DARIO AMAURI LOPES DE ALMEIDA[1]
(orientador)
RESUMO: O ato de importunar alguém insistentemente a ponto de causar-lhe dano psicológico, moral, social ou mesmo físico, mais comumente definido como assédio, possui diversas conotações, que variam de acordo com a intenção presente na conduta apresentada contra a vítima. Duas formas comuns dessa prática ofensiva à dignidade da pessoa humana compreendem o assédio moral e o assédio sexual, ambas potencializadas pelo advento da globalização e pela evolução das comunicações. Com o avançar das mídias sociais e da tecnologia, os praticantes desses atos invasivos encontraram um novo modo de promover suas investidas, contando, principalmente, com a ausência de uma legislação específica que englobe todas as conjunturas possíveis nesse meio e com a proteção do anonimato. Com isso, pessoas são perseguidas, reputações são arruinadas, psicológicos são abalados e saúdes são prejudicadas. Sendo assim, o presente estudo tem por objetivo apresentar o crime de assédio virtual e suas consequências jurídicas. Para tanto, optou-se por realização de pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico e documental, baseada em estudos correlatos e na análise de documentos oficiais pertinentes à temática, incluindo posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais relevantes para a devida problematização do tema. Como resultado, evidencia-se que os crimes que acontecem na esfera virtual, tanto para a doutrina quanto para a jurisprudência, se equivalem aos crimes que acontecem na vida “real” e, portanto, estão sujeitos às mesmas penalidades contidas na legislação vigente, embora ainda demandem a criação de novos tipos penais para prevenção e punição destas condutas.
PALAVRAS-CHAVE: Assédio virtual. Tipificação. Consequências jurídicas.
ABSTRACT: The act of persistently harassing someone to the point of causing them psychological, moral, social or even physical harm, more commonly defined as harassment, has several connotations, which vary according to the intention present in the conduct presented against the victim. Two common forms of this offensive practice to the dignity of the human person include moral harassment and sexual harassment, both potentiated by the advent of globalization and by the evolution of communications. With the advance of social media and technology, the perpetrators of these invasive acts have found a new way to promote their attacks, relying mainly on the absence of specific legislation that encompasses all possible situations in this environment and on the protection of anonymity. As a result, people are persecuted, reputations are ruined, psychological damage is done, and health is damaged. Therefore, this study aims to present the crime of virtual harassment and its legal consequences. To do so, we opted for a qualitative, bibliographical and documental research, based on correlated studies and on the analysis of official documents pertinent to the theme, including doctrinal and jurisprudential positions that are relevant to the problematization of the theme. As a result, it is evident that the crimes that happen in the virtual sphere, both for the doctrine and the jurisprudence, are equivalent to the crimes that happen in "real" life and, therefore, are subject to the same penalties contained in the current legislation, although they still require the creation of new criminal types for the prevention and punishment of such conducts.
KEYWORDS: Virtual harassment. Typification. Legal Consequences.
1 INTRODUÇÃO
Com a evolução das comunicações e o advento das redes sociais, fomentados pela globalização, algumas condutas ilícitas migraram do meio físico para o meio virtual, facilitadas pela ausência de uma legislação específica que coíba esses atos e pelo manto de proteção do anonimato que permeia esse ambiente. Uma dessas práticas perniciosas inclui o assédio virtual, termo que abrange uma série de ações que vão desde à perseguição, à importunação e à intimidação até à exposição de fotos/vídeos íntimos de uma pessoa, dentre tantas outras.
Tais práticas tem se propagado a cada dia, de modo que a análise contínua essas modalidades criminosas derivadas do uso desmedido e indevido da internet bem como suas penalizações, se torna fundamental para trazer novos esclarecimentos e discussões que ajudem as vítimas a se resguardarem. Além disso, espera-se estar contribuindo para a discussão que antepara a criação de eventuais leis, considerando que, até então, não existe uma regulamentação específica no nosso ordenamento jurídico que trate dos crimes de assédio no mundo virtual.
Portanto, o presente estudo tem por objetivo apresentar o assédio virtual e suas determinantes, descrevendo suas variações e os dispositivos legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro passíveis de serem acionados pelas vítimas desse tipo de conduta. Para tanto, se utilizou de pesquisa documental, mediante a análise das principais leis vigentes no Brasil que podem ser relacionadas às hipóteses classificadas como assédio virtual, como de pesquisa bibliográfica, doutrinária e jurisprudencial, materializada ante a apreciação de posicionamentos e entendimentos publicados na literatura especializada.
2 UMA ÁNALISE DO ASSÉDIO VIRTUAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
2.1 Contextualizando o objeto de estudo: definições terminológicas acerca do assédio virtual e suas classificações e suas variações
Conforme consta no Dicionário Aurélio, o assédio consiste no ato de “insistir com pedidos ou propostas; importunar alguém para que esta pessoa faça alguma coisa; tentar possuir algo pela insistência [...] (FERREIRA, 2010, p. 250). O termo, portanto, sugere a insistência inconveniente, persistente e duradoura em relação a alguém.
Já na concepção de Vólia Bomfim Cassar (2012 p. 912), assédio é “o termo utilizado para designar toda conduta que cause constrangimento psicológico ou físico à pessoa, a qual pode ser de cunho moral ou sexual”. Na mesma esteira, Sérgio Pinto Martins, ensina que assediar significa “importunar, molestar, aborrecer, incomodar, perseguir com insistência inoportuna. Assédio quer dizer cerco, limitação” (MARTINS, 2008, p. 434).
Depreende-se, assim, que o ato de assediar alguém está relacionado a uma conduta ilícita de importunação que cause desconforto físico ou psicológico à vítima, de forma reiterada, podendo se dar na esfera da moralidade ou da personalidade da pessoa, ofendendo-lhe a honra, a dignidade e a liberdade.
