RESUMO: A presente pesquisa justifica-se sob perspectivas social e jurídica, como se passa a discorrer, associando-se tais justificativas aos seus respectivos pressupostos teóricos. Há uma nova tendência moral de afetos da relação humana com os animais e o desenvolvimento da sociedade passa a demonstrar a necessidade de novas proteções jurídicas aos animais. Para tanto, analisa-se se a perspectiva constitucional do antropocentrismo alargado dentro do direito civil. Conseguinte examinar-se-á a relação dos animais dentro do direito civil e a partir desta compreensão problematiza-se sobre a possibilidade de caracterizar os animais como sujeitos de direito no direito civil em conformidade com o ordenamento jurídico constitucional. O objetivo geral é identificar a possibilidade de animais serem titulares de direitos, a partir do princípio da dignidade humana e do princípio da solidariedade. Do ponto de vista metodológico, será realizada pesquisa de cunho descritivo e exploratório, a partir de meios de pesquisa bibliográficos e documentais.
Palavras-chave: Animais como sujeitos de direitos; Antropocentrismo alargado; Direito Civil; Direito Constitucional Ambiental.
INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho se apresenta nas grandes áreas de Filosofia do Direito, Direito Ambiental, Direito dos Animais e Direito Civil. A partir desses, o presente tema especifica-se na dignidade dos animais. A dignidade dos animais é uma matéria com amplo debate na jurisprudência e na doutrina, isso porque o Direito Civil Clássico define o animal somente como posse, res nullis. Ocorre que, com o advento de um novo paradigma ético ambiental, o ordenamento jurídico passa por uma transformação de sua concepção, e assim surge a necessidade de conceituar os animais de outra forma, além de um mero objeto.
Atualmente o direito tem se atualizado, os animais não são compreendidos somente como posse, como determinava-se no Direito Civil Clássico. Evidentemente há uma tutela aos animais, mas ainda há amplo debate sobre a definição jurídica dos animais, se são, ou não, sujeitos de direito. A partir da compreensão de como a Carta Magna define os animais, pesquisa-se o embate da nova perspectiva ética constitucional com o direito civil e de como os animais são considerados e tutelados pelo direito privado.
Problematiza-se no presente trabalho em que medida a ética constitucional do antropocentrismo alargado pode modificar a compreensão dos animais serem considerados como objetos para o direito civil.
Nesta ótica, de um antropocentrismo alargado, de forma como prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil em seu art.225, o objetivo geral é confrontar os estudos bibliográficos da teoria ética com as teorias e normas do direito civil brasileiro. Trata-se de uma pesquisa jurídica, de cunho exploratório.
Como objetivos específicos, em um primeiro momento, busca-se apresentar um breve relato acerca da formação da conjuntura ética e da mudança de paradigma previsto na Constituição; indicar a fundamentação doutrinária e legislativa do antropocentrismo alargado; analisar os reflexos da ética nos princípios constitucionais; pontuar as proteções constitucionais e infraconstitucionais aos animais; compreender como o direito civil brasileiro identifica os animais, se há ou não personalidade jurídica e qual a teoria jurídica que define a defesa de seus direitos.
O tema é de grande relevância no contexto atual, uma vez que cada vez mais há o aumento de judicialização de casos que envolvem os animais e recentemente tem se compreendido pela jurisprudência e doutrina a possibilidade de os animais serem sujeitos de direito. O presente artigo busca analisar o centro do debate, que é em que medida e como estes se configuram no atual sistema.
Nesse contexto, de proteção a um direito fundamental, relacionado ao meio ambiente, e a configuração deste no direito civil, expande-se o raciocínio jurídico ao relacionar-se com outras áreas do conhecimento para abarcar a construção filosófica e doutrinária.
A pesquisa desenvolveu-se, do ponto de vista metodológico, por meio da doutrina de filosofia do direito e do direito civil e de acesso aos artigos científicos já publicados em plataformas científicas. Apresentou-se a partir do método dedutivo, de pesquisa interdisciplinar exploratória.
