Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a alteração promovida pelo Pacote Anticrime (Lei de n.º 13.964 de 2019) no Código Penal, a respeito dos aspectos penais específicos da pena de multa no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, este artigo procura desenvolver a evolução histórica da multa e as decisões dos Tribunais Superiores, além da apresentação das disposições doutrinárias e os seus reflexos. Não se perderá de vista a sua conceituação, apresentação de características, formas de cobrança e execução, bem como as suas repercussões penais e processuais penais. A abordagem é direta e busca oferecer uma visão panorâmica do debate, destinada principalmente a inteirar o público jurídico.
Palavras-chave: Pacote Anticrime. Lei 13.964/2019. Pena de Multa. Execução. Natureza. Penal. Processual. Defensoria Pública.
Abstract: The article aims to analyze the classification by the Anti-Crime Package (Reading no. Additionally, this article will develop a historical evolution of the fine and the decisions of the Superior Courts, in addition to the presentation of the doctrinal provisions and their reflexes. Its conceptualization, presentation of characteristics, forms of collection and execution, as well as its criminal and criminal procedural repercussions, will not be lost sight of. The approach is direct and seeks to offer a panoramic view of the debate, aimed mainly at the entire legal public.
Keywords: Anti-Crime Pack. Law 13.964/2019. Criminal fine. Execution. Nature. Criminal. Procedural. Public defense.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento histórico da pena de multa 3. Inovações trazidas pela Lei nº 13.964/2019 e a reafirmação da natureza jurídica de sanção penal. 4. Repercussões jurisprudências e fundamentos para afastar o estigma. 5. Conclusões.
1. Introdução
O Direito Penal tem como função a proteção de bens jurídicos, que são valores ou interesses reconhecidos pelo ordenamento jurídico, sendo indispensáveis à satisfação do indivíduo e da sociedade como um todo, destacando-se que esta ciência apenas se preocupa com os interesses mais relevantes que são erigidos à categoria de bens, com base no princípio da intervenção mínima, fundamentada, na sua espécie, na fragmentariedade.
Aplica-se, atualmente, a teoria mista/unificadora pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme se depreende do artigo 59 do Código Penal Brasileiro, no que tange às circunstâncias judiciais. A função da pena está ligada ao punir o ato (aproximando-se da teoria absoluta/retributiva – a pena como fim em si mesmo) e também ressocializadora. Por outro lado, Juarez Cirino, citando Roxin, traz uma crítica a teoria unificadora:
“(...) teorias unificadas não permite superar as debilidades específicas de cada função declarada da pena criminal - ao contrário, as teorias unificadas significam a soma dos defeitos das teorias particulares; segundo, não existe nenhum fundamento filosófico ou científico capaz de unificar concepções penais fundadas em teorias contraditórias, com finalidades práticas reciprocamente excludentes”. (ROXIN, Strafrecht, 1 997, § 3, n. 35, p. 54);
Diante disso, a ideia de bem jurídico gera consequências na realização de juízo de valor acerca de determinado objeto ou situação jurídica e sua importância para a sociedade e, a fim de reprimir estas condutas violadoras, o Direito Penal entabula preceitos criminalizadores na codificação criminal e nas leis esparsas, prevendo sanções penais como resposta estatal, verdadeira aplicação da criminalização primária, que é estudada na criminologia.
As sanções penais tem como espécies as medidas de segurança e as penas, sendo estas últimas direcionadas a atingir a culpabilidade do agente, e destinam-se aos imputáveis e aos semi-imputáveis. Nesse sentido, Cleber Masson define a pena, como:
“Pena é a reação que uma comunidade politicamente organizada opõe a um fato que viola uma das normas fundamentais da sua estrutura e, assim, é definido na lei como crime.
(...)
Como reação contra o crime, isto é, contra uma grave transgressão das normas de convivência, ela aparece com os primeiros agregados humanos. Violenta e impulsiva nos primeiros tempos, exprimindo o sentimento natural de vingança do ofendido ou a revolta de toda a comunidade social, ela se vai disciplinando com o progresso das relações humanas, abandonando os seus apoios extrajurídicos e tomando o sentido de uma instituição de Direito posta nas mãos do poder público para a manutenção da ordem e segurança social.
