Resumo: O presente artigo abordará de forma geral a visão de Pachukanis do direito para, então, fazer um paralelo com a perpetuação da submissão do fenômeno jurídico ao capital até os dias de hoje, amparados pela visão neoliberal vigente. Buscar-se-á utilizar o Direito Comercial como referência da relação intrínseca entre direito e mercado e uma crítica à prevalência de uma noção de igualdade meramente formal dos sujeitos de direito. A reflexão trazida não pretende esgotar o tema, tampouco aprofundar na visão marxista do direito. A intenção é demonstrar que o Estado continua legislando de modo a garantir que os interesses econômicos prevaleçam sobre a democracia e a justiça social, utilizando-se do direito como instrumento de garantir uma liberdade econômica que privilegia os interesses da classe dominante. Por fim, propõe-se a observância a um Estado Democrático de Direito, sob o ponto de vista constitucional, em que “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” sejam igualmente privilegiados.
Palavras-chave: Pachukanis. Direito. Mercadoria. Direito Comercial. Neoliberalismo. Igualdade formal. Liberdade econômica. Justiça social. Estado Democrático de Direito.
Abstract: This article will address in a general way Pachukanis' view of law in order to then draw a parallel with the perpetuation of the submission of the legal phenomenon to capital until today, supported by the neoliberal vision in force. The aim is to use Commercial Law as a reference of the intrinsic relationship between law and the market, and to criticize the prevalence of a notion of merely formal equality of the subjects of law. This reflection does not intend to exhaust the theme, nor to delve into the Marxist view of law. The intention is to demonstrate that the State continues to legislate in order to guarantee that economic interests prevail over democracy and social justice, using the law as an instrument to guarantee an economic freedom that privileges the interests of the dominant class. Finally, it proposes the observance of a Democratic State of Law, from the constitutional point of view, in which "the social values of labor and free enterprise" are equally privileged.
Keywords: Law. Commodity. Commercial law. Neoliberalism. Formal equality. Economic freedom. Social justice. Democratic rule of law.
Sumário: Introdução. 1. A visão de Pachukanis do direito. 2. O Direito Comercial. 3. As relações intrínsecas do direito e a economia. 4. O neoliberalismo. 5. Conclusão.
Introdução.
O desafio é ousado ao se buscar um paralelo da visão de direito de Pachukanis que, em síntese, buscou demonstrar o indissociável vínculo entre a forma jurídica e a forma mercadoria, com a evolução do ramo do Direito Comercial até os dias de hoje.
Diferentes momentos históricos quando contrastados podem trazer, guardadas as suas particularidades contextuais, a visão cíclica a que o direito também está submetido, atento à prerrogativa de não fundar o presente estudo em questões meramente circunstanciais.
Em síntese, a teoria de Pachukanis define o direito como uma relação social específica, a relação de troca de mercadorias[1]. Em suas palavras,
O sujeito de direito é, em consequência, um proprietário abstrato e transposto para as nuvens. Sua vontade, em sentido jurídico, possui seu fundamento real no desejo de alienar na aquisição e de adquirir na alienação. Para que esse desejo se realize é necessário que os desejos dos proprietários de mercadorias concordem reciprocamente. Juridicamente esta relação exprime-se como contrato, ou como acordo entre vontades independentes. É por isso que o contrato é um conceito central no direito. Dito de maneira mais enfática: o contrato representa um elemento constitutivo da ideia de direito.
Importante destacar que aqui está a se tratar do fenômeno do capitalismo que envolve não somente a produção de mercadorias, mas também a venda da força de trabalho disponibilizada no mercado para ser comercializada como objeto de troca.
Na medida em que as trocas se desvinculam das relações familiares, políticas ou religiosas e passam a operar por uma lógica própria, o direito assume um papel fundamental como forma de regulação dessas relações.
A visão que se busca trazer é que o direito não é uma estrutura neutra cujo conteúdo varia de acordo com as circunstâncias sociais, na verdade, o próprio direito é um produto histórico, mas que não apenas reflete as relações burguesas de produção, mas é a concretização disso, desde sua concepção.
