefício obtido por meio da justiça comum, ela poderá ser excluída do campeonato ou competição.
Assim, uma decisão do Tribunal esportivo não impede a busca do judiciário pela parte que se sentir lesada, direito consagrado pela CF, art 5º XXXV. Acontece que há julgados afirmando que, com a justiça esportiva analisando e decidindo o mérito, o judiciário só deve analisar questões processuais. Ou seja, questões internas e específicas estariam protegidas pelo movimento esportivo e a análise ficaria limitada ao campo da legalidade do processo.
Ademais, entregar questões internas do esporte ao Estado não nos parece solução recomendável. Nesse sentido, Álvaro Melo Filho afirma que:
A Constitucionalização da Justiça Desportiva tornou-se imperiosa e necessária face ao crônico e persistente congestionamento da Justiça Estatal que, regra geral, perturba o normal andamento, continuidade e dinâmica das disputas desportivas, trazendo mais problemas do que soluções. Não haja dúvida: se o Poder Judiciário começar a envolver-se na disciplina das competições e a examinar decisões dos tribunais desportivos, muito breve os jóqueis estarão discutindo em juízo as punições que lhes são aplicadas pela comissão de corridas do hipódromo, as tripulações de barcos irão às últimas instâncias contra as decisões da liga náutica, e os campeonatos vão ser definidos na tribuna das cortes judiciárias mais do que nas canchas dos estádios. E é certo que não ficaríamos nisso. Sendo o Carnaval não menos importante que o futebol, a classificação das escolas de samba no Rio de Janeiro terminaria sendo também decidida pelos tribunais civis. ' À vista da perícia de fls., concede-se o primeiro lugar aos Unidos do Padre Miguel...
Ou seja, as peculiaridades do esporte a sua necessária autonomia fazem atrair a competência da Justiça Desportiva para dirimir conflitos na área. Para proteger a própria autonomia e seu movimento jurídico interno, repleto de especificidades e princípios.
4. Conclusão
Este artigo objetivou contribuir para o debate sobre a Justiça Desportiva abordando o papel do tribunal como mediador de conflitos no movimento esportivo sob a premissa da sua razão de ser. Este é o objetivo da justiça desportiva: a existência e continuidade do esporte formal e da competição desportiva.
As instituições precisam de organizações internas que lhes permitam dar continuidade a seus objetivos; em última instância, estruturas que lhes permitam continuar a existir.
De fato, a existência da justiça desportiva como mecanismo de controle interno e garantia da existência e continuidade do esporte é também uma exigência para a celebração do contrato de desempenho com a Secretaria Especial do Esporte. A celebração deste contrato é condição para o recebimento dos recursos públicos federais pelo COB, o CPB e as entidades nacionais de administração do desporto. É o que determina o Decreto n° 7984/2013, no seu artigo 32, que exige que, para a celebração do contrato os estatutos das entidades disponham expressamente sobre “o funcionamento autônomo e regular dos órgãos de Justiça Desportiva referentes à respectiva modalidade”.
A atuação do tribunal como mediador, especialmente quando se analisa a possibilidade à luz de um caso concreto como o que este artigo explorou, vai ao encontro do cerne de existência da Justiça Desportiva.
Referências
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[1] Doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010) e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Especialista em Direito Empresarial (1996) e Graduado em Direito (1993) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor titular e coordenador do Curso de Direito das Faculdades Integradas Rio Branco; Coordenador do Núcleo de Pesquisa da Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito Desportivo da PUC/SP, Diretor Jurídico da Federação Paulista de Futebol.
[2] Jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo. Sócio na AK Proteção Jurídica, é pós-graduado em Direito Esportivo, mestrando em Direito e conselheiro do Instituto Ibero-Americano de Direito Esportivo. É autor do livro “#Prass38”.
[3] Destaca-se que o CBJD é uma norma sui generis. Trata-se de uma resolução do CNE, portanto de caráter administrativo, mas considerado como regramento estatal de status hierárquico infralegal, voltado à regulação de atividades públicas não estatais.