Destarte, pena é a espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado, aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.” (MASSON, 2019, p. 751/752).
Em consequência, a pena pode ser subdividida em três espécies: pena privativa de liberdade, restritiva de direitos e a pena de multa.
Especificamente quanto à pena de multa, trata-se de uma sanção de caráter eminentemente patrimonial, que pode ser estipulada aos crimes/delitos e contravenções penais (Decreto Lei nº 3688/1941, art. 5º, II). A pena de multa consiste no pagamento ao Fundo Penitenciário de quantia fixada na sentença condenatória e calculada em dias-multa, ressaltando-se a sua principal característica, qual seja: a sua força intimidatória. Todavia, a sua eficácia está umbilicalmente relacionada com a forma de execução, em respeito à sua essência de sanção criminal.
A presença da multa pode ser observada, na maior parte das vezes, na cominação do preceito secundário da norma penal (pena cominada ao tipo penal) de forma isolada ou cumulada com a pena de prisão (pena corporal).
Nessa toada, Cezar Roberto Bittencourt indica 2 (duas) das principais características da pena de multa, quais sejam: a possibilidade de sua conversão em pena de prisão, caso não seja paga (possibilidade vedada no Brasil a partir da Lei n° 9.268/96) e o seu caráter personalíssimo, ou seja, a impossibilidade de ser transferida para os herdeiros ou sucessores do apenado, consubstanciado, notadamente, no princípio da intranscendência das penas. (BITENCOURT, 2015, p.755).
Portanto, veja-se a importância do tema em debate, ressaltado pelas modificações e atualizações promovidas pela Lei de nº 13.964/2019, que veio sedimentar e dirimir qualquer dúvida a respeito da natureza jurídica da pena de multa. No entanto, é importante analisarmos o desenvolvimento histórico da aplicação da pena de multa no ordenamento jurídico brasileiro.
2. Desenvolvimento histórico
No ordenamento jurídico brasileiro, a pena de multa é encontrada atualmente na Constituição Federal de 1988, especificamente em seu artigo 5º, inciso XLVI, alínea “c”[1], e no Código Penal, em seu artigo 49[2], consistindo, como já dito alhures, no pagamento ao Fundo Penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa, sistema este introduzido pela reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, não podendo, caso não seja paga, ser convertida em prisão, pois a pena privativa de liberdade, nesse caso, fere frontalmente a Carta Magna, que proibiu expressamente a prisão por dívida, salvo a prisão do depositário infiel[3] e oriunda de dívida alimentar.
Nesse sentido, Cláudio Heleno Fragoso robustece essa crítica, nos seguintes termos:
“As vantagens da pena de multa são evidentes, precisamente porque não retira o condenado de seu círculo social, permitindo individualização de acordo com a sua situação econômica. O principal argumento contra a pena de multa é o de que ela atinge diferentemente os pobres e os ricos. É verdade também que ela afeta a família do condenado, mas, como observa Jescheck, a pena de prisão tem, sobre aquele, efeito muito mais grave. A conversão da multa em pena de prisão igualmente revela desigualdade manifesta em prejuízo dos pobres. Na União Soviética, a conversão da multa é proibida. Essa conversão, no entanto, é o que caracteriza a multa como pena criminal distinguindo-a das sanções do direito administrativo ou fiscal. O sistema de dias-multa, que permite uma individualização mais adequada, serve para diminuir a desvantagem da desigualdade entre pobres e ricos, que é afinal, uma característica de todas as penas.” (FRAGOSO, 1993, p.314/315).
Logo, a Lei 9.268/1964 veio para harmonizar o Código Penal com a nova ordem constitucional, prevendo que não há mais a possibilidade de prisão por dívida de valor em decorrência de sanção penal. Todavia, assentou que a execução da pena de multa não cumprida deveria seguir as regras da execução fiscal, aduzindo que deveria ser aplicada as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição[4].
Diante desse cenário, surgiram muitas dúvidas acerca da natureza jurídica da multa. Seria uma dívida de valor, executada perante a Fazenda Pública, ou uma espécie de sanção penal, executada pelo Ministério Público perante uma Vara de Execução Penal?
