RESUMO: Este artigo pretende examinar o livro II presente em Ética a Nicômaco, escrito por Aristóteles. Baseado na busca pela excelência moral, o hábito é um produto desta, e para poder atingi-lo é necessário entender quais atitudes levam à excelência e quais levam à deficiência, sendo esta última, algo negativo, baseado em excessos, faltas das emoções e ações de um individuo. Por meio do hábito e costumes passa-se a entender a construção de uma sociedade androcêntrica e ao mesmo tempo questiona-la se atitudes que diminuem as mulheres seriam aceitas como excelência moral. Em seguida é analisada a série Inacreditável sob o prisma de hábitos realizados pelos personagens. Por fim, verifica-se que para uma mudança real a educação é o melhor caminho, pois é por meio dela que boas atitudes podem ser ensinadas e construídas.
Palavras-chave: Aristóteles. Ética a Nicômaco. Livro II. Violência Contra a Mulher. Inacreditável.
ABSTRACT: This articles aims to examine book II present in Nicomachean Ethics, written by Aristotle. The search for moral excellence produces habit, and in order to reach it, it's necessary to understand which attitudes lead to excellence and which lead to deficiency, the latter being something negative based on excesses and lack of emotion or action in an individual. Through habit we are able to understand the structures of an androcentric society and, at the same time, question wether attitudes that belittle women would be accepted as deeds of moral excellence. Furthermore, the article analyses the Netflix series Unbelievable, dissecting the habits portrayed by the characters. Lastly, it is clear that the key to real and effective change is education, since it is through this that good habits and attitudes can ben taught and constructed.
Keywords: Aristotle. Nicomachean Ethics. Book II. Violence Against Women. Unbelievable.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Livro II. 2 A construção de uma sociedade androcêntrica por meio do hábito. 3. Série Inacreditável. 4 Educação como meio para a mudança. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Diante das duas formas de excelência que o ser humano pode ter, a excelência moral é aquela tratada no livro II em Ética a Nicômaco. O escrito de Aristóteles dedicado a seu filho, busca ensinar que é através do hábito que se toma decisões para se tornar uma boa pessoa.
A primeira abordagem a ser feita neste artigo está relacionada diretamente ao Livro II, como forma de entender melhor o que o autor quer dizer com hábito e como se atinge a excelência moral. Para ele, a prática de uma atitude positiva, bem como a adoção de certos critérios é o que leva à excelência. Defini-la é importante, pois só assim é possível entender que emoções e faculdades não podem ser controladas e por isso não é a excelência moral, uma vez que um dos seus pilares é agir de forma consciente e deliberadamente.
Aristóteles também explica que há hábitos ruins, que ele caracteriza como deficiência moral, visto que são emoções ou ações excessivas ou faltantes e que como tais devem ser censuradas, mas nem todas as más condutas devem ser reprováveis, pois o ser humano para atingir o meio termo, por vezes vai cometer excessos ou faltas.
Após análise do Livro II, passa-se para como os hábitos podem formar uma sociedade androcêntrica, e em consequência um corpo social desigual. A questão aqui levantada é se hábitos realizados por uma grande parcela de indivíduos, torna-se positiva, mesmo que se analisada separadamente, esta seria considerada uma deficiência moral.
Como forma de exemplificar condutas de excelência e deficiência moral, será analisada a série Inacreditável, que está diretamente relacionada a hábitos e costumes machistas. Bem como se o cometimento de crimes em série, que vão sendo aperfeiçoados podem ser considerados excelência.
O último ponto a ser tratado é a educação e como ela pode ser um meio para modificar hábitos, tornando-os melhores. Assim como posto por Aristóteles, a melhor das pessoas é aquela que pensa não em si, mas nos outros.
1. LIVRO II
Aristóteles escreve Ética a Nicômaco para seu filho, como forma de lhe ensinar as boas práticas e atitudes que se buscam em uma pessoa. Durante todo o texto, ele deixa claro que tudo o que é feito em demasia é ruim, devendo ser encontrado o meio termo para uma vida de equilíbrio.
De forma mais específica, o autor busca em cada “capítulo”, chamados de livros, retomar o que já foi tratado, mas prosseguido e adicionando assuntos, que são os assuntos focais de cada livro. Há dentro de cada livro, itens enumerados que auxiliam na consistência do tema. Assim sendo, será destrinchado todos os itens presentes no livro II, este que explica o que é a excelência moral, elencando-o com o hábito.
