poder de requisição da Defensoria Pública, que culminou na improcedência Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.852/DF, proposta pelo Procurador-Geral da República, na tentativa de invalidar tal prerrogativa institucional, e julgada pelo Supremo Tribunal Federal, ocasião em que houve a confirmação do poder de requisição, a ser pautado pela responsabilidade e pela ética de cada membro defensorial, como instrumento institucional. Foram utilizados elementos históricos, legais e jurisprudenciais. A partir desse fluxo de raciocínio, é que se construiu a reflexão acerca do contexto histórico desde a antiga figura romana do tribunus plebis, e da importância da concretização da ampla defesa, munida de isonomia e capacidade eficiente em realizar, por todos os meios legais, sua maior expressão, qual seja, o direito à produção probatória.
Palavras-chave: Defensoria Pública; Poder de Requisição; Direito à Prova; Constitucionalidade.
Abstract: The present work aims to present the trajectory and historical construction of the Public Defender's requisition power, which culminated in the dismissal of Direct Action of Unconstitutionality 6.852/DF, proposed by the Attorney General of the Republic, in an attempt to invalidate such institutional prerogative, and judged by the Federal Supreme Court, when there was confirmation of the power of requisition, to be guided by the responsibility and ethics of each defense member, as an institutional instrument. Historical, legal and jurisprudential elements were used. Based on this flow of reasoning, the reflection was built on the historical context since the ancient Roman figure of the tribunus plebis, and on the importance of achieving a broad defense, equipped with isonomy and efficient capacity to carry out, by all legal means, its greatest expression, namely, the right to produce evidence.
Keywords: Public Defender; Requisition Power; Right to Proof; Constitutionality.
Sumário: Introdução. 1.Sentido histórico e constitucional da Defensoria Pública. 1.1. Tribunus plebis, percursos da Defensoria Pública. 1.2. A regulação dos serviços institucionais de assistência judiciária gratuita. 2. Interlocução institucional com os órgãos de segurança pública como expressão inafastável do direito à prova. 2.1. A relevância da Defensoria Pública. 2.2. Atribuições de controle social da Defensoria Pública. 3. Poder de requisição como instrumento institucional. 3.1. Perfil institucional da Defensoria e os poderes decorrentes deste. 3.2. O julgamento do poder de requisição da Defensoria Pública no Supremo Tribunal Federal. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Ao iniciar os levantamentos derivados das inquietações para escrever o presente texto, podemos constatar que o direito a uma defesa de qualidade decorre, primeiro, de uma evolução natural da sociedade, em termos de civilização mesmo, quando se começa a conscientização da racionalidade da limitação do uso do poder, que depois vai ficar consagrada histórica e constitucionalmente no cânone do devido processo legal; e, segundo, decorre, a rigor, de um passado histórico de certa forma imemorial, como sói ocorrer com a construção e a consolidação das instituições sociais e, mais propriamente ainda, dos chamados institutos jurídicos.
É dizer, o direito a uma defesa jurídica de qualidade (que nasceu como a direito a uma defesa, sem adjetivação), irradiado do cânone do devido processo legal, nasceu difusamente, podendo-se concluir, originado da lenta evolução civilizatória, ou até mesmo do sentimento caritativo de matriz religiosa.
Na transcrição dos pensamentos componentes desta reflexão, buscamos, mesmo que de modo ainda incipiente, conjugar elementos históricos, legais e jurisprudenciais que estabeleçam um fio condutor direcionado à estima e à valorização desse direito fundamental, que é o direito universal, isto é, para todas as pessoas, sem exceção, a uma defesa jurídica de qualidade.
No primeiro capítulo, pois, tentamos buscar um contexto histórico da origem e da verdadeira importância desse direito, busca esta que encontrou referência identitária na remota e peculiar figura do tribunus plebis (tribuno da plebe), que desempenhou uma magistratura sui generis de fundamental relevo na atmosfera da República Romana.
Nesse mesmo intento, girando o molde para terras brasileiras, assinalamos referência nas Ordenações Filipinas, na atuação caritativa estimulada pelo Instituto Brasileiro de Advocacia e na gestação da institucionalização da Defensoria Pública inicialmente dentro das estruturas organizacionais do Ministério Público e da Advocacia Pública.