1.O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A recente preocupação com a matéria ambiental é uma complexa questão no direito internacional e nacional, há uma intensa mudança e modernização que afetam diretamente o mundo jurídico, bem como o direito dos animais. Os direitos fundamentais de terceira geração inseridos na ordem internacional inauguraram novos valores éticos da sociedade.
Antes da Conferência Internacional do Meio Ambiente Humana, realizada em Estocolmo, capital da Suécia, em 1972, havia nos diversos ordenamentos jurídicos a compreensão de uma ética antropocêntrica, no qual o homem era o centro de todo o sistema. Como bem aponta José de Robson da Silva (2002), o antropocentrismo puro, ou clássico, não determina qualquer homem como centro de todo ordenamento, limita-se ao sujeito de direito que detém a propriedade, silenciando os não proprietários.
A partir de 1972 o ordenamento jurídico internacional há uma abertura para uma nova ética ambiental, a de um antropocentrismo alargado. Nesta, o homem ainda impera como centro de todo ordenamento jurídico, mas não somente o homem que possui a propriedade, há uma ampliação para a incorporação de sujeitos de direitos como um todo, aqueles que detém a dignidade da pessoa humana.
O ordenamento jurídico é determinado pelo estado da evolução social, o contexto social define como as normas jurídicas configurar-se-ão. A partir disso há mudança no seu conceito, no conjunto de práticas concretas e na função social de todo o campo jurídico (BITTAR; ALMEIDA, 2015).
É importante para o campo jurídico a compreensão da mudança dos valores e percepções sociais, uma vez que a propedêutica jurídica fundamenta, a partir do paradigma ético, a sistemática jurídica constitucional. Ressalta-se que a doutrina ambiental analisa um novo paradigma ambiental, o paradigma antropocêntrico alargado. Este engloba para si novos princípios, com finalidades de proteção e dignidade, para o humano, mas como também para o ambiente.
A matéria ambiental brasileira tem a sua base no artigo 225 da Constituição Federal, o qual notoriamente se fundamenta em uma ética paradigmática antropocêntrica, desta forma normatizado:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988).
Notadamente na definição do caput do art.225, que embasa o ordenamento jurídico brasileiro, reconhece o meio ambiente como bem jurídico autônomo e recepciona-o na forma de sistema, e não como um conjunto fragmentário de elementos. A definição de um meio ambiente equilibrado é compreendida tanto como um direito da personalidade, na perspectiva do direito privado, como um direito humano e subjetivo de garantia constitucional (BENJAMIN, 2008).
O antropocentrismo alargado é perceptível a partir desta compreensão, uma vez que mantém o princípio da dignidade da pessoa humana como centro, o meio ambiente é um bem de uso comum do povo. Mas também, alarga o conceito ao qualificar que todos têm direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, sendo ele essencial à qualidade de vida. Assim, é possível uma abertura para novas óticas éticas, ou seja, biocêntricas e ecocêntricas, que passam a ter outros objetos de direitos, que não somente os humanos.
A partir disso, há de se entender que a Constituição traz em si uma superação do antropocentrismo clássico, vez que não há mais a crença da existência de uma linha divisória entre o ser humano e o resto da natureza. O ser humano é ainda a principal fonte, mas não é a única moralmente relevante. A natureza não humana não está para o direito como tendo como único propósito servir como coisa ao ser humano (ECKERSLEY, 1992, apud BENJAMIN, 2011).
A ética ocidental que coloca o homem no centro do universo, passa a não ser mais cabível e sustentável ao convívio do homem no planeta. Além das consequências da destruição ambiental, o paradigma antropocêntrico confronta diretamente os novos valores sociais, o qual tem por finalidade a dignidade da pessoa humana.