Para Zaffaroni e Pierangeli, diante da lacuna do Código Penal em razão da modificação legislativa, alertam:
“Desse modo, não paga a multa depois de dez dias após o trânsito em julgado (art. 50 caput), será a mesma considerada dívida de valor e executada conforme os trâmites previstos na Lei 6. 830/80, que disciplina a execução fiscal. Inúmeros problemas advieram a partir dessa reforma legislativa, a começar pela não indicação expressa do titular com legitimidade processual para promover a execução da multa penal, se o Ministério Público, se os procuradores da Fazenda Pública. Outrossim, o sistemático e engenhoso roteiro para a execução da pena de multa anteriormente estabelecido pela Lei nº 7. 210/84 (Lei de execução penal)- arts. 164 a 170- não foi alterado pelo legislador que instituiu o novo regime para a pena de multa, acentuando paradoxos. (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2001, p. 817).
Daí surgiram na doutrina 2 (duas) correntes. De um lado (Damásio de Jesus e Luiz Flávio Gomes) apontam que a competência para a execução da sanção de multa inadimplida seria da Vara da Fazenda Pública e, por consequência, de atribuição da Procuradoria da Fazenda Pública, diante da expressa previsão do Código Penal, tendo em vista se tratar de dívida de valor, devendo respeitar as normas relativas à execução de dívida ativa. Por outro lado (Cézar Bittencourt, Rogério Greco e Guilherme de Souza Nucci) afirmam que apesar do dispositivo legal, a execução da multa inadimplida deve continuar ocorrendo na Vara de Execução Penal e a atribuição continua sendo do Ministério Público Estadual, de forma geral, já que a pena de multa não perde a sua natureza penal, muito embora se utilize as normas de execução fiscal.
Com base nessa discussão, a jurisprudência acabou adotando o primeiro entendimento. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou súmula que ratificou o entendimento de que a Fazenda Pública possuía competência exclusiva para execução fiscal de multa pendente de pagamento[5].
Esse entendimento, no entanto, foi modificado em 2018, por meio da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3150, dando uma nova interpretação ao artigo 51 do Código Penal, passando a dispor que, prioritariamente, a execução da dívida de valor deveria ser promovida pelo Ministério Público, pois a sanção de multa não perde a natureza penal, mesmo que inadimplida. Logo, observa-se que houve a superação do enunciado sumular de nº 521 do STJ.
Ademais, é importante ressaltar que o julgado trouxe a competência supletiva da Fazenda Pública, caso o Parquet não executasse a pena de multa no prazo de 90 dias, conforme se verifica a seguir:
A Lei nº 9.268/1996, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal, que lhe é inerente por força do art. 5º, XLVI, c, da Constituição Federal. 2. Como consequência, a legitimação prioritária para a execução da multa penal é do Ministério Público perante a Vara de Execuções Penais. 3. Por ser também dívida de valor em face do Poder Público, a multa pode ser subsidiariamente cobrada pela Fazenda Pública, na Vara de Execução Fiscal, se o Ministério Público não houver atuado em prazo razoável (90 dias). 4. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga parcialmente procedente para, conferindo interpretação conforme à Constituição ao art. 51 do Código Penal, explicitar que a expressão “aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição” (ADI, 3150, 2018, publicado: 06/08/2019, relator: Ministro Marco Aurélio).
Logo, diante do julgado acima, é importante ressaltar que a natureza jurídica penal da multa já fora sedimentada pela Suprema Corte antes mesmo da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, que fortaleceu, ainda mais, o entendimento anterior.
3. Inovações trazidas pela Lei 13.964/2019 e reafirmação da natureza jurídica da sanção penal.
A modificação de diversos dispositivos pela Lei 13.964/2019 teve como principal objetivo, na maioria dos casos, o recrudescimento do poder punitivo do Estado, aumentando o punitivismo sobre os supostos subversores das Leis Criminais. No entanto, a modificação no que concerne ao artigo 51 do Código Penal adveio com o objetivo de compatibilizar a codificação criminal com o entendimento do Pretório Excelso, na ADI 3150. Veja-se a sua nova redação:
“Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.”. (Nossos grifos)
A priori, a modificação legislativa manteve a disposição da redação anterior, exigindo o trânsito em julgado da sentença condenatória para que haja a execução da sanção penal de multa, o que significa dizer que execução provisória da pena de multa é proibida. Essa disposição foi de extrema importância, tendo em vista que está em harmonia com o atual entendimento da proibição da execução provisória da pena privativa de liberdade sem o trânsito em julgado, à luz do estado de inocência[6].
