RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir sobre o tema do Direito de solidariedade não apenas como uma utopia jurídica, mas voltado, sobretudo, ao âmbito dos direitos sociais e ao direito de família ou sucessões. Justifica-se a importância do tema pois, decididamente, seria muito precária a compreensão do Direito com base, unicamente, nos critérios de legalidade. Assim, para que o direito possa constituir-se, objetivamente, num elemento de agregação social, necessário sempre que façamos uma reflexão ética sobre os valores humanos, sobre o que é justo, útil e legitimo, na busca do real sentido da chamada justiça social, comumente buscada e praticada através do Direito, tanto em seu sentido tópico quanto utópico. Daí ser importante o estudo sobre o tema da solidariedade, um valor que já está para muito além da utopia e da complexidade dos determinantes jurídicos, não obstante para a grande maioria dos operadores do direito seja ideia considerada cerebrina, idealista, utópica. O certo é que, trata-se de um tema provocativo, uma 'aventura' permitida somente àquelas pessoas verdadeiramente dispostas a refletir sobre a possibilidade de novas abordagens para o nosso atual e fechado sistema jurídico e, numa análise mais aprofundada, é possível constatar que a solidariedade já está positivada no artigo 3º da Constituição brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: social, ciência jurídica, valor moral, solidariedade
ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect on the theme of Solidarity Law not only as a legal utopia, but mainly focused on the scope of social rights and family or succession law. The importance of the subject is justified because, decidedly, it would be very precarious to understand the Law based solely on the criteria of legality. Thus, for the law to objectively constitute itself as an element of social aggregation, it is necessary whenever we make an ethical reflection on human values, on what is fair, useful and legitimate, in the search for the real meaning of so-called social justice. , commonly sought and practiced through Law, both in its topical and utopian sense. That is why it is important to study the theme of solidarity, a value that is already far beyond utopia and the complexity of legal determinants, despite the fact that for the vast majority of legal practitioners it is an idea considered cerebral, idealistic, utopian. What is certain is that this is a provocative theme, an 'adventure' allowed only to those people truly willing to reflect on the possibility of new approaches to our current and closed legal system and, in a deeper analysis, it is possible to verify that Solidarity is already established in Article 3 of the Brazilian Constitution.
KEYWORDS: social, legal science, moral value, solidarity
Introdução
O presente artigo trata do valor humano da solidariedade aplicado ao direito, enquanto busca deixar claro, também, que aquilo que por vezes é considerado uma utopia jurídica já esteve presente em todas as épocas. Algumas ‘utopias” surgem da fraternidade e da esperança dos homens na construção de uma sociedade melhor; outras, infelizmente, ainda têm enxergado o futuro apenas como um mundo sombrio. Fato é que toda “utopia”, boa ou má, é sempre uma invenção paradoxal que considera a ideia de que poderia existir um mundo ou lugar longínquo muito diferente daquele no qual vivemos. De um modo ou de outro, começamos a compreender esse mundo estranho quando ele se torna familiar o suficiente para que possamos compará-lo com o que estamos habituados. E é preciso falar sobre isso. Este artigo trata da solidariedade como um valor indispensável para a interdisciplinaridade da concepção jurídica racional (normatizada) com a chamada utopia jurídica, na busca da verdadeira Justiça social.
Nesse sentido é que o Direito deve ser permanente testemunha e critério para um diálogo, como o que buscamos aqui. Umas vez que as Constituições contém em si uma dimensão social e política, elas são, também, uma criação decorrente da convivência entre a racionalidade, o diálogo e as utopias jurídicas. Portanto, seja no Direito em seu sentido amplo, na política ou na Constituição, a Utopia, mesmo com a sua promessa de criar ilusões e paraísos artificiais - o que as vezes nos é claustrofóbico e infernal - nos traz, também, uma esperança constante na vontade intrínseca de se fazer Justiça, o que será sempre fecundo e libertador aos homens de boa vontade.
O termo utopia, é fato notório, foi cunhado pelo humanista estadista inglês Thomas More, que intitulou de “Utopia” um de seus textos curtos, escrito em latim, sobre a ordenação ‘ideal’ de uma entidade comunitária, a qual seria uma ilha distante de difícil acesso, no meio do mar. Como a comunidade vislumbrada por Tomas More, elevamos aqui a ideia de que o valor da Solidariedade deveria se consubstanciar em Direito de Solidariedade, para que se tornasse real e possível a transformação do nosso mundo em um mundo ideal, mais justo e melhor para se viver.