No segundo capítulo, desdobramos e enaltecemos a indispensabilidade do aprimoramento da interlocução institucional com os órgãos de segurança pública, para além de uma exclusividade do Ministério Público, como inafastável expressão do direito à prova. A propósito, contrastamos o caráter privativo da titularidade da ação penal com a ausência da mesma nota de exclusividade na interlocução institucional e nem mesmo quanto ao controle externo da atividade policial, que a rigor trata-se deveria se tratar de um, por que não, rigoroso controle social de prestação de contas de caráter abrangente, como possibilitado pela Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), a qual, como se sabe, resulta dos marcos de controle da atividade da administração pública insculpidos constitucionalmente.
Por fim, no terceiro capítulo, pautados pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal na ADI 6852, cujo acórdão foi publicado em 29.03.22, enaltecemos a responsabilidade institucional e ética que incumbe à Defensora Pública ao lhe confirmada a prerrogativa do poder de requisição como instrumento institucional, em decorrência do seu regime normativo, fixado em seu estatuto nacional (Lei Complementar 80/94) e amparado com realce constitucional, sempre direcionado à concretização horizontal do devido processo legal.
Adicionalmente, na esteira da análise dos votos escritos na ADI 6852, frisamos que o STF reconheceu o poder de requisição à Defensoria Pública como poder implícito, expressão do princípio da isonomia em similitude e paralelismo com o mesmo poder conferido ao Ministério Público, para equiparação de forças institucionais, dentre outros argumentos também referenciados no decorrer do capítulo.
1. SENTIDO HISTÓRICO E CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
A atual Constituição Federal brasileira consagra a Defensoria Pública, na condição de órgão público e instituição permanente, como indiscutível elemento orgânico e estrutural do seu texto, integrada na arquitetura essencial de todo o sistema de justiça, com peculiaridades institucionais próprias e distintas, paralelamente a outros também relevantes órgãos e funções essenciais à justiça, como Ministério Público, advocacia pública e advocacia privada, consoante as disposições do Capítulo IV do Título IV da Lei Maior, arts. 127 a 135 (LENZA, 2020, p. 103).
Sobretudo após a Emenda Constitucional 80/14, que alterou o disposto no art. 134 da Lei Maior, delimitou-se com maior clareza a distinção da atividade institucional da Defensoria Pública em relação à advocacia privada, assim como se tonificou o perfil institucional e constitucional da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro, como instituição independente, dotada de unidade corporativa entre seus ramos e, por isso, indivisibilidade representativa.
A rigor, tal consagração e tonificação institucional atualizada e conferida pelo texto constitucional converge com o próprio horizonte originário da Defensoria Pública como instituição de Estado, como ilustraremos a seguir.
Ao se buscar no referencial histórico a gênese simbólica do ofício público de defesa dos necessitados, conforme contextualiza a clássica e reverenciada obra de Fustel de Coulanges (1830-1889), chamada A Cidade Antiga, edição impressa de 1961, p. 471, encontraremos na atmosfera da República Romana a longínqua institucionalização do tribunado da plebe, com a figura do tribunus plebis, que assumia uma magistratura sui generis cujo exercício consistia em reclamar igualdade jurídica, no sentido de direitos fundamentais, às pessoas excluídas.
1.1. Tribunus plebis, percursos da Defensoria Pública
A peculiaridade do tribunus plebis em relação aos magistrados tradicionais restava traduzida no fundamento de legitimidade. Os defensores da plebe tinham sua legitimidade de atuação fundamentada em literalmente corporificarem verdadeiro instrumento de acesso a direitos pela plebe, haja vista os direitos da plebe somente poderiam ser respeitados se um defensor da plebe estivesse presente pessoalmente.
De outra mão, os magistrados tradicionais tinham sua autoridade fundamentada no culto da cidade patrícia (elite derivada da ancestralidade), nas cerimônias religiosas e nos auspícios dos deuses invocados pelos patrícios.
Dito de outra forma, os defensores da plebe exerciam importante poder e ascenderam em conquistas para a plebe que vivia às margens de Roma, porém nunca tiveram os privilégios simbólicos da coroa de louros, do manto de púrpura e da cadeira curul (espécie de trono móvel) reservados aos então tidos como verdadeiros e tradicionais magistrados romanos.
