RESUMO: O objetivo básico deste estudo é refletir sobre o atual conceito de domicílio eleitoral estabelecido pela doutrina, legislação e jurisprudência especializadas em direito eleitoral, bem como nas respectivas consequências práticas ao processo eleitoral. A finalidade deste artigo é analisar a possibilidade de padronização do conceito de domicílio eleitoral para viabilizar o controle da legitimidade de operações de alistamento, transferência e registro de candidaturas eleitorais. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica considerando a visão de autores como BARREIROS NETO (2016), MOREIRA DE ALMEIDA (2016), JAIRO GOMES (2016, entre outros, buscando enfatizar a importância da elucidação do conceito de domicílio eleitoral para a redução de fraudes no cadastro eleitoral e maior lisura das eleições. Concluiu-se a necessidade iminente de haver uma legislação coerente com o cenário político atual que tenha aplicação uniforme pela justiça eleitoral quanto aos requisitos relacionados à comprovação do domicílio eleitoral, caracterizando a fidelidade dos vínculos entre eleitores e candidatos com a circunscrição do pleito.
Palavras-chave: Domicílio. Eleitoral. Conceito. Amplitude.
Introdução
Este trabalho tem como tema a abrangência do conceito de domicílio eleitoral, sua diferenciação com relação ao domicílio civil e as implicações práticas acerca dos vínculos atualmente aceitos para realização de procedimentos perante a justiça eleitoral, tais como alistamento, transferência, revisão do eleitorado e registro de candidaturas.
Neste toar, elaborou-se questões que nortearam o atual trabalho:
a) Qual a amplitude da definição de domicílio eleitoral? Quais vínculos são aceitos para o exercício do voto e/ou candidatura na circunscrição do pleito?
b) Qual deve ser a melhor interpretação do conceito a ser adotada pela justiça eleitoral para evitar fraudes no processo eleitoral?
Antes de tratar do conceito de domicílio eleitoral, é relevante esclarecer a definição de domicílio civil estabelecida pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 70, in verbis: “O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.”. Da mesma forma, o Código Eleitoral em seu artigo 42, parágrafo único, preconiza que “para o efeito da inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas”.
Dessa forma, a princípio seria possível considerar os institutos como similares, na medida em que primordialmente levam em consideração a residência do interessado como elemento preponderante para a caracterização do domicílio.
Todavia, o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu interpretação diversa no Acórdão 18.124/2000, asseverando que “o domicílio eleitoral não se confunde, necessariamente com o domicílio civil. A circunstância de o eleitor residir em determinado município não constitui obstáculo a que se candidate em outra localidade onde é inscrito e com a qual mantém vínculos”.
Quanto à interpretação da expressão domicílio eleitoral, Roberto Moreira de Almeida aduz que:
Vê-se, destarte, que a expressão “domicílio eleitoral” é interpretada de forma mais ampla que “domicílio civil”. De fato, basta que o cidadão apresente vínculos ou interesses profissionais, patrimoniais, comunitários, familiares, políticos ou comerciais com determinada localidade para que venha a requerer a sua inscrição eleitoral e ali vir a ser eleitor ou até candidato. (ALMEIDA, Roberto Moreira de. 2016, p. 294)
Neste cenário, o foco primordial deste estudo é apontar qual deve ser o conceito de domicílio eleitoral a ser adotado no intuito de minimizar fraudes e inconsistências no processo eleitoral, especialmente diante da amplitude de vínculos adotada pelo TSE.
Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recursos metodológicos: pesquisa bibliográfica, com fulcro no entendimento e críticas doutrinárias; análise jurisprudencial, realizada a partir da verificação prática dos procedimentos relacionados ao cadastro eleitoral, como também pelo exame de materiais já publicados em meio eletrônico sobre o assunto.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como: Moreira de Almeida (2016), Barreiros Neto (2016), Jairo Gomes (2016), dentre outros.
Desenvolvimento
A discussão acerca da delimitação do conceito de domicílio eleitoral possui grande relevância prática para a justiça eleitoral, tendo em vista que os servidores desta justiça especializada estão orientados a efetuar as operações de alistamento e transferência do eleitor, sendo ainda de incumbência do juiz eleitoral a verificação do domicílio eleitoral na circunscrição pelo prazo mínimo de seis meses anteriormente ao pleito como condição de elegibilidade de candidatos, conforme art. 9º da Lei 9.504/97.