Partimos de uma análise filosófico-jurídica sobre a ideia de positivação dos princípios e valores da solidariedade e da fraternidade, a serem trabalhados e considerados no âmbito dos direitos humanos como um caminho necessário para o aperfeiçoamento e aplicação mais eficiente de uma justiça social no Brasil, nos demais países da América latina, quiçá do mundo.
Sabemos que o homem é um ser social e por isso ele sempre irá buscar no outro as experiências ou faculdades que não possui. E nesse contexto, progressivamente, ele também tem a necessidade de transmitir o produto de seu conhecimento e o resultado de suas vivências adiante. A interação social e a pesquisa resulta, assim, em crescimento e desenvolvimento recíprocos e intermináveis, faz surgir e promover novas ideias, novos ordenamentos, novas leis que ao fim, na sua maioria, objetivam beneficiar o próprio homem, que é um ser social e político, como ensina Mondin:
O homem é um ser sociável, tem a “propensão para viver junto com os outros e comunicar-se com eles, torná-los participantes das próprias experiências e dos próprios desejos, conviver com eles as mesmas emoções e os mesmos bens...ele também é um ser político, vez que a política é o conjunto de relações que o indivíduo mantém com os outros, enquanto faz parte de um grupo social.” (“Sociedade, direito e controle social | eGov UFSC”) Battista Mondin (1986, p.154)[1],.
1.Ultrapassando o ponto que quase ninguém vê
Para tanto é preciso fazer muito mais do que tem sido feito. É preciso avançar e ultrapassar o ponto que quase ninguém vê, ir muito além do óbvio, do que está escrito, dos excessos de burocracia e formalidades jurídicas que por vezes acaba impedindo um resultado justo, humano e eficaz em todas as importantes decisões no universo jurídico, mas sobretudo do universo social.
A ciência jurídica se construída a partir do enfoque normativista da Modernidade reduziu a visão de complexidade tanto da ciência quanto da realidade. Ao depurar seu objeto – a norma jurídica – de toda contaminação política e ideológica a Ciência do Direito procedeu a uma simplificação ao nível do pensamento e da realidade. O fenômeno jurídico tem por fundamento o social; volta-se para as relações humanas a fim de orientá-las, regulando as manifestações conflituosas e próprias da vida social.
Torna-se urgente encontrar soluções para ao menos amenizar os vários desses problemas sociais que se avolumam, a fim de que se possa prevenir o seu aprofundamento. Os mecanismos de prevenção e resolução são inúmeros, são conhecidos, mas, necessariamente, precisam voltar-se a uma visão baseada em valores de solidariedade, fraternos, de paz, de inclusão, de dignidade humana que promovam o entendimento mútuo entre os homens, a tolerância e a aceitação das diferenças sob todos os aspectos.
Sabemos que lá nos primórdios da coletividade humana os homens descobriram que precisavam uns dos outros e que era preciso cooperação entre si para sobreviver. Já, em nossa era de globalização, as transformações sociais ocorrem a um ritmo cada vez mais acelerado. Fenômenos como as mudanças climáticas, crises econômicas, conflitos armados, migrações e desastres naturais têm uma enorme influência nas sociedades, causando, muito frequentemente, um aumento das desigualdades, da pobreza, da exclusão e de violações dos Direitos Humanos e sociais.
No âmago da visão platônica acerca da sociedade já tínhamos a percepção de que o homem é um ser social, uma vez que no plano mesmo das necessidades básicas, o indivíduo nunca é inteiramente autossuficiente. Sem pretender se estabeleça aqui o maniqueísmo do que é certo ou é errado, sabe-se que Platão dizia que numa cidade (ou sociedade) justa, o princípio maior determina que todos deverão ocupar os lugares que lhes foram destinados naturalmente, de tal modo que quando alguém ocupa o lugar que era naturalmente reservado para outrem é como se perpetrasse um furto contra a sociedade, pois os papéis a serem desempenhados na sociedade seriam obra de uma seleção rigorosa, baseada na eugenia e aliada a um projeto educacional bem definido.[2] (NUSBAUNN,2004). Para Platão, ainda, a justiça ampara-se não num ideal de igualdade social e de eliminação das diferenças de classe - como é a tônica de tantos projetos utópicos mais modernos de inspiração claramente socialista - mas sim no fortalecimento dos papéis sociais gerados pela diferenciação funcional.[3] (CARRACEDO,1990, p 76-77). Platão traçava, por fim, um paralelo entre a alma do homem e a justiça na organização das cidades. Essas ideias, por mais estranhas que hoje possam parecer, constituíram-se nos primeiros fragmentos daquilo que mais tarde viria a se tornar a moderna psicologia social, pois tanto o indivíduo quanto a “cidade” possuem uma estrutura tripartite, onde o equilíbrio entre as partes que compõe a alma humana (razão, força e apetite) também deve ser observado na vida social, de cuja harmonia depende o seu bom funcionamento.