Além disso, verifica-se que a nova redação do artigo permanece ressaltando que a multa é considerada dívida de valor, o que não denota, necessariamente, dizer que a natureza da sanção penal foi modificada, tendo em vista que é aplicada em conjunto com uma sanção privativa de liberdade ou restritiva de liberdade. A origem/causa da norma permanece a mesma, e, por isso, mantêm-se a sua natureza jurídica.
A partir dessa reflexão, verifica-se a principal modificação, o artigo 51 agora colaciona expressamente que a pena de multa será executada perante o juiz da execução penal. Ratifica-se, portanto, o entendimento outrora acolhido pelo STF no sentido de que a execução deve ser promovida pelo Ministério Público Estadual ou Federal. No entanto, a normativa restou silente quanto à execução subsidiária da Fazenda Pública. Com o objetivo de dirimir essa dúvida, o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais (CNPG) editou enunciado afirmando que cabe preferencialmente ao membro do Ministério Público com atribuição para execução penal ingressar com a ação para a execução da pena de multa perante o juízo das execuções penais, sob o rito da Lei 6.830/80, ou seja, a Fazenda Pública poderá executar a multa, caso o Parquet não a faça[7].
Muito embora tenha havido a preocupação da nova legislação em compatibilizar o Código Penal com o entendimento jurisprudencial, o mesmo sentir não se pode afirmar nas disposições relativas à multa na Lei 9.099/95. Observa-se que o artigo 85[8] possui regra anterior à Lei 9.268/1996, com diretrizes que permitem a conversão da pena de multa em privativa de liberdade, em total descompasso com o ordenamento jurídico atual. Mesmo com essa previsão, deve-se interpretar o dispositivo da Lei dos Juizados Especiais à luz de uma carga valorativa constitucional, sem perder de vista que a Lei dos Juizados traz tratamento menos gravoso do que aquele presente no Código Penal, ocorrendo flagrante violação ao princípio da proporcionalidade.
Ademais, deve ressaltar que, mesmo que a execução seja realizada perante a Vara de Execuções Penais (VEP), observa-se que deve seguir os preceitos da Lei de Execução Fiscal de n.º 6.830/80, ratificando uma situação paradoxal com a aplicação de 2 (dois) diplomas normativos relativamente ao mesmo instituto.
Essa disposição já era criticada antes mesmo do surgimento da Lei 13.964/2019, tendo como um dos seus principais expoentes Cézar Bittencourt:
Ficou interessante, por fim, a confusão criada por essa nova lei: o lapso prescricional continua sendo regulado pelo Código Penal (art. 114), mas as causas interruptivas e suspensivas da prescrição são as previstas pela Lei de Execução Fiscal (Lei n. 6830/80), com exceção, é claro, da morte do a agente (BITTENCOURT, 2000, p.510).
Portanto, embora tenha havido alteração importante no dispositivo, verifica- se que a modificação legislativa ainda padece de problemas, sem a indicação expressa da atribuição da Fazenda Pública como legitimada supletiva na execução da dívida de valor e a manutenção do procedimento utilizado na Lei de Execução Fiscal para a execução de uma dívida de valor com natureza jurídica penal.
4. Repercussões jurisprudências e fundamentos para afastar o estigma.
A ideia do etiquetamento foi desenvolvida nos anos de 1960/1980, também conhecida como Labelling Approach ou Interacionismo Simbólico ou Reação Social. O estudo aponta que a criminalidade não advém da qualidade humana, mas existe a partir de um processo que atribui essa qualidade ao indivíduo. A criminalidade é criada pelo próprio controle social. Logo, há uma diferenciação entre o homem comum (aquele que segue as regras estipuladas pela maioria) e o Criminoso (que recebe o etiquetamento de desviante).