A relação de causalidade entre capitalismo e direito é um tanto mais complexa do que parece à primeira vista: a produção capitalista não apenas, pura e simplesmente, "determina" o direito, mas ela o constrói como parte essencial de seu ser[2].
E aqui, vale ressaltar que, não obstante Pachukanis ser quem mais se aprofundou na tese marxista sobre o direito e ser aqui utilizado como parâmetro metodológico, não se tem qualquer pretensão de se elaborar um estudo sobre o pensamento de Marx sobre o direito, mas uma tênue contextualização histórica do capitalismo e da forma jurídica e a perpetuação dessa relação de submissão até os dias de hoje.
Para que se fique ainda mais evidente o objetivo desse estudo, será feito um recorte para se analisar o direito especificamente sob a ótica do direito Comercial que, desde a origem, sempre disciplinou as atividades dos agentes econômicos responsáveis pela geração de riqueza, sejam eles os chamados mercadores, comerciantes ou, mais recentemente, empresários (FORGIONI, 2021).
Ao se aprofundar na evolução da teoria geral do direito ficou um grande incômodo que não se pretende ver solucionado, mas objeto de reflexão, qual seja, a atemporalidade da subserviência do fenômeno jurídico aos interesses do capital. E isso fica evidente ao se analisar o Direito Comercial durante toda sua evolução, crises de identidade, tentativas de autonomia, limitação etc.
Há que se observar que a intenção de se reduzir o direito a mera ferramenta para acumulação de riquezas das classes dominantes, crítica imanente no marxismo, é a intenção por detrás da atual política neoliberal. Para além das desigualdades que o direito perpetua ao se ter uma visão míope da realidade, impende destacar, ainda, que a política neoliberal visa “libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia” (PRZEWORSKI28 apud ARRUDA JÚNIOR, 1997).
A necessidade de assegurar a prevalência das decisões de mercado conduz a uma visão reducionista do Estado, de modo a desarticular qualquer forma de resistência às exigências do capital privado, inclusive no campo da democracia e dos direitos sociais.
Diferentemente da crítica escancarada por Pachukanis em sua aprofundada leitura marxista sobre o direito, com o neoliberalismo, no entanto, essa submissão é ocultada por uma ideologia que se utiliza de mecanismos da formalidade do direito, da igualdade jurídica, da liberdade de contratar etc.
Essa conjuntura é a base de sustentação do capitalismo, pois, para que se garanta a livre circulação de mercadorias e a consequente acumulação de riqueza, os sujeitos de direito precisam ter uma autonomia reconhecida, a fim de que possam dispor de seus bens, negociá-los e contratar livremente, ainda que se esteja diante da venda de sua única mercadoria possível, a força de trabalho.
O Direito Comercial passa a ser, desde a sua concepção, um conjunto de regras que viabiliza e perpetua, sob a ótica formal, a submissão do direito ao capital, baseado numa ideologia que prega uma suposta igualdade de sujeitos de direito, independentemente se de um lado esteja o explorado e de outro esteja o explorador.
A relevância de se buscar o paralelo entre uma visão essencialmente marxista do direito e a visão neoliberal, é para que não se perca de vista que, não obstante diferentes marcos teóricos, o direito precisa ser avaliado sob o prisma de que, desde a sua gênese, a sua existência é premissa para a perpetuação da divisão de classes entre proprietários e não proprietários dos meios de produção.
As tentativas de se garantir uma maior autonomia ao Direito Comercial, com leis que supostamente privilegiam tão somente a “liberdade econômica”, por exemplo, nada mais é que uma releitura das bases a que o direito foi criado e subserviente desde os primórdios até os dias atuais.
1. A visão de Pachukanis do Direito.
É preciso, de antemão, entender o porquê se buscou o referencial de Pachukanis para desenvolver o raciocínio proposto. Em sua tese, Pachukanis deixa absolutamente claro que o direito existe para legitimar as relações de troca existentes no capitalismo. Não há outra finalidade. Não é possível, ao se falar sobre a Revolução Socialista, por exemplo, transformar o direito em um “direito socialista”. A simbiose entre direito e capital não permite imaginar uma separação e/ou transformação capaz de conferir a autonomia do direito.