Quanto aos possíveis vínculos que o eleitor ou candidato podem possuir para fins de caracterização do domicílio eleitoral, JAIRO GOMES (2016, p. 159) afirma que, no que concerne à aplicação do conceito pelos tribunais eleitorais, “tem sido admitido como domicílio eleitoral qualquer lugar em que o cidadão possua vínculo específico, o qual poderá ser familiar, econômico, social ou político”.
No mesmo sentido, a Resolução TSE 23.569/2021, que trata da gestão do cadastro eleitoral, preconiza em seu artigo 23 que “para fins de fixação do domicílio eleitoral no alistamento e na transferência, deverá ser comprovada a existência de vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza que justifique a escolha do município”.
Ressaltando a preponderância do vínculo político, o jurista Leonardo Matrone frisa que: considerada a complexidade da discussão, recomendável que, em todos os casos, haja o vínculo político do eleitor com o município no qual ele pretende constituir seu domicílio. Esse vínculo, sim, pode ser mínimo. Mas deve existir. É necessário ter-se a consciência de que a atividade política é a essência do conceito de democracia.
Em que pese o inicial fundamento da pluralidade de vínculos consistir na tentativa de colaboração para a livre escolha do eleitor do local de exercício do seu voto ou, quanto aos candidatos, do lugar de pleno interesse no registro de sua candidatura, nota-se que, atualmente, a escolha interpretativa adotada pelos tribunais pátrios, especialmente pelo entendimento pacífico do TSE, tem ocasionado diversos transtornos à lisura dos procedimentos eleitorais.
Conforme se depreende da análise do art. 38, inciso III da Resolução TSE 23.659/2021, que dispõe sobre o alistamento e demais serviços eleitorais processados eletronicamente, um dos requisitos para a efetivação da transferência do domicílio eleitoral consiste na residência mínima de três meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor, consoante também estabelecido no artigo 8º da Lei nº 6.996/1982.
Vê-se, portanto, que além da abrangência do conceito de domicílio eleitoral já abordada, a própria legislação eleitoral prevê a simples declaração do eleitor de que é residente no município, desvinculada de qualquer elemento comprobatório, como requisito suficiente para a concretização da operação de transferência de domicílio eleitoral.
Acerca da matéria, JAIRO GOMES (2016) adverte que:
A declaração de residência a que alude o transcrito inciso III, pelo lapso de três meses, exige cautela. Não se pode olvidar que, na seara eleitoral, o conceito de domicílio é flexível (...). De qualquer maneira, é preciso sempre estar atento para que não aconteçam transferências eleitorais fraudulentas, pois elas podem alterar profundamente o resultado de eleições, falseando a representatividade popular. Isso é verdadeiro sobretudo em municípios não muito populosos, onde poucos votos podem ser decisivos tanto para a eleição de prefeito quanto para a de vereador. (JAIRO GOMES, José. 2016, p. 170)
No que tange à possibilidade de realização de diligências administrativas pelo Cartório Eleitoral para dirimir dúvidas acerca da veracidade da declaração de vínculo do eleitor com a zona eleitoral, percebe-se que a aludida fiscalização é demasiadamente prejudicada em razão da precária estrutura da Justiça Eleitoral, especialmente no aspecto de escassez de servidores em quantitativo hábil a promover a efetiva prevenção de fraudes.
Seguindo essa ótica, o analista judiciário Gerson Gonçalves Miranda expõe com maestria a realidade da estrutura e prática dos Cartórios Eleitorais:
Assim, abre-se margem para vários tipos de irregularidades, atendendo a interesses diversos e nada democráticos. Não obstante a declaração seja presumidamente válida, nada impede que diante de dúvida quanto à declaração do eleitor, a Justiça Eleitoral promova diligências no endereço indicado visando comprovar o vínculo declarado, antes do deferimento da operação. No entanto, a realização dessas diligências é muito comprometida diante da estrutura precária dos Cartórios Eleitorais, ficando essa fiscalização dependente de alguma denúncia de irregularidade, por critérios subjetivos e quase que por amostragem, o que dificulta a identificação de possíveis fraudes, tornando muito frágil o instituto do domicílio eleitoral.