Nesse sentir, o etiquetamento é uma modalidade de criminalização secundária, verificando-se quando os órgãos estatais detectam um indivíduo, a quem se atribui a prática de um ato primariamente criminalizado, sobre ele recaindo a persecução penal. É marcado pela vulnerabilidade e seletividade.
Com base nessa ideia, a pena de multa, reafirmando o seu caráter penal e estigmatizante, foi reafirmada recentemente pela 5ª Turma do STJ (REsp. 1.850.903) afastando a então orientação que havia sido adotada pela 3ª Seção do Tribunal da Cidadania no sentido de que, anteriormente, o inadimplemento da pena de multa não tinha o condão de impedir a extinção da pena, uma vez que o condenado tivesse cumprido inteiramente a privação da liberdade. Atualmente, caso não haja o pagamento da multa, em regra geral, não se pode declarar a extinção da punibilidade, mesmo que já cumprida a pena privativa de liberdade.10
Entretanto, o próprio STJ, por meio de sua 3ª Seção, realizou uma distinção (distiguishing) apontando que aquelas pessoas consideradas vulneráveis financeiramente não poderiam ter a extinção da punibilidade impedida, sob pena de ser estar realizando interpretação geradora de criminalização da pobreza e a ratificação da seletividade penal, conforme afirma Rubens Casara, de modo que o sistema de justiça penal, equivocadamente, acaba substituindo, na prática, as políticas sociais inclusivas[9].
Ademais, o próprio E. Ministro Rogério Schietti no REsp 1.785.383/SP apontou no Tema Repetitivo 931, em 2021, que: "(...) ineludível é concluir que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção do núcleo familiar (artigo 226 da Carta de 1988)".
Observa-se que as pessoas vulneráveis são, na maioria das vezes, assistidas pela Defensoria Pública, função essencial à justiça, de acordo com o artigo 136 da Constituição Federal, o que denota, ainda mais, a importância de que se afaste a proibição da extinção da punibilidade pela ausência do pagamento da multa, visto que não possuem a possibilidade de arcar com os custos judiciais da demanda e também de contratação de advogado, sem que se afete desproporcionalmente as condições de sobrevivência, rechaçando as consequências lógicas da teoria do impacto desproporcional.
No julgado apontado acima, assentou-se que pensar de forma contrária levaria à “sobrepunição da pobreza” e “acentuaria a já agravada situação de penuária e indigência dos apenados hipossuficientes”, em razão de que, caso seja obstada a extinção da punibilidade, a suspensão dos direitos políticos se manterá, o que pode gerar reflexos ainda maiores de perpetuação do estigma de ex-recluso, gerando a impossibilidade, de muitas das vezes, de conseguir um emprego formal.
Nesse sentido, produz-se uma massa de presos que não conseguem emprego durante o cárcere (ressaltando a obrigatoriedade presente na Lei de Execução Penal), reflexo da situação de coisas inconstitucionais dos presídios brasileiros (ADPF 347), que saindo do cárcere se vê impedido de conseguir emprego, produzindo, o que o Ministro Schietti apontou, como: “um círculo vicioso de desespero”.
Ademais, deve-se ponderar que admitir a utilização da multa como fator obstativo da extinção da punibilidade, traria a situação de que estaríamos, de forma reflexa, readmitindo a possibilidade da prisão corporal pelo não cumprimento da multa, fator que deve ser rechaçado, à luz do sistema jurídico democrático escolhido pelo Constituinte Originário, que, por meio da sua força normativa, tendo como marco teórico o neoconstitucionalismo, modificando a compreensão segundo a qual todos os ramos do direitos deverão passar por um filtro de constitucionalização.
Tal premissa também segue a orientação dos objetivos da Resolução do CNJ 425/2021, que determinou aos juízes de execução penal avaliar a possibilidade de extinguir a punibilidade do réu que já tenha cumprido a pena de prisão e esteja em situação de rua.
Em razão do exposto, deve-se ponderar a aplicação do Direito Penal frente aos Direitos Humanos (Protocolos e declarações internacionais) e Direitos Fundamentais (Direito Constitucional), sem perder de vista os direitos essenciais ao indivíduo, derivados da sua condição humana, previsto na ordem internacional. O Direito Penal, por implicar em restrição libertária, um dos principais Direitos Humanos, deve ser exercido em conformidade com este.