Há uma perspectiva de mistura racionalista e humanista que separa a humanidade da natureza, que cindiu o mundo físico do universo mental, tendo como resultado um individualismo filosófico. A tradição ocidental dicotomiza homem e natureza, com fundamento num logocentrismo definidor de que o homem por ter poder de fala, poder viver a moralidade é ele quem domina todos os outros elementos. A importância do homem e o desprezo ao mundo natural é notada, por exemplo, com a frase de Hobbes, que define mau quando traços animais tomam conta do homem, o traço para quem o homem é o lobo do homem (GODOY, 2004).
No antropocentrismo puro há uma separação entre a humanidade e o resto da natureza, sendo incompatível com a totalidade da dignidade humana, uma vez que há uma simbiose direta entre os dois objetos de direito. Os novos valores da sociedade, bem como os princípios do atual direito, em especial o princípio da solidariedade, regem pela dignidade humana e pelo meio ambiente.
A palavra meio ambiente, ou seja, de acordo com sua origem latina significa o meio em que vivemos, o que está à nossa disposição e tudo aquilo que nos rodeia, esta definição mesmo que pareça redundante delineia a essência da relação do homem com o que está em seu entorno. Desta forma, o meio ambiente é o conjunto de todas as reações e interações, sendo tudo aquilo que envolve o objeto principal de direito, que é o ser humano.
Nesta ótica, o ordenamento jurídico brasileiro tem como base uma forma ampliada do paradigma antropocêntrico, que se baseia nas convenções já estabelecidas pelo Direito Clássico, mas que se amplia a uma nova ética e novos princípios.
Há, desta forma, dois aspectos diferentes na própria ética do ordenamento jurídico brasileiro. Um mais utilitarista, que é presente principalmente no direito privado, denominado antropocentrismo extrínseco e outro que admite conferir um estatuto de “sujeito moral” ao meio ambiente, que porém não reconhece nele valor intrínseco ou a possibilidade de titulação de direito (BENJAMIN, 2011).
O princípio da solidariedade compreende que de forma complementar à tutela das gerações futuras, há o reconhecimento de que os seres da natureza merecem um status próprio, inclusive jurídico, não como sujeitos de direito, mas uma conformação normativa que vai além de tipificar os animais como simples res, ou coisa, como compreende o Direito Privado tradicional (BENJAMIN, 2011).
No âmbito do Direito positivo constitucional nacional a dignidade humana impera como o princípio fundamental, ocorre que no mesmo projeto social gravou-se na Constituição o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um de seus núcleos. Não há dessa maneira confusão entre o antropocentrismo clássico e o alargado, uma vez que este aceita em parte um paradigma biocêntrico em conjunto, contato que este seja vinculado aos interesses e perspectivas da pessoa humana (SILVA, 2002).
O antropocentrismo clássico é baseado principalmente na teoria de Immanuel Kant, este elenca que todas as coisas, estando incluído assim os animais, devem servir como meio para o bem do ser humano, uma vez que este é o único portador de dignidade. Sendo esta dignidade contemplada pela racionalidade que tem um fim em si mesmo, não como meio (KANT, 2007).
Com a evolução do princípio da solidariedade, bem como na compreensão de que o direito passa a contemplar direitos difusos, em detrimento a coletividade, não é possível a análise de um antropocentrismo puro. Mesmo que a natureza não seja um sujeito de direito, há de se compreender que esta são objetos de direito e de proteção, tanto em detrimento ao homem presente, como ao homem futuro.
Ainda mais, analisa-se a valoração que o homem dedica a cada coisa, uma vez que a moralidade é criada pela pessoa natural que tem o ordenamento jurídico como finalidade de contemplação do seu direito.
Há que se compreender que a natureza não contém valores em si, mas ela por si só tem um ser, o homem, que naturalmente valora cada elemento que a natureza contém. Desta forma, a manifestação do homem cria em si o mundo das coisas e dos direitos, que assim passa a definir o valor de cada elemento no ordenamento jurídico (HERMANN, 2006).