A Revolução Russa devia ter como norte, sob a ótica de Pachukanis, a extinção do direito e não a sua consolidação/perpetuação. A substituição da forma jurídica por si só não atingiria a finalidade esperada de se criar um direito proletário, pois, ainda que se mude tecnicamente as normas, elas continuariam a serem influenciadas pelas condições da circulação mercantil[3].
Essa relação do direito e o capital é tão forte que, para Pachukanis, ainda que se trate de uma revolução socialista como sendo uma nova forma econômica, ainda assim isso não levaria à mudança da natureza burguesa do direito, uma vez que a forma jurídica só se realiza nas relações comerciais capitalistas. Essas relações determinam o direito, mas, como o proletariado, ao tomar o poder da burguesia, recepciona todo o resquício da velha sociedade, recepciona também o seu direito e o seu Estado, e este mantém o caráter de classe original[4].
A tarefa da transição socialista ao comunismo seria o aniquilamento dos vestígios capitalistas e extinguir o Estado e o direito burgueses[5]. Nessa linha de pensamento, ao se atingir os objetivos primordiais do regime socialista, tais como a extinção do poder do Estado; o fim das diferenças entre as classes; a superação das diferenças sociais do trabalho, especialmente superando a dicotomia entre o trabalho manual e o intelectual; a extinção da circulação, tudo isso significaria a extinção do próprio direito.
Como ensina Márcio Bilharino Naves, um dos maiores estudiosos de Pachukanis no Brasil,
O problema da relação entre o direito e o socialismo é o “centro nervoso” da teoria pachukaniana. Poderíamos mesmo dizer que é com base nela, isto é, no modo como Pachukanis apresenta essa questão e a resolve, que a sua análise da relação entre a forma jurídica e a forma mercantil se ilumina e ganha pleno significado – a um tempo teórico e político. De fato, se Pachukanis admitisse a possibilidade de um direito “socialista”, toda a sua construção lógica estaria comprometida. Se o socialismo implica a gradativa superação das formas mercantis, um direito que se qualificasse como “socialista” seria tanto uma impossibilidade teórica como um objeto a ser combatido politicamente[6].
Como afirma MASCARO (2009), o direito pode estar mais contra ou mais ao lado dos trabalhadores, mais neoliberal ou mais de bem-estar social, mas o direito é a lógica de reprodução do capital. A questão de como se entender o direito se torna um problema de entender de que modo as características da reprodução capitalista fazem com que o direito seja necessário[7].
Essa teoria de Pachukanis traz uma visão esclarecedora de que, sob o ponto de vista materialista, a essência do que se entende por direito não é humana, como defende o jusnaturalismo, tampouco provém da norma, como afirma o juspositivismo, mas provém das relações sociais estabelecidas entre os homens na produção da vida material.
Interessante que a obra de Pachukanis traz uma visão objetiva do direito, ao abordar as trocas mercantis, mas, especialmente, a venda da força de trabalho pelo salário. A partir disso, há o conceito de ideologia jurídica, ou seja, formas de distorções da realidade engendradas pelo capitalismo para, ocultando o real, possa se viabilizar a exploração do trabalho.
Assim, ao se buscar construir uma teoria geral do direito a partir das relações sociais, será possível desmascarar o que está por trás dessa fetichização do fenômeno jurídico,
Toda a ideologia perece com as relações sociais que a geraram. Porém, este desaparecimento definitivo é precedido por uma fase onde a ideologia perde, sob os golpes desferidos pela crítica, a capacidade de dissimular e velar as relações sociais das quais nasceu. O pôr a nu as raízes de uma ideologia é o sinal certo de que o seu fim se aproxima[8].
É nesse ponto que se descortina todo esforço desse breve estudo, ao se buscar analisar, sob a ótica de Pachukanis, que a operacionalização do direito mediante a sofisticação de teorias privatistas e liberais, especialmente com o Direito Comercial, é uma forma utilizada para fortalecer uma ideologia que oculta a relação do homem enquanto mercadoria, que perpetua as desigualdades, fortalece o poder econômico da classe dominante e distancia a sociedade do verdadeiro significado de justiça e liberdade.