No inicio do livro, Aristóteles retoma da diferença entre excelência intelectual e moral, sendo esta segunda o enfoque. Para ele, a excelência moral é produto do hábito, e é por meio deste que se adquire, ou seja, ela não é construída apenas observando ou ouvindo. É necessário que para se aprender algo deve-se faze-lo, como costurar, que com a pratica, com a habitualidade, é possível se torna uma costureira ou costureiro. Não necessariamente a pessoa se tornará uma boa costureira, pois do mesmo modo que é possível se tonar bom, os mesmos meios que a levaram para esse fim, são os meios para torna-la ruim. Importante ressaltar que a construção da excelência moral está nos seres humanos, pois não se pode alterar as questões da natureza por meio do hábito, e aqui Aristóteles usa o exemplo da pedra “…que por natureza se move para baixo, não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima…”(ARISTÓTELES, 1985, p. 35).
O autor a todo momento em Ética a Nicômaco ratifica a importância de se buscar o bem, já que essa é o objetivo de seu texto, por isso ele esclarece que o principio geral a se seguir a é reta razão, que por meio da racionalidade encontra o meio termo:
O homem que evita e teme tudo e não enfrenta coisa alguma torna-se um covarde; em contraste, o homem que nada teme e enfrenta tudo torna-se temerário; da mesma forma, o homem que se entrega a todos os prazeres e não se abstém de qualquer deles torna-se concupiscente, enquanto o homem que evita todos os prazeres, como acontece com os rústicos, torna-se de certo modo insensível; a moderação e a coragem, portanto, são destruídas pela deficiência e pelo excesso, e preservadas pelo meio termo (Ibid., p. 37).
A racionalidade é uma das formas a serem adotas para se conseguir a excelência moral, pois as paixões não é moderada, ela torna o indivíduo excessivo ou insuficiente para agir. Desse modo, usando meios equilibrados é possível para alguém que tem medo, aprender a lidar com coisas temíveis e encara-las, tornando-se corajoso:
Com efeito, a excelência moral se relaciona com o prazer e o sofrimento; é por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobilitantes. Daí a importância, assinalada por Platão, de termos sido habituados adequadamente, desde a infância , a gostar e desgostar das coisas certas; esta é a verdadeira educação (Ibid., p. 38).
Tanto o prazer quando o sofrimento são sentimentos que vão moldar o individuo, e nesse ponto Aristóteles defende que não é a falta desses sentimentos que criam a excelência moral, pois como animais, os seres humanos aprendem desde criança a querer o que lhe dá prazer e se desvencilham do que lhe gera sofrimento, porém é por meio da dificuldade que negar um e aceitar o outro que se cresce. Para ele, as coisas melhores são conquistadas com dificuldade (Ibid., p. 38).
Mas o que torna alguém bom em algo? Pois se ele costura, então ele já é costureiro, certo? Não exatamente, Aristóteles determina para se atingir a excelência moral o individuo deve estar em certas condições, e ele aponta três: (i) o agente deve agir conscientemente; (ii) deve agir deliberadamente, sendo ele quem delibera em função dos próprios atos e; (iii) sua ação deve provir de uma disposição moral firme e imutável (Ibid., p. 39). Portanto, deve-se buscar a pratica reiterada daquele ato. Para ser justo, por exemplo, é necessário agir de forma justa, como homens justos agem, para então, através da prática se tornar justo, caso contrário, ninguém se torna bom, se não praticar.
Em seguida, o autor vai definir o que é a excelência moral, estabelecendo por meio das manifestações da alma, que são três: emoções, faculdades e disposições. Como posto anteriormente por ele, a excelência moral deve ser consciente, partindo de uma escolha ou algo que envolva uma escolha. As emoções por sua vez não são escolhidas, apenas sentidas, já que não se pode fugir dela, bem como são passageiras, em certos momentos sentimos raiva, em outros tristeza e dependendo da situando em que se é posto diferentes emoções vão aflorando. Desse modo, não pode ser a emoção a excelência moral.
A faculdade está relacionada aos sentimentos, uma vez que ela é a disposição que se tem para sentir as emoções, segundo Aristóteles:
[…] as várias formas de excelência moral também não são faculdades, pois não somos chamados bons ou maus, nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoções; ademais, temos as faculdades por natureza, mas não é por natureza que somos bons ou maus - já falamos disto anteriormente, aliás (Ibid., p. 40).