O direito não pode mais ser pensado apenas enquanto técnica de regulação coercitiva da vida social, pois esta não se constitui somente de ordem, organização e razão, mas também de afeto, sensibilidade, desordem, rupturas, caos.
Modernamente, se torna cada vez mais premente encontrarmos soluções para amenizar vários destes problemas (da cidade) e ao menos tentarmos prevenir o seu aprofundamento. Os mecanismos de prevenção e resolução destes problemas são inúmeros, mas deveriam, muito mais, serem baseados em valores como a paz, a inclusão, o afeto, a sensibilidade, a dignidade, a igualdade, promovendo-se o entendimento mútuo e a tolerância. A aceitação das diferenças deveria ser a regra, tanto quanto a ideia da justiça como sinônimo de harmonia entre a ordem social e os indivíduos permanecente na tradição jusnaturalista da qual “Javier Hervada” se constitui num bem articulado representante quando ensina:
Se falamos de ordem e harmonia, classificamos a referida situação social de um bem, o que quer dizer que está de acordo com a pessoa humana. De fato, não se trata apenas de uma ordem satisfatória, que satisfaz determinados desejos ou estimativas dos homens, mas de uma ordem necessária para a pessoa e a sociedade. Essa harmonia é uma exigência da pessoa humana, por sua qualidade de “ser” que domina o seu próprio ser e seu entorno, isto é, em sua qualidade de “ser” que tem coisas verdadeiramente suas. Essa harmonia ou proporção preservada conserva a sociedade dos homens, e corrompida a destrói. (HERVADA,2008).[4]
A par de toda essa fundamentação de cunho filosófico, teórico, do milenar e ultrapassado entendimento platônico, que o próprio Aristóteles condenaria, seja porque representa a verdadeira possibilidade do totalitarismo ou “mesmo se fosse realizável, tal projeto deveria ser proscrito” (HOSLE, 2008, p.56), seja porque as ideias avançam e se transformam, é que precisamos compreender que a sociedade humana não é simplesmente um todo orgânico integrado por partes, a exemplo do Leviatã de Hobbes[5], mas que é uma entidade altamente complexa, contingente, paradoxal, na qual até os limites territoriais acabam sendo desvalorizados; a sociedade é, seguindo as observações de Rudolf von Jhering (JHERING-2002, p. 71) “uma organização efetiva de vida para e através dos outros”.
2. Reconhecimento do outro - A solidariedade como um valor moral
Na arte de viver, o homem é o artista e, ao mesmo tempo, o objeto de sua arte; o lapidador e, simultaneamente, a pedra a ser lapidada. O homem não só pensa mas, normalmente também age em relação a si mesmo; em relação aos seus semelhantes e em relação ao mundo. A história e a própria experiência mostram-nos que a questão do que se deve fazer ou deixar de fazer, do que é bom ou mau, certo ou errado é uma questão situada dentro de culturas e sociedades que desenvolveram sistemas e hierarquia de valores.
Ao tratar do tema da filosofia de valores morais, o Dr. Raphael Silva Rodrigues (SILVA RODRIGUES-2022 - p.47)[6] nos diz que “os principais valores (morais) seriam: paz, amor, justiça, generosidade, diálogo, honestidade e lealdade, por serem valores objetivos situados fora do tempo e do espaço”. Fazendo eco as palavras do autor, de fato, todos os povos têm algumas regras fundamentais em sua moral cotidiana, como por exemplo: não deves matar; não deves mentir; não deves enganar; não deves roubar; cumpre tuas promessas. Avançando, pode se chegar noutras mais especificamente voltadas ao valor da solidariedade, tais como: deves ter compaixão; deves estar disposto a ajudar; não causes sofrimento. A essência desses valores todos já pressupõe a existência do valor moral da solidariedade entre os homens por serem inerentes a ética do bem agir.
“É preciso implantar na sociedade apenas os valores positivos para aumentar a solidariedade do grupo, e não apenas vícios reprováveis (antivalor)”, continua ensinando Raphael Silva Rodrigues na sua obra citada (p.48), pois “os valores estão indissoluvelmente ligados a forma da sociedade, existindo algumas que mudam rapidamente seus valores e normas sociais, acabando por se modificar ou coexistir com as antigas” (p.49). O homem precisa urgentemente reaprender a internalizar valores, para que estes voltem a se tornar guias e diretrizes de sua conduta.