Pachukanis traz em sua obra uma interpretação factível e atual do direito. Por óbvio que a sua teoria não se esgota por si só, ao contrário, é uma extensão para as possiblidades que surgem ao se analisar a estreita relação do direito e do mercado e como essas duas figuras estão intrinsecamente estruturadas no horizonte mais geral da reprodução do capital até os dias atuais.
Pachukanis representou em seu tempo uma visão radical e crítica para construção de uma efetiva teoria geral do direito, capaz de fornecer elementos que permitem enxergar o direito sob o ponto de vista crítico-realista. Suas posições teóricas se chocaram frontalmente com o programa stalinista aplicado a partir de 1929 e que, em nome da denominada “implantação” do socialismo, consagrava nas sombras da noite o domínio de uma burguesia de estado.
Tanto no contexto histórico e político dos anos 30, como atualmente, a visão crítica de Pachukanis que descortina o enigma da forma do direito é fundamental para se aclarar as reais intenções do capitalismo e o uso do direito para atingimento de seus fins.
2. O Direito Comercial.
O Direito Comercial é marcado por forte tradição liberal. A sua existência faz remição direta e quase que exclusivamente à necessidade de desenvolvimento das relações de mercado. A visão tradicionalista do Direito Comercial carrega consigo a ideia de que este deve ser o ambiente em que se busca garantir maior espaço à autonomia privada.
No entanto, esse estudo, não obstante contextualizará as razões as quais justificam o paralelo a ser desenvolvido, antecipa que, conforme afirma FORGIONI (2021), “mais do que nunca, é preciso superar o viés excessivamente privatista do direito comercial”.
Ainda que não seja o objetivo desse estudo o aprofundamento nas raízes históricas do Direito Comercial, importante remontar sua evolução para se demonstrar que esse ramo, assim como os demais, mas aqui em destaque dado seu foco de atuação, sempre esteve intrinsecamente ligado e voltado ao atendimento dos interesses do mercado, em sentido amplo.
O Direito Comercial passou por diversas fases em seu processo evolutivo, a começar pela fase subjetiva[9], quando era voltado exclusivamente àqueles que faziam parte das corporações de artes e ofícios. Ato seguinte, na fase objetiva, o Direito Comercial seria aplicado àqueles que praticassem os chamados atos de comércio.
As pessoas que praticavam os atos de comércio eram chamadas comerciantes, nome comumente utilizado até os dias atuais para aqueles que exercem alguma atividade de cunho comercial.
Os atos de comércio eram definidos previamente pelo legislador, que optava ou por descrever as suas básicas características, conforme fez o Código Comercial português de 1833 e o Código Comercial espanhol de 1885, ou, por enumerar num rol de condutas típicas os atos que seriam considerados atos de comércio, tal como fez o Código Comercial brasileiro de 1850, tendo como exemplos a compra e venda mercantil, armação de navios, corretagem, atividade bancária e de seguro, dentre outras. Todo restante que não se classificava como atos de comércio seria tratado pelo direito civil.
Por fim, a fase objetiva foi superada pela fase subjetiva moderna[10], em que o Direito Comercial seria aplicado àqueles que exercessem a atividade de empresa.
A relação do Direito Comercial e a economia é tão uníssona que já se disse que ambos “se imbricam e se integram para formar um único campo de estudo[11]”. No entanto, como afirma FORGIONI, uma forte corrente ligada à Escola de Chicago[12], vai mais além, ao pregar que a economia é quem deveria determinar o fim último do direito, orientando a interpretação/aplicação de suas regras e formatando seus princípios[13]. O direito é visto como “súdito submisso e dependente daquilo que a análise econômica oferece”[14].
Importante destacar, todavia, que nem sempre a visão exclusivamente submissa e econômica do direito reinou absoluta, pelo contrário, até mesmo na base doutrina liberal, foi possível enxergar uma defesa consistente de que não haveria contradição entre garantir o livre comércio e as iniciativas empresariais com a prática da justiça social e da valorização do trabalho.
3. As relações intrínsecas do direito e a economia.
Aqui já cabe dizer que, diferentemente do pensamento de Pachukanis, que deve ser analisado sob a ótica do momento histórico então vivido, a ideia que se busca a reflexão não é pela extinção do direito, tampouco do Estado.