Singrando o tempo e chegando às origens do serviço de assistência judiciária no Brasil, verificamos que a ideia moderna de instituição da Defensoria Pública como órgão estatal, em seu período embrionário, foi concebida como um ramo dentro do organograma institucional do Ministério Público ou da advocacia pública e respectivas procuradorias.
O percurso, num primeiro momento, restou esboçado com a previsão da assistência judiciária gratuita como direito abstrato, desvinculada de um órgão especializado e responsável pela prestação regular e contínua, inaugurada em passado praticamente imemorial, tendo como marco referido um decreto datado de 5 de maio de 1897, para vigência no então Distrito Federal, na época a cidade do Rio de Janeiro, ou mais remotamente ainda, até mesmo, nas Ordenações Filipinas, Livro III, Título 84, § 10, em que havia a previsão de isenção de custas, para a pessoa reconhecidamente pobre, sob a condição de que esta rezasse o pai-nosso pela alma do rei na audiência (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2022).
Quando muito, na culminância deste longo período embrionário em solo brasileiro, havia uma praxe forense de apoio do Instituto Brasileiro de Advocacia, precursor da OAB, no sentido de possibilidade de uma atuação caritativa da advocacia no serviço de assistência judiciária. No entanto, a imposição de um encargo contingente e sem contraprestação pecuniária, a título de mera caridade, a profissionais liberais da iniciativa privada mostrou-se um modelo inadequado e deveras insuficiente. Tal assertiva fica mais evidente ainda num país marcado por severo contraste social, consectário do passado escravocrata, como o Brasil (CAPPELLETTI, 1974, p. 134 apud GIANNAKOS, 2008, p. 65).
1.2. A regulação dos serviços institucionais de assistência judiciária gratuita
Posteriormente, no transcurso do século XX, para além das disposições meramente abstratas acerca da assistência judiciária, como concessão estatal genérica, desprovida de órgão especializado para a prestação regular e concreta do serviço, foram concebidos os primeiros marcos normativos da prestação do serviço de assistência judiciária institucionalizado.
Como referenciado anteriormente, tal institucionalização foi concebida inicialmente nos organogramas das carreiras de promotores e procuradores, isto é, dentro das estruturas organizacionais do Ministério Público e das Procuradorias Estaduais, citando-se, a título de exemplo, a história institucional do próprio Distrito Federal e de estados como Rio de Janeiro (ou Guanabara, antes Distrito Federal), Bahia, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, São Paulo, Alagoas (GIANNAKOS, 2008, p. 115/120).
Não obstante a previsão abstrata e denominada como assistência judiciária a título de isenção estatal para postulação judicial constar a nível constitucional desde a Carta de 1934, cumpre acentuar que, apenas na Constituição Federal 1988, houve o estabelecimento institucional da Defensoria Pública no ápice da pirâmide normativa brasileira, com previsão expressa no art. 134 do texto constitucional.
A partir de então, desencadeou-se uma cronologia histórica de consolidação da Defensoria Pública como instituição estrutural e funcionalmente especializada. Na esfera nacional, a evolução legislativa com a LC 80/94 e depois a LC 132/09; bem ainda a evolução constitucional com a EC 80/14, fora as ECs 45/04 e 74/13, concretizaram um desenho institucional de autonomia administrativa e orçamentária, como órgão independente e essencial à Justiça, a par do Ministério Público, replicando expressamente inclusive os mesmos princípios institucionais e constitucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional.
A LC 80/94 deu concretude à matriz constitucional do § 1º do art. 134 da CF acerca da exigência de lei complementar para a organização institucional no âmbito da União e do Distrito Federal, assim como o estabelecimento de normas gerais para a organização institucional no âmbito dos estados, consolidando importante rol de prerrogativas funcionais, tais como prazo em dobro, vista pessoal e poder de requisição.
A LC 132/09, ao seu turno, aprimorou o texto da LC 80/94, enfatizando a atribuição de atuação institucional na esfera de direitos coletivos e difusos, conferindo amplo espectro postulatório para essa finalidade.
