RESUMO: Apesar de ser um tema bastante consagrado no âmbito do direito, seu grau de importância e complexidade justificam as discussões doutrinárias e por quem atua nessa área, visto que além da percepção das regras internas também se entrelaça com regras de Direito Internacional Privado. Quando uma pessoa morre e deixa bens no Brasil e no exterior, na maioria das vezes não sabe o que fazer, várias são as dúvidas. A mais comum refere-se ao local para abertura do inventário, se deve ser feito apenas no Brasil ou em todos os países onde se encontram os bens e nesse caso qual lei será aplicada. Outro questionamento é sobre a divisão de bens, como proceder para que os herdeiros recebam a mesma quota-parte? O principal objetivo deste trabalho é levar, de forma simples, informações aos brasileiros que estão por investir seu patrimônio em outros países, ou àqueles que pensam em estabelecer domicílio fora do Brasil. É importante compreender como seu patrimônio se comportará em caso de sucessão. Um planejamento sucessório pode ser a estratégia adequada para facilitar a partilha de bens entre os herdeiros, de forma a evitar contratempos ou dificuldades que possam surgir quando for aberta a sucessão.
PALAVRAS-CHAVES: Sucessão. Bens no exterior. Jurisdição. Pluralidade de Competências Sucessórias. Imposto de Transmissão Causa Mortis.
1. INTRODUÇÃO
O livro referente ao Direito das Sucessões é o último do CC/2002, assim como ocorria com o Código de 1916. E não poderia ser diferente, pois a morte deve fechar qualquer codificação que se diga valorizadora da vida civil da pessoa humana. [1] O objeto do direito das sucessões diz respeito exclusivamente às relações patrimoniais do autor da herança. Somente elas serão estudadas por esse ramo do direito, pois as relações existenciais extinguem-se com a morte do titular.
Aberta a sucessão (o que se dá com a morte), transmite-se automaticamente a posse e a propriedade de todos os bens que compõem o espólio. A isso se convencionou chamar de droit de saisine ou regra de saisine. Não se confunde, portanto, a abertura da sucessão (a morte) com a abertura do inventário.
O patrimônio do de cujus – o que inclui os seus ativos e passivos – comporá uma massa indivisa, que receberá o nome de espólio. Ele não tem personalidade jurídica, mas a lei lhe atribui capacidade de ser parte. A finalidade do inventário é a apuração do acervo de bens, direitos e obrigações da massa, a identificação dos herdeiros e da parte correspondente a cada um para eu, recolhidos os tributos, os bens possam ser partilhados entre eles. [2] No entanto, havendo bens no Brasil e em outros países o processo torna-se bastante complexo.
2. DA SUCESSÃO DE BENS SITUADOS NO EXTERIOR
Substancialmente o Direito das Sucessões é tratado no Código Civil para bens situados em território brasileiro. Temos também a aplicabilidade de outros preceitos legais, como por exemplo, a Lei nº 6.858/80 muito utilizada quando se trata apenas de levantamento de fundo de garantia, diferenças salariais e algumas contas bancárias, não havendo outros bens. Nesse caso o procedimento é simples e rápido bastando uma petição por parte do sucessor.
Estimativa do Ministério das Relações Exteriores aponta que aproximadamente 4.2 milhões de brasileiros vivem no exterior[3]. Muitos países, como Portugal, por exemplo, oferecem condições atrativas fazendo com que famílias se desloquem e transfiram seu patrimônio para o estrangeiro, o que se torna um desafio para as sucessões hereditárias, principalmente em razão do conflito de legislação com os outros países e da forma de tributação.
Seria lógico pensar que a lei aplicada para decidir a sucessão causa mortis seria aquela do país em que domiciliado o de cujus, conforme preceitua o art. 10 do Decreto-Lei nº 4.657/42. No entanto, o Brasil não tem competência para o inventário e a partilha de bens situados em outros países, pois, de acordo com o artigo 23, II, do CPC/15, a jurisdição brasileira é exclusiva quanto aos bens situados no Brasil, sem qualquer interferência da justiça estrangeira nesta seara.