O Direito de Solidariedade é o que determinaria apenas o “agir” com solidariedade para com o outro, e isto nos é uma escolha consciente. Para isso, porém, é preciso que se tenha princípios de valores sólidos, que permitam, inclusive, discernir a validade de normas seguidas pelo homem, o que nem sempre é feito de forma livre.
Os valores autênticos são assumidos livremente e nos permitem definir com clareza os objetivos da vida, em toda a sua plenitude. Ajudam a nos aceitar e a nos estimar como realmente somos, facilitando um relacionamento maduro e equilibrado com as pessoas e coisas. Os valores podem ser efetivados, descobertos ou incorporados pelo ser humano [SILVA RODRIGUES-2022, ob. Cit. p.50)
Pois bem, na medida em que se entenda que a vida em sociedade só é possível através de valores fortalecidos para o reconhecimento do outro, se faz necessário considerar implicações sociais e jurídicas a esse respeito para tentar desvelar a real possibilidade de aplicação do ‘Direito de Solidariedade’.
Avancemos para o que dizem sobre o Direito de Solidariedade o douto jurista argentino, Dr Marcos Córdoba e seu discípulo, o Dr. Alejandro Laje, que de há muito vêm tratando das questões da equidade jurídica e promovendo estudos próprios para que seja introduzido o Direito de Solidariedade no Código Civil Argentino, especificamente no capítulo que trata do direito sucessório naquele País, a exemplo de positivação de benefícios especiais para o herdeiro cuidador de familiar incapacitado: “La solidaridad legal es aquella que tiene como pauta válida la ecuación que resulta de la concurrencia entre necesidad y posibilidad” nos revela Dr. Marcos Córdoba[7], citado didaticamente por Dr Alejandro Laje.[8] nesse mesmo sentido:
Del princípio de igualdad, se deriva el de solidaridad, ya que la solidaridad se da entre personas que tienen algo en común, entre personas que la ley considera que forman parte de una relación jurídica por la que la necesidad de uno debe concurrir con la posibilidad de otro. No se trata de igualdad de prestaciones, sino de igualdad de situaciones fácticas vinculantes, a partir de la cual se crea la obligación solidaridad. Dicha igualdad fáctica se da ejemplarmente en la familia donde el individuo desarrolla principalmente sus vínculos sociales, satisface sus necesidades primarias y recibe la orientación inicial que posibilita todo su desarrollo actual y posterior. “Ese mismo individuo, ya maduro, organiza su vida sobre la base de una pareja estable, en el ámbito de la cual quienes la integran se asisten recíprocamente y, además, cumple los roles de orientación y cuidado de sus descendientes y de asistencia de sus ascendientes.” Explica Bossert que “estos datos de la realidad, que están en la base de la estructura social, son los que permiten advertir la existencia de un deber moral de solidaridad entre los miembros de un grupo familiar, al menos en los más próximos.” (LAJE-2013)
O Direito de solidariedade está, assim, voltado completamente ao direito social das pessoas ou, mais especificamente, ao direito à saúde e ao direito de família e sucessões.
Exemplificativamente, ainda, poderíamos fazer referência ao direito e o dever solidário (ou fraterno) de doar órgãos. Não existe lei que obrigue a doação de órgãos. Trata-se muito mais de um aspecto do valor moral de solidariedade. Doar órgãos é hoje um ato solidário, muito mais que propriamente um dever. Mas, consideremos que viesse a ser editada alguma lei que obrigasse a doação de órgãos pelos familiares de um ente falecido, surgiria imediatamente grandes discussões sobre quais seriam, por exemplo, os limites do dever de doar? E, logicamente, seria preciso refletir e discutir sobre isso. É justamente a inexistência de lei que obrigue o indivíduo à doação, aliada a liberdade de se poder “livremente” optar pelo exercício do direito de ser solidário, doando órgãos para salvar o outro semelhante, o que vem permitindo que tal ato de grandeza aconteça de forma natural, sem maiores discussões jurídicas. Uma Lei escrita que viesse a obrigar a doação de órgãos, resultaria em total prejuízo ao outro, levantaria suspeitas, traria dúvidas, reduziria o ato solidário e humano para apenas mais uma obrigação legal, afastando gradativamente o sentimento de solidariedade que ainda existe no ser humano.