Quando tal conduta se consolida por meio da utilização das tecnologias da informação, configura-se o que se chama de assédio virtual, conforme aduzimos das definições trazidas pela Comissão Permanente de Orientação e Prevenção contra o Assédio Moral – COPAMS:
O Assédio Virtual configura-se quando um indivíduo ou grupo de pessoas utiliza a tecnologia digital (internet), objetivando ofender, hostilizar, importunar, intimidar ou perseguir alguém/grupo de indivíduos através da prática de comentários sexuais (artigos 215, 215 a, 216 a e 216 b do Código Penal), pejorativos, divulgação de dados, informações pessoais e a propagação de discursos de ódio feitos na internet (COPAMS, 2020, p. 20).
Assim, entende-se que o assédio virtual está relacionado ao uso das tecnologias da informação para ofender, hostilizar, importunar, intimidar ou perseguir alguém, ou um grupo, seja por meio de comentários sexuais ou da divulgação de informações pessoais e da propagação de discursos de ódio.
O que torna o assédio virtual tão grave é que, por conta com o alcance das redes sociais e da velocidade da disseminação de informações, os danos à personalidade, à psiquê e à saúde da vítima podem ser irreparáveis. Diferentemente do assédio sofrido presencialmente, em que os expectadores são poucos, no caso do assédio virtual, essa situação acaba sendo presenciada por inúmeras pessoas, muitas vezes destruindo imagens e arruinando reputações, além dos mais diversos prejuízos emocionais, sociais e financeiros que recaem sobre as vítimas (NASCIMENTO, 2011).
Além disso, nos casos de assédio ocorridos na esfera presencial, torna-se relativamente mais simples identificar o agente causador de tal conduta, bem como reunir provas e comprovar sua autoria. No mundo virtual, porém, torna-se muito mais difícil identificar a origem do assédio e, consequentemente, punir o culpado. Geralmente, quando isso ocorre, já foram produzidos danos suficientes para desestruturar a vítima. Isso porque, uma vez que uma imagem é divulgada nas mídias, é praticamente impossível restringir sua visualização, visto que prints são tirados e enviados massivamente via correntes no WhatsApp ou Facebook, por exemplo e, mesmo que esse compartilhamento seja crime, abafar esse rastro de destruição é bastante inviável e o caos rapidamente se instaura (NASCIMENTO, 2011).
Assim, ao mesmo tempo que facilitaram as relações sociais e as produções comerciais, possibilitando às pessoas maior conectividade e acesso à transmissão e recebimento de informações, as tecnologias da informação abriram um novo campo para a prática de condutas ilícitas, facilitando os casos de assédio moral e importunação sexual.
De acordo com o Guia de Combate à Violência Online Contra a mulher – Um Chamado por Proteção, da Organização dos Estados Americanos (OEA), o assédio virtual pode ser qualificado em diferentes categorias:
1. Cyberbullying: dano proposital e repetido infligido através do uso de computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos;
2. Cyberstalking: envolve usar meios eletrônicos para perseguir a vítima, e geralmente se refere a um padrão de ameaças ou comportamentos maliciosos;
3. Cyber mobs: grupos postam conteúdo ofensivo/ destrutivo online, muitas vezes competindo com outros grupos, com a intenção de envergonhar alguém;
4. Doxing: recolher e publicar, muitas vezes através de hacking, as informações pessoais de uma pessoa, incluindo, entre outros, nomes completos, endereços, números de telefone, e-mails, nome de cônjuge e de filhos, detalhes financeiros;
5. Roubo de identidade: ocorre quando os dados pessoais de uma pessoa são usados de maneira fraudulenta por outra pessoa;
6. Pornografia de vingança ou Pornografia não-consensual: divulgação de imagens com conteúdo sexual de indivíduos sem o seu consentimento. Inclui imagens/vídeos que foram adquiridos com ou sem consentimento (OEA, 2019, p. 8-9).
Verifica-se, assim, a existência de formas distintas de se praticar o assédio no meio virtual, que incluem desde a perseguição e a divulgação de informações pessoais, até o uso dos dados de uma pessoa para praticar golpes e a divulgação de imagens de conteúdo sexual sem o consentimento da vítima.
O cyberbullying, como bem define Pamplona Filho (2021), é o assédio praticado indiretamente por meios virtuais – com a utilização de sites de relacionamento, grupos de mensagem, plataformas eletrônicas, Instagram, WhatsApp, Facebook, Twitter e até por videoconferência e sistemas operacionais internos da empregadora. É uma das mais nefastas formas de assédio por sua capacidade de multiplicar os agressores sob o véu da “normalidade e aceitabilidade social” e disseminar uma cultura de assédio e desprezo coletivo, a ponto de consumir a habilidade de autoproteção das vítimas, que passam a se considerar merecedoras do assédio.
O cyberbullying encontra definição na legislação brasileira, na Lei Nº 13.185, de 6 de novembro de 2015 e está relacionado à prática de ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, sem motivação evidente, que ocorre no âmbito virtual e atinge diretamente a honra da pessoa ou do grupo alvo dessa ação (BRASIL, 2015).
Por sua vez, o cyberstalking, assim como o cyberbullying também encontra definição no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei Nº 14.132/2021, que descreve como crime a perseguição reiterada através da internet, que ameace a integridade física e psicológica de alguém, interferindo em sua liberdade e privacidade (BRASIL, 2021). Antes da referida lei, a prática era enquadrada apenas como contravenção penal dada pelo Decreto-Lei Nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, que previa o crime de perturbação da tranquilidade alheia, punível com prisão de 15 dias a 2 meses e multa.
Em seguida, o outro tipo de assédio virtual mencionado pela OEA é o que se chama de cyber mobs. Assim como o cyberbullying, trata-se de um tipo assédio virtual, porém distingue-se deste primeiro por envolver uma grande mobilização de pessoas (geralmente, anônimas), com a mesma finalidade de difamar, constranger, humilhar ou isolar alguém (SOUZA, 2019; FERNANDES, 2021).