Por sua vez, a EC 80/14 distinguiu, em relação à advocacia privada, mais do que de maneira expressa, de forma emblemática a natureza de órgão público, extrapoder, independente e especializado, como verdadeira magistratura instrumental e expressão do regime democrático.
Repare-se, a propósito, que, ao se ter em mente o processo penal, neste atual cenário normativo-constitucional, a Defensoria Pública é concebida como atividade transversal e inclusiva, entre a acusação, com seu exercício do poder punitivo estatal, e a advocacia, com sua atuação marcantemente representativa dos interesses do respectivo contratante.
Com toda essa evolução constitucional e legislativa, no atual cenário normativo-institucional, a Defensoria Pública passa a se assumir como verdadeira instituição transversal e inclusiva, a quem compete, para além da defesa passiva de interesses individuais, fiscalizar, também a título de atuação coletiva, o regular exercício dos órgãos públicos que atingem os interesses de toda a população, inclusive no âmbito do direito penal, em que o exercício do poder punitivo estatal tem o condão de impor ao cidadão, considerado individualmente, a mais grave das sanções, assim como o aniquilamento da sua cidadania.
2. INTERLOCUÇÃO INSTITUCIONAL COM OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA COMO EXPRESSÃO INAFASTÁVEL DO DIREITO À PROVA
2.1. A relevância da Defensoria Pública
Nessa linha de consagração e realce da Defensoria Pública, como relevante expressão e instrumento do regime democrático, com destaque para a incumbência fundamental da primazia da orientação jurídica, ressai a necessidade de se estabelecer constante e profícuo diálogo interinstitucional, acentuando-se a necessidade desse diálogo com os órgãos de segurança pública, no intuito de se manter ininterruptamente sedimentada a atmosfera de concretização do estado democrático de direito e respeito aos direitos fundamentais, notadamente a igualdade de tratamento de todos perante a lei, sobretudo a lei fundamental da nação que se traduz na Constituição Federal.
De se notar, a propósito, que a Constituição Federal (art. 129) confere ao Ministério Público também uma importante atribuição, qual seja, a titularidade da ação penal pública, com a ressalva do texto constitucional para o caráter privativo desta atribuição (inciso I). Assim, cumpre divisar que, de fato, a titularidade da ação penal pública (dominus litis) é uma competência privativa do Ministério Público. No entanto, tal ênfase de exclusividade não é repetido, por exemplo, no que diz respeito ao controle externo da atividade policial (inciso VII), à realização de levantamentos investigativos ou menos ainda à interlocução interinstitucional.
É dizer, a estrutura normativa da atribuição de controle externo da atividade policial e menos ainda a respectiva interlocução interinstitucional não trazem consigo a mesma delimitação de exclusividade encerrada na atribuição de titularidade da ação penal pública. Do mesmo modo, nesse ponto do controle externo da atividade policial, ao se atentar para o que preceituado no inciso VII do art. 129 da CF, observa-se a remissão à legislação infraconstitucional de caráter complementar.
Nesse âmbito, seguindo como referência, a título ilustrativo, a Lei Complementar 75/93, que traduz o estatuto de organização e atribuições do Ministério Público da União, para além do aspecto de indispensabilidade da persecução penal, conjugado com a atribuição de titularidade da ação penal, constatam-se atribuições que guardam pertinência com funções institucionais também inerentes à Defensoria Pública (Lei Complementar 80/94), como, por exemplo, a afirmação do estado democrático de direito, a prevalência dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, assim como a concretização da comunidade de princípios decorrentes do devido processo legal, tais como os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, dentre outros assegurados constitucionalmente e normativamente.
2.2. Atribuições de controle social da Defensoria Pública
Em sincronização com a evolução legislativa, para além de previsão legal no próprio estatuto da Defensoria Pública ou até mesmo da advocacia, cumpre ter em mente que atribuições de controle social relacionadas à condição de se ter acesso a amplas e relevantes informações, encontram atualmente guarida na Lei 12.527/11, conhecida como Lei de Acesso à Informação.
Por oportuno, esclarecendo melhor esse ponto da Lei de Acesso à Informação, cumpre acentuar que justamente na esteira do direito fundamental à informação (art. 5º) e à publicidade dos atos de exercício de poder (art. 35) é que tal diploma legal (Lei 12.527/11) subordina todos os órgãos públicos expressamente ao seu regime.