3. Uma sociedade que supervaloriza os direitos excludentes
Em nossa sociedade não é difícil identificar que todos temos muito mais direitos do que podemos efetivamente gozar. Aparentemente, até se poderia dizer que a era da inclusão universal já existe. Todavia, sua existência está fundada em situações paradoxais nas quais, frequentemente, essa inclusão acontece pela exclusão. A possibilidade de acesso, por exemplo, ao “direito de ter direito à saúde“, ao direito de ter um tratamento médico muito caro, não se dá simplesmente através do Sistema Único de Saúde, mas sim pelo sistema do Poder Judiciário, por ordem de um Juiz que ainda vai considerar várias questões de necessidade, possibilidade, inclusive da chamada reserva do possível, que as vezes serve de justificativa para negar esse direito ao cidadão, ou ainda pior, por favores políticos ou de amizades interesseiras ou não.
Nessa linha, tentando evitar situações de exclusão, é que poderíamos aplicar o Direito de solidariedade na saúde. “Saúde para todos” deveria ser, de verdade, o direito racional umbilicalmente ligado ao Direito de solidariedade, pois na força desse valor humano e social “é onde se colocaria em evidência toda a determinação histórica do direito fechado na angústia dos confins estatais que coincide com o espaço de reflexão legado ao tema dos direitos humanos”. (RESTA, 2006, p. 37).[9] E, de certa forma, ainda reproduzindo a ideia de Resta[10], definirmos que é a solidariedade e “a fraternidade que aproxima os mundos, enquanto a solidão vive de separações e de distâncias”.
O movimento para uma justiça social mais voltada ao agir sempre no intuito do solidário, aparentemente, desenvolver-se-ia em sentido único, isso se não existissem os empurrões contraditórios e ambivalentes que, de certa forma, impedem que se de real sentido ao Direito de solidariedade, “restabelecendo as nossas “solidões”, inclusive através de processos não somente simbólicos que “unam” os outros” pois o vínculo da superação dos confins no mundo moderno ciado por Resta nada mais é do que acelerar o processo ambivalente da amizade. Esta ambivalência, como já vimos, está representada pelo paradoxo da inclusão/exclusão. Nunca, em uma sociedade como a cosmopolita, houve tantas possibilidades de inclusão; nunca, como hoje, houve tanto “direito a se ter direitos” continua asseverando Resta na obra citada. Porém, e infelizmente, o acesso efetivo a estes mecanismos inclusivos, muitas vezes, se dá pela exclusão e/ou justamente pelo não-acesso. (“Direito Fraterno e sua aplicação no Cenário Jurídico ... - CAMESC”) (RESTA.2006, ob. Cit. p. 41)[11].
Dessa forma, como referido no início desse artigo: para muito além da utopia e da complexidade dos determinantes filosóficos, a construção de um novo mundo inserido neste já existente só é possível se buscarmos outros pilares sociais e jurídicos de sustentação, os quais deverão estar fundados na solidariedade (fraternidade) humana, embora isso, talvez possa parecer tão utópico quanto a ilha-cidade imaginada por More, ou o entendimento filosófico platônico sobre a República, ou, finalmente, sobre as ideias de ROUSSEAU[12] concernentes ao contrato social e seu conceito de vontade geral, que formam a base da nossa sociedade.
O homem sabe que sem o sentido filosófico da solidariedade e da fraternidade, a vida no mundo perde o sentido. Então, o que é este mundo (ou esta sociedade ou cidade) na qual exploramos, matamos, desrespeitamos, criamos guerras? Talvez seja um mundo “não-mundo”, com certeza, mas é o mundo, a cidade, a sociedade que temos. E como mudar isso que nos é dado? Como fazer com que o “direito a ter direitos” seja efetivado não pela via da exclusão, mas sim pela inclusão, pela solidariedade, pela humanidade? Esta reflexão poderia muito mais ser aprofundada através da função e dos limites do direito na sociedade atual, como nos ensina Stefano Rodotà[13], aqui traduzido livremente:
vivemos em uma Law-satured society, em uma sociedade mais que cheia de direitos, de regras jurídicas de origens mais diversas, impostos pelos poderes públicos ou potências privadas com uma intensidade que faz do pensar, mais que uma necessidade, uma inalcançável corrente. A sabedoria social não é sempre adequada à complexidade deste fenômeno, que revela mesmo assimetrias e descompensamentos fortíssimos, vazios e cheios, com um direito que invade muitos setores e todavia não chega lá onde mais seria necessário. Sustentado por impulsos diferentes e até contraditórios (RODOTÀ-2006, p.10)[14].