Já o doxing, vem da expressão em inglês “dropping dox” e deriva de uma palavra de hacker para “documentos” que se tornou “docs” e assim “dox” – ou seja, rastreio de documentos. É conhecido como um ataque on-line no qual hackers (ou “doxxers”) utilizam informações pessoais e documentos para expor as identidades de pessoas que desejam permanecer anônimas ou não desejam a exposição (VILELA, 2020).
Enquanto isso, a quinta modalidade descrita pela OEA, por estar atrelada a um contexto de violência contra a mulher, requer uma pausa para maiores esclarecimentos. Nesses termos, a pornografia de vingança, nas palavras de Rocha, Pedrinha e Oliveira, pode ser entendida da seguinte forma:
A pornografia de vingança é espécie do gênero exposição pornográfica não consentida, devendo investigar-se, para sua configuração, a motivação que leva à divulgação não autorizada. Haverá o contexto de revanche ou vingança se a intenção na disseminação do material, sem o consentimento do parceiro, for a exposição da vítima, sujeitando-a a linchamento moral, causando-lhe reveses sociais e emocionais, por meio da rápida viralização do conteúdo (ROCHA; PEDRINHA; OLIVEIRA, 2019, p. 179).
Assim, a pornografia de vingança ocorre quando um dos parceiros exerce a violência simbólica de expor a intimidade do outro na internet, tendo por objetivo principal infringir grande dano emocional à vítima e produzir estragos à sua reputação, imagem e honra, com a divulgação desse conteúdo.
Embora a pornografia de vingança também atinja elementos do gênero masculino, sua incidência é comprovadamente maior entre a parcela feminina da população, conforme nos revelam os dados da Organização Não Governamental (ONG) Safernet, que auxilia vítimas e monitora violações dos direitos humanos na internet, juntamente com a Polícia Federal e com o Ministério Público Federal. De acordo com os índices apresentados em 2021, as denúncias recebidas envolvendo cyberbullying e pornografia de vingança despontaram como um importante obstáculo no combate ao crime no meio virtual. Do total de 35057 denúncias, 3.053 (8,7%) envolviam casos de exposição íntima e 2.734 (7,7%), casos de cyberbullying (SAFERNET, 2022).
A Safernet também traçou o perfil das vítimas que entraram em contato com pedidos de ajuda via chat ou e-mail. No ano de 2021, das 273 pessoas que entraram em contato solicitando auxílio na resolução de questões envolvendo pornografia de vingança, 183 eram mulheres e 90 eram homens. Ou seja, a porcentagem de mulheres que são vítimas desse tipo de crime chega a ser mais que o dobro da porcentagem dos homens (SAFERNET, 2022).
Essas estatísticas sugerem que a exposição não consentida de material íntimo e, em consequência, a pornografia de revanche se conectam intimamente com as diferenças de gênero presentes na sociedade enquanto resultado de uma cultura machista e patriarcal enraizada que promove a objetificação do corpo da mulher, que ainda é vista por muitos como propriedade do homem. Nas palavras de Rocha, Pedrinha e Oliveira:
Nesse cenário, quando a mulher se insurge contra o sistema patriarcal, por conduta que desatenda aos comportamentos que dela se esperam, inclusive o de romper um relacionamento afetivo ou exercer sua sexualidade livremente, o ambiente social admite uma forma de puni-la pelo suposto desvio, mediante o uso da violência. Na pornografia de revanche, tal violência consiste na publicação de material íntimo com ausência de consentimento (ROCHA; PEDRINHA; OLIVEIRA, 2019, p. 180).
Dessa forma, a pornografia de revanche pode ser entendida como um mecanismo de controle, repressão e punição daquela mulher que ousou terminar um relacionamento ou que deixou de corresponder às investidas do assediador. Se aproveitando do alcance da internet e da velocidade com que propaga uma informação, muitos ex-parceiros inconformados e reativos engendram verdadeiras perseguições para destruir a reputação daquelas que lhes promoveram a rejeição ou lhe ofenderam a honra.
Conscientes de que a sexualidade e a nudez feminina são constantemente reprimidas pela sociedade, esses sujeitos divulgam fotos e imagens sexuais de sua ex-companheira, a fim de causar-lhe humilhação, rejeição e discriminação (AZEREDO; CARLOS; WENDT, 2016). Como resultado, as consequências desses atos são gravíssimas, incluindo sofrimento emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ao pleno desenvolvimento, angústia, medo, tristeza, raiva, ansiedade, estresse, dores de cabeça e de estômago, distúrbios do sono e do apetite, humilhação e culpa. Ademais, quando não impele suas vítimas a mudanças acentuadas em sua rotina, pode chegar às raias do suicídio (SILVA; PINHEIRO, 2017).
Na pornografia de vingança, a honra da vítima é atingida e com isso, muitas mulheres se afastam do trabalho, da família, têm sua saúde mental arrasada. Podemos considerar a questão da lesão corporal, já que as vítimas acabam sofrendo de problemas psíquicos (SILVA; PINHEIRO, 2017).
Percebe-se, com isso, que os danos são inimagináveis, atingindo a vítima em múltiplas dimensões, especialmente no que se refere às suas conformações psicológicas, gerando transtornos como ansiedade, medo, estresse, raiva e angústia, a ponto de comprometer a esfera física, por meio da somatização em dores de cabeça e de estômago, alterações de apetite e oscilações no padrão do sono. Dependendo do nível em que se dá a exposição e o assédio, a vítima pode chegar, inclusive, a atentar contra a própria vida.
Desse exposto é possível traçar um paralelo com a lei de proteção à mulher, conhecida como Lei Maria da Penha, nos termos do que preconiza seu art. 4º: “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (BRASIL, 2006, p. 02).
Isso significa que sempre que for constatada uma situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, existe a possibilidade de aplicabilidade de suas determinações legais no contexto apresentado, a fim de serem atingidos os fins sociais para os quais ela se destina, nos moldes delineados em sua ementa. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada de modo a garantir à mulher a mais ampla proteção contra os atos de violência contra ela praticados, de modo a garantir a fruição de seus direitos humanos. Contudo, vale lembrar que esse dispositivo somente se enquadra quando cumpridos os pré-requisitos da lei acima mencionados; quando se tratar de assédio virtual que não se encontre amparado pela lei de proteção à mulher, a Lei Maria da Pena não se aplica.
