Resumo: Esse artigo tem a finalidade de apresentar um panorama sobre como o Brasil está tratando o princípio da laicidade, previsto na sua Carta Maior. Dessa maneira, o presente estudo busca conceituar a laicidade e os termos que normalmente suscitam dúvidas, procurando também situar o país na efetividade de aplicação desse princípio e exibindo algumas divergências na literatura. Por fim, são apontadas ponderações acerca da importância do princípio em tela em um estado democrático de direito e abordados precedentes históricos que por vezes afastam o Brasil da laicidade e por outras vezes o aproximam.
Palavras-chave: Religião; Estado laico; esfera pública; laicidade; liberdade religiosa.
Abstract: This article aims to provide an overview of how Brazil is dealing with the principle of validity, as set out in its Major Charter. Thus, the present study seeks to define the validity and terms that are normally susceptible to doubts, also looking for the country in which the effectiveness of the application of this principle is displayed and some divergences in the literature. Finally, considerations on the importance of the principle on screen in a democratic rule of law are pointed out and historical precedents that sometimes move away from Brazil or sometimes or approach.
Keywords: Religion, Laic State; secularity, public sphere, religious freedom.
1.INTRODUÇÃO
O Estado brasileiro, segundo a Constituição de 1988, traz em seu art. 19º, inciso “i”, proíbe aos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas oficiais, da mesma forma que veda a interferência estatal nas referidas instituições (BRASIL, 1988). Portanto, está claro que, ao menos frente a Constituição Federal, o Brasil é um país laico.
Entretanto, em seu preâmbulo, a Carta Maior faz uma referência explícita a um Deus. Mesmo não sendo dotado de força normativa, segundo a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2076 (BRASIL, 2002), que firmou o entendimento da Corte, o preâmbulo se fundamenta na visão do constituinte originário, que, por sua vez, reflete ou deveria refletir os anseios da população.
Por conseguinte, apesar de ser constitucionalmente garantido, podem ser observadas normas e comportamentos que mitigam a laicidade do Estado brasileiro. Dessarte, esse trabalho pretende apresentar uma base conceitual dos principais tópicos relacionados à laicidade de um Estado bem como analisar como o tema está sendo tratado atualmente nas principais cortes do país bem como nas discussões acadêmicas.
2.CONCEITUAÇÃO DO ESTADO LAICO E O PANORAMA BRASILEIRO
A definição de Estado laico, também conhecido como estado secular, pode ser dado pela ausência de religião oficial adotada por um determinado Estado. Ou seja, esse conceito está ligado ao claro distanciamento da religião com a esfera pública e não a anti-religião na sociedade, à desconexão entre fé, situado no âmbito privado, e igreja como instituição de domínio público (DOMINGOS, 2009).
Nesse sentido, é de suma importância esclarecer, diante da iminente confusão entre os conceitos, a diferença entre os conceitos de laicidade, laicismo e secularização. Portanto, alguns autores se dedicaram a contextualização desses termos, como Ranquetat (RANQUETAT, 2008). O autor apregoa, segundo sua pesquisa, que, basicamente, a laicidade está ligada ao comportamento do Estado de indiferença frente as diversas religiões, devendo esse rata-las de maneira igualitária. Já o laicismo é considerado como uma maneira incisiva de se chegar a laicidade, possuindo características de enfrentamento da religião como um todo, até mesmo da sociedade; é, portanto, anti-religião. Por fim, a secularização é um conceito relacionado à diminuição do poder da religião no mundo contemporâneo, o que afasta gradualmente a influência religiosa sob um Estado.
Dessa forma, o Brasil pode ser considerado um Estado laico e não laicista, pois, apesar de não definir nenhuma religião oficial em sua Constituição, permite, através de seus preceitos fundamentais, a liberdade religiosa. Como confirma Rios (2015):
”Este desenho institucional coloca o Brasil no campo da laicidade, uma vez que seus elementos fundamentais estão presentes: (a) garantia dos direitos fundamentais de liberdade e de igualdade para todos, sem depender de crença religiosa; (b) neutralidade quanto ao dado religioso do ponto de vista institucional, pela impossibilidade de argumentos de fé em processos de deliberação democrática majoritária e na configuração e execução das políticas públicas, ainda que admitida a cooperação de interesse público e (c) ausência de hostilidade a indivíduos e grupos em virtude de crença religiosa, conjugada com mecanismos de convivência e de valorização da diversidade religiosa (p. 8).”