Apenas em caráter excepcional, realmente existem hipóteses em que seja possível a restrição de acesso à informação, entretanto com a condição de que ao mesmo tempo seja respeitada a disciplina existente para tais hipóteses dentro da própria Lei de Acesso à Informação, com as disposições gerais, específicas e detalhadas de classificação de informação previstas nos seus arts. 21 e seguintes.
Contudo, nesses mesmos termos, os casos de restrição de acesso não podem caracterizar obstáculo ao exercício de direitos fundamentais, bem como necessitam de procedimento de classificação em decisão formalizada por escrito, contextualizada, fundamentada, com indicação do prazo de sigilo e identificação da autoridade responsável pela classificação, ainda sendo passível de reavaliação por órgão colegiado supervisor.
Desse modo, considerando a larga amplitude da atribuição institucional da Defensoria Pública concernente à efetividade dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, especialmente no processo penal, em que tal atribuição tem alcance universal (art. 261, CPP) para além do critério de insuficiência de recursos (CF), resulta imprescindível a interlocução constante e eficiente da Defensoria Pública com os órgãos de segurança pública.
Essa interlocução tem por escopo a vital e ininterrupta concretização do devido processo legal como verdadeira pedra angular da afirmação do estado democrático de direito, conferindo espessura concreta à missão institucional de exercer a defesa técnica e fundamentada por meio de sua maior e inegável expressão que é o direito à prova (Brady v. Maryland), alcançando-se todas as circunstâncias que possibilitam o esclarecimento detalhado do caso concreto, quer sejam de interesse da acusação, quer sejam de interesse da defesa.
3. PODER DE REQUISIÇÃO COMO INSTRUMENTO INSTITUCIONAL
3.1. Perfil institucional da Defensoria e os poderes decorrentes deste
Com efeito, o perfil institucional desenhado à Defensoria Pública, como específica expressão e instrumento do regime democrático, à qual incumbe primordialmente a orientação jurídica e a defesa dos necessitados, sobre a pedra angular do devido processo legal, reserva-lhe em caráter prioritário uma nobre e sensível função: evitar situações de extrema injustiça no âmbito da persecução penal. Não por menos, possui ampla gama de atribuições, assumindo a defesa de todos que não tenham advogado, essa previsão vem desde a redação original do CPP, independente do critério econômico que baliza a atuação institucional na esfera cível, cabendo-lhe corporificar aprimorada e pública defesa ética, a repercutir inclusive na legitimidade do chamado poder de requisição, a instrumentalizar e potencializar o exercício altamente qualificado de sua nobre missão institucional.
Falando nisso, num paralelo de inspiração com o direito comparado, é muito comum se remeter à consagrada doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos, notadamente a partir do famoso precedente McCulloch v. Maryland, de 1819, em que se assentou o entendimento jurisprudencial de que uma atribuição pode muito bem ser inferida quando necessária e própria para o desempenho de outras competências inequívocas do respectivo órgão (BARROSO, 2015, p. 44). O caso McCulloch v. Maryland tratou de aspectos do sistema financeiro e bancário norte-americano, naquela ocasião. Todavia, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal também já teve a oportunidade de repercutir a mesma doutrina dos poderes implícitos em diversos julgamentos, dentre eles julgamentos envolvendo interpretações ampliadas de atribuições do Tribunal de Contas da União (MS 24.510, MS 33.092) e do Ministério Público inclusive (HC 93.930, RE 593.727).
Indo além, a previsão expressa do poder de requisição como instrumento de atuação funcional da Defensoria Pública vem desde a redação original da lei orgânica nacional da Defensoria, qual seja, a Lei Complementar 80/94, que organiza a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal, assim como prescreve normas gerais para a organização nos estados.
Apesar disso, no ano de 2021, o respectivo Procurador Geral da República, Augusto Aras, ajuizou diversas ações diretas de inconstitucionalidade, questionando todas as legislações estaduais que conferem tal prerrogativa institucional à Defensoria Pública, além da Lei Complementar 80/94, questionada em caráter protagonista, porque inegavelmente a mais representativa dessa controvérsia, por meio da ADI 6852.