Por fim, mas não menos importante, vale apresentar o conceito de “sextorsão”, modalidade de assédio caracterizada mediante a ameaça de divulgação de “nudes” – nome popular para fotos eróticas pessoais enviadas pela internet ante a expectativa de receber uma compensação financeira para não o fazer. Essa é uma modalidade que tem afetado principalmente as mulheres, mas que difere da pornografia de revanche por conta de sua conotação. Enquanto a pornografia de revanche pode estar associada à violência contra a mulher, decorrente de um rompimento conturbado, a sextorsão envolve a invasão e a captação de dados sem que exista qualquer espécie de vínculo, seja afetivo ou social.
Um caso famoso dessa modalidade de assédio foi vivenciado pela atriz Carolina Dieckman em maio de 2012, quando esta teve seu computador invadido por um hacker, que exigiu determinada quantia para não divulgar o material obtido. Como não teve sua petição atendida, as fotos da atriz foram liberadas na internet e rapidamente viralizaram nas redes sociais.
O caso teve grande repercussão na mídia nacional que motivou a aprovação da Lei Nº 12.737, de 30 de novembro de 2012, também conhecida como “Lei Carolina Dieckman”, que veio alterar os artigos 154, incluindo os artigos 154A e 154B, como também 266 e 298, todos do Código Penal. Com o advento da referida lei, entre outras coisas, passou a ser tipificada criminalmente a pornografia não consentida, com pena variando de seis meses a dois anos de prisão.
Enfim, são essas as principais formas de assédio facilitadas pelo uso das tecnologias da informação e que ocorrem apenas nesse meio. Porém, importa mencionar que além das modalidades de assédio tipicamente virtuais, existe ainda a migração do assédio moral e do assédio virtual do mundo físico para o mundo cibernético.
Pamplona Filho e Sabino, por exemplo, chamam a atenção para a manifestação do uso das redes sociais como extensão do assédio moral trabalhista:
No ambiente laboral é comum que o assédio digital ocorra inadvertidamente, sem intenção, em razão da informalidade própria das comunicações virtuais. Não raro, reuniões em videoconferência expõem funcionários a humilhação pública, perante demais colegas e até clientes. Do mesmo modo, a excessiva e reiterada troca de mensagens via WhatsApp e em horários fora do horário comercial pode configurar apropriação indevida da vida privada do funcionário pela empresa e violação do seu direito à desconexão, caracterizando o assédio virtual (PAMPLONA FILHO; SABINO, 2021, p. 08).
Compreende-se, assim, que o envio reiterado de mensagens via WhatsApp e em horários fora do horário comercial caracterizado pelos autores como uma forma de assédio virtual, tendo em vista a importunação indevida por parte da empresa e apropriação do tempo livre do funcionário, invadindo sua vida privada.
Ainda segundo os autores, apesar de as inovações tecnológicas e informacionais haverem transformado a sociedade e a organização do trabalho, permitindo o aumento da produção e da qualidade dos produtos e serviços, não necessariamente melhoraram as condições do trabalhador. Em suas palavras:
As inovações tecnológicas e informacionais transformaram a sociedade e a organização do trabalho. Por meio da robótica e da informática, tornaram-se possíveis o aumento da produção e a melhoria da qualidade dos produtos e serviços. A nova organização laboral, todavia, conquanto tenha ampliado a produtividade, não melhorou necessariamente as condições de trabalho. Os trabalhadores submetidos a acelerados ritmos sofrem cada vez mais com o estresse, com o controle do método de trabalho e com o comprometimento das relações interpessoais (SANTOS; PAMPLONA FILHO, 2021, p. 06).
Logo, embora a tecnologia tenha permitido avanços na produtividade e na redução de custos, essa melhoria não repercutiu nas condições laborais do trabalhador. Pelo contrário, os trabalhadores estão cada vez mais expostos a cobranças em relação à produtividade e aos controles do método de trabalho, chegando extremo de comprometer suas relações interpessoais.
Na mesma linha, nos leciona Sérgio Pinto Martins:
Diante da globalização, da automação, da competitividade dos produtos para poderem ser vendidos no mercado, o empregado está sujeito a produzir mais, com mais qualidade, a ser cobrado por metas, resultados, etc. Em razão da maior tensão que passa a existir no ambiente de trabalho, surgem as doenças do trabalho e também o assédio moral (MARTINS, 2012, p. 33).
Percebe-se, assim, que com o avanço da globalização e das redes sociais, potencializaram-se os atos relativos ao assédio moral, possibilitando novas formas de cerco e controle dos trabalhadores. O assédio que, antes, era mais restrito à forma presencial, passou a ocorrer de forma virtual. Graças à fragilidade da lei e ao escudo do anonimado, muitos assediadores têm encontrado na internet a forma ideal de molestar suas vítimas, se utilizando de perfis falsos para intimidar a pessoa e viralizar informações falsas, que coloquem em risco a sua reputação e a sua dignidade.
Sobre o assunto, Pamplona Filho e Sabino relatam que:
Não raro, reuniões em videoconferência expõem funcionários a humilhação pública, perante demais colegas e até clientes. Do mesmo modo, a excessiva e reiterada troca de mensagens via Whatsaap e em horários fora do horário comercial pode configurar apropriação indevida da vida privada do funcionário pela empresa e violação do seu direito à desconexão, caracterizando o assédio virtual (PAMPLONA FILHO; SABINO, 2021, p. 06).
Nesses termos, os autores classificam como assédio virtual algumas condutas que são praticadas no contexto das tecnologias virtuais, mas que nada mais são que um prolongamento do assédio moral que se manifesta na relação entre empregador e empregado, incluindo o ato de importunar o trabalhador fora do horário de expediente.