5. Da conclusão
Levando-se em conta o que foi observado, a pena de multa é um instrumento presente no Código Penal e tem como objetivo principal ressarcir o Estado sobre os danos que porventura o autor do fato proporciona com a sua ação típica e antijurídica, além de ser uma forma de coibir o cometimento de delitos (função intimidatória – prevenção geral negativa).
Diante do contexto histórico, a pena de multa surgiu com força executiva que possibilitava, diante de seu inadimplemento, a prisão por detenção do infrator. Todavia, com a mudança operada pela Lei 9.268/1996, ratificou a importância da ferramenta para o Direito Penal, notadamente quanto à impossibilidade de prisão do apenado, evitando-se a entrada do sujeito no submundo do cárcere, além de evitar a retirada do convívio familiar e da estigmatização que a privação de liberdade gera naturalmente.
Além disso, a importância de ratificação do entendimento dos Tribunais Superiores com a modificação da norma pelo Pacote Anticrime demonstra a preocupação do legislador em atualizar o ordenamento frente às necessidades do sistema penal. Verifica-se que a disputa inicial de legitimação para a execução da pena de multa é extirpada, a princípio, na medida em que o legislador infraconstitucional direciona que a execução deve ser operada pela Vara de Execução Penal. Todavia, resta ausente a previsão de legitimidade supletiva da Fazenda Pública, em divergência com a jurisprudência dominante. Vale ressaltar que, mesmo com essa lacuna, parte da doutrina entende que a Fazenda Pública permanece com a legitimidade supletiva, caso o Ministério Público não execute a multa.
Ainda, a manutenção da natureza da multa como sanção penal parece-nos a decisão mais acertada, tendo em vista ser originada de cometimento de um ilícito penal, afastando-se qualquer caráter civil, muito embora se utilize da Lei n. 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública e dá outras providências.
Todavia, tal natureza jurídica não afasta a possibilidade de rechaçar a cobrança deste multa como condicionante para a extinção da punibilidade, por ser uma medida desproporcional, que fortalece o estigma do cárcere, promovendo a manutenção da desigualdade social e o ciclo de manutenção do status quo de pobreza e marginalização.
Portanto, a alteração supramencionada é um das novidades alavancadas pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019). Alerta-se, mesmo que o sentido da norma fosse aprimorar a reprimenda legal, à luz da realidade e dos anseios populares, não está isenta de críticas, que, sem sombras de dúvidas, irão surgir no aprofundamento dos debates ao longo do tempo.
6. Referências
BATISTA, Nilo. Introdução crítica do Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 2001.
BITENCOURT, César. Falência da pena de prisão - causas e alternativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.
BITENCOURT, César Roberto. Manual de Direito Penal - parte geral. v. I. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal - parte geral. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1993.
MASSON, Cleber. Manual de Direito Penal - Volume I - Parte Geral. São Paulo. Editora Gen Jurídico, 2019.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
[1] Art. 5º, XLVI da CF/88 - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: c) multa;
[2] Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
[3] Não é mais aplicado, diante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RE 349703 e RE 466343), em compatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, como também ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU e a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana.
[4] Art. 51 do Código Penal (redação dada pela Lei de n.º 9.268/1996: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.
[5] Súmula 521 do STJ: A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública. (Publicada no DJE de 6-4-2015).
[6] 1ª Jornada de Direito Processual Penal. Enunciado 25: As obrigações pecuniárias (pena de multa, custas processuais e obrigação de reparar os danos) advindas da sentença penal condenatória recorrível, não podem ser executadas antes do trânsito em julgado.
[7] Enunciado 1 do CNPG.
[8] Art. 85 da Lei 9.099/95: Não efetuado o pagamento de multa, será feita a conversão em pena privativa da liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei.
[9] (Rubens Casara, O estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, págin.91,2020).
Advogado. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduado em Direitos Humanos pela Faculdade CERS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARDOSO, LUIS PAULO ROCHA. A pena de multa no Direito Penal: Repercussões jurisprudências e fundamentos para afastar o estigma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59028/a-pena-de-multa-no-direito-penal-repercusses-jurisprudncias-e-fundamentos-para-afastar-o-estigma. Acesso em: 22 nov 2024.
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