Deste modo, a doutrina ambiental, baseando-se na compreensão do antropocentrismo alargado se contrapõe ao radicalismo proposto por Kant, e assim compreende-se que:
é certamente possível questionar o excessivo antropocentrismo que informa tanto o pensamento kantiano quanto a tradição filosófica ocidental de um modo geral, especificamente confrontando-a com os novos valores ecológicos que alimentam as relações sociais contemporâneas e que reclamam de uma nova concepção ética, ou, o que talvez seja mais correto, a redescoberta de uma ética de respeito à vida que já era sustentada por alguns. (SARLET; FENSTERSEIFER. 2017. p. 90 e 91).
Há também outras teorias e pensamentos filosóficos que não coadunam com o ordenamento jurídico brasileiro, um deles é a filosofia utilitarista, proposta por Bentham e Mill. A filosofia utilitarista propõe que as escolhas a serem feitas devem proporcionar o maior número de bem-estar para a maior quantia de pessoas possível, não somente se restringindo a um único ser, podendo incidir a qualidade inclusive para os animais não-humanos (SANDEL, 2012).
Ocorre que, o princípio da solidariedade não contempla em si o maior número de bem-estar, mas sim a qualidade e dignidade da pessoa humana, não somente a atual geração, como também as futuras. Sendo impossível mensurar o bem-estar futuro do ser humano deve se proteger para que as próximas gerações possam definir como proteger e definir os direitos do meio ambiente em sua totalidade.
Desta maneira, há a conclusão deste capítulo no sentido de que há a necessidade de reformular as compreensões doutrinárias, bem como propor compreender a teoria antropocêntrica alargada para a correta interpretação do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Deve-se reformular o conceito de dignidade, especialmente em relação aos animais, encontrando desta maneira o reconhecimento de um fim em si mesmos. Ressalta-se que há a necessidade para o direito brasileiro do reconhecimento de um valor intrínseco conferido aos seres sensitivos não humanos, com o fim de ter reconhecido o seu status moral e dividir com o ser humano a mesma comunidade moral (SARLET, 2017).
O antropocentrismo clássico, ainda tem força no atual ordenamento jurídico, uma vez que a forte tradição humanista ainda impera na base ética da sociedade. Desta maneira é que o antropocentrismo alargado surge como uma solução para a compreensão da dignidade dos animais, vez que a base ética do atual ordenamento jurídico propõe mais do que somente a dignidade e bem estar do humano.
A compreensão que as normas ambientais atingem diferentes indivíduos e populações, deve ser compreendida com uma forma de solucionar as diversas lacunas jurídicas, bem como a inércia de muitos estados em dar efetividade à defesa dos direitos dos animais. Quando os desafios ambientais não são enfrentados pela atual doutrina há riscos severos que atingem a sociedade em geral, sendo o dever do ordenamento jurídico amparar a dignidade humana, bem como ao todos os objetos de direito que são conferidos direitos pelo próprio ser humano.
2.O DIREITO CIVIL E DIREITO DOS ANIMAIS
No capítulo anterior compreendeu-se que, a partir da Constituição se interpreta que a base constitucional ambiental traduz um antropocentrismo alargado. Há uma grande relevância nessa compreensão, uma vez que é a partir desta que se interpreta as demais normas infraconstitucionais. A ética antropocêntrica alargada faz parte da norma hipotética fundamental que fundamenta o ordenamento jurídico brasileiro.
As normas constitucionais, quando regulam os direitos difusos do meio ambiente, normatizam, em seu inciso VII do §1º do Artigo 225 da Constituição Federal, a proibição de práticas que coloquem em risco a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Tal proteção tem caráter ambiental, baseado no direito difuso e no princípio da solidariedade intergeracional.
Há também, outras proteções aos animais que decorrem diretamente dos seus proprietários, isso porque os animais não humanos, como elencado no artigo 82 do Código Civil, são considerados como um bem móvel semovente, ou seja, propriedades. Salienta-se que todo proprietário deve cumprir a função social da propriedade, sendo esta função social pertinente a defesa dos direitos dos animais.