Rodotà tem toda a razão. Inegavelmente, embora haja um excesso de direitos, há também de uma ausência do direito onde ele realmente deveria existir. Mais do que isso, da diversidade de regras que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que autorizam também proíbem, assinalando, com isso, a ambivalência da técnica do direito ou em outras palavras, aquilo que fazemos poder tanto, e concomitantemente, servir como remédio ou como veneno, não faltando Leis e Tratados para dizer e fundamentar que tudo é legal, a depender de quem estiver julgando ou aplicando determinada lei! Exemplos não faltam - que o diga o nosso Poder Judiciário - sobretudo das instâncias superiores. Não basta o conhecimento técnico jurídico, quando, frequentemente, se torna ausente das relações jurídico-sociais, elementos fundamentais como a solidariedade, a fraternidade e o mínimo de coragem e boa vontade para um entendimento e simplificação dos legisladores, dos aplicadores e fiscais da Lei, de todos os operadores do Direito, enfim.
4. O Direito de Solidariedade positivado na Constituição do Brasil, de 1988
Toda essa aspiração de grandeza, pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária foi insculpida no art. 3º, inc. I, de nossa Magna Carta de 1988, que aqui reproduzimos:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
[...]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (grifamos)
O Direito de Solidariedade, inegavelmente, já encontra-se positivado no artigo 3º da Constituição Brasileira de 1988. Logicamente que a palavra “solidária” se apresentou aos olhos do povo brasileiro como uma aposta (talvez uma utopia) onde o outro deveria ser um outro-eu, meu irmão, alguém com quem faço pactos e acordos mútuos de proteção e cuidados sempre altruístas.
Exemplificativamente, não é por acaso que de há muito, no Brasil, se fala em ‘Pacto pela Saúde’, O que trata-se, inclusive, de compromisso público Estatal, assumido por vários governos e setores do SUS (Sistema Único de Saúde). Consubstanciado nos princípios de nossos valores constitucionais do citado art. 3º e, também, do art.196 da C.F.
Art. 196. "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." (“Constituição Federal (Artigos 196 a 200) - Ministério da Saúde”)
No entanto, para que o verdadeiro ‘pacto pela saúde’ não ficasse apenas na retórica e todos pudessem ter, efetivamente, direito à saúde, haveremos de concordar que seria necessário efetivar um ‘pacto solidário pela vida humana’ e pela aplicação de todos os valores morais na gestão do nosso Sistema Único de Saúde. Parece, no entanto, que temos andado apenas em círculos e tudo se revela verdadeira utopia. Sem compartilharmos o sentimento de solidariedade e fraternidade com o outro como se ele fosse um outro-eu, é impossível pensar na saúde plena ou na própria ‘vida’, até porque quanto a esta, parece que nos tempos modernos – e já alterados vários dos paradigmas humanos e filosóficos - tem sido difícil definir quando é seu início ou seu fim, vide as grandes discussões atuais a respeito do aborto, tanto no Brasil como na Argentina, em todo o mundo.
Sobre o tema do ‘aborto’, outro exemplo, fato é que nenhuma política de saúde pode ignorar algum tipo de questionamento racional e humano. E é preciso apresentar respostas para estas novas-velhas questões: de quem é o corpo? De quem é o corpo que já está em formação? Quem tem o dever de cuidar de ambos os corpos? Ou teremos de pensar na hipótese discutida com profundidade por A. Puni sobre o ‘Homem Máquina’. [15]
Ora, se vejo ou pretendo ver o outro através de mim, temos novos pactos a fazer pela saúde e pela vida, não poderemos mais aceitar que os níveis de saúde sejam diferentes conforme a renda ou escolaridade, ou a Região do Brasil, a que pertence.
Para efetivar uma política de saúde adequada, é necessário que os atores envolvidos nela participem do processo desde sua gestão até sua implementação. É neste sentido que o direito à saúde pode ser resgatado e efetivado, pois não basta dizer que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado, é preciso criar condições para que este direito seja efetivado, e isso se dará somente através de políticas públicas que respeitem as diferenças loco-regionais e que apresentem uma estrutura global, pois os problemas de saúde não são territorialmente limitados.
O sentimento de Solidariedade é o que nos faz ver, muitas vezes, a não necessidade da existência de governantes, políticos e juízes que exploram, mas de outros modelos de líderes que, perdendo suas posições superiores, passassem a ser o irmão, o outro-eu. Mais uma vez aqui, tratamos da utopia.