A disposição é, portanto, a excelência moral, pois é a forma como estabelece os estados da alma, que determinam se o individuo se sente bem ou mal em relação às emoções (Ibid., p. 40). Desse modo, essas emoções, e também, ações, podem ser sentidas em excesso, não ser sentida ou o meio termo. Sabe-se que os extremos são ruins, tanto a demasia como a falta, porque apenas no meio termo é possível ver o todo. No entanto, o meio termo é atingido quando aquelas emoções são experimentadas da forma correta, de acordo com a situação e com as pessoas nela envolvidas, o mesmo serve para as ações. A grande questão é a equidistância, que é determinada por cada pessoa, ela não é global, por isso esse equilíbrio depende de cada um e é ele que vai definir a excelência moral. Já a deficiência moral é o excesso ou a falta, pois cometer erros, agir com maldade é fácil, porém acertar e ser bom é difícil.
Aristóteles ressalta que em certos sentimentos e ações não há meio termo, pois eles próprios são excessos e faltas, como a pratica de crimes, e emoções negativas, como a inveja, a avareza, a imprudência, entre outros. Assim como os sentimentos e ações boas não tem excessos ou faltas, são sempre meios termos. Mais um vez o autor defende bons atos e sentimentos: “…em todas as coisas a observância do meio termo é louvável, e os extremos não são nem louváveis, nem corretos, mas reprováveis.” (Ibid., p. 44).
O filósofo deixa claro que pessoas são passíveis de erros, e que dentre os desvios morais, melhor optar pela falta. Entretanto, como forma de buscar e adquirir a excelência, deve-se inclinar tanto para o excesso, quanto para a falta, pois assim é mais fácil se atingir o meio, ou seja, o que é certo.
Ao fim do livro II, Aristóteles explica que o excesso e a falta são variáveis para quem está vendo, e que é possível não reprovar uma pessoa que desvia da excelência, já que, como ele mesmo tratou, é difícil se manter correta. Para ele, apenas aquelas que comentem desvios consideráveis deverão ser censuradas.
2. A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE ANDROCÊNTRICA POR MEIO DO HÁBITO
Segundo o entendimento de Aristóteles, hábito é a prática de um exercício realizado por um individuo, e a excelência moral é o aperfeiçoamento desse prática. Costume, por sua vez é um habito realizado por um grupo ou coletivo, portanto, costumes são gerados por meio práticas frequentes. Uma sociedade é constituída de costumes, que foram sendo adotados ao longo dos tempos e se perpetuando, tornando aquelas convenções únicas daquele grupo, ou universais.
Para a historiadora Gerda Lerner, as primeiras sociedades eram constituídas por caçadores-coletores, visto que os seres humanos ainda não haviam desenvolvido a agricultura. Nesses corpos sociais, a procriação era algo importante para o desenvolvimento da comunidade, principalmente porque esses indivíduos acreditavam que a mulher concebia de forma divina a gravidez, sem que fosse por meio de reprodução. Baseado nesse entendimento, as mulheres passaram a ser excluídas das caças para que não sofressem nenhum acidente e pudesse parir os bebês, desse modo, cada vez mais elas foram sendo excluídas de trabalhos que demandavam força e coragem, para se tornarem reprodutoras (LERNER, 2019, pp. 93 e 94).
Ainda para Lerner, não se pode dizer que atualmente se vive em uma sociedade patriarcal em seu sentido limitado e tradicional, visto que tal definição é utilizada para demarcar o período da Antiguidade até o século XIX, apesar da historiadora afirma que o patriarcado existe desde o terceiro milênio a.C. e explicar de uma forma mais abrangente, o termo “androcêntrico” melhor relaciona o cenário vigente:
Em seu significado limitado, patriarcado se refere ao sistema, derivado historicamente do direito grego e romano, em que o homem chefe de família tinha total poder legal e econômico sobre seus familiares dependentes, mulheres e homens.[…]
[…] Além disso, pode-se defender que no século XIX, a dominância masculina na família apenas tomou novas formas, sem ter conhecido seu fim. […]
Patriarcado, em sua definição mais ampla, significa a manifestação e institucionalização da dominância masculina sobre as mulheres e criança na família e a extensão da dominância masculina sobre as mulheres na sociedade em geral. A definição sugere que o homem têm o poder em todas as instituições importantes da sociedade e que mulheres são privadas de acesso a esse poder (Ibid., pp. 289 e 290).