Essa regra tem sido flexibilizada pelo Superior Tribunal de Justiça quando a decisão estrangeira cumpre a última vontade manifestada pelo de cujus e transmite bens localizados no território nacional aos herdeiros indicados no testamento. Confira-se:
Homologação de Sentença Estrangeira. Partilha De Bens Imóveis Situados No Brasil. Sentença Homologada. Ratificação De Vontade Última Registrada Em Testamento. Citação Comprovada. Concordância Expressa Dos Requeridos. Ausência De Impugnação Posterior. Caráter Definitivo Do Julgado. Art. 89 Do Código De Processo Civil E Art. 12 Da Lei De Introdução Ao Código Civil. Ofensa. Inexistência. Precedentes. Pedido De Homologação Deferido. I – O requisito da citação válida ou revelia decretada restou devidamente cumprido, pois os então requeridos foram comprovadamente cientificados da ação, não promovendo impugnação, ou, sequer, comparecendo ao juízo. O próprio decisum foi intitulado ‘Sentença Declaratória à Revelia’. II – O feito caracterizou-se pela a inexistência de litígio, comprovada, primeiramente, pelo não comparecimento dos ora requeridos ao processo e não impugnação do pleito, bem como pela anuência expressa ao conteúdo do decisum e consequente não interposição de recurso face à sentença que aqui se pretende homologar. III – A anuência dos ora requeridos em relação ao decidido pela sentença homologanda, além da não interposição de recurso, confere natureza jurídica equivalente à do trânsito em julgado, para os fins perseguidos no presente feito. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de que compete exclusivamente à Justiça brasileira decidir sobre a partilha de bens imóveis situados no Brasil. V – Tanto a Corte Suprema quanto este Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram pela ausência de ofensa à soberania nacional e à ordem pública na sentença estrangeira que dispõe acerca de bem localizado no território brasileiro, sobre o qual tenha havido acordo entre as partes, e que tão somente ratifica o que restou pactuado. Precedentes. VI – Na hipótese dos autos, não há que se falar em ofensa ao art. 89 do Código de Processo Civil, tampouco ao art. 12, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, posto que os bens situados no Brasil tiveram a sua transmissão ao primeiro requerente prevista no testamento deixado por Thomas B. Honsen e confirmada pela sentença homologanda, a qual tão somente ratificou a vontade última do testador, bem como a dos ora requeridos, o que ficou claramente evidenciado em razão da não impugnação ao decisum alienígena. VII – Pedido de homologação deferido”. (STJ – SEC: 1304 US 2005/0153253-6, Corte Especial, Relator Ministro Gilson Dipp, Julgado em 19/12/2007). (Grifou-se).
Sendo a Sucessão aberta no Brasil, havendo bens deixados no exterior, a Justiça brasileira compreende que não possui competência para processar inventário e partilha desses bens situados fora do território nacional, daí a necessidade da abertura de inventário em cada país. Esse é o princípio da pluralidade de juízos sucessórios adotado pela jurisprudência pátria. Desse modo, quando um brasileiro falece deixando bens em outro país, aplica-se a legislação do país onde os bens estão situados. Essa pluralidade de competências sucessórias gera uma complexidade no que tange à tramitação do processo e à divisão de bens.
A rigor o que está fora do Brasil não é contabilizado para fins de legítima. No sentido de minimizar essas questões, o Superior Tribunal de Justiça e alguns Tribunais do País, percebendo que houve privilégio de certos herdeiros em detrimento de outros, violando preceitos da legislação brasileira sucessória, concedem uma compensação considerando os bens existentes no exterior.
Outra situação é quando há bens deixados no país por falecidos estrangeiros e a abertura do inventário é feita no Brasil. Nesse caso juiz deve escolher, em benefício do cônjuge ou filho brasileiro, a lei mais favorável de acordo com o art. 10, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Escolher significa eventualmente que o juiz competente para o inventário no Brasil irá aplicar o direito estrangeiro. O art.14 do Decreto-Lei nº 4.657/42 preceitua, implicitamente, que o juiz deve conhecer a legislação de outros países, princípio expresso no brocardo latino iura novit curia, ou seja, o "juiz conhece o direito".
Mas se o juiz desconhecer a lei estrangeira pode oferecer oportunidade à parte que sustenta algum benefício, com fundamento no direito estrangeiro, trazer a conhecimento. Isso se justifica no sentido de proteger o cônjuge e os filhos brasileiros de eventuais discriminações existentes na lei estrangeira que viesse a reger a sucessão em virtude da nacionalidade do último domicílio do de cujus. A aplicação da lei brasileira é subsidiária, isto é, será aplicada somente quando se mostrar mais favorável à lei estrangeira na sucessão.
Casos em que a lei brasileira pode ser mais favorável:
a) se pela lei do domicílio do falecido não existe sucessão legítima, ou seja, não se resguarda porcentagem dos bens para os herdeiros necessários;
b) havendo uma maior liberdade de testar na lei estrangeira, comprometendo-se, a legítima;
c) não sendo o cônjuge ou companheiro considerado herdeiro, como no Brasil;
d) e se a lei estrangeira favorecer alguns herdeiros em detrimento de outros.
Percebemos que, no mundo globalizado, as sucessões hereditárias com elementos internacionais são mais frequentes, surgindo então a necessidade de acordos internacionais. Como exemplo temos o Regulamento (UE) nº 650/2012[4], em vigor desde agosto de 2015, que visa facilitar as transmissões sucessórias transnacionais na Europa, cada vez mais frequentes na União Europeia.
Esta legislação assegura a coerência no momento da transmissão hereditária, aplicando-se à sucessão transnacional uma única lei, por uma única autoridade. Normalmente, para regular a sucessão considera-se a lei do país em que o falecido tinha residência habitual no momento do óbito, permitindo que ao autor da herança a escolha da lei que regulará a sua sucessão. Há um fortalecimento do Direito Internacional como fonte de uma Justiça mais célere e menos burocrática.