Esse quadro se tornou ainda mais acentuado após a chegada da pandemia da COVID-19, em inícios de 2020. Por conta das medidas de isolamento social, a grande maioria das atividades comerciais passaram a ser realizadas virtualmente, como meio de controle à exposição do vírus e, com isso, perdeu-se em muito a noção de horário comercial e respeito à individualidade do trabalhador (PAMPLONA FILHO; SABINO, 2021).
A pandemia também é considerada por muitos estudiosos uma responsável direta pelo aumento da realização de outros tipos de assédio cometidos via internet, dentre eles, o assédio sexual que encontra tipificação no art. 216-A do Código Penal:
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. Parágrafo único. (VETADO) § 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos (BRASIL, 1940, p. 47).
Considerando o dispositivo, cumpre esclarecer que, para haver a ocorrência do crime, deve primeiramente ser praticada uma conduta que constranja a vítima, a fim de atingir o objetivo do agente, qual seja, se favorecer, obter algum proveito de cunho sexual. Também é possível aferir do dispositivo que para que o crime de assédio sexual seja caracterizado, não é necessário que o agente de fato obtenha o proveito que almeja (GRECO, 2017).
Segundo Greco (2017, p. 302-303) “são dados essenciais para a configuração do crime, de modo que sem ele, a ação praticada cairia na atipicidade, ou desclassificada para outra figura típica”. Além disso, é necessário destacar que a infração penal só ocorre em relações nas quais há vínculo de superioridade hierárquica ou ascendência, presentes no exercício de cargo, emprego ou função, de modo que todas as relações alheias a tais condições não podem ser punidas como tal (MASSON, 2014; GRECO, 2017).
Diante desse exposto, resta evidente que muitas são as hipóteses do uso indevido e maléfico da internet e seus recursos, incidindo em condutas que, seja de forma dolosa seja de forma inconsciente, acabam por atingir suas vítimas em múltiplas dimensões. Sendo assim, torna-se bastante oportuno apresentar os dispositivos legais vigentes que podem ser acionados em defesa das vítimas desses ataques.
3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E O ASSÉDIO VIRTUAL
Até o presente momento não existe, na legislação brasileira vigente, tipificação penal específica voltada para o assédio virtual, de modo que, para ter seus direitos observados, as vítimas precisam se apoiar em outros dispositivos legais. O principal desses dispositivos é a própria Carta Magna de 1998, considerando que a República Federativa do Brasil tem como fundamento: a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º, III e IV), além de assegurado o direito à saúde, ao trabalho e à honra (art. 5º, X, e 6º) (BRASIL, 1988). Sendo assim, nos casos em que o assédio virtual que se apresentar como uma extensão do assédio moral ou do assédio sexual, esses dispositivos podem ser empregados em prol da vítima, assim como outros dispositivos de natureza infraconstitucional.
Nessa senda, além da Constituição existem outros mecanismos passíveis de serem empregados nos casos de assédio virtual. O Código Penal Brasileiro, de 1940, por exemplo, pode ser acionado sempre que o assédio virtual (cyberbullying) sofrido envolver Calúnia/ Difamação/ Injúria, crimes estes relacionados a honra da pessoa tipificados nos artigos 138, 139 e 140 do CPB: “Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: (...)Art. 139 – Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: (...)Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: (...). Mesmo ocorrendo via internet a calúnia, difamação e injúria possuem os mesmos requisitos de uma situação presencial, de modo que cabe à vítima levar o fato a autoridades competentes (BRASIL, 1940).
Em seguida, tem-se o Código Civil, de 2002, que assegura em seu art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002, p. 99). Isso significa que aquele que incidir em conduta delitiva que incorra em dano a outrem tem a obrigação de ressarci-lo por tal dano, incidindo, assim, na responsabilização civil em favor da vítima.
Existem ainda, outros dispositivos complementares à legislação constitucional, quais sejam: 1) a Lei Carolina Dieckman, de 2012; 2) o Marco Regulatório da Internet, de 2014, que dispõe sobre o uso da internet no Brasil; 3) a Lei Nº 13.185/2015, que dispõe sobre o cyberbullying; 4) a Lei Nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que versa sobre a importunação sexual e divulgação de cenas de sexo/estupro; 5) a Lei Nº 13.709/2018, também conhecida como Lei de Proteção de Dados; e, por fim, 6) a Lei Nº 14.132, de 2021, que incluiu o artigo 147 do Código Penal, criminalizando a conduta de perseguição, conhecia popularmente pelo seu termo em inglês stalking.
O primeiro deles, a Lei Federal Nº 12.737/12, mais conhecida como Lei Carolina Dieckmann, conforme descrito anteriormente neste estudo, foi elaborada exclusivamente para punir delitos ocorridos em meios eletrônicos e informáticos decorrentes da invasão de um dispositivo (BRASIL, 2012). Porém, apesar de relevante para acender a discussão sobre os crimes informáticos, possui pena branda e alcance (típico) restrito.
Já o Marco Regulatório da Internet, dado pela Lei Nº 12.965, de 23 de abril de 2014, estabelece os princípios, as garantias, os direitos e os deveres para o uso da Internet no Brasil. Dentre os princípios trazidos no art. 3º do referido diploma legal, importa citar os seguintes: a proteção da privacidade (inciso II); proteção dos dados pessoais, na forma da lei (inciso III) e a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei (inciso VI) (BRASIL, 2014). Isso significa que o uso das redes deve estar pautado em princípios que protegem os dados pessoais do usuário, prevendo-se a responsabilização daqueles que incorrerem contra a lei.
Esse dispositivo traz, ainda, em seu art. 7º, a garantia aos seguintes direitos: a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso I); a inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial (inciso III); e o não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei (inciso VII) (BRASIL, 2014). Além disso, o art. 8º estabelece que “A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet” (BRASIL, 2014, p. 03).