(grifo nosso)
A sociedade brasileira adotou a ideia de mulher como propriedade, baseada no conceito do patriarcado, a qual foi reforçada (ou até mesmo pode-se afirmar que foi construída) com a escravidão, que objetificava os seres humanos e os privavam de qualquer intenção de liberdade. Desse modo, ao tentar entender o início das sociedades androcêntricas, que até hoje perpetuam por todo o mundo, fica claro a adoção de hábitos e costumes que foram sendo construídos. É claro que os locais dedicados as mulheres na sociedade não são iguais para todas, depende da cor, raça e classe social. Comandar uma casa ou ser escravizada apresenta situação muito distintas, porém independe do local, a mulher, na maioria dos casos, eram e ainda são vistas como submissas, frágeis e que por muito tempo não eram consideradas pessoas de direitos.
Algumas realidades foram sendo alteradas, principalmente por meio de grupos feministas, que continuam lutando por direitos e garantias igualitárias entre os gêneros. No entanto, dentro de uma sociedade androcêntrica, os hábitos, a excelência moral são diferentes para cada indivíduo e Aristóteles deixou claro ao determinar que o objeto central dessa excelência é subjetivo, pois varia de acordo com cada pessoa. Dessa maneira, ao tratar da relação homem e mulher, essa diferença é ampliada. Na primeira parte do livro II, ele explica:
[…] os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em pratica falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má (ARISTÓTELES, 1985, pp. 35 e 36).
A quem servem esse legisladores dentro de uma sociedade androcêntrica? Com certeza aos homens, e de forma mais transparente, àqueles que podem com alto poder aquisitivo. Claro que a realidade histórica de Aristóteles é distinta da de hoje, mas trazendo para o atual cenário político, há uma enorme deficiência moral por parte dos legisladores e de outros representantes dos três poderes. No livro V, o filósofo defende que o melhor dos homens não é aquele que pensa nele, as melhores ações ocorre quando ele se coloca no lugar das outras pessoas (Ibid., p. 93). No entanto, em um grupo social que defende o androcêntrismo, que é o homem no centro de tudo, que perpetua o machismo, que é o homem como ser superior a mulher, para se colocar no lugar de outra pessoa, é necessário primeiro considera-la uma pessoa.
Simone de Beauvoir em seu livro, O Segundo Sexo, tratada da mulher como o Outro, que só existe como consequência do olhar do homem, que é o Um, o ser completo (BEAUVOIR, 2019, pp. 14 e 26). Esse Outro, necessita da aprovação para existir, e esse argumento parece conversar com o final da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha Nazista perde e a ONU (Organização das Nações Unidas) é criada, gerando uma ampla mudança ao expandir os Direitos Humanos, visto que durante o holocausto pessoas, principalmente judeus, eram objetificados e despersonalizados. E quando ocorreu essa mudança, as mulheres continuaram de fora, sem serem consideradas pessoas de direito.
O machismo por muito tempo se tornou hábito entre os homens, é claro que há suas exceções, mas tratar a mulher como propriedade é algo que ainda é uma realidade. Os crimes contra as mulheres escancaram esse pensamento.
O crime de estupro está relacionado ao poder e não a libido masculina. Os agressores são na maioria dos casos pessoas conhecidas das vítimas e usam do poder que tem sobre elas para efetuar o crime. De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 66.123 foram registrados, é cerca de um estupro a cada 8 minutos. Do total registrado, 70,35% deles eram estupro de não vulneráveis (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020, p. 13). Esse alto número se dá por homens acreditarem que podem fazer o que bem quiserem com as mulheres.
Os casos de feminicídio cresceram no primeiro semestre de 2020, durante a pandemia. O levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que 648 mulheres foram assassinadas (Ibid., p. 12). Ser vista como propriedade é ainda mais forte quando há um relacionamento entre a vítima e o agressor, pois este não aceita ser contrariado em suas vontades.
O discurso de que mulheres não sabem o que querem e por isso precisam ser defendidas se si mesmas, tornam o pensamento machista mais forte ainda, pois se priva a tomada de decisão, não sendo legitimada. E esse é um costume tão enraizado que a todo momento mulheres são diminuídas seja pelo seu corpo, em propagandas machistas, seja pela sua forma de falar, sendo taxada de autoritária quando na verdade está apenas realizando um trabalho que se fosse um homem realizando seria chamado de competente.