Com os aspectos assim levantados, observa-se uma contínua reflexão sobre o novo papel dos sistemas sociais em uma sociedade globalizada, onde o ciúme que assola as relações político-jurídicas deve ser imediatamente substituído por colaboração, pelo pacto entre iguais, pois somente por meio deste será possível construir novas formas constitucionais que sejam, efetivamente, solidárias e inclusivas.
5. Direitos humanos para ‘humanos’ de qualquer lugar
Estas reflexões todas, estão fundamentadas na obrigatoriedade universalista de respeitar-se os direitos humanos, os quais se destinam ‘naturalmente’ a todo e qualquer ser humano, ou como diz Resta[16] (ob.cit.2004): “não porque pertença a um ou outro território, siga esta ou aquela cultura ou, ainda, tenha uma descendência determinada, mas tão somente porque tem humanidade”. É um direito que tem como fundamento a humanidade, o ter humanidade, uma humanidade repleta de diferenças compartilhadas e de uma comunhão de juramentos, de comprometimentos, de responsabilidades. “A sociedade atual é o lócus tanto do respeito como do desrespeito aos e com os direitos humanos” (ob.cit.2004). Uma das tarefas do Direito de solidariedade é justamente atentar para esta responsabilidade de cada um de nós, de cada homem e mulher, de cada criança e idoso, enfim, de cada um que compartilha o caráter de humanidade. Para isto, no entanto, “o código amigo/inimigo”, ainda nas palavras de Resta (2004, p. 25), ou a rivalidade do “modelo dos irmãos-inimigos”, estimulada pelos limites territoriais e pelas diferenças de identidade, já não podem mais ser mantidos
É evidente a dificuldade de superar a barreira da soberania; porém, quando pensamos a respeito da efetividade do direito à saúde, esta questão precisa ser revista, pois não podemos pensar que as doenças e seus agentes transmissores respeitem os limites territoriais. As grandes epidemias modernas, a exemplo do COVID19 e as antigas que ressurgem volta e meia, já sinalizam para esta questão desde muito tempo; basta pensar nas grandes pestes que acometeram a Humanidade.
Eligio Resta (2002, p. 8, ob. Cit.)[17]. nos faz ver que a solidariedade, a qual somente agora se aproxima das discussões jurídico-científicas, vem para demarcar o que não queremos ver, vem para dizer que todas as evidências históricas nos levam a buscar alternativas em relação aos direitos fechados nos limites do Estado-Nação:
O direito fraterno, então, coloca em evidência toda a determinação histórica do direito fechado na angústia dos confins estatais e coincide com o espaço de reflexão legado ao tema dos direitos humanos com um entendimento a mais: que a humanidade é simplesmente o lugar comum somente no interior do que se pode pensar reconhecimento e tutela.[Tradução livre.]
O estudo e aplicação do Direito de solidariedade não é algo simples, pois não é simples colocar em questionamento algumas “verdades”, propor e ousar. É um tema provocativo, uma ‘aventura’ permitida somente àquelas pessoas verdadeiramente dispostas a refletir sobre a possibilidade de novas abordagens para o atual e fechado sistema jurídico. É urgente a positivação de um direito fundamentado no pacto entre irmãos, como um direito inclusivo, no cosmopolitismo, no sentimento de humanidade e todos os seus valores, como fundamento de qualquer código, uma vez que propõe a ruptura com os modelos tradicionais.
Finalmente, contrariando absolutamente o raso entendimento de que o Direito de Solidariedade (ou o Direito Fraterno) seja apenas mais uma utopia ou ideia cerebrina distanciada da normatividade e da racionalidade jurídica, ele pode perfeitamente ser visto como outra forma de se trabalhar na resolução de conflitos, onde a linguagem não seja propriedade apenas daqueles que dizem o direito, mas seja uma linguagem de todos, de irmãos, de iguais que compartilham a ideia de que a solidariedade, muito mais do que interditos e sanções, é hoje e sempre o que deve dizer o sentido e o valor da vida em sociedade. E isto tudo não deve ser para o amanhã.
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SILVA RODRIGUES, Raphael. “Ensino aplicado à filosofia de valores”. Conhecimento Editora, Belo Horizonte, 2022.
[1] MONDIN, Battista. O homem, quem é ele?, São Paulo: Paulinas, 1986
[2] “o que dá nascimento a uma cidade – disse eu – é, creio, a impotência de cada indivíduo de bastar-se a si próprio... ou pensas existir outra causa qualquer na origem de uma cidade?”