[4] Álvaro Melo Filho, citando Javier R. Ten, nos ensina que esse autor, em sua tese de doutorado intitulada Deporte y Derecho Administrativo Sancionador (Esporte e Direito Administrativo Sancionador – tradução livre) define o princípio do pro competitione como “um princípio informador do direito disciplinar desportivo que implica em uma exaltação da competição como bem jurídico preferencial a todos os princípios gerais do procedimento sancionador”. MELO FILHO, Álvaro. Paradigmas e Filosofia Jus-Desportiva do novo CBJD em Revista Brasileira de Direito Desportivo. Ano XVII N°30/2018. Edição Especial Homenagem ao Professor Álvaro Melo Filho. 2018. Porto Alegre: LexMagister.
[5] MELO FILHO, Álvaro. Paradigmas e Filosofia Jus-Desportiva do novo CBJD em Revista Brasileira de Direito Desportivo. Ano XVII N°30/2018. Edição Especial Homenagem ao Professor Álvaro Melo Filho. 2018. Porto Alegre: LexMagister.
[7] DECAT, Scheyla Althoff. Direito Processual Desportivo. 2ª edição. Belo Horizonte. Ed. Del Rey. 2014.
[8] ANDREOTTI, Leonardo e LANFREDI, Luis. Pensando um Direito Desportivo Sancionador: A Natureza Administrativa Sancionadora da Justiça Desportiva em Justiça Desportiva: Perspectivas do Sistema Disciplinar Nacional, Internacional e no Direito Comparado. São Paulo: Quartier Latin, 2018.
[9] RAMOS, Carlos Henrique. Direito Processual Desportivo: o uso da arbitragem para resolução de conflitos no futebol. 1ª Edição. Curitiba/PR. Editora CRV. 2019.
[11] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. Editora Fórum. 4ª Edição. Belo Horizonte. 2014.
[12] MELO FILHO, Álvaro. Temas Candentes de Justiça Desportiva em Revista Brasileira de Direito Desportivo. Ano XVII N°30/2018. Edição Especial Homenagem ao Professor Álvaro Melo Filho. 2018. Porto Alegre: LexMagister.
[13] MELO FILHO, Álvaro. Desporto Constitucionalizado. Revista de Informação Legislativa, n. 101, p227. 1989
[16] MELO FILHO, Álvaro. Paradigmas e Filosofia Jus-Desportiva do novo CBJD em Revista Brasileira de Direito Desportivo. Ano XVII N°30/2018. Edição Especial Homenagem ao Professor Álvaro Melo Filho. 2018. Porto Alegre: LexMagister.
[17] Estatuto da FIFA.
Art. 59.2 - O recurso aos tribunais comuns de direito é proibido, a menos que expressamente previsto nos regulamentos da FIFA. O recurso aos tribunais comuns de direito para todos os tipos de medidas provisórias também é proibido.
[18] MORAES, Guilherme Campos de. Lex Sportiva: entre a esfera pública, a autonomia privada e a necessidade de accountability. 1ª Edição. Setembro de 2016. Editora Multifoco.
Advogada desportiva. Internacionalista. Especialista em Negócios no Esporte e Direito Desportivo. Especialista em Direito, Logística e Negócios Internacionais. Mestranda em Direito Desportivo. Procuradora no Tribunal de Justiça Desportiva de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Fernanda Cristina Santos. A Justiça Desportiva como mediadora de conflitos no movimento esportivo – o papel da corte desportiva brasileira para além da literalidade do artigo 217 da Constituição Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2022, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58956/a-justia-desportiva-como-mediadora-de-conflitos-no-movimento-esportivo-o-papel-da-corte-desportiva-brasileira-para-alm-da-literalidade-do-artigo-217-da-constituio-federal. Acesso em: 26 dez 2024.
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