Entretanto, alguns autores, como Pinzani (2015), descrevem o Brasil como possuidor de caráter confessional, pois, segundo esse autor, é visível a preferência do cristianismo como norteadora dos princípios políticos do nosso Estado, o que nos afasta da laicidade. Nesse estudo são citados alguns exemplos que fortalecem os argumentos do autor, tal como o crescimento de projetos de lei com o intuito de impor uma visão cristã a toda sociedade como se todos fossem praticantes da mesma religião, a título de exemplo a leitura obrigatória da Bíblia nas escolas, ou como os crucifixos estampados nas mais variadas repartições públicas, de todos os entes federados.
3.A IMPORTÂNCIA DO ESTADO LAICO
A república federativa do Brasil traz em sua constituição vigente no seu art. 5º, inciso “vi”, que todas as pessoas são iguais perante a lei e que é inviolável a liberdade de consciência e de crença destas pessoas, sendo assim assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (BRASIL, 1988).
Contudo, a representatividade das demais religiões, que não estão abrangidas no bojo protetivo da maior parte das instituições pátrias, se mostra atenuada com a clara preferência do constituinte originário. Assim, discussões que deveriam ser feitas de maneira técnica e responsável são contaminadas por crenças, ideologias e filosofias particulares. Como é mostrado no estudo (LUNA, 2014) que trata da interferência da religião nas decisões políticas sobre o aborto. Nesse artigo, Luna traz um levantamento geral das discussões que envolvem o aborto no Congresso Nacional, mostrando que, apesar da tentativa de avanços na área, há uma grande resistência da ala religiosa (católicos, evangélicos e espíritas), que se une em um projeto antiaborto. As posições são radicalizadas principalmente por parte dos deputados evangélicos ligados à Assembleia de Deus, os quais são contra abortos até em casos de anencefalia e estupro.
Nesse sentido, como Ranquetat salienta (RANQUETAT, 2008) o processo de laicização, a transformação de um Estado em laico, é complexo e suscetível à recaídas, como é apontado o caso da França que em meados de 1930 lutou pela laicidade mas que teve eficácia temporária com a volta do poder monopolista da Igreja Católica pouco mais de vinte anos mais tarde ao declarar o catolicismo como a verdadeira religião daquele país. Também podemos nos lembrar do notório retrocesso vivido n a Arábia Saudita com a confusão feita na relação conturbada de simbiose entre a Igreja e o Estado. Reportagens mostram em fotografias o impacto da Revolução Islâmica (1919) na vida da população, que sedimentou o preconceito contra às mulheres e confirmou sob suas leis a colocação da mulher abaixo dos homens, obrigando-as, dentre outras diversas limitações, a usar véu (SANCHEZ, 2018).
Outro ponto relevante a ser destacado é que, mesmo não tendo adotado uma religião oficial, o Brasil conta com poderosas bancadas parlamentares das religiões com mais praticantes. Esse comportamento fortalece o preconceito essencialmente contra as religiões de matriz africana, que historicamente são estigmatizadas e perseguidas. Silva (SILVA, 2007) retrata casos de intolerância advindos principalmente do neopentecostalismo contra as religiões afro-brasileiras, que são reforçados, em grande parte, pela crescente eleição de candidatos ligados a essas igrejas. Dessa forma, a manutenção e prosperidade dessas religiões são conquistadas na base de muito esforço por parte de seus praticantes e de movimentos que reúnem as pessoas de bom senso das demais religiões. A esse respeito, é importante considerar:
“Enfim, as igrejas neopentecostais ao combaterem os terreiros afro-brasileiros – em nome da evangelização e da libertação espiritual – promovem um afastamento entre esses dois campos religiosos. Tal afastamento estimula o crescimento dessas igrejas em função da evasão de adeptos e de clientes dos terreiros e da degeneração da imagem pública destes últimos. (SILVA, 2007, p3).”