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles explica que podem existir maus hábitos, que são aqueles que levam à deficiência moral. Mas se essa ação se torna um costume, adotada pela maioria da sociedade, o seu entendimento muda e passa a ser uma excelência? Essa é uma pergunta que não parece ter uma resposta direta dada pelo autor, visto que ao tratar dos excessos e faltas como hábito, não se supõe sendo adotado por toda uma comunidade. Entretanto, baseado no que ele defende, não é possível aceitar que más atitudes se torne positiva.
Quando o filósofo trata das três formas de governo e seus desvios, sendo eles: monarquia - tirania; aristocracia - oligarquia; e timocracia-democracia, parece que a adoção dos maus hábitos, a deficiência moral, se assemelham ou a tirania, ou a oligarquia. Sendo que no primeiro desvio a vontade de apenas um prevalece, sendo esse Um, o homem, o tirano. E no segundo desvio, todos ou boa parte dos benefícios, ficam para os próprios governantes, sendo estes, os homens (ARISTÓTELES, 1985, p. 165).
Assim, como o próprio Aristóteles expõe, fazer o certo é difícil, inclusive quando se acha que está agindo corretamente, mas na realidade está revitimizando uma mulher que foi vítima de um crime ao questiona-la sobre a veracidade dos fatos.
3. SÉRIE INACREDITÁVEL
Baseada em uma história real, a série Inacreditável (Unbelievable, 2019) retrata a dura realidade de uma vítima de estupro, Marie Adler, que foi desacreditada pelos investigadores do seu caso, e processada pelo Estado sob a acusação de falso testemunho. O estuprador, Marc O’Leary, após não ser pego pelo crime cometido contra Marie, passou a praticar diversos crimes, sendo preso após três anos do cometimento do primeiro, fazendo pelo menos outras 29 vítimas.
No caso do agressor, o hábito se tornou para ele uma excelência moral, visto que se modus operandi foi sendo aperfeiçoado, ao estudar como a polícia agia em locais de crimes sexuais para obter provas, aprendendo com seus erros, evitando com que eles fossem cometidos novamente, e assim se tornando “melhor” a cada crime, bem como adquirindo mais coragem, sendo mais audacioso e violento. Como tratado anteriormente, Aristóteles não considera crimes como excelência moral, pelo contrário:
Mas nem toda ação ou emoção admite um meio termo, pois algumas delas têm nomes nos quais já está implícita a maldade - por exemplo, o despeito, a impudência, a inveja e, no casos das ações, o adultério, o roubo, o assassinato; em todas estas emoções e ações e em outras semelhantes, com efeito, a maldade não está no excesso ou na falta; ela está implícita em seus próprios nomes. Nunca será possível, portanto, estar certo em relação a elas; estar-se-á sempre errado. Tampouco a bondade ou maldade a respeito de tais emoções e ações depende, por exemplo, de cometer adultério com a mulher certa, no momento certo e do modo certo, mas simplesmente sentir qualquer destas emoções ou praticar qualquer destas ações é um erro. Seria igualmente absurdo, então, esperar que em ações injustas, covardes e libidinosas houvesse um meio termo, um excesso e uma falta, pois seria preciso admitir a existência de um meio termo de excesso e de falta, de um excesso de excesso, e de uma falta de falta (ARISTÓTELES, op. cit., p. 165).
(grifo nosso)
Por outro lado, na série, a deficiência moral dos investigadores do caso de Marie custou os demais estupros, pois ao não terem realizado seu ofício da forma adequada, e além disso, culpou e processou uma vítima que em consequência não apenas do crime em si, mas de toda a revitimização, se viu excluída do seu grupo social. Assim sendo, a atitude ruim não foi apenas em relação ao crime, mas também em não amparar àquela que precisava de proteção.
Como real exemplo de excelência moral, há as duas investigadoras, Karen Duvall e Grace Rasmussen, que não apenas acreditaram nas vítimas de seus casos, como refizeram os passos do estuprador e o trabalho de seus colegas que não conseguiram finalizar os casos, ou assim como os primeiros investigadores, desacreditam nas vítimas. Tais investigadoras agiram pensando nas outras mulheres, foram corajosas e não desistiram até conseguirem prender O’Leary.