Sobre a incidência (ou não) de Imposto de Transmissão Causa Mortis (ITCMD) de bem situado fora do Brasil, a Constituição da República, no art.155, determina que tais bens estão sujeitos à tributação, mas seria necessária, ainda, a criação de uma Lei Complementar de Competência da União - que nunca foi editada.
Muitos entes federativos, entre eles o estado de São Paulo, por meio da Lei Estadual n. 10.705/00, inciso II, alínea “b[5]”, determinaram nas respectivas legislações que o ITCMD seria exigido nas transmissões por doação, tendo o doador domicílio ou residência no exterior, e também nas transmissões causa mortis havendo bens localizados no exterior onde o de cujus era residente ou domiciliado ou caso o inventário tenha sido processado no exterior.
Em decorrência disso, inúmeras ações foram propostas, até que em 20/04/2021 o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional essa cobrança, ficando, portanto, os Estados proibidos de fazê-la. A não tributação sobre heranças no exterior de residentes no Brasil é, nesse momento, uma grande oportunidade de planejamento familiar e sucessório e ratifica a necessidade de investidores brasileiros considerarem a internacionalização do patrimônio como uma medida de proteção ao seu legado financeiro e uma forma de economizar na transferência do patrimônio aos herdeiros.
No entanto, em Junho do corrente ano (2022), o Supremo Tribunal Federal estipulou um prazo de doze meses para o Congresso Nacional editar a Lei Complementar que estabelecerá normas gerais e definidoras do tributo sobre doações e heranças provenientes do exterior. Por isso, àqueles que pretendem fazer doações de bens e direitos devem realizar tais doações antes da edição da referida Lei Complementar, que deve ocorrer até junho de 2023.[6]
3. CONCLUSÃO
Em conclusão, a resolução das questões patrimoniais quando há bens em múltiplos países suscita questões jurídicas complexas. Visando evitar litígios que consomem tempo, dinheiro e energia dos herdeiros, é extremamente aconselhável realizar um planejamento sucessório estruturado para organizar a divisão patrimonial, valendo-se de mecanismos como holdings, testamentos e trusts.
4. BIBLIOGRAFIA
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.
ARAÚJO, Nádia de; SPITZ Lídia; NORONHA, Carolina. Sucessão com bens no exterior: por onde começar? Revista Consultor Jurídico: 11 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-11/opiniao-sucessao-bens-exterior-onde-comecar. Acesso em 07 set 2022.
BRASIL. Lei 6.858. 24 de novembro de 1980. Dispõe sobre o Pagamento, aos Dependentes ou Sucessores, de Valores Não Recebidos em Vida pelos Respectivos Titulares. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6858.htm. Acesso em 04 set 2022.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657. 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13655.htm. Acesso em 04 set 2022.
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GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado; coordenador Pedro Lenza. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MADEIRA, Samira Tanus. Sucessão de bens situados no exterior: quais leis devem ser aplicadas? Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo: 12 de novembro de 2021. Disponível em: https://cnbsp.org.br/2020/08/03/artigo-sucessao-de-bens-situados-no-exterior-quais-leis-devem-ser-aplicadas-por-samira-tanus-madeira/. Acesso em 05 set 2022.
MOREIRA, Assis. Número de brasileiros morando no exterior nunca foi tão grande como agora. Valor Econômico. Genebra. 03/09/22. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/09/03/numero-de-brasileiros-morando-no-exterior-nunca-foi-tao-grande-como-agora.ghtml.
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ROSA, Conrado Paulino da; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha. 1ª ed. Salvador: JusPodivm, 2019.
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TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.
[1] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.
[2] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado; coordenador Pedro Lenza. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
[3] MOREIRA, Assis. Número de brasileiros morando no exterior nunca foi tão grande como agora. Valor Econômico. Genebra. 03/09/22. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/09/03/numero-de-brasileiros-morando-no-exterior-nunca-foi-tao-grande-como-agora.ghtml.
[4] NUCALIS, Eme. Testamento, Sucessão na Europa e Certificado Sucessório Europeu. Mundo Notarial. 03.05.2017. Disponível em http://mundonotarial.org/blog/?p=3186. Acesso em 05.09.22.
[5] SÃO PAULO. Lei nº 10.705. 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre a instituição do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2000/lei-10705-28.12.2000.html. Acesso em 04 set 2022.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF fixa prazo de 12 meses para Congresso regulamentar cobrança de imposto sobre doação e herança no exterior. 07.06.22. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=488471&ori=1 Acesso em 05 de set de 2022.
Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DINIZ, Ana Cristina Malta. A complexidade da sucessão de bens situados no exterior Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2022, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59149/a-complexidade-da-sucesso-de-bens-situados-no-exterior. Acesso em: 26 dez 2024.
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