No mesmo sentido, a jurista Ana Luísa Leite pondera que a posição jurisprudencial prevalecente pode ocasionar a formação de eleitorado em situação de manifesta irregularidade, desconexos com o real local de votação, bem como o registro de candidatos com interesses escusos e não democráticos:
A preocupação doutrinaria se dá pelo fato de diversos candidatos aproveitarem-se do benevolente entendimento jurisprudencial a fim de efetivamente se candidatarem em local diverso do que de fato tem domicílio por motivos “eleitoreiros”, bem como de “eleitores itinerantes” votarem em locais com os quais não possuem nenhum vínculo real.
No caso dos municípios seria ainda mais grave, pois haveria tanto a possibilidade de prefeitos e vereadores totalmente desconectados com os problemas daquela comunidade conseguirem ser eleitos, como a de eleitores que nada tem a ver com o panorama municipal conseguirem votar.
Com relação às consequências práticas advindas da transferência irregular de domicílio eleitoral, existe previsão legal do procedimento denominado de revisão do eleitorado, que será realizado pela Justiça Eleitoral quando constatada fraude em proporção comprometedora, através da determinação de apresentação dos eleitores do município envolvido, a fim de ser averiguada a existência fidedigna de vínculo com a zona eleitoral. Nesse sentido, dispõe o art. 71 do Código Eleitoral, in verbis:
Art. 71 § 4º Quando houver denúncia fundamentada de fraude no alistamento de uma zona ou município, o Tribunal Regional poderá determinar a realização de correição e, provada a fraude em proporção comprometedora, ordenará a revisão do eleitorado obedecidas as Instruções do Tribunal Superior e as recomendações que, subsidiariamente, baixar, com o cancelamento de ofício das inscrições correspondentes aos títulos que não forem apresentados à revisão.
Contudo, há de ser ressaltado que a revisão do eleitorado constitui mecanismo extremamente dispendioso para a Justiça Eleitoral, haja vista que a análise preliminar da fraude é feita por meio de correição, procedimento que implica em deslocamento de servidores nas diversas residências apontadas no cadastro eleitoral, com o fito de observar se existe alguma conexão entre o eleitor e a zona eleitoral.
Posteriormente, constatada a fraude manifesta, será realizada a convocação geral de todos os eleitores para comparecimento pessoal à zona eleitoral, impondo-se a necessidade de funcionamento contínuo do cartório por meio de servidores que atuarão ininterruptamente, os quais efetuarão a revisão dos títulos eleitorais e analisarão minunciosamente a existência de vínculos que justifiquem a inscrição eleitoral naquela localidade.
O artigo 110, I da Resolução TSE 23.659/2021 disciplina o procedimento, estabelecendo que “mediante autorização do tribunal regional respectivo, determinar a criação de postos de revisão e os dias e horários em que funcionarão, o que poderá ocorrer, inclusive, aos sábados, domingos e feriados, assegurada, em qualquer hipótese, a acessibilidade”.
Além do dispêndio de orçamento com jornada suplementar, convocação extraordinária de servidores e manutenção predial em horário superior ao comum, vale frisar que a consequência para a ausência de comparecimento obrigatório de eleitores à revisão do eleitorado é o cancelamento de ofício das inscrições eleitorais correspondentes.
Neste cenário, é comum a abstenção de eleitores que, originalmente, estavam em situação regular, mas não puderam comparecer tempestivamente ao ato de revisão e, por isso, serão sancionados por força de lei e terão de ir novamente ao cartório eleitoral para regularizar uma situação fática que, desde o início, não estava eivada de vícios.
Diante do panorama apresentado, constata-se que a falta de critérios objetivos para a formulação do conceito de domicílio eleitoral vem implicando em prejuízo exacerbado à transparência do processo eleitoral, pois o quantitativo real de eleitores é comumente desvirtuado do número de cidadãos que efetivamente possuem interesse no resultado do pleito eleitoral e na representatividade de poder para melhoria da governança política.
Outrossim, o preenchimento da condição de elegibilidade relativa ao domicílio eleitoral na circunscrição vem sendo facilmente burlado pela simples transferência de domicílio pelo candidato poucos meses antes das eleições, frequentemente motivada por aspirações políticas e pessoais daqueles que sequer conhecem a realidade e as precariedades da comunidade local.