Nestas duas posições os animais são objetos de direito, os animais silvestres como bens de uso comum, e os domésticos como seres passíveis de serem objetos de direitos reais. Ocorre que, não há nesse aspecto uma fundamentação jurídica condizente para a nova normativa constitucional trazida pela Constituição, deste modo, objetiva o presente artigo fundamentar a questão dos animais no direito civil. De maneira que haja compatibilidade com a ética do antropocentrismo alargado e a teoria jurídica do direito civil.
A possibilidade mais concreta é o enquadramento dos animais como seres sujeitos de direito, uma vez que estes são protegidos pela lei pela sua própria subjetividade, independente dos direitos dos proprietários e dos direitos difusos. Destarte, os animais classificam-se para o direito civil como sujeitos não personificados ou despersonificados.
A personalização não é condição para possuir direitos ou ser obrigado a qualquer prestação, a personalidade confere ao sujeito uma autorização genérica para atos e negócios jurídicos, de forma diferente quando há um sujeito sem a personalidade, que tem atributos próprios e podem praticar atos inerentes à sua finalidade, bem m os atos autorizados por lei. Os sujeitos de direitos despersonalizados são aptos a titularizar direitos e deveres (COELHO, 2012).
Sujeitos de direitos são gênero, que corresponde ao sujeito que é titular de interesses em sua forma jurídica, podendo ser personificados ou despersonificados. Desta maneira, pessoa é espécie, assim, nem todo sujeito de direito é pessoa, embora toda pessoa seja sujeito de direito (DINIZ, 2012).
É compreendido que as pessoas despersonificadas são um agrupamento de sujeitos que não se enquadram para o direito como pessoas naturais, bem como não se enquadram como simples bens, uma vez que possuem uma aptidão limitada para ser titular de direitos e deveres. Desta forma, o ordenamento jurídico cria normativamente e tecnicamente esta categoria.
São os entes despersonalizados um conjunto de direitos e obrigações, pessoas e bens, sem personalidade jurídica. Desta forma qualquer enumeração feita será sempre exemplificativa, e não taxativa. O inciso VII do art. 12 admite interpretação extensiva desses entes (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO; 2017).
Os entes despersonificados constituem uma comunhão de interesses, uma vez que têm consigo um conjunto de direitos e obrigações, deste modo, são dotados de capacidade processual, mediante representação, conforme normatiza o artigo 12 do Código Civil (DINIZ, 2012).
Desta maneira, há a possibilidade de compreender que os animais são entes despersonificados, a partir de uma interpretação extensiva do art.12 do Código Civil. Tal classificação garante aos animais a qualidade tanto de objeto, como de sujeito nas relações jurídicas. Desta maneira, além de configurarem como seres sujeitos aos direitos difusos e da propriedade, os animais podem ter direitos próprios e o reconhecimento de uma dignidade relativa, que leva em conta serem seres sencientes.
Compreende-se de forma diferente à parte da doutrina, que compreende que o legislador deixou de reconhecer os animais como seres sencientes, e ainda que, segue-se a lógica utilitarista uma vez que somente são objetos para serem utilizados pelo ser humano, sendo possível a sua proteção somente quando há interesse humano da posse dos seres humanos.
Na concepção Kantiana, os animais são coisas, as quais são meios, sendo sua finalidade a completa dignidade do ser humano. Ressalta-se que o homem por ser o único ser racional é o único que porta a dignidade (KANT, 2007).
Apesar de haver uma clara confusão entre as duas doutrinas, é possível analisar que Kant se baseia na concepção da dignidade da pessoa humana, a qual determina a base de todo o sistema constitucional brasileiro. De diferente forma ocorre com a utilitarista, que se baseia na proporcionalidade de maior número de bem-estar.