Para tanto, impingiu que esse importante instrumento de atuação institucional seria incompatível com as atribuições da Defensoria Pública, porque violaria notadamente o princípio da isonomia com a advocacia privada, devendo tal poder instrumental ser reservado apenas em caráter diferenciado ao órgão acusatório e às nobres funções do Ministério Público.
3.2. O julgamento do poder de requisição da Defensoria Pública no Supremo Tribunal Federal
No entanto, a Corte Constitucional brasileira rechaçou esse pleito de exclusividade ministerial, pelo largo placar de votação de dez votos a um (sendo esse um, ainda, apenas parcialmente divergente). A propósito, o acórdão restou assim ementado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO. DEFENSORIA PÚBLICA. LEI COMPLEMENTAR 80/1994. PODER DE REQUISIÇÃO. GARANTIA PARA O CUMPRIMENTO DAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E EFETIVA. ADI 230/RJ. ALTERAÇÃO DO PARÂMETRO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. ADVENTO DA EC 80/2014. AUTONOMIA FUNCIONAL E ADMINISTRATIVA DAS DEFENSORIAS. IMPROCEDÊNCIA. 1. O poder atribuído às Defensoria Públicas de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias ao exercício de suas atribuições, propicia condições materiais para o exercício de seu mister, não havendo falar em violação ao texto constitucional. 2. A concessão de tal prerrogativa à Defensoria Pública constitui verdadeira expressão do princípio da isonomia e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva. 3. Não subsiste o parâmetro de controle de constitucionalidade invocado na ADI 230/RJ, que tratou do tema, após o advento da EC 80/2014, fixada, conforme precedentes da Corte, a autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF - ADI: 6852 DF 0054388-26.2021.1.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 21/02/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 29/03/2022)” (grifo nosso)
Como se percebe da ementa acima destacada, a rigor, a parametrização da isonomia da Defensoria Pública deve ser com o próprio Ministério Público. Isso porque a Defensoria Pública corporifica, dentro do sistema de justiça, verdadeira magistratura instrumental correspondente à maior expressão do regime democrático e do devido processo legal, como instituição estatal essencial à justiça e, por excelência, garantidora da ampla defesa e do contraditório, em face do poder punitivo estatal corporificado pelo Ministério Público.
A esse respeito, no transcurso de seu voto como relator da aludida ação direta (ADI 6852), o Min. Edson Fachin diversas vezes pontuou tal paralelismo institucional como pertinente para o exercício de poderes equivalentes, como na seguinte passagem: “Em diversas ocasiões esta Suprema Corte tratou de apontar o paralelismo traçado pelo constituinte entre Ministério Público e Defensoria Pública.”
Outrossim, no mesmo diapasão, asseverou: “Entendo, portanto, que assim como ocorre com o Ministério Público, a prerrogativa de requisição atribuída aos membros da Defensoria Pública apenas corrobora para que a instituição cumpra sua missão constitucional, ao viabilizar o acesso facilitado e célere da coletividade e dos hipossuficientes à documentos, informações e esclarecimentos.”
Colheu-se o mesmo posicionamento, além do relator, igualmente, de todos os ministros que apresentaram votos escritos (Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Nunes Marques), relembrando-se que a votação se encerrou de forma praticamente unânime, apenas com a ressalva de posicionamento parcialmente divergente da Min. Cármen Lúcia.
Ilustrativamente, respeitando a sequência dos votos, vale conferir algumas relevantes passagens dos respectivos votos vogais que compuseram o posicionamento deliberado pelo Pretório Excelso sobre o assunto.
O Min. Alexandre de Moraes pontuou a incidência da teoria dos poderes implícitos como pertinente à compreensão da amplitude das atribuições institucionais da Defensoria Pública: “Incorporou-se, em nosso ordenamento jurídico, portanto, também em relação à Defensoria Pública, a pacífica doutrina constitucional norteamericana sobre a teoria dos poderes implícitos – inherent powers –, segundo a qual, no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos – US 272 – 52, 118 ), consagrando-se, dessa forma – e entre nós aplicável também à Defensoria Pública –, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que permitam o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal.”