Ao que tudo indica, atualmente parece não subsistir significativas divergências com relação à necessidade do Estado, tornando secundárias e meramente históricas as previsões acerca de seu inevitável desaparecimento.
De igual forma, não parece ser a extinção do direito a solução para os males advindos da submissão do fenômeno jurídico ao poder do capital. No entanto, as últimas décadas têm propiciado um relevante debate quanto às profundas divergências ideológicas no papel do Estado enquanto garantidor de direitos face às questões econômicas e sociais.
É importante destacar que, ao menos em sua gênese, o liberalismo clássico não se opunha à coexistência entre a livre iniciativa e a necessária observância à justiça social. Adam Smith, considerado o pai do liberalismo, embora tivesse dificuldade em explicar, na prática, como uma mão invisível seria garantidora de direitos sociais, preocupava-se “com a questão dos salários, argumentando que nenhuma sociedade pode ser feliz se a maioria de seus membros é pobre e miserável”[15]. No entanto, essa teoria foi sendo difundida sob o viés exclusivamente do auto interesse e a mão invisível foi sendo descontextualizada para sustentar um modelo puramente individualista e meramente econômico.
Essa visão fica ainda mais evidente ao se deparar com a teoria de Hayek, um dos principais pensadores neoliberais da atualidade. Essa teoria está baseada numa ideia de que, nas sociedades modernas, justiça social tem o mesmo significado que totalitarismo, motivo pelo qual seria uma força destrutiva na sociedade[16].
Para Hayek, falar de justiça social é contrário à ideia de igualdade, sendo que a única justiça possível seria a do Estado formal de direito, ou seja, a garantia meramente formal de que todos são iguais perante a lei[17].
Nessa visão, fica evidente que Hayek entende que o papel do direito se limita a ser um aspecto formal para se estruturar a economia, vez que, quanto mais o capitalismo evolui, mais necessário se faz ter leis que lhe dê a segurança necessária.
A ideologia neoliberal, que prega ainda a falsa dicotomia de um debate que parece estar superado, qual seja, capitalismo versus socialismo, o faz para ocultar a tentativa de se perpetuar, por meio do direito, a preservação de uma igualdade formal que privilegia somente a elite.
Nessa linha, COMPARATO (2001), é enfático ao dizer que, “ou a humanidade deixa-se conduzir à dilaceração definitiva, na direta linha do apogeu capitalista, ou tomará afinal o rumo da justiça e da dignidade”[18].
A submissão do direito ao capital, de forma quase que atemporal, representa, ao fim e ao cabo, o privilégio a uma igualdade formal entre sujeitos de direito, ignorando as profundas divergências sociais, a luta de classes, a necessária justiça social e a preservação da democracia.
4. O neoliberalismo.
O modelo neoliberal pode ser visto como a base ideológica que tinha como finalidade orientar mudanças nas relações entre Estado e sociedade, especialmente após a crise econômica que se alastrou no mundo a partir dos anos setenta.
Considerado o precursor das ideias neoliberais, HAYEK (1990), em sua obra O Caminho da servidão, em reação teórica à ascensão do modelo de Estado social, questiona quaisquer limitações impostas ao mercado por parte do Estado.
A busca por um mercado livre, em que as interferências do Estado são rechaçadas por serem vistas como empecilho ao desenvolvimento econômico, está calcada na ideia de propiciar um ambiente em que o direito jamais poderia disciplinar a livre movimentação do capital ou a livre concorrência, seja nas relações comerciais, seja nas relações de compra e venda da força de trabalho.
Além da precarização do trabalho, da concentração de riqueza, a visão neoliberal também não demonstra apreço ao modelo democrático vigente no Welfare State, pois isso representa eliminar os caminhos para a “saturação” do Estado e para a “asfixia” da liberdade econômica, causadas por demandas de cunho social. Não há prioridade em preservar a democracia, mas tão somente importa resguardar as decisões de mercado.
Para que esse modelo garanta sua legitimidade, mais uma vez, a ferramenta jurídica é um eficaz meio de validação e perpetuação desse modelo. O direito deixa de ser um instrumento que, além de balizar o mercado, no mesmo nível, também deixa de garantir justiça social em nome de uma igualdade formal.