Percebe-se, assim, que a Lei Nº 12.965/2014 buscou deixar assegurados os princípios que regulam o uso da internet no Brasil, incluindo o princípio da proteção da privacidade e dos dados pessoais, bem como proteger direitos e garantias dos usuários de internet, no artigo 7º, mediante a inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações e inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial.
Outro importante dispositivo a ser considerado nos casos de assédio virtual é a Lei Nº 13.185/2015, que dispõe sobre o cyberbullying, caracterizado logo em seu art. 1º mediante o seguinte teor:
§ 1º No contexto e para os fins desta Lei, considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas (BRASIL, 2015, p. 01).
Destarte, este instrumento institui em seu artigo primeiro o conceito de intimidação sistemática (bullying) como todo ato de violência física e psicológica, de caráter repetitivo e intencional, praticado de forma individual ou coletiva, com o objetivo de causar sofrimento à vítima, se valendo de uma relação de desequilíbrio entre as partes.
Mais adiante, em seu artigo segundo, o referido dispositivo enumera as condutas classificadas como bullying:
I - ataques físicos;
II - insultos pessoais;
III - comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;
IV - ameaças por quaisquer meios;
VI - expressões preconceituosas;
VII - isolamento social consciente e premeditado;
Parágrafo único. Há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.
(BRASIL, 2015, p. 01, grifo nosso)
Portanto, entende-se como bullying uma série de ações que vão desde a ameaça física aos insultos pessoas, às ameaças e isolamento social, até o uso de expressões preconceituosas e vexatórias que, quando ocorrem no mundo virtual, recebem o nome de cyberbullying.
Sobre o assunto, a referida lei esclarece, ainda, em seu art. 3º que o bullying pode ser classificado como virtual quando as ações praticadas envolverem o uso da internet para "depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social (BRASIL, 2015, p. 02). Assim, em termos gerais, o processo de cyberbullying pode ser compreendido como um tipo específico de bullying que ocorre através de instrumentos tecnológicos e, sobretudo, telefones celulares e internet.
Por sua vez, a Lei Nº 13.709/2018, também conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, tanto por pessoa física quanto por pessoa jurídica. Tem por objetivo a proteção dos “direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” (BRASIL, 2018, p. 01).
Dentre seus sete fundamentos, a LGPD apresenta os seguintes: a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (art. 2º, inciso IV) e os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais (art. 2º, inciso VII) (BRASIL, 2018). Trata-se, portanto, de um importante recurso contra o doxing.
Outro avanço importante no combate ao assédio no mundo virtual surgiu com a publicação da Lei Nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que alterou o Código Penal Brasileiro, mediante a seguinte redação:
Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação (BRASIL, 2018, p. 01, grifo nosso).
Assim, a aludida lei, que foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio a fim regular os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de sexo ou estupro, traz a pornografia de vingança no §1º do art. 218-C, prevendo aumento de 1/3 até 2/3 da pena para os casos nos quais o criminoso tenha mantido relação íntima com a vítima ou tenha usado a divulgação para humilhá-la.
Antes dessa lei, a prática da pornografia de vingança normalmente era enquadrada pelos tribunais brasileiros como crime de difamação ou injúria, previstos respectivamente nos artigos 139 e 140 do Código Penal, ou, ainda, crime de ameaça, constante do artigo 147 da mesma legislação. Também havia certa divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicação da Lei Maria da Penha.
Ademais, quando o crime é praticado contra crianças e adolescentes, podem ser aplicadas as determinações contidas nos artigos 240 a 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente, que consideram crime grave – além de outras condutas – a divulgação de fotos, vídeos ou imagens de crianças ou adolescentes em situação pornográfica ou de sexo explícito.
Finalmente, tem-se a Lei Nº 14.132, de 2021, destinada a tipificar como o crime a perseguição reiterada e por qualquer meio, que ameaça a integridade física e psicológica de alguém, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou perturbando-lhe a esfera de liberdade ou privacidade (BRASIL, 2021). Prevê como penalidade a reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, agravada em metade da pena se praticada contra criança, adolescente ou idoso ou, ainda, se praticada contra mulher nos termos do § 2º-A do art. 121 do CP. Ou seja, quando envolver violência doméstica e familiar e/ou o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL, 2021).
Sendo assim, tal qual a pornografia de revanche, o assédio à mulher, nos moldes das definições trazidas no art. 121 do Código Penal, seja por qualquer meio, incluindo o virtual, incide em criminalização penal, sujeita à representação, conforme previsto no §3º do art. 147-C.
3.2 O princípio da proporcionalidade nos crimes de assédio virtual
Por muito tempo, em decorrência da ausência de previsão legislativa específica, a prática da pornografia de vingança esteve enquadrada pelos tribunais brasileiros como crime de difamação ou injúria, previstos respectivamente nos artigos 139 e 140 do Código Penal, ou, ainda, crime de ameaça, constante do artigo 147 da mesma legislação.
Contudo, é preciso destacar que os crimes de injúria e difamação tutelam, respectivamente, a honra subjetiva e a honra objetiva, ao passo que na pornografia da vingança o que se viola efetivamente é a privacidade e a intimidade da mulher. Desse modo, ao aplicar-se somente o disposto nos artigos supracitados do CP, verifica-se um equívoco quanto ao bem jurídico tutelado e a desproporcionalidade das sanções atribuídas.
Nesse sentido, Guimarães e Dresch nos lecionam que:
Ainda que se tenha, na doutrina e jurisprudência, a afirmação da caracterização de ilícitos de naturezas diversas – penal e civil – na conduta de divulgação não consentida de sons e imagens da intimidade da mulher, as sanções impostas aos agressores, quando determinadas judicialmente, é branda e desproporcional à magnitude da lesão (GUIMARÃES; DRESCH, 2014, p. 6).
Logo, certos entendimentos proferidos nas decisões jurisprudenciais e discutidos na doutrina no que se refere à divulgação não consentida de sons e imagens da intimidade da mulher e às sanções impostas, acabam se revelando brandas e desproporcionais à gravidade dos danos sofridos.