É possível questionar o excessivo antropocentrismo no pensamento kantiano e na tradição filosófica, ainda mais quando os confronta com os novos valores éticos e ecológicos, que determinam as relações sociais contemporâneas. Sendo necessário uma redescoberta de uma nova ética a respeito da vida para o ordenamento jurídico (SARLET; FENSTERSEIFER. 2017).
Desta forma, não se alia e nem mesmo se distancia da concepção de Kant, uma vez que não se encontra no ordenamento jurídico normatizações que conferem uma aptidão genérica aos animais. É possível encontrar diversas normas que determinam direitos e deveres específicos, de acordo com a sua finalidade, como também, a sua senciência. A partir dessa análise é possível compactuar às normas que prescrevem a proibição de maus tratos, ao normatizado nas normas infraconstitucionais de que o animal é propriedade.
De forma pacífica, se concilia com a norma hipotética fundamental do atual sistema jurídico, uma vez que o caput do art.225 da Constituição prevê um antropocentrismo alargado. Nesta ética, a partir do ponto de vista jurídico, tem considerado a natureza, ora como objeto, ora como sujeito (SIRVINSKAS, 2018).
Ressalta-se que o antropocentrismo quando vinculado a uma Doutrina Clássica não promove efetivamente uma centralidade do homem, mas sim uma negação da totalidade humana. Essa cosmovisão não defende o humanismo, mas a proteção do direito das propriedades negando a totalidade humana. Já o antropocentrismo alargado compreende que para a efetividade do direito à dignidade humana, o ser humano tem de a reconhecer que outros seres tem um valor em si, sendo na maioria das vezes um valor vinculado ao ser humano, isto porque o ser humana é um ser que valora os bens ao seu redor (SILVA, 2002).
A lógica utilitarista do antropocentrismo clássico é superada pela lógica humanista, que tem o humano como centro, mas que este valora e compreende o mundo ao seu redor. Sendo assim, a preocupação com a totalidade humana passa principalmente aos que foram postas às margens do sistema. O direito fundamental ao equilíbrio ambiental não é dicotômico, mas sim um valor que se insere como direito humano.
Desta forma o ordenamento jurídico insere-se na filosofia com descendência na tradição humanista grega, uma vez que o homem que detém a racionalidade é capaz de compreender a realidade ao seu redor, podendo assim propor uma hierarquia de direitos aos seres. De acordo com a anatomia aristotélica, por exemplo, as plantas possuem apenas propriedades nutritivas, já os animais em geral são dotados de propriedades sensitivas e motoras, os animais superiores são dotados de matéria, forma, movimento, sensibilidade e potencialidade receptiva, e por fim, ao topo da pirâmide há o homem aliando a todas essas propriedades em grau elevado (FREITAS, 2013).
Insere-se neste aspecto de forma sistemática as relações civis, que determinam as relações do homem, a partir de normas que se fundamentam na natureza social humana e na necessidade de organização da sociedade. Desta maneira, o animal como um elemento das relações sociais, acaba por participar da integração normativa de fatos e valores (DINIZ, 2012).
A complexidade das relações exige do Direito a construção de conceitos abstratos, destinados a dar uma forma jurídica para a titularidade dos interesses dos quais os humanos valoram. De forma que, a partir da norma constitucional é possível determinar que o ser humano valora de forma específica os animais, sendo estes capazes, como “seres ideais”, de serem titulares de direito. Ressalta-se que a finalidade do direito é promover a superação do conflito de interesses da sociedade humana, de forma que caracterizando como sujeitos os entes despersonalizados, está tratando racionalmente a convergência (e divergência) de interesses do humano (COELHO, 2012).
É visível que na passagem para o século XXI percebe-se o valor moral das “coisas” da natureza, bem como a análise das influências delas na vida dos seres humanos. O ambiente não é neutro, suas relações devem ser vistas com valores morais, após séculos de devastação se percebe que a correlação humana com a natureza deve ser mantida, protegida e restaurada (BENJAMIN, 2011).