Segundo Silma Leda Sampaio, não há dúvida de que os municípios do interior do país são acometidos pela prática nefasta de transferência irregular de domicílio em período eleitoral, mormente por parte dos pretensos candidatos:
Lamentavelmente, face ao elastério dado ao conceito de domicílio político, verifica-se, com freqüência principalmente no interior do Brasil, um verdadeiro êxodo de domicílios em períodos eleitorais, numa clara demonstração de acomodação de interesses meramente partidários e pessoais, haja vista que os partidos políticos no Brasil não possuem tradição ideológica, funcionando em torno das personalidades que o integram, despreocupando-se com ideologia e conteúdo programático.
Por todo o exposto, considerando o atual cenário político e a necessidade de reforço da preservação da imagem da Justiça Eleitoral enquanto órgão que efetivamente contribui para a manutenção da democracia e da lisura do pleito eleitoral, mostra-se urgente a reformulação do conceito de domicílio eleitoral, com a consequente previsão de elementos objetivos que restrinjam as operações irregulares de alistamento, transferência e registro de candidatura, facilitando o controle prévio de fraudes e a minimização de gastos com fiscalização e diligências.
Conclusão
Avaliando todo o panorama apresentado a respeito da complexidade do tema, concluiu-se que há emergente necessidade de restrição do conceito de domicílio eleitoral, mais precisamente no sentido de evitar a possibilidade de que vínculos tão abstratos configurem justificativa para a realização de operações no cadastro eleitoral e permitam o registro de candidatura por aqueles que sequer conhecem a realidade da circunscrição pela qual irão concorrer.
A bem da verdade, a residência do eleitor é o vínculo que objetivamente satisfaz o requisito legal, especialmente aliando-se à declaração do eleitor o dever de comprovar o vínculo documentalmente. Tal prática seria capaz de diminuir consideravelmente as fraudes que vêm sendo pautadas apenas na declaração oral dos eleitores de que possuem algum tipo de vínculo com o município, despida de qualquer elemento robusto.
Ademais, no intuito de evitar prejuízos a eleitores que se enquadram em casos concretos excepcionais, poderia ser viabilizado ao interessado o requerimento administrativo de reconhecimento de vínculo que não seja o residencial, o qual seria dirimido oportunamente pelo juiz eleitoral respectivo.
O atual cenário eleitoral conduz à percepção popular de descrença não só com o nível de responsabilidade e ética dos candidatos e detentores de mandato eletivo, mas também com o próprio sistema eleitoral vigente.
Destarte, em tempos de notícias falsas sendo disseminadas diariamente, nota-se que a adoção de critério objetivo para conceituação de domicílio eleitoral é medida bastante salutar, capaz de diminuir o índice de eleitores corrompidos e de viabilizar que somente os reais interessados na concretização da democracia no local do pleito exerçam o poder de sufrágio.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Roberto Moreira de. Curso de Direito Eleitoral. 10. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador: JusPODIVM, 2016.
BARREIROS NETO, Jaime. Direito Eleitoral. 6. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador: JusPODIVM, 2016.
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 12.ed. - São Paulo: Atlas, 2016.
MARQUES, Ana Luísa Leite de Araújo. Entendimento amplo de domicílio eleitoral pode gerar distorções para democracia. Disponível em: www.conjur.com.br/2017-jul-15/ana-marques-conceito-domicilio-eleitoral-gerar-distorcoes. Acesso em 10 de out. de 2019.
SAMPAIO, Silma Leda. Domicílio Eleitoral. Aspectos conceituais e aplicação jurisprudencial. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31311/domicilio-eleitoral. Acesso em 11 de out. de 2019.
MIRANDA, Gerson Gonçalves. Domicílio eleitoral: uma abordagem crítica sobre domicílio eleitoral e os requisitos necessários para a sua caracterização. Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-ap-artigo-1-domicilio-eleitoral. Acesso em 12 de out. de 2019.
MATRONE, Leonardo. A interpretação do conceito de domicílio eleitoral. Disponível em:www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI7058,71043A+interpretacao+do+conceito+de+domicilio+eleitoral. Acesso em: 12 de out. de 2019.
Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes. Analista Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Jessica Silveira Rollemberg. Domicílio eleitoral: amplitude do conceito e implicações práticas na justiça eleitoral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59279/domiclio-eleitoral-amplitude-do-conceito-e-implicaes-prticas-na-justia-eleitoral. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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