Julgados como o transcrito abaixo, reconhecem a gravidade dos danos causados à vítima em algumas decisões, embora não se faça uma correlação com a violência de gênero, prevista na Lei Maria da Penha. Nesse sentido, observe-se outra decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXPOSIÇÃO DE FOTO ÍNTIMA EM REDE SOCIAL SEM AUTORIZAÇÃO […] DANO MORAL IN RE IPSA […] Dano moral caracterizado. Ato Página | 254 EXPOSIÇÃO QUE FERE, PERCEPÇÃO QUE MATA: A URGÊNCIA DE UMA ABORDAGEM PSICOSOCIOJURÍDICA […] REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO – UFPR | CURITIBA, VOL. 62, N. 3, SET./DEZ. 2017 | P. 243-265 ilícito indenizável consistente na exposição sem autorização de foto íntima em rede social de grande porte, sendo impossível precisar o tamanho da exposição sofrida pela autora. Dano da espécie in reipsa. Dispensada a comprovação efetiva do dano, sendo suficiente a comprovação do ato ilícito e nexo de causalidade […]. (Grifo nosso). BRASIL. TJRS. Apelação Cível Nº 70052257532. Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira. Julgado em 12/12/2012).
Em outros casos percebe-se, lamentavelmente, que conceitos machistas e patriarcais introjetados e naturalizados, inclusive nos julgadores, concorrem para a interpretação de que a vítima colaborou com a prática do ato, sendo, portanto, considerada corresponsável por suas consequências, o que interfere diretamente na arbitragem dos danos morais, como se pode observar em decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
APELAÇÃO CÍVEL – CORPO FEMININO - FOTOS DE PARTES INTIMAS – DIVULGAÇÃO PELA INTERNET - AUTORIA INCERTA – DANOS MORAIS - DEVER DE INDENIZAR - PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA VÍTIMA – INDENIZAÇÃO DIMINUÍDA. - As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Têm definição mais amarga. - A postura de quem fragiliza o conceito de moral pode autorizar avaliação condizente com essa postura. - Havendo dúvidas quanto a origem da divulgação de fotos tiradas por webcam não se pode fixar um culpado. - Vítima que participa de forma efetiva e preponderante para a consumação do fato tem de ser levado em consideração na fixação da condenação (grifo nosso). (BRASIL. TJMG. 16ª Câmara Cível. Apelação Cível Nº 1.0701.09.250262-7/001. Relator: José Marcos Rodrigues Vieira. Julgado em 23/07/2015).
Dessa forma, percebe-se que tem-se atribuído à vítima a corresponsabilidade pela violência sofrida, de modo que nem mesmo as decisões jurídicas escapam dos conceitos machistas e de estereótipos culturais que permeiam as questões de gênero, vigentes socialmente, o que explica a transposição iatrogênica e tecnicamente hipossuficiente de julgamentos morais e não éticos e/ou bioéticos para o direito.
Assim, em um quantitativo substancial de casos, apesar da percepção em torno dos gravíssimos danos causados à vítima, os tribunais continuam tipificando a pornografia de vingança meramente como crime contra a honra, especialmente como injúria e difamação comuns, desconectando-a de sua configuração clara de violência de gênero, em geral, intrafamiliar (SILVA; PINHEIRO, p. 254).
Sobre o assunto Stoco e Bach declaram que:
Há que se considerar, porém, que referido tratamento dado pelos Tribunais não parece tutelar o adequado bem jurídico. Os crimes de injúria e difamação tutelam, respectivamente, a honra subjetiva e a honra objetiva. Contudo, na pornografia da vingança o que se viola efetivamente é a privacidade e a intimidade (feminina, regra geral). O fato de dizer que esse tipo de crime infringe a honra, aliás, não deixa de ser de um pré (e errôneo) julgamento da mulher pela atitude de ser fotografada intimamente (STOCO; BACH, 2017, p. 684).
Isso significa que, ao considerar a pornografia de revanche como crimes de injúria e difamação que tutelam, respectivamente, a honra subjetiva e a honra objetiva, aplicando as sanções que lhes são atribuíveis, acabam efetuando um pré-julgamento e uma espécie de punição da mulher pela atitude de ser fotografada intimamente, ao deixar de punir de forma apropriada o agente causador do crime.
Nesses casos, há a possibilidade de acordo e renúncia ao direito de queixa ou de representação, demonstrando mais uma vez a fragilidade desse sistema punitivo ante a magnitude do delito considerado, tendo em vista a desproporção dos danos causados à mulher e a efetiva proteção dela, pois a ação penal depende exclusivamente de representação da ofendida, não abrangendo, além disso, acompanhamento multidisciplinar dela ou do agressor.
Muito embora a matéria seja recente e ainda careça de interpretação mais refinada e uníssona por grande parte dos tribunais do País, o enquadramento da pornografia de vingança apenas como crime contra a honra ou ilícito cível gerador da obrigação de indenizar, desconectado da violência de gênero que a caracteriza, tem sido a tendência predominante nos tribunais superiores e em alguns tribunais estaduais, conforme se pode observar no seguinte julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. EXPOSIÇÃO DE FOTOS ÍNTIMAS NA INTERNET. OFENSA À INTIMIDADE E PRIVACIDADE. DANO À IMAGEM CONFIGURADO. VERBA INDENIZATÓRIA MAJORADA. […] Ainda que a autora tenha ingenuamente confiado em seu então namorado, deixando-se fotografar em posições eróticas, houve quebra de confiança da parte do réu, que divulgou as imagens por motivo de vingança, conduta esta que está a merecer firme reprovação ética e jurídica. […]. BRASIL. TJRS. Apelação Cível Nº 70065184418, Nona Câmara Cível. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em 26/08/2015).
Evidencia-se, destarte, certa tendência ao entendimento majoritário no sentido de condenação do agressor ao pagamento de danos morais, sem que seja considerado o que dispõe a Lei Maria da Penha. Ou seja, identifica-se a noção da gravidade dos danos causados à vítima em algumas decisões, embora não se faça uma correlação com a violência de gênero.