Evidentemente há uma tutela aos animais, mas ainda há amplo debate sobre a definição jurídica desses seres, destoando em diversas decisões e posições se os animais são ou não sujeitos de direito. Deste modo, deve haver uma compreensão, também, da relação social e de afetividade entre os animais e os seres humanos, além da consideração desses animais como sujeitos de direito com personalidade jurídica limitada.
Mesmo que o antropocentrismo alargado seja a base do sistema constitucional e uma solução para diversos conflitos, ao possibilitar a ampliação da dignidade dos animais, há ainda, por parte da maioria doutrina jurídica, em especial a civilista, um pensamento conservador, que impede o avanço da doutrina animalista.
Apesar disso, atualmente percebe-se um movimento de modificação da jurisprudência, a partir da doutrina e das decisões dos tribunais. Em sessão na data de 14 de setembro de 2021 a jurisprudência da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), decidiu por unanimidade que os animais têm capacidade processual, classificando-os como sujeitos de direito despersonalizados. Da mesma forma, a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça analisa atualmente a possibilidade de pensão alimentícia para animais, recurso advindo de uma ação julgada procedente no Tribunal de Justiça de São Paulo.
A conservação dos valores do antropocentrismo clássico ainda impera no direito civil. A tradição dominadora e privatista do direito ainda é a configuração da base ética da sociedade. Tal fato é compreensível, para uma ética que foi construída por séculos tendo por base somente o ser humano, há uma dificuldade de aceitar que a sua realidade vai além de si mesmo, que há um macrocosmo do qual o ser humano só é uma das relações.
Destaca-se, porém, uma constante mudança na compreensão dos animais no campo jurídico, valorizando-os de forma distinta a de res nullis, visualiza-se desta forma uma possível compreensão de personalidade jurídica limitada no direito civil.
CONCLUSÃO
O confronto da teoria ética com a teoria civilista, a partir de estudos bibliográficos, evidenciou que os animais, apesar de serem tratados como meros objetos de direitos pelo direito civil, têm seus direitos previstos constitucionalmente. Além disso, a compreensão da teórica ética antropocêntrica alargada demonstra que há possibilidade de o ordenamento jurídico ampliar a defesa de direitos dos animais, conforme ocorra a valoração e a compreensão da senciência desses.
Compreende-se que o ordenamento jurídico determina as normas jurídicas a partir da evolução social, ao modificar os valores e percepções sociais a Carta Constitucional definiu que para a contemplação do princípio da dignidade humana, há necessidade de ser protegido o ser humano e os bens ambientais à sua volta. De forma que para a definição de proteção desses bens o ordenamento jurídico deve valorar conforme a relação e a importância destes para o ser humano.
Deste modo, a partir do paradigma ético, a sistemática jurídica constitucional engloba para si novos princípios, com finalidades de proteção e dignidade, que impactam diretamente nas normas infraconstitucionais. Assim, o sistema civil brasileiro, ao ser interpretado de acordo com a ética do antropocentrismo alargado, deve reconhecer que os animais, apesar de não serem entes com personalidades jurídicas plenas, devem ter direitos reconhecidos por si só e não somente como bem ambiental e da defesa da propriedade.
E assim, com o progresso da sociedade e a modificação das relações, há a possibilidade da construção de conceitos abstratos, destinados a dar uma forma jurídica para a titularidade dos animais, de forma distinta para cada relação possível, conforme os interesses dos quais os humanos valoram.
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Advogado; Pós Graduando em Direito Ambiental e Agronegócio – PUC/PR; Graduado no curso de Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SERENATO, Matheus Sad. Animais como sujeitos de direito sob a perspectiva do antropocentrismo alargado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 ago 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59063/animais-como-sujeitos-de-direito-sob-a-perspectiva-do-antropocentrismo-alargado. Acesso em: 25 nov 2024.
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