[3] CARRACEDO anota a respeito: “no deja de ser sorprendente esta antecipacíon, de más de dos mil anos, del funcionalismo liberal em el constructo platónico de la sociedade minimal. El contrato social aparece como espontâneo y no se plantea ni la existência de um Gobierno ni las consegintes obligaciones políticas ni Morales fuera de lo estrictamente funcional”. In; CARRACEDO, José Rubio. Paradigmas de la Política, p.76-77.
[4] HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de Filosofia do Direito. Tradução de Elza Maria Gasparotto. São Paulo: Martins Fontes,2008
[5] HOBBES, Thomas. LEVIATÃ ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução: D’Angina, Rosina. 2009, Martin Claret Ltda. São Paulo-SP.
[6] SILVA RODRIGUES, Raphael. “Ensino aplicado à filosofia de valores”. Conhecimento Editora, Belo Horizonte, 2022.
[7] CORDOBA Marcos M. Conferência pronunciada en el Parlamento de Berlín, Alcaldía de Tempelhof Schöneberg, abril de 2013
[8] LAJE, Alejandro, artigo “La solidaridad familiar como paradigma de la solidaridad en los sistemas jurídicos occidentales” publicado in: Derecho Moderno - Líber amicurum, Tomo II, de Marcos M. Córdoba, Editora Rubinzal-Culzoni, Buenos Aires-Ar.
[9] “Il diritto fraterno, dunque, mette in evidenza tutta la determinatezza storica del diritto chiuso nell’angustia dei confini statalie e coincide con lo spazio riflezione legato al tema dei diritti umani”
[10] RESTA, Eligio. Diritti umani. Torino: UTET. 2006.
[11] “La solidarietà avvicina mondi mentre la solitudine vive di separazione e di distanze. Il movimento apparentemente si svolge a senso unico, se non cifossero spinte contraddittorie e ambivalenti; cerchiamo distanze e differenziazioni ma Le revochiamo prepotentemente cercando e dando solidarietà, recongiugendo le nostre solitudine attraverso processi non soltanto simbolici che “uniscono”agli altri.”
[12] ROSSEUAU, Jean Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. Tradutor: Eduardo Brandão, Ed.Penguin&cia das letras,2017
[13] RODOTÀ,Stefano. La vita e le regole – Tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006
[14] “Viviamo ormai in una law-saturated society, in una società strapiena di diritto, di regole giuridiche dalle provenzione più diverse, imposte da poteri pubblici o da potenze private, con una intensità che fa pensare, più che una necessità, a una inarrestabile deriva. La consapevolezza sociale non è sempre adeguata alla complessità di questo fenomeno, che rivela anche assimetrie e scompensi fortissimi, vouti e pieni, com um diritto invadente in troppi settori e tuttavia assente là dove più se ne avverebbe bisogno. Sostenuto da spinte diverse, e persino contraddittorie”
[15] Sobre isso ver: PUNZI, A. L`ordine giuridici delle macchine. Gianppichelli, Torino, 2003.
[16] Nessa análise, Resta retoma o debate entre Freud e Einstein, nos anos 30, sobre o tema da guerra e da paz relacionados com a força do direito e com o significado de amigos da humanidade.
[17] “Il diritto fraterno, dunque, mette in evidenza tutta la determinatezza storica del diritto chiuso nell’angustia dei confini statali e coincide con lo spazio di riflessione legato al tema dei diritti umani, con una consapevolezza in più: che l’umanità è simplicemente luogo comune, solo all’interno del quale si può pensare rinonoscimento e tutela
Graduado em 1990 em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos-RS - Graduação em História pela UNINOVE - Universidade Nove de Julho - São Paulo-SP - Graduação em Pedagogia - CLARETIANO - Centro Universitário - São Paulo-SP - Especialista: Direito Imobiliário, com ênfase em Registral e Notarial - ESADE/FADERGS - Faculdade Desenvolvimento do Rio Grande do Sul; Doutorando (2021) em Ciências Jurídicas - UMSA - Universidade do Museo Social Argentino - Buenos Aires-AR - Consultor/Corretor Imobiliário - CRECI-SP - Advogado regularmente inscrito nas OAB/RS:29411 e OAB/SP:349855 - (experiência superior a 33 anos como Advogado militante) - Vários Cursos de atualização em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DALABILIA, LORENI DOMINGOS. A solidariedade como um valor indispensável para a interdisciplinaridade das normas jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jan 2023, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60855/a-solidariedade-como-um-valor-indispensvel-para-a-interdisciplinaridade-das-normas-jurdicas. Acesso em: 18 nov 2024.
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