No entanto, é preciso destacar que, como afirma BERLIN (2002)
Oferecer direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a homens seminus, analfabetos, subnutridos e doentes é zombar de sua condição: eles precisam de ajuda médica ou educação antes de poderem compreender ou aproveitar um aumento em sua liberdade[19].
Nessa linha que iniciativas legislativas são trazidas para o bojo do direito, sob a visão de que se deve privilegiar o empreendedorismo, por exemplo, garantindo que haja liberdade econômica para que, somente assim, possa haver desenvolvimento.
Criam-se leis que visam ajustar o papel do Estado a mero cumpridor de índices e métricas internacionais de aferição do livre mercado, sem a preocupação de avaliar as peculiaridades de cada país e os interesses envolvidos nesses comparativos.
Outras iniciativas também são vistas, sob a justificativa da desburocratização, na verdadeira desregulamentação de direitos de trabalhadores, especialmente aqueles que, hipossuficientes, precisam do amparo do Estado para garantir condições dignas de vender sua força de trabalho.
Sob a justificativa de se privilegiar o crescimento econômico, desregulamentando as bases de um Estado que deveria ser garantidor também de justiça social, o que resta é o fortalecimento do Direito Penal como forma de coerção ao acirramento das relações sociais.
O direito continua sendo o reflexo inevitável da relação dos proprietários de mercadorias, tal como dizia Pachukanis. O capital mercantil permanece como condição prévia fundamental e determinante do direito, ou seja, a forma jurídica é gerada pela forma mercantil[20].
O direito é a validação do modo de produção capitalista, tendo como fim último a acumulação do capital. As iniciativas de um Estado essencialmente neoliberal necessariamente será pela garantia desse modelo, ainda que isso represente desordem social.
É possível entender, com isso, de que forma a produção e a reprodução das relações sociais capitalistas moldam e fazem parte da constituição do direito moderno e, inversamente, como a (re)produção do capital depende fundamentalmente da existência do direito como um momento ineliminável.[21]
5. Conclusão
Importante ressaltar que a ideia não é fazer qualquer crítica à necessidade de se privilegiar o empreendedorismo e garantir meios para que todas as pessoas possam, de fato, terem igualdade de oportunidades para desenvolverem seus projetos.
Fundamental é partir do princípio de que, para se falar em livre iniciativa, de igual forma, é preciso, tal como fez a Constituição Federal do Brasil, garantir justiça social, pois apenas reconhecer igualdade formal é inócuo.
A relação entre Estado e mercado deve ser repensada, assim como o papel do direito como instrumento balizador dos limites e funções de cada um. Do contrário, continuar-se vendo ações arbitrárias do Estado que dificultam o desenvolvimento econômico, ao passo que o mercado continuará utilizando o poder econômico para romper barreiras e atingir seus objetivos a qualquer custo.
No campo do Direito Comercial, a Lei da Liberdade Econômica é um bom exemplo de iniciativa que, visando desburocratizar o ambiente de negócios no Brasil, trouxe medidas que visam, exclusivamente, o crescimento econômico, sem qualquer preocupação com um desenvolvimento mais sustentável das atividades comerciais e a redução da desigualdade latente.
Essa lei é um exemplo prático de aplicação da ideologia de que é aceitável que, para se ter mais empregos é preciso ter menos direitos, vez que tudo passa ser visto como custo de transação que precisa ser necessariamente eliminado como forma de destravar o crescimento econômico.
O neoliberalismo como ideologia em ascensão impõe como objetivo a reformulação do Estado e da concepção do papel do direito a fim de validar essas movimentações.
Diferentemente de Pachukanis, reforça-se aqui que a intenção não é a defesa da extinção do direito, tampouco uma transição do capitalismo a qualquer outro regime. Esse discurso socialista só não está superado por aqueles que desconhecem a história ou que insistem em utilizá-la como forma de dominação ideológica vazia.
O Direito Comercial como ramo principal que viabiliza as trocas de mercadorias desde os primórdios até os dias atuais, deve se preocupar genuinamente com a liberdade na mesma medida em que se torna inclusivo, ou seja, possa ser aplicável a todos.