Em digressão, referiu à clássica obra do direito constitucional brasileiro, composta pela magistral lente de José Afonso da Silva: “dramática questão da desigualdade da justiça, consistente precisamente na desigualdade de condições materiais entre litigantes, que causa profunda injustiça àqueles que, defrontando-se com litigantes afortunados e poderosos, ficam na impossibilidade de exercer seu direito de ação e de defesa assegurado na Constituição” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 614) (grifo nosso).
Com precisão, no desenvolvimento do voto, aduziu acerca da distinção do regime jurídico entre Defensoria Pública e Advocacia, com o estabelecimento de maior semelhança e equiparação daquela com o Ministério Público, especialmente a partir da EC 80/14:
“O Poder Constituinte Reformador evidenciou, inclusive, a distinção entre as atividades da Defensoria Pública e da Advocacia, ao estabelecer seções diversas, na alocação do texto constitucional, para cada uma dessas funções essenciais à justiça, as quais, antes da promulgação da EC 80/2014, estavam disciplinadas conjuntamente.
(...)
O paralelismo deontológico e axiológico entre a Defensoria Pública e o Ministério Público foi muito bem ressaltado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na ADI 5296, no voto condutor da eminente Relatora, a Ministra ROSA WEBER (...).”
Por sua vez, o Min. Gilmar Mendes enfatizou a relevância da EC 80/14 para o fortalecimento de um regime jurídico diferenciado à Defensoria Pública:
“Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, qualquer possibilidade de crise identitária da instituição foi sanada. (...)
Nesse ponto, é claro que não se pode limitar a Defensoria Pública, nos atuais moldes, a um mero conjunto de defensores dativos. Tal se consubstancia em visão ultrapassada, que ignora a interpretação sistemática a ser feita. A topografia constitucional atual, ademais, não deixa margem a dúvidas de que são funções essenciais à Justiça, em categorias apartadas, mas complementares: Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública.”
Mais que isso, em arremate, pormenorizou a fixação do entendimento de que o poder de requisição abrange a defesa de direitos individuais: “Após analisar os fundamentos trazidos nos votos divergentes dos Ministros Edson Fachin e Alexandre de Moares, bem como as manifestações juntadas aos autos pelos amici curiae, me convenci de que, apesar do poder de requisição configurar uma prerrogativa não conferida aos advogados, sua previsão legal, mesmo que utilizada para a defesa de direitos individuais dos assistidos, encontra justificativa nas peculiaridades institucionais da Defensoria Pública.”
Ao seu turno, o Min. Nunes Marques, citando a renomada obra do saudoso jurista italiano Mauro Cappelletti, somou a observação de que a Defensoria Pública deve corporificar verdadeiro instrumento de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional: “Aponto também que a criação da Defensoria Pública atende a um dos pressupostos de aperfeiçoamento do acesso à justiça, inserindo-se nas suas respectivas ondas renovatórias, conforme lição de Mauro Cappelletti (CAPPELLETTI, GARTH, 1988).”
E, por fim, nessa mesma esteira da necessidade de uma consciência pública de verdadeiro compromisso de contribuição para esse aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, acentuou: “Com o reconhecimento de uma prerrogativa que atribui poder instrumental à Defensoria, tenho que seu exercício deve ser realizado com parcimônia e prudência, evitando-se sempre quaisquer excessos ou abusos, os quais, se ocorridos, poderão ser apurados e punidos na forma da lei.”
No que diz respeito ao voto da Min. Cármen Lúcia, convém lembrar, primeiro, que notadamente em julgamentos de maior relevo e repercussão dificilmente se obtém unanimidade no plenário de uma corte constitucional, como os 11 votos no plenário da Corte Suprema brasileira; segundo, que a ministra foi relatora do entendimento anterior proclamado na ADI 230, julgada em 01.02.10, que foi superado pelo julgamento da ADI 6852, julgada em sessão virtual de 11.02 a 18.02.22.
No julgamento da ADI 6852, a ministra modificou seu entendimento anterior, acompanhando a maioria formada desta vez em sentido diverso, todavia ainda ressalvando, no respeitável entendimento isolado dela, o poder de requisição apenas na atuação institucional da Defensoria Pública em caráter coletivo.