Diante do que já foi tratado, a historia da série demonstra como um homem se sente poderoso ao estuprar uma mulher, um predador que caça sua vítima. Esse pensamento está diretamente relacionado a sociedade androcêntrica, que acredita que mulheres são seres criados para servir os homens. Apesar de parecer uma ideia inalterável, visto que é chamado de crime natural, que sempre existiu, a mudança entendimento pode ser realizada por meio da educação.
4. EDUCAÇÃO COMO MEIO PARA A MUDANÇA
Aristóteles traça em Ética a Nicômaco, inúmeros aprendizados que pretende deixar para seu filho, e a educação é o ponto principal, pois ela é a forma de mudança possível (ARISTÓTELES, 1985, pp. 207 e 208):
Mas é difícil proporcionar desde a adolescência uma preparação certa para a prática da excelência moral se os jovens não são criados sob leis certas; de fato, viver moderada e resolutamente não é agradável para a maioria das pessoas, especialmente quando se trata de jovens. Por esta razão sua educação e suas ocupações devem ser reguladas por lei, pois elas não serão penosas se se tiverem tornado habituais. Mas certamente não é bastante que desde jovens as criaturas humanas recebam a educação e os cuidados certos; já que, mesmo quando se tornarem adultas, elas terão de pôr em prática as lições recebidas e de estar habituadas a tais lições, necessitaremos também de leis para disciplinar os adultos e, falando de um modo geral, para cobrir toda a duração da vida, pois as pessoas em sua maioria obedecem mais à compulsão do que às palavras, e mais às punições do que ao sentimento daquilo que é nobilitante.
[…]
De qualquer modo, se (como dissemos) uma pessoa para ser boa deve ser bem exercitada e habituada, e deve continuar ao longo de sua vida em ocupações conformes à excelência moral, abstendo-se da prática voluntária ou involuntária de más ações […]
Apesar do autor defender a educação, ele acredita na formação de leis como meio de assegurar que os cidadãos aja dentro da excelência moral. Ele entende que a educação dos jovens não é o único ponto a ser tratado, visto que não adianta educar apenas os mais novos, já que quando crescerem eles conseguiram por em prática aquilo que lhes foi ensinado. É necessário, portanto, disciplinar os adultos, para que então a mudança, os bons hábitos perdurem.
Todavia, o pensamento de Aristóteles parece equivocado. Primeiro por acreditar que são as leis que por meio de punições determinam os bons hábitos e a excelência moral. Se as leis e sanções de alguma forma coibissem atos negativos, não haveria crimes. Segundo, uma vez estando no poder, aqueles que ali chegaram através das normas postas não modificarão se não forem pressionados para isso, ou seja, são as novas gerações que por meio de educação formal ou informal aprendem novos hábitos que são mais benéficos à excelência moral e conscientemente busca por esse mudança.
Terceiro ponto, tendo como base o que foi falado anteriormente, é a educação formal e informal que auxiliam na mudança de pensamento e não por meio de leis vigentes. Desse modo, a transformação não é algo rápido, ela é demorada, exatamente para ser de longa duração, como posto por Aristóteles, “ela deve cobrir por toda a vida”, uma vez que modificar o que está posto incomoda, principalmente para aqueles que estão no poder, pois por anos acreditaram que a forma de agem é a forma correta. Nesse caso, quando todos pensam da mesma forma, como por exemplo um costume, mostra-se que na verdade há uma deficiência moral e não uma excelência, já que não se conseguiu atingir o meio termo para toda a sociedade.
É importante ressaltar, que a tese defendida por Aristóteles está relacionada do todo para o um, ou seja, através de leis criada por várias pessoas, elas determinam o agir, o hábito que cada pessoa deve praticar, dado que se aquele agir for considerado um crime, a pessoa que o cometeu deverá ser punida. O problema desse pensamento, é que ele não gera espaço para comportamentos destoantes. Pode-se citar o caso da ilha de Lesbos, único lugar que mulheres poderiam estudar livremente, uma atitude que deve ser vista como excelência moral, poderia ser considerada uma deficiência, um excesso de atitude que não era permitida ser praticada.
Uma sociedade é composto por pessoas subjetivas que apresentam suas identidades de forma única. Não se busca a descriminalização de todas as atitudes, mas deve haver um entendimento que hábitos que não interferem no bem estar social não pode ser visto como ruim. Essa pluralidade não é conquistada de cima para baixo e sim de baixo para cima.