Emerge, assim, diante desse cenário, a ressaltar a necessidade de a sanção ser, primeiramente, proporcional ao dano gerado pelo crime cometido, garantindo que a pena esteja de acordo com esse dano, conforme prevê o Princípio da Proporcionalidade assegurado pela Constituição Federal de 1988. Tendo isso em mente, muitos doutrinadores e juristas entendem que a pornografia de vingança se encaixa nos moldes Lei Maria da Penha, de 2006, conforme preconiza seu artigo 5º, inciso III:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
(...)
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (BRASIL, 2006, p. 02, grifo nosso).
Verifica-se, assim, que não são somente as relações de cunho familiar/doméstico que estão amparadas pela lei em questão, mas também as relações íntimas de afeto, em que tenha havido um convívio íntimo entre vítima e agressor, mesmo que estes não tenham dividido a mesma residência. Logo, essa determinação também deve ser associada aos casos de assédio virtual, sempre que uma vítima for alvo de uma exposição de sua intimidade, sem o devido consentimento, como punição ou vingança por parte do ex-parceiro ou ex-affair. Como bem observa o inciso III do artigo supracitado, basta a comprovação de um vínculo afetivo, sem que seja necessária a coabitação para a definição desse vínculo.
Consequentemente, por envolver a existência de uma relação íntima de afeto e se caracterizar como uma forma de violência psicológica, alguns tribunais também costumam associar as previsões contidas no art. 5º ao disposto no art. previstas na Lei Maria da Penha, com base no disposto artigo 7º, em que há a previsão de cinco espécies de violência, com destaque para o inciso II, que trata da “violência psicológica”, que muitas vezes pode ocorrer na modalidade virtual. Portanto, a Lei Maria da Penha se apresentaria como um dos dispositivos legais do nosso ordenamento passível de ser aplicado em casos de assédio virtual (STOCO; BACH, 2017).
Assim, observa-se que, nos casos de pornografia de vingança, são relacionadas várias condutas agressivas, entre as quais: violência psicológica (lesão à saúde), violência patrimonial (necessidade de trocar de endereço e emprego, além do custeamento de tratamentos médicos, psicológicos e honorários advocatícios) e violência moral (injúria e difamação), não obstante o entendimento superficial e supressor da magnitude da dor causada por esse tipo de delito, presente na prática cotidiana de tribunais e delegacias.
Consequentemente, sendo a mulher vítima de pornografia de vingança poderá requerer as medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da legislação apontada, para fazer com que o ato cesse, ou, ainda, diminua seus efeitos. Em conformidade com que preconiza Dias (2015, p. 263), “as medidas de proteção têm por objetivo proteger a mulher em situação de violência, em caso de risco iminente à sua integridade psicológica e física”.
Em seu turno, no que tange à sextorsão, Cunha (2017), entende que tal conduta admite adequação típica plural, podendo a conduta ser enquadrada em três diferentes tipos penais – com penas significativamente distintas: a) existindo a exigência de dinheiro ou de vantagem patrimonial, caracteriza-se o crime de extorsão, previsto no artigo 158 do Código Penal; b) inexistindo a exigência de dinheiro e sim de vantagem sexual, configura-se o crime de estupro, tentado ou consumado, previsto no artigo 213 do Código Penal; e c) inexistindo exigência de dinheiro ou de vantagem sexual, obrigando a vítima a fazer algo que a lei não lhe exige, pode-se estar diante do delito de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal.
Uma vez que o crime de sextorsão envolve o constrangimento constituído pela grave ameaça e a finalidade do agente em obter indevida vantagem por meio da divulgação criminosa de fotos e vídeos íntimos da vítima, é possível a aplicação do artigo 158 do Código Penal, que possui pena de quatro a dez anos e multa. A pena prevista é elevada, em comparação a outros definições, demonstrando que a legislação atual consegue penalizar de forma satisfatória este crime (também) na modalidade virtual.
3 CONCLUSÃO
A Internet é um espaço que suprimiu inúmeras barreiras sociais e espaciais do mundo físico, aproximando pessoas de diferentes lugares e facilitando a comunicação, interação e o acesso à informação. Contudo, como qualquer outra evolução, esse avanço da internet também apresenta aspectos negativos, de modo que, nos últimos anos, diversos tipos de tipos de violência - cyberbullying, cyberstalking, cyber mobs, passaram a ser cometidas no mundo virtual.
Englobados na definição de assédio virtual, dão origem a um fenômeno que pode acarretar sérios prejuízos sociais, emocionais e cognitivos aos envolvidos, principalmente pelo seu caráter atemporal e pela magnitude de seu alcance, atingindo bens jurídicos tutelados pelo Estado, como o direito à dignidade humana e à liberdade.
Contudo, embora seja um mal comum no mundo contemporâneo, ainda não existe no ordenamento jurídico brasileiro, uma lei específica que contemple todos as hipóteses de assédio virtual, incluindo suas tipificações e penalidades. Desse modo, para que os direitos e garantias constitucionalmente assegurados sejam plenamente observados, a alternativa jurídica é mobilizar os dispositivos encontrados no ordenamento jurídico brasileiro para no sentido de coibir o comportamento do agressor e oferecer acolhimento às vítimas.
Dentre eles, o principal é a Constituição Federal de 1988, Lei Máxima de nosso país, seguido do Código Penal e do Código Civil e de legislações complementares como a Lei Carolina Dieckman, o Marco Regulatório da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados, a Lei Nº 14.132/21, que inseriu no Código Penal denominado crime de perseguição e a Lei Nº 13.718/2018, que definiu como crime a pornografia de vingança.
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Graduanda em Direito pela Faculdade Metropolitana de Manaus-FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Melissa Carolina Oliveira da. Assédio virtual e suas consequências jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2022, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60373/assdio-virtual-e-suas-consequncias-jurdicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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