Em resumo, o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal assegura o poder de requisição da Defensoria Pública plenamente, tanto em demanda de interesse coletivo quanto em demanda de interesse individual. No detalhe, quanto ao poder de requisição da Defensoria Pública em atuação de demanda de interesse coletivo, a votação encerrou-se em 11x0; e, quanto ao poder de requisição abranger tanto atuação de demanda coletiva quanto demanda individual, encerrou-se em 10x1.
No detalhe, em relação às mesmas impugnações realizadas quanto às legislações estaduais, observou-se exatamente o mesmo destino, com o mesmo resultado de improcedência, como a título de exemplo a ADI 6874, que tratou da lei complementar regente da Defensoria Pública do Estado de Alagoas e manteve hígida a vigência e a validade das disposições da legislação local que, em linhas gerais, reflete o mesmo padrão de organização institucional preconizado desde a Lei Complementar 80/94.
Fixadas essas coordenadas de raciocínio, ponto digno de percepção é que, no âmbito do direito penal e no exercício do poder punitivo estatal que se dá o centro de gravidade da reflexão jurídico-filosófica, tendo em mira que é no âmbito desse poder que se manifesta de forma mais conflitante o relacionamento entre o Estado e o cidadão, entre autoridade e liberdade, entre arbítrio e certeza (FERRAJOLI, 2010, p. 08).
Justamente daí que nasce a ideia institucional da Defensoria Pública, a exemplo da remota figura do tribunus plebis, isto é, para além da reivindicação da cidadania, como necessária institucionalização de uma oposição qualificada ao exercício do poder punitivo estatal, corporificado pelo Ministério Público, na condição de titular da ação penal pública.
Nesse intento, o poder de requisição certamente pode contribuir para a noção de se defender provando como maior expressão da ampla defesa e do devido processo legal, seja em procedimento apuratório institucional a título de investigação defensiva, seja, cumulativa ou exclusivamente, por meio da interlocução interinstitucional com os órgãos de segurança pública como expressão inafastável do direito à prova.
CONCLUSÃO
Ao final desse breve percurso reflexivo, temos como indiscutível normativa e jurisprudencialmente a vigência e a validade constitucional do poder de requisição da Defensoria Pública.
Todavia, como o antagonismo argumentativo é inerente uma sociedade saudavelmente democrática, sabemos da resistência reacionária à expansão do poder da Defensoria Pública por uma parcela de intérpretes com referência formativa mais longínqua, anterior mesmo ao marco legislativo que firmou tal previsão expressamente no estatuto defensorial, qual seja, a LC 80/94, ou até mesmo, menos longínqua, porém anterior à compreensão da tonificação da divisão constitucional com o regime da advocacia privada, conforme a Emenda Constitucional 80/14.
Não obstante, o fato é que a controvérsia e tal resistência reacionária foi proposta pelo chefe do Ministério Público Federal, o Procurador Geral da República, e a Corte Suprema brasileira sedimentou que tal prerrogativa é inerente às funções institucionais corporificadas pela Defensoria Pública, tanto no julgamento da ADI 6852 quanto das mesmas ações (ADI) contra todas as leis estaduais que reiteram as mesmas disposições (Ministério Público Federal, 2021), por maioria absolutamente representativa, incluindo unanimidade no aspecto da tutela coletiva (diga-se de passagem, também antes atacada pela Associação Nacional do Ministério Público – Conamp, e já derrotada no julgamento da pretérita ADI 3943, julgada pelo STF em 07.05.15).
Para encerrar, é sempre oportuno reforçar que o instituto jurídico hoje traduzido na Defensoria Pública, como órgão constitucional e autônomo, deriva das primeiras raízes históricas da percepção da importância do devido processo legal, isto é, do direito a uma defesa. E, nessa linha do tempo, cada vez mais, tem-se evoluído para o direito a uma defesa eficientemente adjetivada, defesa de qualidade, defesa necessariamente comprometida com valores éticos e sobretudo com a ideia de justiça substancial que contribua para um tratamento de efetiva igualdade perante a lei para todos os cidadãos, assim como colabore para a melhor organização do sistema de justiça e da vida em sociedade.
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