As iniciativas legislativas que, sob o pretexto de garantir a liberdade, foca exclusivamente em seu aspecto formal, nada mais faz do que utilizar o direito para garantir que a liberdade permaneça tão somente aos proprietários, antiga burguesia e atual elite, às custas do agravamento do abismo social existente entre ricos e pobres, sendo estes essencialmente aqueles que tem somente a sua força de trabalho como mercadoria.
O Estado Democrático de Direito deve oferecer a alternativa viável que garanta que Estado e mercado coexistam harmonicamente sem reducionismos de um em relação ao outro.
A liberdade econômica não pode ser privilégio para poucos e a igualdade ser meramente formal. Mais do que nunca, há que se compatibilizar a visão de um mercado forte e desenvolvimentista com princípios basilares que respeitem a função social da empresa, a proteção do trabalho, do meio ambiente etc.
[1] NAVES, Márcio Bilharinho (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009.
[2] PEREIRA, Mozart Silvano. Mercado, democracia e fetichismo jurídico. Disponível em: https://www.niepmarx.blog.br/MManteriores/MM2017/anais2017/MC29/mc293.pdf
[3] PASHUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. p. 25-26.
[4] MAIA, Fernando Joaquim Ferreira. EUGENY PASUKANIS, A IMPOSSIBILIDADE DE UMA TEORIA MARXISTA DO DIREITO E A AFIRMAÇÃO DO CARÁTER BURGUÊS DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS SOB O SOCIALISMO. Revista dos Tribunais | vol. 929/2013 | p. 161 - 191 | Mar / 2013.
[5] NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pashukanis. São Paulo: Boitempo, 2000. p. 95.
[6] NAVES, Márcio Bilharino Naves. Op. cit., p. 87.
[7] PEREIRA, Mozart Silvano. Op. cit.p.3.
[8] PASHUKANIS, E. B. Op. cit. P.63.
[9] ASCARELLI, Tullio. Origem do Direito Comercial. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 103, p. 87-100, jul/set. 1996.
[10] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 14-15
[11] NUSDEO, Fabio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. São Paulo: RT, 1997, p. 19.
[12] Paula Forgioni é crítica à ampliação dos conceitos defendidos pela Escola de Chicago e seus desdobramentos, visto que entende que a aplicação da técnica baseia-se essencialmente em prévia opção política.
[13] FORGIONI, Paula A. Análise econômica do direito: paranóia ou mistificação? Revista de Direito Mercantil 139 (2005).
[14] WILLIAMSON, Oliver E. Por que direito, economia e organizações? In: AAVV. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro, Elsevier, 2005. P. 17.
[15] CUEVA, Ricardo Villas Boas (org.). Lei da Liberdade Econômica e seus impactos no Direito brasileiro. 1 Ed. SThomson Reuters Brasil: São Paulo, 2020. In: FRAZÃO, Ana. Liberdade econômica para quem? A necessária vinculação entre a liberdade de iniciativa e a justiça social. P. 92-93
[16] HAYEK, Friedrich. A. Direito, Legislação e Liberdade. Trad. Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985.p. 90.
[17] HAYEK, Op. Cit. P. 114.
[18] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 457.
[19] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. Uma Antologia de Ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, P. 231.
[20] NAVES, Márcio Bilharino Naves. Op. cit., p. 88.
[21] PEREIRA, Mozart Silvano. Mercado, democracia e fetichismo jurídico. Disponível em: https://www.niepmarx.blog.br/MManteriores/MM2017/anais2017/MC29/mc293.pdf. Acesso em 28.05.22.
Formado em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com Pós-graduação em Direito Processual pela PUC/MG, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, Mestrando em Direito Comercial Pela PUC/SP. Foi sócio de uma das maiores bancas de advocacia do Brasil, chegando à função de Vice-Presidente. Responsável pelo Contencioso cível/empresarial, atendeu a grandes clientes nacionais e multinacionais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Edgard Paiva de Carvalho. A submissão do direito comercial ao capital: uma análise de Pachukanis ao Neoliberalismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2022, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59022/a-submisso-do-direito-comercial-ao-capital-uma-anlise-de-pachukanis-ao-neoliberalismo. Acesso em: 22 nov 2024.
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