Portanto, é de suma importância a constante observação do panorama político-social de sorte que as práticas anti-isonômicas sejam evitadas desde o seu princípio. Pois, como podemos observar, de tempos em tempos, direitos que já estão garantidos são questionados com base no fideísmo parlamentar, o que pode gerar graves retrocessos e preferências inconstitucionais. E também preconceitos culturalmente enraizados, em vez de serem são combatidos, podem ser estimulados por aqueles que detém o poder.
4.PRINCIPAIS PONTOS QUE ENVOLVEM A TEMÁTICA ESTADO LAICO
Com a promulgação da Constituição Federal da República Federativa do Brasil em 1988, o país garantiu a liberdade religiosa e vedou a definição de uma religião oficial. Todavia, na prática podem ser observadas falhas na aplicação fiel dos princípios constitucionais da laicidade, como mostra Sarmento em seu estudo (SARMENTO, 2008) em que trata da falta de uma representatividade democrática entre as religiões frente aos crucifixos expostos nos tribunais.
Assim, alguns estudos também apontam o que podem ser consideradas contradições da aplicação da laicidade, como os feriados religiosos cristãos presentes em diversas leis presentes nos Estados e Municípios (ROSA, 2016). Nesse mesmo artigo a autora exibe uma decisão judicial envolvendo os ritos do candomblé, umbanda e quimbanda, escancarando o preconceito do magistrado em tela, que desconsidera essas religiões com base no seu profundo desconhecimento e alienação, e que possui como padrão único dos seus preceitos comportamentais religiosos a religião católica.
Outrossim, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2017, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), abriu a possibilidade de estabelecer ensino religioso de caráter confessional nas escolas públicas (BRASIL, 2002). Por conseguinte, mesmo que tenha permanecido a natureza facultativa, essa decisão o STF dificulta ainda mais a efetivação de um Estado plenamente laico, visto que incentiva, ainda que indiretamente, o estabelecimento de uma única religião dentro do contexto escolar público.
Desse modo, o que se percebe é que o nosso ordenamento, mesmo sendo precedido de uma Constituição laica, se desvia desse princípio por diversas vezes. Como pôde ser observado em alguns estudos e decisões de nossa Corte Suprema, o Brasil ainda está longe de ser um Estado totalmente desconexo da religião, como apregoa a Constituição e materializa o Art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
“O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo (BRASIL, 1996, Art. 33).”
Não obstante, o Ministério Público, na contramão de algumas outras instituições, corrobora com o estímulo do Estado laico, como na publicação de uma coletânea de artigos que se propõe a apresentar diversos estudos fomentando o princípio da laicidade (CNMP, 2014).
5.CONCLUSÃO
O presente artigo buscou apresentar a dificuldade da implementação pura de um Estado laico na realidade brasileira devido ao enraizamento cultural cristão, evidenciado desde o preâmbulo da Carta Maior.
Com isso, primeiramente, foi proposta uma revisão literária dos principais termos ligado ao tema, tais quais a conceituação de laicidade. Construindo, portanto, uma base simplória para a discussão sobre a evolução do tema desde a concepção da Constituição Federal de 1988 até os mais recentes julgados do Supremo Tribunal Federal.
Em face do exposto, é inegável que existem avanços quanto a laicidade no Estado brasileiro, entretanto, como pôde ser observado, algumas questões que claramente aproximam nosso país a um Estado Confessional perduram no ordenamento jurídico brasileiro.
6.REFERÊNCIAS
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CNMP – CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério Público em Defesa do Estado Laico / Coletânea de Artigos. 300 p. il. v. 1. Brasília: CNMP, 2014. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/ESTADO_LAICO_volume_1_web.PDF>. Acesso em 06 de nov. 2019.
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Advogado. Bacharel em direito pela Faculdade ASCES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Jeová Miguel da Silva. O princípio da laicidade no estado brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59282/o-princpio-da-laicidade-no-estado-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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