CONCLUSÃO
Entender a construção histórica e social nos auxilia a compreender os erros e acertos referentes à construção cultural da comunidade em que vivemos, assim como quem são aqueles que, por meios administrativos, realizam essa construção e participam dela.
Ao defender a tese de que a excelência moral se atinge por meio de hábitos, e estes são realizados pela constante prática de boas ações, Aristóteles esclarece que estas devem ser realizadas com consciência, deliberadamente e não efêmera. Esse pensamento tem como base a perpetuação de boas atitudes. Tais atitudes não podem ser pautadas em emoções que são passageiras e incontroláveis, elas devem ser manifestadas por meio de disposições, ou seja, é por meio dela que o individuo determina como se sente em relação as suas emoções.
As emoções, é importante ressaltar, não são negativas, já que não se pode controlar, então não há problema algum senti-las dentro de certos contextos com determinadas pessoas. Assim como, elas também não são justificativas para agir de forma reprovável, como no cometimento de crime.
Dentro de uma sociedade androcêntrica, ou seja, desequilibrada, os hábito defendidos pelo filósofo, foram aqui questionados quando tomado por toda uma comunidade, que se fosse tomada individualmente seria considerada uma deficiência moral. De acordo com o que é colocado por Aristóteles, um excesso é um excesso, bem como uma falta é uma falta, e por isso jamais uma deficiência moral poderá ser considerada meio termo e por consequência, uma excelência moral.
Ainda buscando entender a questão da subjetividade do meio termo de cada indivíduo, foi levantada a dúvida de que se uma pessoa aperfeiçoa seus crime com a prática, poderia essa atitude ser considerada excelência moral, e para essa pergunta a resposta é semelhante a anterior, não. Uma atitude censurável nunca poderá ser aceita como algo benéfico, mesmo que dentro da individualidade do ser.
Diante do exemplo dado pela série Inacreditável, tornou-se mais clara o modo como deve ser entendida e seguida a excelência e a deficiência moral. E como a tomada dessas ações podem impactar na vida das pessoas ao redor.
Para se atingir uma sociedade equilibrada, de excelência, a educação é o melhor meio para atingi-la. Diferentemente do que foi pensado por Aristóteles, o artigo apresenta uma forma distinta de pensar a educação. O autor estabelece que por meio do respeito as leis e medo de punições, como se fossem um remédio, é que jovens vão adquirir bons hábitos. Desse modo, aqueles que fazem parte do poder estatal, mais especificadamente, os legisladores, é quem vai determinar o que deve ou não ser considerado crime, qual conduta a ser seguida.
Esse entendimento do filósofo parte do topo para a base, porém vai contra a pluralidade de pessoas, visto que são poucos aqueles que legislam. Para o enriquecendo de uma sociedade, mais indivíduos diferentes, maior a necessidade de aprender a lidar com o diferente e essa é a base de uma educação para ser perpetuada, pois independente da norma, o destoante não é criminalizado, pelo contrario, ele é inserido na sociedade. Aristóteles refere-se ao sofrimento como algo positivo, pois assim é possível colocar-se no lugar do outro, bem como o “homem” bom é aquele que pensa no outro e não apenas em si mesmo. Portanto, uma educação que transforma de baixo e vai modificando os níveis de “hierarquia” do pode é aquele que pode realmente fazer a diferença e assim tornar o hábito uma excelência moral em uma sociedade igualitária.
REFERÊNCIAS:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 1985.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: Fatos e mitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf> Acesso em: 1 jun. 2021.
LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: historia da opressão das mulheres pelo homens. - São Paulo: Cultrix, 2019.
Unbelievable. Direção: Lisa Cholodenko, Michael Dinner e Susannah Grant. Estados Unidos: Netflix, 2019. Netflix (8 ep.)
Bacharel em Direito (2017), formada pela Fundação Armando Alvares Penteado especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em Direito Penal pela PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KUMAGAI, Maria Fumiko Sampaio. Ética a Nicômaco - Livro II: o hábito em Aristóteles como busca da excelência moral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2022, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59071/tica-a-nicmaco-livro-ii-o-hbito-em-aristteles-como-busca-da-excelncia-moral. Acesso em: 23 nov 2024.
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